Herói na luta contra os inimigos da Igreja

Devido a tramas efetuadas por hereges contra São João Damasceno, sua mão direita foi amputada por ordem do califa. O Santo recorreu a Nossa Senhora e a mão milagrosamente uniu-se ao  antebraço. Ele tornou-se um dos maiores Doutores da Igreja, famoso por seu talento, sua doçura e implacável heroicidade na luta contra os inimigos da Igreja.

Comentaremos uma ficha tirada do livro “Vie des Saints”, de Emanuel d’Alzon, a respeito de São João Damasceno.

Um eremita muito culto é salvo da morte

A narração explica que São João Damasceno era do Oriente Próximo. Seu pai, Sérgio Mansur, católico e ministro de um califa maometano, Abdal Malique, homem terrível, mas que gostava muito de Mansur porque este era um personagem de muito valor, criterioso.

Certo dia, Mansur saiu à rua e viu um número enorme de católicos sendo conduzidos para a morte. Então prometeu interceder por eles e salvá-los, o que efetivamente conseguiu do califa, junto a quem gozava de enorme prestígio.

Mas ele notou entre os prisioneiros – vejam os vaivéns da Providência – um que portava os trajes e tinha todo o jeito de um eremita. Naquele tempo, os eremitas usavam uma roupa que  vagamente lembrava o burel de um franciscano, moravam no deserto, em grutas, inteiramente sós, e eram personagens grandiosos. Ele notou que esse eremita estava com muito receio de morrer, e lhe disse:
– Eu compreendo que os outros estejam receosos; mas o senhor, um homem que abandonou o mundo, com medo de morrer? Confesso ao senhor o desapontamento que isso me causa. E o eremita deu-lhe esta resposta:
– “De morrer não tenho medo. Mas o que me causa apreensão é tudo quanto estudei em minha vida, e que o senhor não sabe.

Então vem uma dessas enumerações orientais pitorescas de tudo quanto ele estudou. Um homem sozinho, numa toca qualquer, tinha, além de tudo, aprendido oratória. Subia num montículo e falava para populações inexistentes.

Continuou o eremita:
– “Eu achava que tudo isso era para o serviço de Deus. E eis que agora estou fadado a morrer com a inutilidade de tudo que aprendi.

– Mas eu obtive do califa libertação de todos: o senhor está salvo – tranquilizou-o Mansur.

O eremita deu extraordinárias manifestações de contentamento. Mas o benfeitor lhe disse:
– Há uma condição: tenho dois filhos, e queria que o senhor viesse morar comigo e utilizasse toda a sua ciência para ensiná-los. Um desses filhos, o do segundo casamento, era João, futuro Doutor da Igreja e conhecido como São João Damasceno.

O eremita respondeu:
– Depois de o senhor salvar minha vida, estou ao seu dispor.

Hereges envolveram São João Damasceno numa intriga

Pelos desígnios da Providência, esse homem tinha sido chamado para uma ermida e ali encher-se de uma ciência extraordinária, sem saber definidamente o que Deus queria dele. Possuía, porém, uma noção interior tão grande e firme de se tratar realmente de um desígnio divino, que quando ele se viu condenado à morte, sem que esses conhecimentos fossem utilizados, sofreu um verdadeiro golpe.

Ele não sabia que essa tragédia a qual iria aproximá-lo da morte e consagrar a inutilidade de todos os seus esforços, na realidade fá-lo-ia encontrar o aluno em ordem a quem toda essa sabedoria tinha sido acumulada. E que ele seria célebre enquanto São João Damasceno o fosse, exatamente por causa do seu papel nessa celebridade. Esse anacoreta era como uma abelha, dotada de todo o mel da cultura antiga para nutrir um Doutor da Igreja.

A nota biográfica conta que São João Damasceno era muito bom aluno, inteligente, e aproveitou profundamente a ciência de seu preceptor. Entretanto, como se tratava daquele regime de politicagem do Oriente, os hereges envolveram São João Damasceno numa intriga.

O Imperador de Constantinopla estava em guerra contra o Califa de Damasco ao qual servia o pai de São João Damasceno. Um inimigo de Mansur, querendo comprometê-lo para que ele – ou seu filho João – fosse morto, escreveu uma carta falsa em nome de São João Damasceno ao Imperador de Constantinopla, na qual dizia admirar muito o Imperador, e que sendo católico não podia resignar-se diante da ideia de que os católicos fossem presos. Então, convidava o Imperador a invadir e tomar conta do califado, pois João e seu pai se levantariam para derrubar o califa.

O Imperador – herege iconoclasta chamado Leão III, o Isáurico – mandou a carta para Abdal Malique, dizendo estimá-lo tanto que lhe enviava aquela missiva como prova de lealdade, pois, podendo levantar esses súditos contra o califa, enviava-lhe a carta para que ele pudesse exterminar aqueles traidores.

O califa manda cortar a mão direita de São João Damasceno

Ao receber a carta, o califa ficou indignado e, sendo um homem de temperamento explosivo, mandou que carrascos agarrassem São João Damasceno e lhe cortassem a mão direita, como castigo. E só não o mandava matar por causa do grande prestígio que Mansur tinha junto a ele.

A ordem foi cumprida e São João Damasceno perdeu a mão, mas pediu ao califa que, ao menos, lhe entregasse o membro amputado para enterrá-lo. O califa acedeu ao pedido, pensando em tudo, menos no que poderia vir a acontecer.

São João Damasceno, de posse da mão cortada foi para o Oratório e começou a rezar, pedindo a Nossa Senhora que lhe restituísse a mão perdida. Deu-se, então, um milagre espetacular: a mão uniu-se ao corpo.

Diante do milagre, o califa contemporizou, soltou São João Damasceno que retomou seus escritos e sua pregação, tornando-se um dos maiores Doutores da Igreja, famoso por seu talento, por sua doçura e por sua implacável heroicidade na luta contra os inimigos da Igreja.

Imaginem o golpe para a Cristandade se São João Damasceno não pudesse expandir em todo o seu esplendor o brilho de sua palavra, em defesa da Igreja nas crises daquela ocasião.

Por outro lado, com o mestre se dá algo à maneira do que se passou com o discípulo: condenado à morte, vai perder todo o seu talento. Nesse episódio o mestre conhece o discípulo para o qual ele nasceu, e seu talento se eterniza na pessoa de São João Damasceno. Este, por sua vez, tem a mão cortada, a carreira prejudicada, a vida golpeada. Depois, um magnífico milagre e a prova de que Deus estava com ele. Admiração para todos os católicos da Ásia Menor e para a catolicidade inteira, ficando assim com um grande prestígio para pregar a palavra de Deus. Antes disso, porém, Deus quis levá-lo às sombras da morte.

“Em tua luz veremos a Luz”

Não posso me esquecer de que na Faculdade “Sedes Sapientiæ”, onde fui professor, havia uma capela que não era bonita, mas na qual existiam coisas muito bonitas: um vitral representando Nosso Senhor e, embaixo, esta frase da Escritura: “Ainda que eu caminhe nas sombras da morte, não temerei os males” (Sl 22, 4). Depois, outro vitral, do qual não me lembro a figura, com uma frase belíssima: “Iluminados por tua luz, veremos a Luz” (Sl 35, 10).

“Ainda que eu caminhe nas sombras da morte, não temerei os males”. O que significa isso para nossa vocação? Mesmo que os mais tenebrosos obstáculos se oponham ao caminhar da nossa vocação, não temeremos os males e continuaremos a andar serenamente, porque Nossa Senhora abrirá os caminhos e nós os transporemos, e chegaremos até o fim, desde que sejamos verdadeiramente devotos d’Ela.

“Iluminados por tua luz, veremos a Luz”. Embora eu não seja um exegeta, creio que essa frase pode ser aplicada a Maria Santíssima. Ela é uma luz, e à luz d’Ela vemos a Luz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Essas duas frases têm relação com a vida de São João Damasceno. As sombras da morte rodearam o preceptor dele, mas este encontrou a vida achando seu discípulo. O mesmo na vida de São João Damasceno. As sombras da morte o rodearam nesse golpe tão duro. Ainda aí ele não temeu os males; sua mão se recompôs e ele recomeçou.

Isso nos leva a uma confiança cega em Nossa Senhora. Se confiarmos, teremos tudo; se não confiarmos, nada possuiremos.

A expressão “Em tua luz veremos a Luz”, como é adequada quando estamos diante de uma imagem da Santíssima Virgem tendo ao colo o Menino Jesus! É uma luz e, junto a Ela está a Luz das luzes. E à luz de Nossa Senhora de Coromoto, vemos o Menino Jesus. Não pode haver nada mais bonito do que isso! Aí fica a figura enternecedora dessa imagem e a graça dada a um índio da América do Sul, fixadas no firmamento da Igreja à memória gloriosa de São João Damasceno.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/5/1976)
Revista Dr. Plinio 237 – Dezembro de 2017

São Francisco Xavier e o autêntico idealismo

A extraordinária epopeia apostólica de São Francisco Xavier, enfrentando toda sorte de riscos a fim de conquistar os povos do Oriente para a Igreja Católica, oferece a Dr. Plinio ensejo para nos fazer compreender o teor do verdadeiro ideal: mais  do que a realização de uma grande coisa, é o glorificar a Deus, submetendo-se humildemente à sua superior vontade.

Pode-se dizer que o significado de certas palavras sofrem transformações ao longo dos tempos, de acordo com o entendimento das gerações que se sucedem umas às outras. Exemplo característico, a meu ver, são os termos “ideal” e “idealismo”.

Luminosidade e harmonia sonora

A palavra “ideal” possui uma ressonância peculiar, luminosidade, harmonia sonora — quase diria visual — que lhe dão significado próprio. De algum modo ela impele o menos poético dos homens a pronunciá-la como um cântico: ideal!

Quando se diz que alguém tem ideal, entende-se tratar-se de um valor maior que o simples e vil desejo de lucrar vantagem pessoal. Não se aplica, no sentido literal e plano do termo, a afirmações como esta: “Fulano cultiva um ideal, o de tornar-se riquíssimo”. Isto se refere a uma meta, um objetivo, uma ambição, não a um ideal.

Dizer-se de um indivíduo que ele é um homem ambicioso, pois deseja fazer coisas grandes, pode ser até um elogio. Porém, há diferença entre uma coisa grande e uma grande coisa.

O genuíno idealismo de São Francisco Xavier

Imaginemos, por outro lado, São Francisco Xavier dirigindo-se para a Índia e o Japão, como primeiro passo para alcançar também a China. Naqueles idos do século XVI, viajar da Europa para o Extremo Oriente podia representar tanto ou mais perigo do que, hoje, uma expedição de astronautas rumo à Lua.

O discípulo de Santo Inácio enfrentou riscos e dificuldades impensáveis, imbuído de um anelo muito superior ao dos mais audaciosos comerciantes da época: ele ia em busca de almas para Nosso Senhor Jesus Cristo. Viaja com o coração estraçalhado de dor diante das devastações que a Pseudo-Reforma produzia na cristandade européia, e talvez pensasse: “Vou para a Índia, Japão, China, convidar novos povos e almas ainda não evangelizadas a corresponderem à graça, e assim trazê-las para a fé católica que agora se mostra abalada no Ocidente”.

Quem procede desta maneira não realiza uma coisa grande, mas uma grande coisa. Isto se chama ideal. E todos os reluzimentos que esta palavra possa ter, fulguram com toda a sua beleza quando os esforços são empregados na mais alta das finalidades: salvar a-mas para a glória de Deus e de Maria Santíssima. Nesse ideal não está presente o egoísmo; para alcançá-lo, o homem entrega toda a sua vida, disposto a passar pelos maiores riscos, dissabores, perigos, sofrimentos, preocupado unicamente com o serviço divino.

Eis o verdadeiro ideal, autenticamente glorioso. E ao considerarmos essa disposição de São Francisco Xavier, nós o veneramos e lhe imploramos: rogai por nós.

Na aparência, um ideal fracassado

Contudo, a vida de São Francisco Xavier pode parecer, até certo ponto, frustrada. Como se sabe, seu maior objetivo era conquistar a China para Deus. Esteve na Índia e a evangelizou. Visitou o Japão e ali obteve imensas vantagens para a fé cristã. Em seguida partiu em direção à China, sua grande meta, pois este país de população incalculável, riqueza cultural extraordinária e grande prestígio em todo o Extremo Oriente, seria uma conquista incomparável para a Igreja Católica.

Mas, mistérios de Deus… Esse apóstolo de zelo e fervor invulgares morre antes de chegar àquela nação. Seu supremo ideal, a evangelização do povo chinês, não se realizaria. Doente, sentiu a morte se aproximar enquanto se achava na Ilha de Sancian, de onde já se divisava a China continental. Quis então expirar no puro amor de Deus, com seus olhos voltados para aquela China na qual não conseguiu entrar. Rendeu seu derradeiro suspiro em paz, embora não houvesse atingido seu ideal.

Diante dessa situação, vem-nos a perplexidade: “Por que Deus permite tal frustração? Por que o herói desejoso de conquistar para Ele algo tão excelente como toda a China não atingiu seu objetivo? Como entender esse (ao menos na aparência) fracasso?”

Encontro com um Bispo chinês do século XX

Estas questões me trazem à lembrança a figura de um Bispo que conheci em minha viagem a Roma, no início da década de 60. Embora não proviesse de ordem religiosa, achava-se hospedado num convento, ocupando uma espécie de quarto escritório, sem luxo mas dignamente arranjado. Homem alto, esguio, longilíneo, flexível em todas as partes do corpo, possuía o porte de um descendente dos mandarins. Conversou comigo em francês, com uma voz muito afável e amável, tratando-me de “Monsieur le Professeur”, enquanto eu me dirigia a ele chamando-o de “Monseigneur”.

Dotado de um charme próprio, gesticulava e alterava a fisionomia de acordo com seu modo de ser. Sobre a cabeça, um tanto pequena em relação ao resto do corpo, portava um chapéu preto, ornado de uma pena de pavão que oscilava conforme seus movimentos. Ao vê-lo, pensei: “Este homem é um porta penas de pavão perfeito!”

Numa palavra, esse Bispo trazia consigo toda a graça daquela antiga e misteriosa China que fascinou São Francisco Xavier. E no meu interior ecoou algo do imenso desejo que este santo missionário alimentou de conquistar o povo chinês para a Igreja Católica.

Hipótese entusiasmadora

Pode-se supor que se o grande ideal de São Francisco Xavier fosse realizado e tivéssemos uma China católica, a Santa Sé provavelmente consentiria em estabelecer uma liturgia peculiar àquele povo, com manifestações simbólicas dos dogmas da Igreja conforme as circunstâncias locais, um canto sacro próprio, edifícios sagrados inspirados nos estilos arquitetônicos chineses e segundo o talento de seus artistas. Imaginemos, por exemplo, a mirífica beleza de uma catedral feita de porcelana, e cuja torre, semelhante a um pagode, ostentasse no alto uma imagem da Imaculada Conceição! As estalas do presbitério talhadas em marfim, os bancos da nave central feitos de algum lindo bambu, encerado e perfumado…

Se, diante dessa hipótese, nossa alma se entusiasma, não será difícil calcular a intensidade do entusiasmo ainda maior que latejava no coração de São Francisco Xavier.

Dar glória a Deus, o mais elevado ideal

Ora, no momento em que maravilhas semelhantes começariam a se produzir, Deus, em cujas mãos estão as vidas dos homens, diz ao santo missionário jesuíta: “Cessa a tua luta, venha para o Céu!”

E Francisco, olhando para a China e por esta nação rezando, expira docemente no Senhor, dizendo sem ressentimento algum: “Deus que me insuflou esse ideal, não permitiu sua realização. Senhor, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu!”

Algum companheiro de São Francisco Xavier, vendo-o morrer assim, quiçá se tomasse de desânimo: “Então, não se dará a conversão do povo chinês? Dir-se-ia que as orações de São Francisco não foram atendidas, e seu ideal foi posto de lado”. Por essas dúvidas percebemos quanto é sutil o tema do idealismo, e de quantos aspectos se reveste, a serem considerados para compreendermos a obra de Deus.

Claro está, o ideal de São Francisco Xavier era a evangelização da China, porém não era seu fim supremo, que consistia em dar glória a Deus. Desde que o Altíssimo, por insondáveis desígnios, dele quisesse, não a China, mas um ato de submissão à vontade divina, São Francisco o aceitava como seu mais elevado ideal. O ideal que os anjos proclamaram na noite de Natal, em Belém: “Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade”.

À semelhança do Divino Mestre e Nossa Senhora

Francisco era um desses homens de vontade boa, santa, reta, nobre, voltada para o ideal. Por isso morreu em paz na Terra, glorificando a Deus. E talvez o Criador tenha recebido mais louvor pela conformidade desta grande alma com os desígnios d’Ele, do que na conversão da China. Desse modo ensinou a todos os homens de boa vontade a cumprirem esse supremo ideal que é dar-lhe a devida glória acima de tudo.

Nisso se assemelham a Nosso Senhor Jesus Cristo, que padeceu e morreu proclamando sua conformidade com a vontade do Pai Eterno. No Horto das Oliveiras, bradou: “Pai meu, se for possível, afaste-se de Mim este cálice, mas seja feita a vossa vontade e não a minha”. Como se assemelham, igualmente, à Santíssima Virgem que, quando da Anunciação do anjo, diante do excelso convite para a maternidade divina, respondeu:

“Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.

“Faça-se”, Fiat, termo que aqui significa obediência, disciplina, confiança, bondade, ideal, glória a Deus.

Um mérito maior que o das conquistas

Alguém poderia apresentar a seguinte dificuldade: Dr. Plinio, eu estava certo de que avançar rumo ao ideal significava subir, subir, para finalmente atingi-lo. No momento em que a ideia de conquista mais me entusiasma, o senhor fala de renúncia. Isto quebra as energias de minha alma”.

Respondo: Meu caro, quebra os fracos. Tais considerações são feitas para que não seja pusilânime. Como se viu, o verdadeiro ideal é aquele que se prende ao fim supremo, is-to é, fazer a vontade de Deus infinitamente sábio e santo. As cintilações de minha inteligência pseudo-luminosa são inferiores à de um vaga-lume diante do sol que é a santidade e a sabedoria do Criador. Portanto, não há para o homem, nem autêntico ideal nem bom desejo que não sejam realizar a vontade divina.

“Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Pronunciemos a frase da Santíssima Virgem, unamo-nos a Ela na mesma obediência e assim cumpriremos nosso ideal. Pode ser que num primeiro momento Deus espere de nós que desejemos nossas “Chinas”. Num segundo passo, teremos a impressão de que não as conquistamos, elas nos escaparam das mãos e nada conseguimos.

Nesta hora, recordemo-nos de São Francisco Xavier e, pelos rogos de Maria, digamos: “Meu Deus, aconteceu como quisestes; quero o que quereis. Fez-se a vossa vontade e não a minha. Morro em paz.”

Dessa forma nossa vida terá atingido sua finalidade, e de algum modo que não sabemos explicar, o mérito de nossa submissão será maior que o de todas as nossas conquistas.

Mais do que a China convertida

Certamente, ao perceber a morte se aproximar, São Francisco Xavier olhava para aquela nação tão amada e desejada, e pensou: “Meu Deus, esta China virá quando quiserdes. Ela vale muito, mas o Céu tem maior valor. Contemplando vosso Sagrado Coração e o Coração Imaculado de Maria, rogo-vos a graça de sempre ir para frente e para cima”.

Aos olhos de Deus, essa atitude se reveste de um alcance incalculável. Nosso santo não conquistou a China, porém, sem o saber, obteve inúmeras outras vitórias. Somente no Juízo Final saberemos quantas glórias foram dadas a Deus, muito maiores do que a China, simplesmente pela obediência animosa, intrépida e heroica de São Francisco Xavier!

Podemos imaginar que, ao expirar, ele tenha elevado a Deus uma prece semelhante a esta:

“Senhor, meu Deus, meu Criador, meu Redentor. Senhora, Maria Santíssima, Mãe de Deus e minha. Vim até aqui para vos obter a China. Porém, quereis de mim uma viagem maior, que eu transponha os sombrios umbrais da morte e vá para a eternidade. Quereis quebrar-me, separando minha alma do meu corpo, o qual em breve não se-rá senão um cadáver. Rogo-vos que minha alma, julgada por Vós em espírito de benignidade, seja conduzida ao Paraíso.

“Senhor, não pude conquistar a China, mas bem sei que de tudo quanto alcancei na vida, algo queríeis mais do que todo o resto: de Francisco, queríeis Francisco!

“Minha Mãe, aqui está Francisco. Oferecei-me a Deus, pois não nasci senão para isto! Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/10/1984)

São Francisco Xavier

Grande missionário da Companhia de Jesus no Oriente, comparável aos Santos Apóstolos da Igreja nascente, São Francisco Xavier deixou-se modelar pela abundância das graças que recebeu de Deus, tornando-se um varão de extraordinário espírito sobrenatural.

Exemplo de homem que soube enfrentar as dificuldades, as provações e os reveses desta existência, era como o cavaleiro medieval, que se entregava às vicissitudes das batalhas ávido de perigos e de heroísmos, na defesa da causa para a qual fora suscitado.

Também nós devemos fazer face às nossas aflições e necessidades, como o fazia São Francisco Xavier: resolutos, tranquilos e com inteira confiança na misericórdia divina. É essa a maneira pela qual o homem verdadeiramente cresce na sua estatura moral e pode alcançar o ápice de santidade para a qual é chamado.

Uma porta do céu se abriu para o mundo

Neste ano a Capela da Rue du Bac celebra o jubileu das aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré. Como melhor modo de associar esta revista e seus leitores a data tão significativa, estampamos a seguir um eloquente comentário de Dr. Plinio sobre aquelas visões de alcance inapreciável para todos os homens.

Quem visita a Capela da Rue du Bac, em Paris, onde Nossa Senhora apareceu a Santa Catarina Labouré e lhe pediu a cunhagem da Medalha Milagrosa, sente-se envolvido por uma intensa impressão de paz, de calma, de céus abertos, como se não existissem obstáculos entre a Terra e a feliz eternidade. No íntimo de sua alma, o fiel ouve a voz de Nossa Senhora, exorável, disposta a atender todos os nossos pedidos, com sua maternal benignidade transpondo distâncias incontáveis para se tornar acessível a nós. Tudo isso faz daquela capela um lugar de serenidade realmente privilegiado.

Serenidade, calma e paz autênticas, ou seja, toques de sobrenatural que afagam nossa alma com verdadeira unção, verdadeira consolação e verdadeira confiança, e nos infunde a plena certeza de que, em última análise, Nossa Senhora nos alcançará as graças tão desejadas por nós.

A época das aparições da Rue du Bac

As aparições da Santíssima Virgem se deram em 1830, sendo a mais importante delas no dia 27 de novembro, quando revelou a Santa Catarina os tesouros de dádivas celestiais destinados ao mundo com a difusão da Medalha Milagrosa.

Cumpre recordarmos que, naquela época, a par de um grande reflorescimento da prática da religião Católica, havia também fortes manifestações de laicismo e ateísmo hostis à Igreja, de maneira que um fosso abismal separava o catolicismo do anticlericalismo. Ecos dessa animosidade eu mesmo conheci, no Brasil dos anos 20. Portanto, quase um século depois das aparições da Rue du Bac.

Tão profundo era esse valo divisório entre as coisas da Igreja e as da sociedade civil que, ao se transpor os umbrais do ambiente profano e ingressar no religioso, era como se deixássemos um país para entrar em outro. Lembro-me de quando comparecia à bênção do Santíssimo Sacramento na Igreja do Coração de Jesus, após a qual, saindo do templo, observava o edifício daquilo que então era o internato do Liceu, desdobrado em duas alas em torno de todo o quarteirão.

As janelas dos andares inferiores permaneciam fechadas e protegidas por grades. Ao contrário daquelas dos andares superiores através das quais, no lado onde eu sabia situado o dormitório dos meninos, podia-se ver algumas luzes azuis acesas: sinal de que as crianças já dormiam. E o relógio da torre ainda não marcava nove horas da noite…

Recordo-me da impressão que causava em mim o entrar na sociedade profana — insisto, dos anos 20 — e perceber o contraste entre o coruscante, o assanhado, o divertido daquele mundo, e o dormitório extenso, onde um grande número de meninos repousava sob a supervisão de um padre pronto a acordar ao menor sinal de perturbação, para restabelecer a ordem e a tranqüilidade!

Encantava-me saber que aqueles meninos dormiam placidamente, aos cuidados de um sacerdote que representava ali a eterna tradição da Igreja ordenativa, moralizante, disciplinadora. Alegrava-me ver que, enquanto todos se achavam imersos no sono noturno, as luzinhas azuis simbolizavam a maternalidade da Igreja a envolver seus filhos em brumas amigas; a vigilância de quem sabe sorrir sem fechar os olhos, sempre ciente do que se passa. Tudo isso me dava a impressão de haver naquele ambiente uma austeridade, uma sacralidade, uma ordenação que o mundo fora não conhecia. Era outro universo.

Pois bem, numa atmosfera análoga a essa tiveram lugar, na Paris de 1830, as revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré.

O sobrenatural se desenrola numa modesta capela

Era esta uma freira da congregação das Filhas da Caridade, fundada por Santa Luísa de Marillac e São Vicente de Paulo. Essas religiosas se distinguiram sempre por sua extrema e abnegada solicitude cristã, dedicando-se ao cuidado dos pobres, órfãos, e enfermos nos hospitais e Casas de Misericórdia. Até há pouco eram conhecidas pelo seu hábito característico: túnica escura com gola branca engomada, a cabeça adornada por uma touca bretã, estilizada pela inspiração e pelas mãos da Igreja. Essa cobertura se desdobrava em duas abas largas, lembrando vagamente as asas de uma gaivota em voo. Na cintura, como é natural nos hábitos religiosos, pendia um grande rosário.

Não tive contato assíduo com essas freiras, mas encontrei-me com muitas delas. Em geral pessoas robustas, fortes e prontas para o trabalho. Olhar límpido, reto, atitude despretensiosa de quem preferia passar desapercebida. Realizavam obras de misericórdia temporal como ocasião para obras de misericórdia espiritual. Ou seja, elas aproveitavam a ocasião de cuidar de um paciente terminal para trazer um padre junto a ele, para convidar uma criança a ir ao catecismo da paróquia, ou se encontravam uma pessoa desventurada na rua, procuravam ajudá-la em todo o necessário, etc. Enfim, faziam tudo quanto pudessem para atender aos infortúnios, as carências materiais e, sobretudo, as espirituais, nos mais variados ambientes por onde costumavam se infiltrar.

A elevação desse apostolado das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo era tão grande, e as admiravam tanto por isso, que costumavam ser tidas como o próprio símbolo da religião numa de suas expressões mais belas e comovedoras.

O seu principal convento situa-se num antigo e aristocrático bairro da capital francesa, o Faubourg Saint-Germain, e se tornou conhecido pelo nome da rua em que foi edificado: Rue du Bac.

Devemos imaginar a cidade de Paris nos idos de 1830, bem menor e menos populosa do que é hoje, silenciosa, tranquila, ainda sem ruídos de motores e luzes de néon. Podemos pensar na rua calçada com pedras, sobre as quais, vez por outra, o eco das patas de um cavalo ou das rodas de uma carruagem interrompia a longa calada da noite. No dormitório das freiras de São Vicente, não havia luzinhas azuis, mas talvez alguns candeeiros acesos. Todas as religiosas repousam, entre elas Santa Catarina Labouré.

Nesse ambiente modesto, puro e elevado, completamente diverso do mundo exterior, o maravilhoso sobrenatural começa a se desenrolar.

Colóquios com a Rainha do Céu

A primeira aparição ocorreu na véspera da festa de São Vicente de Paulo, em 18 de julho de 1830, como que preparada por uma atitude da vidente repassada de ingenuidade, inocência e caráter filial muito bonitos. Ela ouvira no dia anterior uma exposição sobre a devoção a Nossa Senhora, e sentiu um ardente desejo de vê-La. E foi se deitar com o pensamento de que, naquela mesma noite, encontrar-se-ia com a Santíssima Virgem.

E foi o que aconteceu. Como nos relata a própria Santa Cataria Labouré, por volta das onze e meia da noite, ela ouve alguém lhe chamar. Corre a cortina de seu leito e vê um menino de 4 ou 5 anos que lhe diz: “Vinde à capela, a Santíssima Virgem vos espera”.

A santa demonstra um pouco de receio, temendo que as outras religiosas a surpreendessem fora da cama, mas o menino a tranquiliza, ela se veste e começa a segui-lo pelos corredores do convento. Detalhe curioso, registrado pela vidente que muito se admirou do fato: por todos os lugares onde passaram as candeias estavam acesas.

Ela entra na capela e sua surpresa é ainda maior ao notar todas as velas acendidas nos candelabros, como se estivessem preparados para uma Missa do Galo. O menino a conduz até o presbitério, ao lado da cadeira em que se sentava o vigário. Santa Catarina se ajoelhou, enquanto a criança permaneceu de pé. Ela, sempre com o receio de que alguma freira passasse por ali e os encontrasse, pedindo-lhe explicações que não saberia dar…

Afinal, o menino lhe advertiu: “Eis a Santíssima Virgem”. A vidente ouviu um “frou-frou”, um roçagar de vestido de seda, mas ainda não distinguia Nossa Senhora. Então o menino insistiu — já não com voz de criança, mas em tom vigoroso — que a Rainha do Céu estava presente. Nesse momento Santa Catarina viu a Mãe de Deus sentada na cadeira do vigário, deu um salto para junto d’Ela e, genuflexa, apoiou suas mãos nos joelhos de Maria.

Quer dizer, uma cena fabulosa, uma aparição cercada de afabilidade extraordinária. Compreende-se, pois, que Santa Catarina tenha registrado esse instante como o mais doce de sua vida, impossível de ser descrito em palavras. Recebeu ali diversos conselhos e orientações de Nossa Senhora, os quais preferiu manter em sigilo.

A Medalha Milagrosa

Podemos bem conceber como Santa Catarina se sentiu após esse encontro com Nossa Senhora, e como seu coração latejava de um intenso desejo de revê-La. Alguns meses depois, ela seria largamente atendida. O segundo e mais importante encontro se deu na tarde do sábado 27 de novembro de 1830. Assim o relata um cronista das diversas aparições de Maria:

“Na sua capela da Rue du Bac, as Filhas da Caridade — Irmãs e noviças — se reúnem para a meditação vespertina. Recolhimento e religioso silêncio. De repente, em meio à sua piedosa contemplação, Catarina Labouré julga ouvir o roçar de um vestido de seda… A Santíssima Virgem, ali!

“Qualquer pensamento é impossível diante da inconcebível beleza de Maria. Ela usa um vestido de seda alvíssima como a aurora. Da mesma cor é o véu que Lhe desce da cabeça até os pés. Estes repousam sobre volumoso globo, que parece fixo num ponto do espaço. As mãos, elevadas à altura do peito, sustentam graciosamente um outro globo, menor que o pedestal e encimado por uma cruz. A Virgem tem o olhar voltado para o céu. Seus lábios oram. Ela oferece o globo ao Mestre, seu Filho.

“De súbito o globo desaparece e as mãos permanecem estendidas. Os dedos se cobrem de anéis guarnecidos de cintilantes pedrarias, que emitem raios deslumbrantes para todos os lados. Mil fulgores preciosos se fundem num só brilho transcendente. Mil irradiações circundam a santa figura.

“A Virgem pousa os olhos sobre Catarina em contemplação, abismada num mundo de sensações, de sentimentos, de descobertas, de revelações inexprimíveis. No fundo de seu coração, a noviça ouve uma voz que lhe diz:

“— Este globo representa o mundo inteiro, e especialmente a França, e cada homem em particular.
“— A chuva de raios redobra em força, em magnificência.
“— Eis o símbolo das graças que Eu derramo sobre aqueles que mas pedem. As pedras que permanecem na sombra (dirá ainda, uma outra vez, a Santíssima Virgem) simbolizam as graças que se esquecem de me pedir…”

Segundo narração de Santa Catarina, formou‑se em torno de Nossa Senhora um quadro de forma ovalada, no alto do qual estavam escritas em letras de ouro as seguintes palavras: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós” . E novamente ela ouviu uma voz que lhe mandava cunhar uma medalha conforme aquele modelo. E a promessa: Todos os que a usarem, trazendo-a ao pescoço, receberão grandes graças, que serão abundantes para quem a portar com confiança”.

Em seguida, diz a vidente, o quadro pareceu girar e ela viu o reverso da medalha: no centro, o monograma da Santíssima Virgem, composto pela letra “M” encimada por uma cruz, a qual tinha uma barra em sua base. Embaixo, os Corações de Jesus e de Maria, o primeiro coroado de espinhos, e o outro, transpassado por um gládio.

Era o desenho da Medalha Milagrosa, como esta seria amplamente conhecida e difundida pelo mundo inteiro, alcançando graças e favores celestiais para incontável número de pessoas, milagres de ordem física, como a cura de doenças, e também de ordem espiritual, reformas de vida e conversões das mais inesperadas.

Desígnios de alta misericórdia para o mundo

Por exemplo, célebre se tornou a conversão de um prelado apóstata, o arcebispo francês Mons. Duprat. Ele abandonou a Igreja Católica e se tornou secretário de finanças de outro famoso bispo renegado, Talleyrand.

Conta-se que Mons. Duprat, sabendo chegado aos seus últimos dias, relutava em se confessar e emendar. Algum zeloso parente ou conhecido, preocupado com a salvação eterna dele, prendeu a Medalha Milagrosa no travesseiro do arcebispo. Foi o bastante para que a graça o tocasse. Dias depois ele pedia que lhe trouxessem um padre: “Mudei de ideia, desejo me confessar”. O sacerdote se apresentou, e o filho pródigo fez as pazes com Deus, com a Igreja e com a sua consciência. Não se passou muito tempo, e morreu readmitido no seio da Esposa mística de Cristo.

Casos como esse se multiplicaram ao longo dos anos e ainda hoje se verificam pelo mundo afora. Assim como tantas outras formas de amparo e benefício oriundos do uso da Medalha.

Lembro-me, aliás, deste outro fato. Uma senhora da aristocracia francesa mantinha no salão nobre de sua residência, magnificamente decorado, um quadro com a Medalha Milagrosa, manchada e amassada no centro. Os visitantes que ela recebia em casa, estranhavam aquilo exposto com tanta evidência num recinto esplêndido, em meio a objetos de alta categoria, e perguntavam a razão disso. A senhora respondia:
“— Guardo esta medalha porque meu filho era um estroina, e estando num mau lugar, levou um tiro. A bala acertou diretamente na medalha, e em vez de perfurá-la, de modo inexplicável apenas a danificou, como para autenticar o fato extraordinário, e caiu no chão. Diante do prodígio, meu filho se converteu e hoje é um católico modelar. Eu desejo, então, que minhas visitas conheçam este favor recebido de Nossa Senhora e saibam agradecer. Por isso esta medalha está aqui.”

É simplesmente incontável o número de episódios semelhantes, onde foram obtidas graças preciosas através da Medalha Milagrosa. Motivo pelo qual ela é objeto de tanta devoção, tendo sido destinada por Maria Santíssima a ser um maravilhoso meio de se realizarem desígnios de sua alta misericórdia para o mundo.

Expressão do carinho materno de Maria

É interessante frisar, ainda, que essa particular proteção da Virgem Santíssima em relação a nós transparece muito na sua prerrogativa de Mãe da Divina Graça.

Quantos já não nos sentimos, ao aproximarmos de uma imagem sob essa invocação, recebidos por um sorriso d’Ela, envolvidos por uma espécie de doçura que nos prometia compaixão, pena, a convicção de sermos atendidos e favorecidos por um ato de inesgotável bondade?

É a certeza de que Nossa Senhora sempre se acha disposta a nos socorrer e amparar com sua clemência, seja em nossas carências materiais e físicas, seja marcadamente em nossas lacunas espirituais, ajudando-nos a vencer nossos defeitos, as tentações e o pecado. Portanto, Nossa Senhora das Graças podia se dizer Nossa Senhora da Misericórdia, que nunca, nunca, nunca nos deixará desamparados.

E creio jamais ser suficiente insistir nesta verdade: Mãe da Divina Graça significa a tesoureira de todas as graças de Deus. As dádivas celestiais constituem um tesouro inexaurível, posto nas mãos de Nossa Senhora e por Ela difundido àqueles que recorrem à sua intercessão.

Maria é a dispensadora de todas as graças e também a Mãe dos que Lhe suplicam favores. Mãe dos miseráveis, dos aflitos, daqueles que quase perderam a esperança, aos quais Ela reanima, e faz reacender em seus corações a chama da Fé.

Basta considerarmos uma imagem de Nossa Senhora das Graças para compreendermos o quanto esse título exprime o carinho materno de Maria em relação a nós. Acolhe-nos de braços abertos, o sorriso nos lábios, repassada de um convite amorável para nos aproximarmos e convivermos um pouco com Ela. Envolve-nos com uma afabilidade e uma promessa de perdão sem limites, insondável. E nos faz ouvir no fundo da alma a sua voz carinhosa: “Tendes a Mim, sou inteiramente sua. E por causa disso, todos os caminhos para o Céu lhe são franqueados…

Plinio Corrêa de Oliveira

Um par de asas para rumar a Deus

Uma autêntica formação filosófica faz-nos, ao contrário do que muitos julgam, voar para Deus. Sem dúvida, a consideração das limitações do raciocínio do homem e o anseio dos mais altos valores constituem o estímulo para a vida sobrenatural.

Ao longo da vida, todo homem adquire uma experiência interna de si mesmo, das suas próprias limitações, fraquezas e carências. Entretanto, ao experimentar essa insuficiência, ele sente desabrochar em seu interior um intenso desejo de voltar-se para algo de absoluto e divino, que compreende ser exterior a si. Essa necessidade, que é também uma carência, determina uma apetência e um desejo de ordem instintiva, que jorra possante e plenamente em sua integridade e pureza original, rumo ao Divino, no mais profundo da alma humana.

Esse fenômeno é denominado Instinto do Divino, algo que de si mesmo é inteiramente conforme à natureza.

À procura de Deus

Como fruto do Instinto do Divino, surge um conhecimento ainda anterior ao raciocínio, que é conhecido como Senso do Divino.

Movido pelo Instinto do Divino, o homem tem sua atenção voltada para alguns princípios de ordem filosófica, ainda quando subconscientes, que o fazem excogitar algo a respeito de Deus enquanto ser transcendente. Esses princípios induzem sua alma a aplicar as verdades já conhecidas também a este senso, permitindo-o entrever muito do divino nas coisas, facilitando assim a pesquisa feita pelo raciocínio rumo ao encontro do Divino. Este conhecimento anterior ao raciocínio explícito, capaz de guiá-lo e estimulá-lo, chama-se Senso do Divino.

O Instinto e o Senso do Divino são, portanto, de ordem natural. Porém quando corroborados por uma ação de Deus ou pelos dons do Espírito Santo no sentido de guiá-los e aguçá-los, podem passar facilmente da ordem natural para a ordem sobrenatural. Isso afirmava São Tomás de Aquino, utilizando-se de Aristóteles, acerca da ação do Espírito Santo no Instinto do Divino.

Formação autêntica

Compreende-se, então, como a autêntica formação católica deveria começar, desde suas mais básicas raízes, no estímulo ao Instinto do Divino como também ao Senso do Divino. Caso contrário este instinto atrofia-se, ainda nos anos da infância dos indivíduos, devido a mil circunstâncias desfavoráveis da educação moderna.

Considerando valores mais altos…

À luz destas noções, torna-se possível considerar o conceito de nobreza de espírito.

Para uma pessoa que não possua uma luz primordial1 especificamente metafísica, tanto o Instinto do Divino como o Senso do Divino se fazem sentir através da procura do que há de mais elevado e arquetípico em cada ordem de coisas criadas por Deus. De tal forma que o espírito busca, em tudo, o que é mais nobre. Essa é, então, a verdadeira nobreza de alma. E é na consideração ou procura de valores superiores, que vive o homem de alma nobre.

Essa nobreza constitui uma condição para que o Instinto do Divino obtenha o que anseia, que vem a ser propriamente Deus.

O Instinto do Divino predispõe a alma para receber a Revelação. Além de proporcionar uma docilidade em relação à Doutrina Católica, o que serve posteriormente como prodigioso argumento apologético. Pois o conhecimento da Doutrina Católica sacia de tal modo a alma humana e, em consequência, o Instinto do Divino, que se torna desnecessário um argumento apologético que prove as verdades da Fé.

Obstáculos a vencer

Entretanto, ao longo da vida, inúmeros são os obstáculos que nascem contra o Instinto do Divino. Esses empecilhos caracterizam-se, sobretudo, por um amarfanhamento ou um desuso desse instinto, que são diretamente provenientes do ateísmo e do egoísmo.

Outro obstáculo ocorre pela repressão do senso metafísico e do Instinto do Divino, causando uma “opacidade” de alma no indivíduo. Sua concepção do Divino limita-se, então, ao revelado, e sua posição de alma perante a Revelação torna-se mera recepção indiferente. Não repercute mais a Revelação nele se é de uma de outra forma.

Existe ainda a deformação do indivíduo que racionaliza esse senso. Ao fazer o estudo de Filosofia ou de Teologia, realizam-no de tal forma cartesiana, que julga dever reduzir o Instinto do Divino a tábula rasa, fazendo desse instinto um simples jogo de razão afastado de Deus, e portanto, indiferente às maravilhas das quais poderá tomar conhecimento.

Raciocínio humano

Lembro-me de um professor e filósofo do qual tomei conhecimento, que afirmava algo que me causava profunda estranheza. Porém eu ainda não possuía elementos sólidos para refutá-lo. Dizia ele o seguinte: “A verdade que eu concebo como corolário de meu raciocínio, é a verdade contra tudo e contra todos. Será verdade até contra a Igreja. Contudo creio que a Igreja nunca errará.” Ou seja, sempre concordaria com ele… “Mas a verdade, absolutamente entendida, não abro mão dela.”

Com o passar do tempo tornou-se-me clara a explicação para o problema: qualquer homem sente em si debilidades e fraquezas inumeráveis, por onde se torna inviável que ele mantenha uma confiança plena em seu próprio raciocínio. Por isso, conhecendo razões extrínsecas ao seu pensamento que o levem a duvidar dele, ele tem de fazê-lo. Pois o raciocínio humano não é, de modo algum, inerrante.

O Instinto do Divino indica-nos que toda conclusão a que possamos chegar, que em algo o contrarie, deve ser eliminada e negada, devido a uma verdade superior diretamente conhecida, que é incapaz de se equivocar: Deus.

Quem não toma esta atitude diante de suas convicções, faz do Instinto do Divino uma coisa absurda, transformando a Sabedoria em mera ciência.

E os verdadeiros voos do espírito?

Não será que a utilização dos brinquedos como entretenimento único e normal da criança, não contribui em algo para a eliminação do Instinto do Divino, sobretudo quando os brinquedos não possuem algo de elevado, ou tendente ao sobrenatural?

Todavia, não menor é o erro da formação universitária, quando realizada com o pressuposto de prescindir dos instintos sobrenaturais, proporcionando uma exclusividade científica. De modo que o indivíduo é obrigado a calcar aos pés todas as formas de Instinto do Divino e nobreza de espírito, para colocar-se em um patamar puramente racional, transformando-se, como se diz em latim, em um ente diminutae rationis.

Os verdadeiros voos de espírito ficam excluídos da equivocada formação universitária para dar lugar apenas ao raciocínio que se pode pôr no quadro negro.

 Núcleo da vida sobrenatural

Sendo um elemento reto e ordenado, o Instinto do Divino acompanhado pelo Senso do Divino são o núcleo em torno do qual se estrutura a vida espiritual e mental do homem.

Tal é o auxílio que prestam à alma em busca de Deus, que agem diretamente sobre as virtudes, tanto teologais quanto cardeais, proporcionando temperança, equilíbrio e sensatez àqueles que deles desfrutam.

Não há fortaleza maior do que a do homem que busca energicamente a plenitude do Senso do divino. Não há justiça maior do que a do homem que se põe em face do Senso do Divino e por isso julga com justiça todas as coisas. Não há temperança maior do que a do homem que possui a distância adequada a cada coisa, pelo fato de viver em função do Divino.

Considerados no plano sobrenatural, o Instinto do Divino e o Senso do Divino são os principais elementos para uma adequada vida espiritual. De tal modo que seria mister desempenhar uma formação moral e consequentemente intelectual que proporcionasse um contínuo estímulo a esses sensos, em vez de os amarfanhar.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1972)
Revista Dr Plinio 148 (Julho de 2010

1) Luz primordial: assim Dr. Plinio denominava a virtude ou o conjunto de virtudes que cada alma é especialmente chamada a admirar.

Vocação para harmonia e síntese

Agraciado pela Providência com um cordial e generoso “savoir faire”, o povo brasileiro desponta na História para exercer a importante missão de harmonizar as mais diversas nacionalidades. É o que, através de vívidos exemplos, nos mostra Dr. Plinio na exposição abaixo transcrita.

Quando consideramos o futuro do gênero humano e nos colocamos diante da idéia da unidade das nações1, nos referimos um tanto aos dias de hoje, mas, sobretudo, voltamos nossos olhos para o dia de amanhã. Poderíamos nos perguntar, então, se já existem povos que constituam essa unidade e qual o papel deles no concerto universal.

América Latina e o mundo vindouro

Creio que, por algum lado e de certo modo, esse plano está se realizando na América Latina, a qual representa o mundo de amanhã. Sua história é ainda tão recente que seu próprio passado é o dos outros povos europeus. Quando estes começam a decair, brotaram as nossas raí­zes e desabrocharam de forma incipiente as nossas glórias.

O século XX foi dos Estados Unidos; o XIX da Inglaterra; o período (quase mil anos) desde Carlos Magno até fins do século XVIII, da França. Espanha e Portugal não chegaram a ter primazia, mas deram origem à América Latina, e a história daqueles terá sua continuação nesta última, conforme os planos da Providência. Isso ocorrerá no século XXI, o qual, indubitavelmente, será do subcontinente latino-americano.

Em função desse acontecer histórico, vale dirigir nossa atenção para o brasileiro e o hispano.

Atualmente, fala-se muito e se cogita em estender o Pacto Andino desde o norte dos Andes até a Patagônia, abrangendo também o Brasil, embora ele nada tenha de andino. É um modo sul-americano de constituir uma grande unidade. E nos causa não pequeno entusiasmo a idéia de que essa magnífica unidade religiosa, étnica, cultural, eu diria lingüís­tica, estabeleça uma espécie de superestrutura arqui-política.

A índole do brasileiro, ideal para a unidade das nações

Quanto ao Brasil — onde nosso movimento foi fundado — percebo perfeitamente este fato: Deus criou suas características geográficas e a índole de seu povo de tal maneira que este adquirisse uma mentalidade a fim de servir idealmente para essa obra resumitiva do futuro. E a grande originalidade do brasileiro está em fazer compêndios dessa natureza. É sua missão na História.

Para auferir esse talento de sintetizar, recordemo-nos dos clubes de Carnaval no Rio da década de 40, quando essa festa estava num auge e se apresentava menos como folia do que desfile do maravilhoso, feito pelo povinho dos subúrbios. Este é propriamente o sentido nobre e bonito do Carnaval. Então havia salões freqüentados por homens de cor vestidos à maneira das cortes de Luís XIV e Luís XV, cabeleira empoada e sapatos de fivela, acompanhados de “marquesas” de ébano! Aquilo que poderia parecer sumamente ridículo, era contudo elegantíssimo.

Essa gente é de tal modo unida a Portugal que somos um povo luso-brasileiro, dotado de intensa cordialidade, vivendo num território imenso, e sempre de braços abertos para acolher os mais diversos imigrantes: desde o africano com seus costumes que adotamos, ao francês com sua cultura pela qual nos deixamos embeber. África e França se encontram harmoniosamente no ambiente brasileiro, em que a mulher de ébano se veste de Pompadour…2

Por expressar esses valores, o Carnaval carioca conquistou a admiração do Brasil inteiro, e obteve certa fama no mundo todo. É uma arte bem brasileira conseguir algo que pareceria impossível, isto é, conciliar duas coisas tão opostas: a simplicidade da neta das selvas e a cultura da marquesa. E tal arte é alcançada sem estudar, sem usar laboratórios ou levantar problemas teóricos e resolvê-los, mas remexendo coisas com uma indolência naturalmente sábia, por onde elas vão se colocando no lugar próprio e de modo acertado.

No fim das contas, o brasileiro nem percebe bem o que fez; boceja, alimenta-se de uma fruta e prossegue a toada normal de sua vida. Ele agiu com esse particular savoir faire [saber fazer] que possui, muito valioso por ser mais subconsciente do que consciente.

Temperado pelo “azeite português”

O Brasil descende de uma nação representativa para a Europa daquilo que esta precisava. Poder-se-ia comparar o continente europeu a uma carruagem magnífica — como as do museu do Palácio de Versailles que me deslumbraram em menino — cujas molas estivessem quebradas e o entrosamento dos eixos com as rodas pouco lubrificado. Por essa razão, ela andaria penosamente, sacudindo as plumas, quebrando os vidros, chiando por toda parte. Seria uma caricatura de carruagem.  Se alguém a azeitasse e consertasse o molejo, as plumas voltariam ao normal, os vidros não se partiriam, os passageiros não se segurariam nos damascos por receio de cair, e os rangidos grotescos desapareciam. E novamente se ouviriam a corneta dos postilhões, o trote elegante dos cavalos e os chicotes estalando no ar.  Era a carruagem que passava…

Portugal é propriamente a nação-azeite da Europa, ele a complementa, mas seu florescimento não foi inteiramente conhecido por esta última. Ele possui a doçura, o afeto, a serenidade, afabilidade e uma acolhida que não se sente em nenhum outro lugar do velho mundo. Sua expansão, através da influência, teria dado à história do pensamento, do sentimento e da ação dos europeus o imbricamento e o contexto que lhes faltou.

A Europa empurrou Portugal para um canto. Porém, ao mesmo tempo que plantava uvas para fabricar seu esplêndido vinho, a nação lusitana dentro de sua própria alma produzia azeite, o qual foi derramado pelo Brasil inteiro, embebendo-o e o transformando no povo “azeitado” por excelência. Suave, amável, compreensível, voltado a admirar os outros, comprazendo-se de encontrar neles uma qualidade, encantando-se quando aprende uma moda, um estilo e um arranjo novos. Não pensa em se comparar com ninguém. Senhor de uma vastidão de terras continental, distribuindo-as para os que as desejam, com toda naturalidade, como quem não está fazendo favor.

Além disso, recebe no seu imenso território as mais variadas raças, penetrando-as no mais íntimo da alma e realizando isso de curioso: qualquer povo radicando-se neste País, ainda que sem miscigenação, ele “embrasileira”. É o resultado do “azeitamento”. De um modo inteiramente ordenado, o estrangeiro, sem perder as suas características originais, acaba passando por uma mutação na essência de seu espírito.

Mais italiano no Brasil que na Itália…

É fato notório que no Sudeste do Brasil a imigração italiana verificou-se torrencial.  Se compararmos o ítalo-brasileiro com o argentino, chileno ou uruguaio de ascendência italiana, ou até com o próprio filho da cantante Península, julgo realizar-se mais no Brasil do que na Itália, Argentina, Chile ou Uruguai a figura convencional e folclórica do italiano.

A “Canaã” deles é o Brasil, para onde se mudam em grande quantidade. E posso dar o testemunho pessoal de que encontrei o autêntico ítalo no Brás, na Mooca, no Belenzinho3, e não comi na Itália uma pizza tão genuína como as elaboradas em certas pizzarias de São Paulo.

Percebe-se dessa forma como a brasilidade penetra e muda algo nos povos, mesmo não havendo a mistura de raças. E tal mutação, que é indizível, efetua-se acrescentando e azeitando. A imagem adequada desse fato é a de uma gota de azeite espalhando-se sobre uma folha de papel, deixando intacta a substância desta, que nem sequer fica mais grossa, porém se faz transparente à semelhança de um vidro.

Grandiosa missão de harmonizar os povos

Assim é ação de presença do povo brasileiro, que torna afáveis as coisas, encaminhando-as para a síntese.  Um exemplo peculiar: os imigrantes vêm para o Brasil com a idéia de, quando ricos, voltarem a viver na mãe-pátria. Entretanto, muito antes de granjear fortuna, já estão resolvidos a retornar ao seu país natal — para uma visita e não para morar lá outra vez. Querem residir no Brasil, e aqui morrer.

Quer dizer, há uma nova forma de imperialismo, exercida pelo azeite, que domina, penetra e se faz sentir nas mais diversas localidades do ­País. Se o imigrante se fixa no Rio, torna-se carioca; se em São Paulo, fica paulista; em Minas, se “amineira”; no Rio Grande do Sul, se “engaúcha”.

Assim, devido ao modo de ser de seu povo e ao ambiente por ele criado, o Brasil é um pólo de atração. Pode-se dizer que essa gente está preparada para contemplar com amor todas as etapas do passado e as variantes do espírito humano. E isso ela o faz simplesmente olhando, apreciando os valores, descartando os defeitos, destilando: tal coisa é má, não está de acordo com os ensinamentos da Igreja; tal outra, apesar de pagã, se encaixa na doutrina católica; e aquela outra foi predisposta por Deus para, em certo dia, servir aos interesses da Esposa Mística de Cristo.

O brasileiro consegue apanhar e acertar todas essas coisas para constituir no fim do mundo a grande síntese da História. Seria o compêndio da doçura, abarcando a Terra com amor, compreendendo todos os valores humanos num só olhar, e usando de seu território de proporções continentais para alojar e harmonizar tudo, com vistas a uma síntese final.

Essa missão encerra uma grandeza superior e mais bela do que as legiões de Júlio César avançando e estendendo as fronteiras do império romano… 

1 ) Cf. “Dr. Plinio” número 87.

2 ) Marquesa de Pompadour (1721-1764). Uma das mais prestigiadas damas da corte francesa, então estabelecida no Palácio de Versailles. Apesar de uma vida moral pouco louvável, destacava-se pelo luxo e elegância de seus trajes.

3 ) Bairros paulistanos.

Hífen de ouro

Diante de tantas maravilhas criadas por Deus no universo, pode-se pensar que seria talvez incompreensível que Ele não as coroasse com uma beleza complementar e suprema.

Imaginemos um joalheiro que possua um escrínio repleto de pedras preciosas, avulsas, ainda não articuladas como jóias. Ele as toma e as espalha em cima de um lindo feltro que cobre sua mesa de trabalho, faz incidir sobre elas uma luz que realça o esplendor e o valor de cada uma, e se põe a admirá-las. O homem se encanta com aquele tesouro. Se for um joalheiro inteligente, breve lhe ocorrerá a seguinte idéia: “Como constituir um conjunto com essas pedras? Pois são tão belas que merecem ser reunidas num todo que as exceda em pulcritude. Como fazê-lo?”

De fato, se as pedras são lindas, a jóia na qual se encaixarão o será mais, posto que o conjunto das coisas ordenadas adquire beleza superior ao mero amontoamento desarticulado dessas mesmas coisas. A ordem é um degrau a mais para o esplendor, e este, propriamente dito, decorre não só da graciosidade de cada parte, mas da ordenação com que as partes estão dispostas. Esta é a beleza das belezas.

Portanto, o joalheiro inteligente não poderia deixar de pensar: “Essas pedras têm tais e tais características, tais e tais encantos; mandarei fazer com elas uma jóia”. Ele analisa suas pedras e elabora o desenho segundo o qual elas estarão melhor dispostas para formar a jóia desejada: “No centro virá aquele brilhante magnífico; e para que o broche seja mais refulgente, incrustarei de um lado rubis, depois uma camada de safiras e outra de esmeraldas…” E assim por diante, seguindo sua valiosa inspiração, ele acaba compondo o objeto precioso.

Sendo um grande joalheiro, sem hesitações nem contradições, decidido a executar o plano primeiro traçado por sua idéia, ele chama um de seus funcionários e lhe entrega aquele esboço: “Leve este desenho ao ourives e peça que me monte essa jóia, usando ouro do melhor quilate, a fim de que a beleza do metal complete o esplendor das pedras.”

Dias depois, o ourives entrega a encomenda ao joalheiro. Este abre a caixa lavorada com esmero, abre as dobras de veludo, de seda, até que seus olhos se rejubilam com o fulgor da linda jóia ali encerrada. E o ourives lhe diz: “Senhor, aqui estão as suas pedras, e aqui está a jóia que idealizou. Eis a beleza que minhas mãos lhe entregam! Minhas homenagens!”

Ora, Deus tendo criado todas essas maravilhas esparsas no universo, quais as gemas avulsas do joalheiro, haveria de lhes traçar uma ordem. Como centro dessa ordem, governando-a, resumindo-a num conjunto precioso, Ele pôs o gênero humano. E neste, foi intenção do Criador que existissem homens mais perfeitos, mais santos e mais admiráveis, e existisse o ápice, a jóia máxima: o Homem tão perfeito, tão inteligente, tão sábio e poderoso que excedesse em beleza, sabedoria, virtude e poder a todas as criaturas humanas.

Em torno desse Homem, como os rubis e safiras ao redor do brilhante, dispor-se-iam todas as perfeições do universo. Esse é o Homem-Deus, hífen de ouro ligando de modo magnífico o Céu e a Terra.

Todas as belezas do mar e do firmamento, todos os tesouros escondidos nas entranhas do solo, todos os variados encantos da fauna e da flora, todas as grandezas e maravilhas engendradas pelos homens em todos os tempos não constituem senão pré-figuras ou ecos d’Aquele que é o ápice da História: Nosso Senhor Jesus Cristo, de cujo Sangue infinitamente precioso vertido por nós em sua Paixão e Morte, nasceram todos os esplendores da Civilização Cristã. v

Hífen de ouro(Extraído de conferências em 24/3/1984 e 13/10/1989)

Santos Pastorinhos

Nossa Senhora quis que Jacinta e Francisco morressem em circunstâncias tão difíceis e sofrendo tanto, por serem necessárias vítimas que associassem suas dores e o sacrifício de suas vidas ao mistério de Fátima, bem como à fecundidade desejada pela Santíssima Virgem, na ordem sobrenatural, para os fatos anunciados na Cova da Iria.

Apesar de ter havido ali uma intervenção direta da Mãe de Deus, atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a movimentação do Sol, Ela quis que duas almas oferecessem as suas vidas e se imolassem para que aquele plano da Providência tivesse a fecundidade necessária.

Isso nos faz compreender bem como o apostolado do sofrimento é insubstituível e abre os caminhos para a Igreja.

Peçamos a Jacinta e Francisco que nos obtenham o senso do sofrimento, indispensável para qualquer católico ser verdadeiramente generoso e dedicado.

Plino Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

“Filho, eis aí tua Mãe”

Repousais, Senhor, em vosso mísero e augustíssimo presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros inauferíveis de seu respeito e de seu carinho.

Jamais uma criatura adorou com tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus. Nunca um coração materno amou mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera criatura. E nunca filho amou tão plena, inteira e super abundantemente sua mãe.

Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí o teu filho. Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26-27). E, considerando a perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta das  profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens por Ele amados”. (Lc 2, 14).

(Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1963)

Coordenação do Blog João Sérgio Guimarães