Consagração a Nossa Senhora e a graça divina – I

Ao cumprimentar um grupo de jovens que acabavam de se consagrar a Jesus, pelas mãos da Santíssima Virgem, Dr. Plinio descreve a beleza da alma que se abre para a vida da graça através do Batismo, passando a trilhar os caminhos da virtude, semeados de lutas, tentações e vitórias, até alcançar a santidade para a qual somos todos chamados.

A esplendorosa cerimônia na qual tantos jovens se consagraram a Nossa Senhora como escravos de amor, segundo o método de um dos maiores santos mariais de todos os tempos, São Luís Grignion de Montfort, suscita algumas reflexões que me parece oportuno serem aqui externadas.

A vida e todas as outras coisas, quando consideradas à luz da Fé, são muito mais belas do que observadas apenas com a luz elétrica ou solar. Assim, o ato que acabamos de presenciar, feito belamente na Terra, tem muito mais pulcritude se atentarmos para as realidades sobrenaturais nele contidas.

Duas maravilhas de Deus observadas no jovem

Quando se vê uma pessoa jovem trilhando os caminhos da existência com força, energia, ênfase e resolução, diz-se: “Como é linda a vida!”. Mas, a Fé nos ensina ter Deus criado o primeiro casal — Adão e Eva — que se multiplicou e povoou o mundo, transmitindo a vida a seus descendentes. Naquilo que é apenas carne, o Criador incute uma alma espiritual, imortal, constituída à imagem e semelhança d’Ele. Primeira maravilha.

A criança nasce. Pouco depois, segundo costume dos países católicos, é batizada, e uma outra vida misteriosa se soma à que já possuía. É a segunda maravilha. Antes do Batismo, tinha ela a vida da alma e a do corpo. Este último contém elementos dos reinos animal, vegetal e mineral. E sua alma espiritual é o princípio das vidas animal e vegetal que nele existe. O homem é um compêndio de tudo quanto há na criação, uma obra-prima de Deus.

A vida sobrenatural

Porém, mais magnífica é a vida sobrenatural.

Entre dores indizíveis, no alto do Gólgota, Nosso Senhor bradou: “Eli, Eli, lamma sabactani! — Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!”, e inclinando a cabeça, disse: “Tudo está consumado”, exalando seu último suspiro. Ele morreu por amor a nós, redimiu todos os homens e nos abriu as portas do Céu.

Sendo o que deu origem a todo o gênero humano, Adão continha de algum modo em si todos os que dele deveriam descender. Por isso o pecado original atingiu a humanidade inteira e era preciso que alguém a resgatasse. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se encarnou no ventre puríssimo da Virgem e habitou entre nós. Jesus Cristo, Homem-Deus, expiou por essa e todas as outras faltas dos homens, e nos obteve um tesouro maravilhoso: a graça.

Esta é um dom sobrenatural criado por Deus, que nos torna participantes da própria vida divina.

Todos nós temos a felicidade de sermos católicos, pois recebemos a graça do Batismo. E embora não vejamos com os olhos da carne, pela luz da Fé sabemos que em cada um há algo da vida de Deus.

O Altíssimo não foi criado; é o Criador de todas as coisas. A graça é uma participação criada na existência incriada d’Ele. E cada um de nós é uma tocha que arde com a graça divina. Esta é a realidade, apesar de não a percebermos fisicamente.

A grande batalha do homem

Junto com esse maravilhoso início da vida sobrenatural, começa para o homem a grande batalha de sua existência neste mundo.

Antes de receber a Primeira Comunhão, a criança aprende no catecismo os Dez Mandamentos da Lei de Deus. Como eles são belos e apaziguam a alma! Lembro-me — há tantos anos! — de quando os aprendi, decorava-os e dizia para mim mesmo: “Que coisa bonita! Não mentir, não roubar, honrar pai e mãe, amar a Deus sobre todas as coisas, não tomar em vão o Santo Nome, etc.”.

E, encantado, pensava: “Se todas as pessoas agissem assim, como o mundo seria belo e diferente do atual!”

Com mais ou menos intensidade, todos devem experimentar sentimentos desses, quando aprendem os Dez Mandamentos. Porém, por mais belos que eles sejam, ao chegar a hora de praticá-los, começa a batalha! É árduo cumprir o decálogo. Conforme a pessoa, alguns Mandamentos são mais custosos ou menos. Mas, respeitá-los integral e duravelmente… oh! que dificuldade!

Donde o ensinamento da Igreja, segundo o qual ninguém, por mais virtuoso que seja, consegue praticar estavelmente todos eles, apenas pelo esforço humano. Para isso, é preciso a graça. Ela é que nos escolhe. Não fomos nós que a escolhemos. O que éramos no momento em que fomos batizados? A maior parte, uma criança levada pelos pais e padrinhos à igreja para receber o Sacramento do Batismo. Enquanto o padre o administrava, o bebê, sem o uso da razão, pronunciava ou articulava sílabas que mais tarde seriam palavras. Ele estava tendo impressões que depois seriam pensamentos. Naquele instante, era uma simples criancinha.

Certo dia, começa o uso da razão, da vontade, e chega a hora da tentação. Tem desejo de mentir, de se encolerizar com os pais, preguiça de estudar, desobedecendo portanto à ordem recebida dos progenitores; vontade de fugir da aula…

A esse propósito, recordo-me dos meus tempos de menino, quando estudava numa sala que dava para o jardim de casa, sobre o qual deixava vagar meus olhos. Nossa governanta, “Fräulein” Mathilde, fiscalizava-me e eu pensava: “Se eu pudesse andar ou correr por esse jardim!” Primeiro, para me ver livre da aritmética ou da geografia, matérias não muito apreciadas por mim. Além disso, em vez de ficar assentado junto a uma escrivaninha, estaria respirando o aroma das flores. Mas, tinha de obedecer e continuava a fazer minhas lições.

Entretanto, há um momento em que não temos mais a presença da “Fräulein”, tornamo-nos mocinhos, ninguém nos vigia e cumprimos o dever porque a consciência diz a cada um de nós: “Os Mandamentos proíbem fazer tal coisa. Você quer ou não obedecer a Deus? Do alto do Céu Ele o vê!”

Por um lado queremos; por outro, não. E pensamos: “Como é bom estar em paz com Deus, mas, como é agradável fazer aquilo que Ele proíbe… O que escolho? Deus ou o gostoso?”

Tem início a batalha, a qual se estende até o último suspiro de vida, por mais velho que o homem morra; até o derradeiro momento de sua existência ele se acha sujeito à tentação, e se nela consentir, pode perder a própria alma.

O papel da graça nessa luta

Como se fosse a mão de Deus abrindo nossos olhos, a graça sempre nos adverte: “Meu filho, tal ato não é bom; aquele outro é correto. Veja como Eu o amo. Considere o Sagrado Coração de Jesus, o Imaculado Coração de Maria; os Mandamentos, a Igreja, o seu ensinamento; a Comunhão que você pretende receber e não pode ser sacrílega. Lembre-se da confissão que fez há pouco, na qual se comprometeu a não mais pecar. E agora, você ainda vai me ofender?

Meu filho, coragem! Força!”

A pessoa diz “não!” à tentação e progride na virtude.

(Continua em próximo número)

Assunção de Nossa Senhora

Quando ascendeu ao Céu, Maria pôde contemplar os coros angélicos e a multidão de bem-aventurados que A receberam em festa. Considerações de Dr. Plinio manifestando seu encanto com a Assunção de Nossa Senhora

Devoção às alegrias de Nossa Senhora

Era costume entre os antigos reportar-se às alegrias da Santíssima Virgem. Essa era uma devoção bastante difundida, a ponto de um dos santuários marianos mais famosos do Brasil, o de Guararapes, em Pernambuco, ser dedicado a Nossa Senhora dos Prazeres.

Na vida de Nossa Senhora notamos inúmeros movimentos de alegria. O mais insigne deles é evidentemente o Magnificat.

Porém, nenhuma das alegrias que a Santíssima Virgem teve nesta vida foi tão grande quanto à da sua Assunção.

Após a dormitio(1), Maria ressuscitou no apogeu de seu estado físico, mas também no auge de sua vida espiritual, pois a maturidade do corpo e a maturidade da alma se relacionam.

No dia de sua Assunção, Nossa Senhora estava na plenitude da santidade. Sua alma santíssima, que não deixou de progredir um minuto sequer durante toda a sua existência terrena, tinha chegado ao clímax. A Virgem Maria chegara à suprema perfeição. Possuía incomparável beleza de alma, pois estava repleta de virtude; seu amor a Deus atingira o apogeu. Essa santidade transluzia em toda a sua pessoa e Lhe dava uma beleza incomparável.

Entrada de Maria no Céu

Podemos imaginar sua alegria, sabendo que, a partir daquele momento, entraria no Céu com corpo e alma. Passaria por um cortejo incontável de Anjos, que prestariam a Ela homenagens como nunca nenhuma rainha deste mundo, nem de longe, recebeu. E Ela compreendia a natureza de cada Anjo, sua luz primordial(2), a graça recebida por cada um, seu amor a Deus, e o amor de Deus para com cada um deles. Maria Santíssima tinha o conhecimento perfeito da hiperdulia que as miríades de Anjos Lhe prestariam. E Ela, tendo uma alegria completa por cada um desses louvores, sabia que os merecia, porque tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e seu espelho fidelíssimo.

Imaginemos que um Anjo da guarda aparecesse para um de nós e dissesse: “Meu filho dileto, você é extraordinário! Sobre você pousam todas as minhas complacências. Você é inteiramente digno de minha benevolência.” Esta pessoa teria grande tentação de vaidade. Um elogio desses, feito por uma natureza angélica, imensamente maior do que a nossa, é algo inebriante…

Sendo mera criatura humana, Nossa Senhora estava recebendo o amor entusiástico de todos os Anjos, e a corte que durante milhares de anos tinha esperado sua Rainha ficou transformada em algo lindíssimo, porque Ela estava chegando. A beleza do mundo angélico não atingira toda a formosura para a qual fora criado, porque era preciso que uma criatura humana o governasse. Nossa Senhora coroava com uma perfeição altíssima a beleza do Céu.

Certamente, Ela deve ter se encontrado com as almas santas que tinham subido ao Céu após a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, e sem dúvida encontrou-se com São José, com quem permutou uma saudação cheia de respeito e afeto sobre a qual nem sequer podemos ter idéia. Como deverá ter sido a alegria da alma de São José ao rever Nossa Senhora?

Beleza do transluzimento da santidade em Nossa Senhora

Maria Santíssima crescia continuamente em graça e santidade, por isso, quando chegou a hora de sua morte, Ela era muito mais santa do que quando São José morreu. Quando ele A viu ressurrecta, repleta de toda a santidade que deveria atingir segundo os planos de Deus — e que de fato Ela atingiu —, notou que a santidade transluzia em toda a sua pessoa com uma beleza incomparável. Com que veneração São José, afinal, via Nossa Senhora em corpo e alma, cujo esplendor era ainda maior do que Ela possuía na Terra!

São Joaquim e Santa Ana, sendo pais de Nossa Senhora, devem certamente ter tido o privilégio de assistirem, a partir de um lugar de destaque o ingresso d’Ela no Céu. Sabemos que os pais têm uma propensão natural por seus filhos, sobretudo quando são excelentes pais. Afinal, era justo que, tendo dado Maria Santíssima ao gênero humano, assistissem de um lugar especial a sua entrada no Céu.

Adão e Eva, os primeiros pais do gênero humano, deveriam estar ali presentes. Depois de verem tantas desgraças causadas por seu pecado, puderam contemplar o remédio concedido por Deus para solucionar esse pecado, fazendo nascer Nosso Senhor Jesus Cristo e glorificando de tal maneira a Mãe Imaculada do Redentor.

Podemos ainda imaginar o desfile maravilhoso das almas eleitas e dos Anjos que A receberam no Céu, por assim dizer gradualmente, num como que desfile esplêndido, cantando hinos de glória. E, afinal, todo o paraíso celeste pondo-se a cantar, enquanto Ela sobe até o trono da Santíssima Trindade.

Por fim, a Assunção chega ao seu auge: a coroação de Nossa Senhora como Rainha dos Anjos e dos Santos, do Céu e da Terra, pela Santíssima Trindade. Houve então uma verdadeira festa no Céu. Não é uma hipérbole, mas uma festa autêntica, em termos e modos que não podemos imaginar. Foi o mais alto grau de alegria que possa haver. Ela foi coroada por ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filha do Padre Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 15/8/1966 e 1/11/1975)

1) A morte d’Ela foi tão leve que se compara a uma dormição.
2) Dr. Plinio assim designava o conjunto de virtudes ou atributos divinos que cada Anjo, ou cada alma, é especialmente chamado a conhecer e amar.

 

Assumpta est Maria, gaudent angeli!

Quando ascendeu ao Céu, Maria pôde contemplar os coros angélicos e a multidão de bem-aventurados que A receberam em festa. Considerações de Dr. Plinio manifestando seu encanto com a Assunção de Nossa Senhora

 

Devoção às alegrias de Nossa Senhora

Era costume entre os antigos reportar-se às alegrias da Santíssima Virgem. Essa era uma devoção bastante difundida, a ponto de um dos santuários marianos mais famosos do Brasil, o de Guararapes, em Pernambuco, ser dedicado a Nossa Senhora dos Prazeres.

Na vida de Nossa Senhora notamos inúmeros movimentos de alegria. O mais insigne deles é evidentemente o Magnificat.

Porém, nenhuma das alegrias que a Santíssima Virgem teve nesta vida foi tão grande quanto à da sua Assunção.

Após a “dormitio”(1), Maria ressuscitou no apogeu de seu estado físico, mas também no auge de sua vida espiritual, pois a maturidade do corpo e a maturidade da alma se relacionam.

No dia de sua Assunção, Nossa Senhora estava na plenitude da santidade. Sua alma santíssima, que não deixou de progredir um minuto sequer durante toda a sua existência terrena, tinha chegado ao clímax. A Virgem Maria chegara à suprema perfeição. Possuía incomparável beleza de alma, pois estava repleta de virtude; seu amor a Deus atingira o apogeu. Essa santidade transluzia em toda a sua pessoa e Lhe dava uma beleza incomparável.

Entrada de Maria no Céu

Podemos imaginar sua alegria, sabendo que, a partir daquele momento, entraria no Céu com corpo e alma. Passaria por um cortejo incontável de Anjos, que prestariam a Ela homenagens como nunca nenhuma rainha deste mundo, nem de longe, recebeu. E Ela compreendia a natureza de cada Anjo, sua luz primordial(2), a graça recebida por cada um, seu amor a Deus, e o amor de Deus para com cada um deles. Maria Santíssima tinha o conhecimento perfeito da hiperdulia que as miríades de Anjos Lhe prestariam. E Ela, tendo uma alegria completa por cada um desses louvores, sabia que os merecia, porque tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e seu espelho fidelíssimo.

Imaginemos que um Anjo da guarda aparecesse para um de nós e dissesse: “Meu filho dileto, você é extraordinário! Sobre você pousam todas as minhas complacências. Você é inteiramente digno de minha benevolência.” Esta pessoa teria grande tentação de vaidade. Um elogio desses, feito por uma natureza angélica, imensamente maior do que a nossa, é algo inebriante…

Sendo mera criatura humana, Nossa Senhora estava recebendo o amor entusiástico de todos os Anjos, e a corte que durante milhares de anos tinha esperado sua Rainha ficou transformada em algo lindíssimo, porque Ela estava chegando. A beleza do mundo angélico não atingira toda a formosura para a qual fora criado, porque era preciso que uma criatura humana o governasse. Nossa Senhora coroava com uma perfeição altíssima a beleza do Céu.

Certamente, Ela deve ter se encontrado com as almas santas que tinham subido ao Céu após a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, e sem dúvida encontrou-se com São José, com quem permutou uma saudação cheia de respeito e afeto sobre a qual nem sequer podemos ter ideia. Como deverá ter sido a alegria da alma de São José ao rever Nossa Senhora?

Beleza do transluzimento da santidade em Nossa Senhora

Maria Santíssima crescia continuamente em graça e santidade, por isso, quando chegou a hora de sua morte, Ela era muito mais santa do que quando São José morreu. Quando ele A viu ressurrecta, repleta de toda a santidade que deveria atingir segundo os planos de Deus — e que de fato Ela atingiu —, notou que a santidade transluzia em toda a sua pessoa com uma beleza incomparável. Com que veneração São José, afinal, via Nossa Senhora em corpo e alma, cujo esplendor era ainda maior do que Ela possuía na Terra!

São Joaquim e Santa Ana, sendo pais de Nossa Senhora, devem certamente ter tido o privilégio de assistirem, a partir de um lugar de destaque o ingresso d’Ela no Céu. Sabemos que os pais têm uma propensão natural por seus filhos, sobretudo quando são excelentes pais. Afinal, era justo que, tendo dado Maria Santíssima ao gênero humano, assistissem de um lugar especial a sua entrada no Céu.

Adão e Eva, os primeiros pais do gênero humano, deveriam estar ali presentes. Depois de verem tantas desgraças causadas por seu pecado, puderam contemplar o remédio concedido por Deus para solucionar esse pecado, fazendo nascer Nosso Senhor Jesus Cristo e glorificando de tal maneira a Mãe Imaculada do Redentor.

Podemos ainda imaginar o desfile maravilhoso das almas eleitas e dos Anjos que A receberam no Céu, por assim dizer gradualmente, num como que desfile esplêndido, cantando hinos de glória. E, afinal, todo o paraíso celeste pondo-se a cantar, enquanto Ela sobe até o trono da Santíssima Trindade.

Por fim, a Assunção chega ao seu auge: a coroação de Nossa Senhora como Rainha dos Anjos e dos Santos, do Céu e da Terra, pela Santíssima Trindade. Houve então uma verdadeira festa no Céu. Não é uma hipérbole, mas uma festa autêntica, em termos e modos que não podemos imaginar. Foi o mais alto grau de alegria que possa haver. Ela foi coroada por ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filha do Padre Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo.

 

(Extraído de conferências de 15/8/1966 e 1/11/1975)

 

1) A morte d’Ela foi tão leve que se compara a uma dormição.

2) Dr. Plinio assim designava o conjunto de virtudes ou atributos divinos que cada Anjo, ou cada alma, é especialmente chamado a conhecer e amar.

Um imenso turíbulo

A Grande “Chartreuse” causa admiração pela pulcritude de seus edifícios. Entretanto, mais belo é imaginar os varões que  ali levavam uma vida de completo isolamento,  elevando continuamente aos Céus suas preces e sacrifícios.

 

Vamos considerar alguns aspectos da Grande Chartreuse(1).

Em português isso se diz “cartuxa”, termo incomparavelmente menos bonito do que “chartreuse e chartreux”, em francês, se tomarmos em consideração como esses vocábulos são escritos. As palavras, em francês, são especialmente bonitas pelas letras inúteis que contêm. Por exemplo, o vocábulo beau, que significa belo, é bonito porque se escreve “b-e-a-u”. Se for escrito “b-ô”, torna-se um termo para uma tribo errante no meio da África.

Eu ainda sou do tempo em que se escrevia “cysne”. O “i” é para o mundo dos patos e o “y” para o mundo dos cisnes. O “y” é o cisne do alfabeto português; por isso, seria natural que “cysne” se escrevesse com “y”. Cristal se escrevia com “c-h-r”; fica muito mais “cristalino” com esse “h” do que sem ele.

“Chartreux” é bonito e a palavra canta!

Essa é a Grande Chartreuse por ser a primeira e a maior dentre várias outras chartreuses existentes.

A neve: arco-íris em estado de síntese

Vemos nessa fotografia como a neve cobre o edifício tão amplamente que essas chaminezinhas estão com o seu “chapéu” de neve. Compreende-se perfeitamente a razão de ser desses telhados e dessas torres em ponta. Nota-se que as pontas são tão agudas para impedir a neve de se fixar; pois, se a neve se acumulasse em maiores quantidades, cairia o teto.

Apesar de a inclinação do telhado da abadia não ser tão acentuada como a da igreja, a quantidade de neve que se acumula é pequena, razão pela qual há condições de resistência dele.

Os morros estão todos circundados de neve e os próprios pinheiros, ao longo da encosta da montanha, encontram-se cobertos de neve, a qual é muito bonita porque dá a impressão de que todo o ambiente revestido por ela está tirado das misérias da terra, e posto numa espécie de atmosfera extratemporal.

A brancura total e completa fala da pureza, não somente da castidade preceituada pelo sexto e nono Mandamentos, mas de uma solidez de alma, uma temperança e uma força que nos dão a impressão da tranquilidade que só a virtude confere. A meu ver essa é a expressão moral da neve que se liga à beleza da alvura.

Quando contemplamos o branco da neve, podemos compreender o valor de uma síntese porque ele é a síntese de todas as cores. No branco dessa neve dormem todas as cores do arco-íris. Portanto, são arco-íris em estado de síntese que estão aí. Isso talvez explique a beleza da neve.

Mais do que um prédio, trata-se de uma cidadezinha. É um imenso “Buissonnets”(2) dos cartuxos. Há uma grande praça central para a qual dão uma série de construções, cuja forma lembra vagamente um pente.

A igreja destaca-se de todo o resto pela sua forma. Nota-se ainda um prédio de construção mais recente, que constitui também um corpo separado.

Mais adiante há um edifício, provavelmente uma outra capela, com um torreãozinho muito gracioso, e as construções vão se perdendo por aí afora, indicando o método, a ordem, a concatenação, o entrelaçamento da vida de todos os monges.

Essas montanhas não são habitadas, mas há um imponderável qualquer pelo qual se percebe não existir também do outro lado residência alguma. Elas fazem parte de um maciço montanhoso impróprio para a construção de cidades. O verde da vegetação e a neve marcam o espírito do edifício e da instituição que nele vive.

Isolamento, oração e penitência

Qual é essa instituição? Por que esse isolamento? Por que todos esses edifícios? O que significa a vida de um homem nesse lugar?

A Ordem dos “Chartreux”, fundada por São Bruno, na Idade Média, tinha por objetivo separar do convívio humano aqueles que tinham recebido de Deus uma altíssima vocação: estar constantemente pensando em temas relacionados com a doutrina e o espírito da Igreja, com a Filosofia, a Teologia, os documentos do Magistério, em suma, com a Doutrina Católica.

De maneira que nenhuma reflexão passeasse pela mente de um cartuxo, nenhum comentário lhe atravessasse a alma, que não fosse fundamentalmente relacionado com a Doutrina Católica. Naturalmente, uma larga parte do tempo era reservada para a prece, os ofícios rezados na capela da instituição de dia e de noite, em horas difíceis, interrompendo várias vezes o sono; jejum fortíssimo, trabalhos manuais, flagelação, leitura, sobretudo de assuntos teológicos e de vida espiritual.

Vida isolada de tal maneira que os cartuxos moram verdadeiramente como eremitas, em pequenas casas separadas umas das outras, e só se encontram para tomar alimento no refeitório do convento e para rezar na capela. O resto do tempo eles passam sós, e para fazer exercícios físicos racham madeira.

De vez em quando, realizam passeios na propriedade deles, em geral muito grande, com terras ermas, em fila indiana, de maneira que um não vê a fisionomia nem conversa com o outro. Caminham todos quietos, refletindo, pensando. Sobem, descem morro, com um itinerário indicado pelo prior; depois voltam todos para suas casas e vão se entregar cada um à sua vida, completamente só. Cada um deles é um verdadeiro solitário, um eremita no sentido literal da palavra.

A mais completa das renúncias que se pode praticar

Por que isso? A razão é dupla. Em primeiro lugar, porque as almas não são chamadas a pensar em todas as coisas, a não ser debaixo do ângulo da eternidade, quer dizer, relacionadas com a Doutrina Católica.

A algumas pessoas, por intercessão de Nossa Senhora, Deus concede a graça de serem assim no meio da vida quotidiana. A outras Ele dá essa graça, e até com opulência extraordinária, desde que elas se isolem; então, chama-as para esses lugares e, ali se isolando, elas pensam, pensam, pensam, e acabam construindo castelos interiores magníficos, mentalidades onde nada passa a não ser de acordo com o espírito da Igreja Católica.

Mas uma coisa muito bonita é que, em atenção ao fato de pertencermos ao Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, quer dizer, à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, há uma reversão entre nós por onde os méritos e sacrifícios de uns podem reverter em méritos e perdão para outros.

Então, os cartuxos vão para esses lugares e praticam a mais completa das renúncias que se possa praticar, para levar uma vida de sofrimento. Aí eles sentem frio, passam fome durante horas e horas, ao longo dos dias, semanas, meses, anos e decênios de solidão, sem sequer qualquer pequena distração do afeto humano, mas quietos até o momento de conversarem com os Anjos e com Deus.

Assim é a vida deles. Oferecem isso para a salvação das almas, a respeito das quais Nossa Senhora tem planos especiais para a glória d’Ela e para a expansão da Santa Igreja; por todos aqueles que são necessitados, para que sejam fiéis e perseverem.

É possível que estejamos juntos neste momento porque algumas almas dessas sofreram e padeceram uma vida inteira de isolamento. Nós não sabemos, às vezes, a que heróis, ou a que santos desconhecidos devemos a nossa perseverança.

Quem não teve horas de moleza em que duvidou se realmente perseveraria? Horas em que o pé resvalou sobre o abismo… Entretanto, pelo favor de Maria Santíssima, estão aqui. Quem sabe se algum desses varões ofereceu a vida por uma alma que não conhecia, à qual Nossa Senhora, do alto do Céu, destinou: “O sofrimento de Dom Fulano é para meu filho Sicrano.” E eles só se encontrarão no Paraíso. Esse é o sentido penitencial magnífico dessas almas.

Um turíbulo de onde se elevam, continuamente, penitência e oração

Alguém poderia perguntar: Não haverá um atentado do homem contra sua própria natureza, isolando-se assim? Eles não ficarão neurastênicos ou convulsionados na vida que levam? Não morrerão prematuramente? ­Isso não será um excesso de austeridade?

São Pio X pensou em reformar a Regra deles, tomando em consideração que os homens de seu tempo não tinham mais a força dos homens de outrora. Por causa disso, a Regra, feita na Idade Média, podia não se adaptar a eles.

Os cartuxos, então, mandaram uma delegação a São Pio X, de várias chartreuses do mundo, para pedir a não mitigação da Regra. Pelo que me contaram, eram dez monges, todos com mais de 90 anos de idade, fortes, de longas barbas brancas. Prosternaram-se diante do Papa e rogaram-lhe que não alterasse a Regra, pois eles eram a prova de que os cartuxos a aguentariam.

Mas São Pio X, em sua sabedoria de santo, e tomando em consideração a debilitação do gênero humano, entendeu que as gerações posteriores que entrassem na Ordem dos cartuxos — aqueles eram da geração dos velhos, ainda suportavam — não aguentariam mais. Então fez algumas alterações, muito medidas e pequenas, na Regra dos cartuxos.

Compreendemos, então, o “pulchrum” verdadeiro desses edifícios. Imaginemo-los habitados por homens perpetuamente silenciosos, pensando nas coisas de Deus, postos na oração e no sacrifício, em favor de almas que eles ignoram. Pensemos nos anciãos de 90 anos, entrando aos 20, e passando 70 anos num ambiente desses. O que seria, no rigor do inverno, o uivar do vento nessas montanhas e que, de repente, se enfurna por uma janela dessas, e vem trazer o frio para dentro desses edifícios, muito mediocremente aquecidos, atingindo homens apenas alimentados do indispensável?

Consideremos que isso é um imenso turíbulo de onde sobem continuamente ao Céu os perfumes da oração e da penitência. Compreendamos que há qualquer coisa de tranquilo, de sereno, de crucificado e varonil aí, que realmente incute uma enorme veneração, um respeito sem fim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/1/1977)

 

1) Mosteiro situado na comuna francesa de Saint-Pierre-de-Chartreuse, a norte de Grenoble, na Isère, França.

2) Casa situada em Lisieux, França, onde residiu Santa Teresinha.

A Assunção e o maternal legado da Virgem Maria

Ao concluir seu Evangelho, São João afirma que se fossem narrados todos os feitos do Salvador, “nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seria preciso escrever”(1).

Não obstante a beleza e profundidade desta afirmação, quem de nós leu os Evangelhos sem se lamentar, nesta ou naquela passagem, da ausência de certos detalhes que julgávamos indispensáveis à nossa piedade?

Se isso ocorre com as narrativas evangélicas, o que dizer, então, dos episódios que, por misteriosos desígnios de Deus, nem sequer foram mencionados nas páginas sagradas?

Tal se dá com a Assunção da Santíssima Virgem, cujos esplendores ocultam-se misteriosamente sob o véu do silêncio, rompido apenas pela Tradição e pela elucubração teológica, entretanto suficientemente eloquentes para fundamentar tão augusta verdade. Com efeito, a força da Tradição, que Dr. Plinio relaciona intimamente a Maria nesta edição(2), afirma-se de modo incontestável no dogma da Assunção de Nossa Senhora ao Céu.

Como os Evangelistas, também a proclamação deste dogma mariano não fornece detalhes… Contudo, isso favorece a ação do Espírito Santo em nossas almas, permitindo-nos imaginar piedosamente aquilo que a Revelação e o Magistério não explicitaram.

Para Dr. Plinio(3), a Assunção começa com a manifestação de todas as glórias que havia em Nossa Senhora, como ocorrera com seu Divino Filho no Tabor, causando nos presentes exclamações de admiração.

Ao mesmo tempo, no auge dessa “mariofania”, todos devem ter experimentado uma tal intimidade e união com Ela, vendo-A “tão meiga, tão afagante, tão tonificante, tão reparadora e tão mãe, que se sentiam como ajoelhados junto a Ela, recebendo suas carícias, ‘embebidos’ d’Ela, como um papel pode estar impregnado de perfumado azeite”.

Em determinado momento, “começam os ares a se mover, e os ventos como que a tomar forma e flutuar de modo singular; definem-se figuras angélicas e o céu se revela sucessivamente povoado de Anjos a cantar. Nossa Senhora, atingindo o auge de esplendor indescritível, torna pálidos os puros espíritos, entretanto tão majestosos!

“Chega a hora da despedida… A Virgem Maria começa a mover-se, olhando um a um com afeto, na tentativa de transpor a distância física que aumenta a cada instante. Os Anjos cantam celestialmente e, por fim, Nossa Senhora desaparece no céu. Os cânticos angélicos fazem-se ouvir por mais alguns instantes para consolar os homens, mas depois vão desaparecendo também gradualmente.”

Restava à humanidade enlevada, a doce lembrança desse augusto momento, perpetuada ao longo dos séculos pela Tradição e por um certo imponderável, maternal legado da Santíssima Virgem que permitirá sempre, a qualquer fiel verdadeiramente sincero, reconstituir e reconhecer a face inteira da Igreja(4).

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Jo 21, 24.
2) Ver seção “Reflexões teológicas”, número 185 da Revista Dr Plinio, p. 22-25.
3) Citações adaptadas, extraídas de conferência de 15/8/1980.
4) Cf. “Reflexões teológicas”, no número 185 da Revista Dr Plinio, p. 25.

A superior felicidade do espírito

Nas Reuniões do MNF (sigla para “Manifesto”), realizadas três vezes por semana para um seleto grupo de participantes, Dr. Plinio se dedicava a explicitar, concatenar e respaldar na doutrina  católica pontos de Teologia, Filosofia, Sociologia, Psicologia, etc., nascidos de suas reflexões e de sua observação da realidade. Esta longa série de reuniões se iniciou na década de 50, e sua finalidade era elaborar um Manifesto que salientasse a doutrina católica nos pontos específicos em que a Revolução investia contra a Igreja e a Civilização Cristã. Se ¨Revolução e Contra-evolução” era um esquema dessa Revolução, o ¨MNF” seria uma detalhada descrição e refutação, mas sobretudo uma afirmação destemida dos princípios negados por ela. Numa reunião de 1965, cujos excertos principais estampamos a seguir, Dr. Plinio descreveu um dos impactos da catequese que, uma vez ordenado e divulgado, esse Manifesto produziria: dar ao homem atual o gosto da consideração de Deus e dos bens espirituais, como fórmula para uma autêntica felicidade nesta Terra e antecipação do gáudio que terá na visão beatífica.

 

Quando publicado, o MNF mostrará entre outras coisas essenciais que o mundo moderno se esqueceu de que a natureza humana pede uma felicidade espiritual mais do que material, e mais extraterrena que terrena.

Quer dizer, se me ponho a analisar toda a sede de felicidade existente em meu ser, percebo que ela é total, perpétua, absoluta, sem qualquer possibilidade de alguma vez acabar. Sede essa que, bem sentida, refere-se mais ao espírito do que ao físico: posso querer a felicidade para o meu corpo, sem dúvida, mas desejo uma alegria imensamente maior para a minha alma.

A civilização moderna negou essa verdade, amortecendo a noção do prazer do espírito, enquanto acentuou a ideia do gáudio material. De maneira que, para o mundo de hoje, uma vez organizado  o bem-estar temporal, assegurado pela técnica o atendimento razoável das necessidades do corpo e, sobretudo, obtida pela medicina a longevidade que um belo dia elimine a imagem da morte, ter-se-á alcançado nesta vida o que ela pode nos oferecer de melhor.

Exemplos de felicidade espiritual

Ora, quando observamos a nossa existência, notamos situações fugazes em que temos momentos de felicidade de alma rápidos, transitórios, mas que, considerados enquanto tais, dão-nos um júbilo muito mais autêntico do que o desfrutado pelo corpo.

Assim, por exemplo, não há quem não tenha experimentado um movimento de felicidade espiritual e de consola-Nas Reuniões do MNF (sigla para “Manifesto”), realizadas três vezes por semana para um seleto grupo de participantes, Dr. Plinio se dedicava a explicitar, concatenar e respaldar na doutrina católica pontos de Teologia, Filosofia, Sociologia, Psicologia, etc., nascidos de suas reflexões e de sua observação da realidade. Esta longa série de reuniões se iniciou na década de 50, e sua finalidade era elaborar um Manifesto que salientasse a doutrina católica nos pontos  específicos em que a Revolução investia contra a Igreja e a Civilização Cristã. Se ¨Revolução e Contra-Revolução” era um esquema dessa Revolução, o ¨MNF” seria uma detalhada descrição e refutação, mas sobretudo uma afirmação destemida dos princípios negados por ela.

Numa reunião de 1965, cujos excertos principais estampamos a seguir, Dr. Plinio descreveu um dos impactos da catequese que, uma vez ordenado e divulgado, esse Manifesto produziria: dar ao homem atual o gosto da consideração de Deus e dos bens espirituais, como fórmula para uma autêntica felicidade nesta Terra e antecipação do gáudio que terá na visão beatífica. Ação religiosa por ocasião de alguma comunhão. Pode ser apenas um instante. Porém, analisada a felicidade que este instante proporciona, chega-se à conclusão de que ela vale incomparavelmente mais do que todas as felicidades materiais.

Como esse, existem outros momentos de semelhante satisfação. Quando alguém termina uma grande tarefa e se sente dignificado por realizá-la, tem fugazmente um movimento interno de alegria  muito maior do que a produzida por estar guiando um automóvel.

No momento em que enfrentamos um problema muito complicado para resolver e encontramos finalmente a solução, o êxito nos causa um movimento de alegria muito superior àquele que sentimos ao saborear um bom prato.

Ou no momento em que estabelecemos uma comunicação afetiva com alguém, vendo-nos estimados e amparados por essa pessoa a quem retribuímos o carinho, experimentamos um momento de felicidade de alma imensamente maior que a do corpo. É verdade que esses momentos na existência são fugazes, mas servem para nos provar a superioridade da felicidade espiritual, e para nos  fazer sentir como, no fundo, a única coisa que nos contentaria seria se pudéssemos ter uma alegria assim permanente, eterna, imutável, perfeita.

A grande lição do universo

Essa primazia do gáudio espiritual nos é sugerida pela própria ordem disposta por Deus na criação.

Com efeito, no universo formado pela onipotência divina não era conveniente que houvesse apenas uma criatura, pois, sozinha, nunca espelharia o Altíssimo suficientemente. Porém, o conjunto das criaturas, cada qual boa e bela a seu modo, acaba originando uma ideia da bondade e da beleza infinitas de Deus. Donde o universo inteiro ser composto de pequenos “universos” de bondade e  de beleza que se complementam, formando um todo imenso no qual temos uma noção global daquelas perfeições divinas. Podemos dizer, portanto, que o universo é uma grande lição, em virtude dessa admirável ordem em que Deus dispôs as criaturas umas em relação às outras.

E essa lição leva o homem a perceber sempre o significado espiritual daquilo que o cerca, e o faz desejar conhecer e admirar esse significado, eternamente, no Céu. Como o leva, outrossim, a compreender que o secundário nesta vida é o lado material, e que este deve ser tratado conforme a sua importância menor.

Aceitas essas verdades, ou se tem uma ordem social constituída de maneira a que certos princípios superiores do espírito fiquem inteiramente claros e evidentes, conduzindo o homem à procura de um bem maior, ou necessariamente a sociedade ruma para os princípios opostos, e se entra num mundo todo ele desorganizado, onde as crises se acumulam umas sobre as outras, até chegarmos ao caos, e mesmo à completa loucura.

Favorecem essa decadência as formas de cultura, de arte e de civilização que negam os princípios valiosos do espírito, e apresentam as realidades externas e materiais de um modo oposto a eles. Então não produzem o prazer de admirar as coisas superiores, atenuam a alegria autêntica que se pode ter nesta vida, ou até geram desprazer. São formas de civilização, de cultura e de arte ateias, materialistas, que conduzem o homem para o desespero, para a catástrofe, para o ateísmo, para o “non sense”.

São o contrário da formação católica que parte exatamente da concepção daquela ordem estabelecida por Deus no universo, a qual se reflete nos mais variados aspectos da sociedade bem constituída: no estilo de um móvel, no desenho de um armário, no modo de andar de uma rainha, na inflexão de um cântico, na maneira de dispor as árvores na alameda de um parque, ou no  “cozy”(¹) de uma casa operária…

Um poema filosófico

Se o homem se dedica a essa consideração das coisas enquanto ordenadas a Deus, ele encontra já nesta vida a única forma perene de alegria que ela lhe é capaz de oferecer. Uma pessoa que sofra de câncer, que padeça os mais  horríveis tormentos, ainda achará nessa consideração uma felicidade estável que nada lhe pode tirar. É uma satisfação que transcende a todas as outras  proporcionadas pelas coisas práticas e terrenas. É a alegria de espírito.

E se uma pessoa tem a alma assim disposta, ela possui uma facilidade imensa em compreender a ressurreição dos mortos, em aceitar a existência de um outro mundo onde as coisas correspondem  os seus melhores desejos. Ela adquire um feitio religioso natural. Quer dizer, numa sociedade construída sobre esse alicerce, a religião católica é abraçada sem dificuldades.

Mas, eliminando-se a concepção autêntica de felicidade, corta-se na raiz o gosto pela religião. Esta passa a ser opaca, distante, enfadonha, penosa de se seguir. Então, para condensar essas minhas reflexões, exatamente na hora em que a existência terrena se torna em muitos de seus aspectos louca e incompreensível, eu gostaria  de dar no MNF uma espécie de poema filosófico da compreensibilidade do mundo e da vida sob o ponto de vista da felicidade espiritual.

Uma catequese de impacto oportuníssimo

Nesse sentido, cabe uma censura às maneiras de expor a religião que a tornam pouco ou nada aceitável, pois ela não aparece como uma fórmula para organizar uma vida feliz. Costuma-se dizer:  “Você aqui será desditoso, mas no Céu receberá o seu quinhão”. Essa afirmação não exprime a verdade inteira, pois seria um disparate que esta vida não trouxesse um sério prenúncio da superior alegria que nos aguarda na outra. Ademais, o grande São Tomás de Aquino nos ensina formalmente que, para sobreviver, é necessário ao homem uma certa base de felicidade.

O lamentável resultado dessa apresentação incompleta da religião católica é este: as pessoas, pensando que ela não traz a felicidade, correm para os prazeres ilícitos. Cumpre, então, insistir na existência de uma alegria de caráter sobrenatural, espiritual, realizável neste mundo, a qual consiste em compreender a Deus, o universo, a Igreja, o quanto nos seja possível, apetecendo-os com  toda a força de nossa alma, e já sentindo o antegosto da vida eterna na Terra.

Quer dizer, vista assim, a religião católica é percebida como a solução de um caso pessoal. De outro modo, não há catequese, nem doutrina, nem pastoral, não há nada que “pegue”. É preciso vê-la resolvendo o problema que começa no interior de cada indivíduo, conduzindo-o a desejar, conhecer e aceitar os princípios verdadeiros, sentir dentro de si a veracidade desses princípios e a rejeitar os opostos.

Então deveríamos dizer àqueles aos quais queremos atingir com nosso apostolado: “Estão vendo o que é o prazer do espírito? Compreendem como esse prazer é, de certa maneira, completo?  Como ele faz um bem para a  alma muito maior do que qualquer outro benefício material e prático? Agora, percebam que miséria é o homem sem esta noção, e como ela, pelo contrário, o cura.

Pois bem, imaginem se essa felicidade que sentem com isso fosse eterna, imutável, infinitamente maior — o que aconteceria?”

A vocação nasce sempre como uma espécie de vivência desse prazer do espírito no considerar as coisas criadas. Ela sempre cresce quando o indivíduo é fiel ao prazer do espírito que caraterizava Jacó, e fenece quando a pessoa  de deixa atrair, como aconteceu com Esaú, pelas coisas materiais.

Creio que se Nossa Senhora nos ajudar a levar a cabo essa tarefa apostólica, ela significaria dar uma alta formulação do dom da sabedoria. Ela explica tão a fundo o problema da vida humana — no  preciso momento em que a ideia da existência baseada nos prazeres do corpo fracassa — que, a meu ver, seria uma catequese de um imenso e oportuníssimo impacto!

1 – Palavra inglesa que sugere algo de uma elegância simples e aconchegante.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 65 (Agosto de 2003)

O transatlântico e o cais

A tendendo o pedido de vários leitores, iniciamos neste número a publicação de recordações da infância e primeira juventude de Dr. Plinio, nas quais podemos distinguir os traços da formação de  sua personalidade e de seu pensamento. Nesta palestra para jovens, descreve ele como foi surgindo em seu espírito a noção de que existia no mundo um enfrentamento de tendências, idéias e  fatos, posteriormente explicitado em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”.

 

Antes de evocar aqui alguns episódios e circunstâncias do meu passado, conviria uma breve explicação sobre o que tenho chamado de Revolução “A” e Revolução “B” (¹), ou seja, as duas modalidades fundamentais em que se poderia dividir a grande Revolução anti-cristã, cujos perniciosos efeitos vêm correndo o Ocidente há mais de cinco séculos.

Revolução tendencial e Revolução sofística

A Revolução “A” é ideológica e moral, marcando as instituições, os debates doutrinários, com um trabalho do espírito e da inteligência em todo seu empenho e toda sua força. É a Revolução nas idéias. Esta, por sua vez, pode ser dividida em duas fases: a “Revolução tendencial” e a “Revolução sofística”.

A tendencial se dá no fundo da mentalidade do homem: são seus ímpetos, seus anelos, seus desejos, algo de tão interno que se torna muito difícil descrever.

A sofística é o operar do espírito movido, quantas e quantas vezes, pela vontade de tomar posição nos problemas tendenciais no sentido da Revolução, a fim de enganar os homens. Assim como o caminho da lógica é a favor da verdade, o do sofisma é a favor do erro. Por isso eu a chamo de “Revolução sofística”.

Já a Revolução “B” não atua apenas nesse terreno espiritual das idéias

Atendendo o pedido de vários leitores, iniciamos neste número a publicação de recordações da infância e primeira juventude de Dr. Plinio, nas quais podemos distinguir os traços da formação de sua personalidade e de seu pensamento. Nesta palestra para jovens, descreve ele como foi surgindo em seu espírito a noção de que existia no mundo um enfrentamento de tendências, idéias e fatos, posteriormente explicitado em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”. e das doutrinas, mas trabalha modificando coisas concretas, instituições, leis, dando-lhes a fisionomia que quer, ou usando da força para transformar, derrubar, impôr ou repôr. É a Revolução nos fatos.

Minha primeira juventude e o fim da Grande Guerra

Passando então aos acontecimentos da minha primeira juventude, analisados sob o prisma das Revoluções “A” e “B”, veremos que o episódio marcante do período entre 1918 e 1930, no terreno  tendencial, é um dos mais importantes da História: o fim da Primeira Guerra Mundial. Com ele, verificou-se a queda na Europa do que representava tradição, hierarquia, esplendor de vida, amor à beleza das formas, dos gestos e das atitudes.

E com o declínio dessas tradições, simultaneamente, o advento da influência norte-americana. A palavra “norte-americana”, cumpre salientar, não significa o que na realidade eram os Estados Unidos, mas o modo como apresentavam esse país à opinião mundial, sobretudo às opiniões européia e latino-americana. Fechavam-se os olhos para aspectos psicológicos do povo norte-americano bons ou não gangrenados pelos novos erros, e mostrava-se apenas o lado “moderno”, afetado amplamente pela Revolução.

Os Estados Unidos eram a grande nação vencedora, que havia decidido em última análise quem ganhara a guerra: os aliados (liderados pela França e a Inglaterra), e quem a perdera: os impérios centrais (basicamente a Áustria-Hungria e a Alemanha).

Eles chegaram à Europa em possantes navios transatlânticos, e desembarcaram nas costas da França em meio a jubilosas cantigas, tropas altamente mecanizadas, trazendo os primeiros tanques e canhões formidáveis, com um estoque de víveres e munições até então jamais visto. Os soldados franceses e ingleses exaustos, marcados de cicatrizes, muitos deles gloriosos veteranos com várias medalhas, viram descer nas praias gaulesas aquela rapaziada “modernizada”, vitaminizada e alegre, indo para a guerra com otimismo, com mecânica, com dólares, e destruindo com força os  obstáculos que se lhe opunham.

Então, aos olhos do mundo o quadro resultante dessa situação era este: a guerra travada entre nações briosas mas extenuadas pelo peso do passado, das revoluções e do combate, quando entram os Estados Unidos, ricos, jovens e saudáveis, decidindo o conflito e decretando como instalar a paz na Europa.

Mudança tendencial e novo tipo de homem

Com essa mudança na balança do equilíbrio mundial, houve também  uma transformação no plano tendencial. Era como se alguém tivesse exclamado: “Tradição, passado, cultura, ideais, arquetipias, vós todos não sois nada! Pelo contrário, máquinas, saúde, negócios, vida alegre, trabalhosa mas produtiva e jovial, futuro, vós sois os Estados Unidos! Vós sois a utilidade, o prático, o terra-terra, viveis para esta vida. E vós, ó velhos europeus, não é com vossa arte, cultura e poesia, não é com a história de vosso passado nem com vossos monumentos que se resolverão os  problemas de hoje. A prova é que vós não os solucionastes. A prova é que estais no chão, sem produzir em nome dessa tradição nada de novo. E mesmo quando alguma novidade realizam, fazem- no por uma ruptura com a vossa tradição, inteiramente gasta.

Se quiserdes ainda reviver, aceitai em vós o enxerto do espírito “yankee” moderno, porque, por vós mesmos, não sois mais nada!”

Pelo influxo dessa voz, muito de quanto fora encanto do passado e levara os homens ao entusiasmo começa a desaparecer, e raia a aurora de uma outra época,de outro estilo e outro modo de ver as coisas. As riquezas do espírito, as arquetipias, as maravilhas que nos dariam vontade de fugir da Terra para pensar só nelas, tudo começa a ser posto de lado. No fundo, passam a se enfrentar dois tipos humanos. E essa confrontação tendencial foi vivivíssima na época de minha infância.

Tomada de Posição

Imagine-se uma criança de dez anos (como eu tinha) em 1918, quando terminou a Primeira Guerra. Ela se depara com os dois tipos humanos e movimentos que acabei de descrever, batendo à porta da alma dela e a solicitando. Ela vê que os outros também estão assediados por esses movimentos, e percebe que essa é a solicitação do século.

Como todo ente batizado, essa criança é visitada pela graça e, portanto, pela fé. À medida que vai maturando, compreendendo melhor a religião e tirando mais conseqüências da doutrina católica, cada vez mais ela é convidada a tomar uma posição.

Para falarmos em termos de impressões e recordações, e não diretamente de doutrina, deve se levar em consideração que não vivi essas circunstâncias no vácuo, mas em uma cidade, São Paulo; em uma determinada camada social paulistana, e num certo meio dentro dessa camada, porque todo homem existe concretamente.

Assim, eu vi esse grande problema religioso e metafísico que acabo de enunciar representado por situações e por pessoas; vi as contradições das personalidades que ora pareciam ser uma, ora outra dentro de um mesmo homem. Vi os extremistas de ambos os lados, e fui levado, pelo desejo de ser fiel à Santa Igreja, a me perguntar qual a posição verdadeira e procurar tomá-la. Desse modo fui arquitetando pensamentos, elucubrações, idéias cujo traço essencial se encontra em “Revolução e Contra-Revolução”, e mais ou menos em tudo quanto penso e faço.

Eu tive os olhos mais abertos para esse panorama que descrevi a partir do início da década de 20. Quanto demorou até que essas reflexões me levassem a tomar posição? Não saberia precisar. Aliás, posição eu comecei a tomar desde o princípio, porque, vendo o problema, já ia optando. Mas é claro que o divisava por lampejos, fragmentariamente, como quem distingue de longe um  incêndio numa floresta: aqui uma chama que se levanta, depois outra mais adiante, sem perceber ainda que, por debaixo da ramagem, o fogo se alastra na floresta inteira.

É-me difícil dizer a idade em que notei o fogo dominando a floresta, e tive o desejo de fazer inteiramente o contrário da ação do incêndio. Pois eu era partidário de cada árvore, de cada capim. Era o inimigo de cada aumento de temperatura que pudesse avolumar a combustão. Antes de saber que o fogo consumia a floresta, eu inteiro era anti-fogo e pró-floresta.

Entretanto, até eu organizar bem as idéias mestras e os pensamentos essenciais, eu teria meus 15 ou 16 anos. Vê-se, portanto, que o trabalho se deu de um modo relativamente precoce e veloz, para uma matéria tão grande. Quando foi, então, que amadureceu no meu espírito o conjunto de “Revolução e Contra-Revolução”, vinda a lume em 1959?

Talvez pelos anos 40 eu já estivesse com tudo pensado e pudesse escrever o livro, porém só o publiquei no primeiro instante em que me pareceu viável.

“Nasci na popa do navio, e quis rumar para o cais!”

Trata-se de considerar, agora, quais foram as impressões primeiras que determinaram na minha alma essas reflexões e pensamentos sobre a Revolução e a Contra-Revolução.

As impressões que alguém nas minhas condições podia ter eram de duas espécies diferentes. Umas, oriundas do relacionamento humano de pessoa a pessoa ou num ambiente social; outras vinham do contato com a natureza.

A nota tônica, contudo, era dada pela impressão do convívio humano, que mostrava esse entrechoque da tradição romântica do século XIX e da “Belle Époque” do início do século XX contra o vento dito “norte-americano” que começava a soprar, e como os homens agiam em função dele.

Depois, eu confrontava essas impressões com a natureza. Então olhava para o céu, para o mar, para o rio, para a flor, enfim, para tudo quanto a criação apresenta e me perguntava: “Bem, fora  dessa gente e dessa época, na obra de Deus eterno, no mato, na montanha, no rio, na vegetação, nos animais, esse problema tem ou não tem repercussão? Deus, o que quer?”

Mas, há um terceiro protagonista, mais importante que o convívio humano, mais belo que a natureza, e o ponto de ordenação e de equilíbrio de tudo: a Igreja Católica. Os personagens do drama estão apresentados. Agora é o momento de a peça começar.

Eu observava a maioria das pessoas, rapazes de minha idade, outros meninos ou outras meninas, com a mentalidade comum do meu meio social. Percebi-as com ligeira nota voltada para o passado, de maneira que aquele meu meio seria tido por conservador.

Na realidade, porém, ia se distanciando da tradição mais ou menos como alguém que entrou num transatlântico rumo à Europa se vai afastando do cais. Alguns passageiros, quando o navio parte,  estão na ponta dele vendo o mar abrindo-se à frente. Outros passageiros estão na parte de trás, dizendo adeus a quem ficou no porto. Uns e outros querem viajar. E uns e outros deixam o cais.

O mesmo transatlântico nos ia levando a todos, embora tivéssemos atitudes diversas. Digamos que nesse meu meio, a maior parte embarcara no navio que eu chamaria — com a ressalva já feita —  de “norte-americano”. Essas pessoas diziam adeus para a tradição, jogando-lhe beijos, vendo-a cada vez mais distante, sem lhes passar pela cabeça de se jogarem dentro do mar e voltarem para a tradição. E assim o transatlântico ia deixando atrás o cais.

Eu nasci como passageiro na popa desse navio. Em certo momento tive de decidir, e Nossa Senhora me ajudou a tomar a decisão de me lançar dentro da água e rumar para as coisas abandonadas no cais e que era necessário resgatar.

Evidentemente, não é possível uma pessoa formar essa ideia sem ter olhado para o navio, sem ter observado os passageiros que estão na ponta, os que permaneceram entre a proa e a popa, sem olhar muito para o cais, sem ouvir descrições da terra para onde vai o navio. Há uma análise da situação antes de a pessoa dizer: “Não continuo!”

Dualidades e contradições

Como foi essa análise? O que me falavam os passageiros do transatlântico, daquele mundo moderno com suas contradições e influências diversas? Chamava-me particularmente a atenção a dualidade de reações dos que ficavam entre a proa e a popa, vivendo da influência francesa e da “norte-americana”. A maioria das pessoas falava francês e inglês, sendo que este último idioma não  era usado com vistas à Inglaterra, mas aos Estados Unidos. Volto a insistir, não os Estados Unidos reais, e sim aqueles admirados através das lentes deformadoras das câmaras cinematográficas de Hollywood.

Então, eu notava que as pessoas elogiavam modas e canções provenientes da França, usavam fórmulas de polidez criadas naquela nação e empregadas na vida corrente. Não raro, conversavam entre si em francês, procurando pôr na pronúncia todas as sutilezas e todas as delicadezas do espírito desse povo, nos vários matizes e nas diversas cores cambiantes com que a França rutila.

De vez em quando vinha, pelo contrário, a influência “hollywoodesca”, e então as mesmas pessoas falavam inglês. Era notória a mudança do estado de espírito: quando se usava o idioma francês,  procurava-se uma pronúncia nobre, delicada, exprimindo nuances em que a alma encontrava mil modos de se manifestar. Já quando se expressavam em inglês, sobre temas “hollywood”, não eram o matiz nem a alma que se exprimiam, mas as vontades do corpo, a fome, o gosto da velocidade, infelizmente também os assuntos contrários ao sexto e ao nono Mandamentos, etc. Era a matéria que falava, desprezando o espírito. E esta mudança se operava numa mesma pessoa!

Nesse sentido, lembro-me de uma discussão que presenciei entre uma senhora de idade madura e um velho tio dela. O mais curioso é que a senhora era católica, e o tio, ateu.

Ora, este sustentava uma posição de bom espírito, enquanto ela — note-se o paradoxo dentro disso — tomava uma posição de mau espírito. Em certo momento o tio se zangou e disse: — Pois olhe,  u acho que a minha ideia é a correta e acabou-se!

Ela respondeu num francês muito bem pronunciado: — “Monsieur, donc vous n’êtes pas à la page!” — Quer dizer, “o senhor não está na página certa do livro. O vento soprou sobre ele e pôs outras  páginas em foco”.

Mas, o modo de dizer vinha carregado de cultura francesa e ela inteira se “afrancesou” no momento de falar. Pouco antes, estava discutindo com um espírito “yankee” a favor da tese norte-americana. Ou seja, era como se uma pessoa substituísse a outra dentro da mesma pele, ao mudar de idioma! Vê-se aí o choque das personalidades.

A mudança dos comportamentos ao sabor das modas

O que se dava em relação aos idiomas, verificava-se também com os modos de ser.

Por exemplo, até então, quando alguém se encontrava com uma senhora bem mais velha ou simplesmente madura, fosse parente íntima ou de fora do seu círculo social, osculava-se-lhe a mão para cumprimentá-la.

Essa deferência em relação às senhoras — um valor da cultura ocidental e européia — minguava diante de um mundo no qual essas começavam a não ser mais respeitadas, um mundo em que se iniciava o processo de masculinização do sexo feminino.

Enquanto a senhora tradicional dava a mão a beijar sorrindo, a senhora “moderna” apertava a mão do outro, fitando-o nos olhos. O modo de rir, de vestir, de andar, de falar, de comer, o modo de  pensar e o de ser variavam de matizes de uma senhora para outra.

Considerava-se muito feio, sobretudo para senhoras, usar a moda do ano anterior. O vestido démodé perdia todo o valor, não importando se fosse bonito. As mulheres estavam sempre de figurino  em punho para se inteirar das mudanças da moda. Os homens, naturalmente com menos afã, acompanhavam também esse processo.

Assim os comportamentos se transformavam, e os passageiros do navio eram seres de épocas diferentes, do passado e do futuro, vivendo misturados e se influenciando, a maior parte sem perceber e sem se dar conta.

A posição da Igreja em face dessas mudanças

Eu era, então, um menino vivendo naquele mundo que passava por essas transformações. E me lembro que, às vezes, quando viajava para Santos (bem diferente da Santos de hoje!), agradava-me passear por suas praias grandes, olfateando e considerando todas as belezas possíveis do mar. Comprazia-me até com o cheiro da areia molhada e com o da maresia, com o rumor das ondas desmanchando-se nas orlas da baía.

Praia deserta, e a Revolução longe. Na praia, um menino que pensa… E sente a contradição daquele aspecto do mar com toda a vida “hollywoodizada” que vinha se desenvolvendo. Sente a afinidade do panorama marítimo com o passado, mas percebe que algo nesse passado também não conduzia a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora, nem à Igreja Católica como Ela é.

Quer dizer, nas tradições do século XIX e da “Belle Époque” nem tudo era bom odor, pois havia nelas uma espécie de entorpecente psicológico: o romantismo. Era um passado em que apareciam juntos, se quiserem, os heróis da Contra-reforma misturados com os românticos, como, por exemplo, Chopin.

Que efeitos o conjunto desse panorama produzia em mim? Até que ponto eu me sentia chamado para o passado ou para outro foco de luz, fixo e eterno, ao qual não só não se trata de nunca abandonar, mas, pelo contrário, devemos nos aproximar cada vez mais dele, isto é, a Santa Igreja?

Como eu via a posição d’Ela em face daquelas transformações? A Igreja não me parecia apenas representar a tradição mas a fonte, o modelo e o arquétipo da tradição, com o Santíssimo Sacramento, o altar-mor, os vitrais, aquela luminosidade difusa do recinto sagrado, a campainha que toca para ajudar a Missa, a torre, o sino que reboa para a população, o púlpito do qual um  pregador fala para as ovelhas que o ouvem reverentes, os paramentos e, sobretudo, o conteúdo da Fé e o esplendor da Moral! Diante da beleza dos Sacramentos, da santidade, da sabedoria das leis  a Igreja que eu ia conhecendo, vinha-me este pensamento: “Isso é a matriz de tudo!”

Então, como estava Ela em relação a essas influências diversas do passado? O que era o passado? Uma sereia a mais para cantar o cântico da perdição? Ou trazia verdades consigo? No coro angélico do passado, cantavam mais sereias?

Tradição e romantismo, mar e romantismo, menino e romantismo. Mar e tradição, menino e tradição.

Eis uma “ponta de trilho” para outra reunião de lembranças…

1 – Dr. Plino usa o termo “Revolução” no sentido que lhe deu na sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, publicada pela primeira vez em 1959.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 65 (Agosto de 2019)

Sofrimento: um meio de santificação

Baseado na Doutrina Católica, Dr. Plinio nos indica a necessidade do sofrimento para corrigir os desregramentos de nossa natureza.

 

Monnin(1), em sua obra “Espírito do Cura d’Ars”, escreve a respeito do sofrimento, como privilégio:

“Há pessoas que não amam a Deus, não rezam e prosperam. É mau sinal. Elas fizeram um pouco de bem, através de muito mal. Deus as recompensa nesta vida.”(2)

Dizemos às vezes: Deus castiga aqueles a quem ama. Nem sempre é verdade. As provações, para quem Deus ama, não são castigos, são graças.

O sofrimento ordena nossa natureza desregrada

Vemos aí uma exposição a mais do grande princípio da Doutrina Católica de que o sofrimento é indispensável, como meio para aproximação de Deus.

Ele é indispensável, por um lado, porque Deus quer que completemos o seu sofrimento com o nosso. E, por outro lado, porque o homem, concebido no pecado original, precisa sofrer. Ele tem em si uma fonte permanente de desordem, de apetências desordenadas, más, que lhe vêm de sua natureza desregrada. A todo momento, a natureza do homem pede alguma coisa que não convém, quer aquilo que é dos outros, deseja fazer e pensar o que não deve. E o meio que nos foi dado para matar em nossa natureza esses apetites desordenados é o sofrimento.

O homem que sofre, quebra certa exuberância má desse lado mau da natureza: deixa de ficar pretensioso, mimado, arrogante, petulante, exigente. E se contenta com pouco, torna-se afetivo, compreensivo, humilde. Quando começa o sofrimento, como uma chaga a corroer a alma, todas essas coisas más vão desaparecendo, minguando, e a pessoa então vai melhorando.

À força de gemer, uma pessoa de mau gênio aprende a combater devaneios e adquire temperança

Imaginemos essa situação: uma pessoa com um gênio insuportável, muito suscetível, que fica sentida com qualquer coisa a qualquer momento, muito preocupada em estar no centro das coisas, em aparecer em tudo. Digamos que essa pessoa tem, de repente, uma dor na perna — falemos somente dos sofrimentos físicos — e fica quinze horas por dia gemendo: “Ai, não posso mais! Venha, por favor, me fazer um pouco de companhia, para conversar um pouquinho! Traga-me tal objeto, me ajude em tal coisa! Pelo amor de Deus, tenha pena de mim!”

Ao cabo de seis meses, esse mau gênio está muito quebrado; foi passado a ferro. Porque, à força de gemer e sofrer, a pessoa aprende isto que a natureza humana concebida no pecado original detesta: ter uma vida comum, normal, sem grandes prazeres, já é uma grande coisa; e pode se dizer feliz o homem que tem condições comuns de existência, de tal maneira esta vida é um vale de lágrimas. E estar ambicionando a todo momento condições extraordinárias de existência, grande fortuna, grande consideração, é uma coisa que indica um desregramento.

Quando a pessoa tem condições comuns bem garantidas, começa a sonhar, a ter devaneios. Mas quando lhe faltam essas condições mínimas de existência, ela tem saudades: “Ah, que coisa boa ter saúde! Todo mundo nesta casa vai dormir, e eu, sozinho, vou passar a noite inteira gemendo. Que grande coisa uma noite sem dor!”

Antes disso, ela desejava uma noite de prazeres, ou então queria uma cama confortável, com colchão de molas especiais, uma armação que a faz virar de um lado para outro, com um abanador. Isto era para ela a felicidade. Como apanhou bastante, começa a compreender que valor enorme têm uma cama e um sono normais. Este é o começo, o andar térreo da temperança.

Um indivíduo pensa que iria fazer viagens fabulosas. Abre um jornal e lê: “Voo para a Pérsia, coroação do Xá”. A viagem custa, digamos, dez mil contos. Ele, que não tem mil, começa a pensar: “Mas é a prazo! Eu fico devendo mil coisas, vendo meu automóvel, mas dou uma tacada”. Acaba ficando em casa e se julga um infeliz. No dia em que vem a notícia da coroação do Xá na Pérsia, o indivíduo está deitado, aborrecido, mal-humorado com todo mundo. Alguém lhe pergunta:

— Por que você é infeliz?

— Eu não fui à coroação do Xá da Pérsia…

Se um coitado desses quebrar a perna e passar seis meses numa cadeira de rodas, compreenderá que a grande felicidade não é assistir à coroação do Xá da Pérsia, mas ir dar uma voltinha no jardim. Em sua cadeira, ele fica então pensando: “Se eu pudesse ao menos ir até a esquina ver passar o movimento, que delícia!”

Aí começa a entrar o juízo. As extravagâncias, as luas, as manias das pessoas quebram-se por meio do sofrimento.

Outro exemplo: a pessoa é muito suscetível, e de repente arrebenta qualquer coisa de ridículo na família dela. Antigamente acontecia isto: às vezes um membro qualquer da família caía num ridículo, e o sobrenome da família se tornava apelido. Nesse caso, a pessoa compreende que não deve estar correndo atrás das considerações, e julga uma delícia ser tratada como um anônimo, um joão-ninguém: “Que gostoso o tempo em que eu usava o meu nome e ninguém ria de mim!”

Essas provações e falhas são indispensáveis; sem isto a pessoa não vive bem.

O homem tem necessidade de sofrer

Mas há uma coisa curiosa na alma humana, parecida com o que acontece no corpo: se o corpo nunca faz esforço nenhum, ele padece. Por exemplo, um paxá, que viva deitado num terraço, no meio de almofadas, nunca se mova, passe o tempo todo fumando narguilé, e comendo aqueles doces colantes, brancos, vermelhos, de cores vivas.

Alguém dirá: “Que vida deliciosa leva esse paxá!” É uma ilusão. Porque o paxá tem todos os distúrbios orgânicos, decorrentes de sua inação. E esses distúrbios criam para o paxá uma alternativa, que é um inferno: se ele se move, é horrível, porque está desabituado; se não se move, é horrível, porque faz mal para a saúde. E o paxá se vê entre a doença e a violência; se ele afunda na inação, morre precocemente por causa disso.

O corpo humano precisa de certa violência para se sentir bem. O mesmo se dá com a alma. Quando o homem não sofre, ele acaba procurando sofrimento, porque há algo em sua alma em razão do qual ele sofre quando não sofre. E essa espécie de náusea de tudo, que vem da falta de sofrimento, é um castigo daqueles a quem Deus não manda cruzes.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1967)

 

1) Monnin, Alfred. Esprit du Curé D’Ars. Paris: Ch. Douniol, Libraire-éditeur, 1865. p. 25-26.

2) Pensamento de São João Maria Vianney citado pelo Pe. Alfred Monnin.

Espelho fidelíssimo de Jesus

Nossa Senhora devia conhecer o dia de sua Assunção, porque Ela estava na plenitude de sua santidade. Sua vida espiritual, que não deixara um instante de progredir de um modo admirável durante toda a sua existência, tinha chegado àquele clímax em que Ela possuía a perfeição perfeitíssima, a beleza belíssima, a virtude virtuosíssima, que tinha chegado, portanto, ao apogeu dos apogeus, e seu amor de Deus nunca fora maior do que naquele momento. Ela então sabia que, imediatamente depois de ressuscitada, seria elevada ao Céu.

Imaginem o estado de espírito de Maria Santíssima ao saber que, a partir daquele instante, iria gozar da visão beatífica, que Ela passaria por um cortejo infindo de Anjos dos quais receberia as maiores homenagens possíveis; e tendo uma ciência perfeita da hiperdulia dos milhões e milhões de espíritos celestes, todos se dirigindo a Ela e aclamando-A com o maior amor, o maior respeito, a maior veneração!

Ao tomar conhecimento de cada louvor, a Santíssima Virgem sentia um amor e um gáudio completos, ciente de que esses louvores eram merecidos, porque Ela tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e o espelho fidelíssimo de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1966)

O fato mais glorioso da História, depois da Ascensão

Durante a Assunção de Nossa Senhora, toda a natureza e os próprios Anjos refulgiam magnificamente, como nunca, refletindo de modos diversos, à maneira de uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. Porém, nada disso podia se comparar com o esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu.

 

Um fato que chama a atenção, na História Sagrada, é Nosso Senhor ter querido subir ao Céu aos olhos dos homens; e que acontecesse o mesmo com a Assunção de Nossa Senhora. Por que a Ascensão e depois a Assunção deveriam dar-se à vista dos homens?

Ascensão e Assunção

Quanto à Ascensão há várias razões e a mais protuberante delas é de caráter apologético. Era preciso que os homens pudessem dar testemunho deste fato histórico duplo: não só de que Jesus ressuscitou, mas de que Ele subiu ao Céu, a sua vida terrena não continuou. Subindo ao Céu, Ele abriu o caminho para incontáveis almas e Se assentou à direta do Padre Eterno. Ele, na sua humanidade santíssima, foi a primeira criatura – e ao mesmo tempo é Deus – a subir aos Céus em corpo e alma, como nosso Redentor, abrindo o caminho dos Céus para os homens.

Mas havia uma outra razão: era necessário que Ele, tendo sofrido todas as humilhações, recebesse todas as glorificações. E glória maior e mais evidente não pode haver para alguém do que subir aos Céus, porque é ser elevado por cima de todas as alturas.

E aqueles que se salvarem transcenderão todo esse mundo onde nos encontramos, e irão para o Céu empíreo aonde Deus Nosso Senhor está, para se unirem a Ele eternamente. E assim como Nossa Senhora havia participado como ninguém do mistério da Cruz, o Redentor quis que Ela tivesse a mesma forma de glória, participasse como ninguém da glorificação d’Ele. E a glorificação de Maria Santíssima se dava por esta forma, sendo levada aos Céus. E no momento em que lá entrou, a Virgem Maria foi coroada como Filha dileta do Padre Eterno, como Mãe admirável do  Verbo Encarnado e como Esposa fidelíssima do Espírito Santo. Anjos rutilantíssimos Nossa Senhora teve uma glorificação na Terra e depois uma glorificação no Céu. Portanto, nós precisamos considerar a Assunção como tendo sido um fenômeno gloriosíssimo.

Infelizmente os pintores, a partir da Renascença, não sabem representar de um modo adequado a glória que deve ter cercado este espetáculo. Devemos imaginar o seguinte: É próprio às coisas da Terra que quando se quer glorificar uma pessoa, em sua residência, por exemplo, todos vestem seus melhores trajes, se exibem os mais belos objetos, colocam-se flores e tudo aquilo que há de  mais nobre para homenageá-la.

Tal regra está dentro da ordem natural das coisas e é seguida também no Céu. O maior brilho da natureza angélica, o fulgor mais estupendo da glória de Deus nos Anjos deve ter aparecido exatamente no momento em que subiu ao Céu Nossa Senhora. E se foi permitido aos mortais verem os Anjos com seus próprios olhos, eles deveriam estar rutilantíssimos, com um esplendor absolutamente invulgar. E se não foi dado a todos os mortais contemplar os Anjos nesta ocasião, é certo, pelo menos, que a presença deles se fazia sentir de um modo imponderável, porque muitas vezes na História isso ocorreu, embora não fosse propriamente uma visão, ou uma revelação deles.

A glória interior de Nossa Senhora ia transparecendo como no Tabor

É natural também que nesta hora o Sol tenha brilhado de um modo magnífico, que o céu tenha ficado com cores variadas, refletindo de modos diversos, como uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. E que as almas das pessoas felizes ali presentes tenham sentido essas glórias em si de um modo extraordinário, de maneira tal que houve uma verdadeira manifestação do esplendor de Deus em Nossa Senhora.

Mas nenhum desses esplendores podia se comprar com o próprio esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu. À medida em que Ela ia se elevando, certamente, como numa verdadeira  transfiguração, a exemplo do Tabor, a glória interior d’Ela ia transparecendo aos olhos dos homens.

Falando de Nossa Senhora, diz o Antigo Testamento: “Omnis gloria eius filiæ regis ab intus” (Sl 44, 14), toda glória da filha do rei lhe vem do interior, daquilo que está dentro dela, e com certeza essa glória interna que Maria Santíssima possuía se manifestou do modo mais estupendo quando, já no alto de sua trajetória celeste, Ela olhou uma última vez para os homens, antes de definitivamente deixar esse vale de lágrimas e ingressar diante da glória de Deus.

Relíquia concedida a São Tomé

Compreende-se que deve ter sido, depois da Ascensão de Nosso Senhor, o fato mais esplendorosamente glorioso da História da Terra, comparável apenas com o dia do Juízo Final, em que Nosso Senhor Jesus Cristo virá em grande pompa e majestade, diz a Escritura, para julgar os vivos e os mortos; e com Ele, toda reluzente da glória do Divino Salvador, de um modo indizível aparecerá também Nossa Senhora aos nossos olhos.

Devemos considerar a impressão que tiveram os Apóstolos e os discípulos quando A viram subir ao Céu, recordando o fato que a tradição narra a respeito de São Tomé. Ele duvidou da Ressurreição e por isso foi convidado por Nosso Senhor a meter a mão na chaga sagrada do flanco d’Ele, para comprovar que era realmente Jesus. Depois recebeu o Espírito Santo em Pentecostes, ficou um Apóstolo confirmado em graça e tornou-se um grande Santo. Mas conta uma tradição venerável que, por ter duvidado, na hora da morte de Nossa Senhora, São Tomé não se encontrava  presente. Quando a Santíssima Virgem estava subindo ao Céu, já a certa distância da Terra, São Tomé foi trazido por Anjos para contemplar o final da Assunção. Aí vemos aquilo que poderíamos chamar a índole de Nossa Senhora, para cuja qualificação a palavra “materna” não basta, seria uma índole super materna, arqui materna, incomparável.

E ao receber esse castigo pungente, merecido, por uma culpa tão reparada de não ter podido estar presente à morte e ao início da Assunção de Nossa Senhora, ele olhou para Ela. Então, a Mãe de Deus sorrindo concedeu-lhe uma graça que não deu a nenhum outro. Ela desatou o seu cinto e, de lá de cima, fê-lo cair sobre São Tomé, de maneira tal que ele recebeu não direi o perdão, porque já estava perdoado, mas uma suprema graça, que era uma relíquia d’Ela atirada para ele do mais alto dos céus.

Nossa Senhora é assim quando tem algo a perdoar de algum filho muito dileto. Às vezes Ela nem sequer pune, mas quando castiga Ela faz seguir essa punição de um sorriso bondoso, de um perdão completo e de uma grande graça. Poder-se-ia imaginar que São Tomé, voltando para casa com os Apóstolos, mostrou-lhes esse presente dado a ele e disse: “O felix culpa – Ó feliz culpa –,  eu por desgraça duvidei de meu Salvador, mas em compensação tive a felicidade de receber esta relíquia celeste de minha Mãe Santíssima”. O último sorriso, o último favor d’Ela, a amenidade mais extrema, a bondade mais suave Nossa Senhora deu exatamente a São Tomé, e isto nos deve encorajar.

Que a Santíssima Virgem nos prepare para os dias terríveis que se aproximam Não há nenhum de nós que em relação à Santíssima Virgem não tenha falhas, e não precise pedir algum perdão. Nós devemos rogar a Nossa Senhora, nesta preparação da solenidade da Assunção, que proceda assim maternalmente conosco; que Ela olhe para nossas falhas, mas nos dê um perdão.

E que esse perdão seja o seguinte: Nós estamos cada vez mais claramente na orla dos acontecimentos preditos por Nossa Senhora em Fátima, e é possível que, analisando as nossas próprias almas com aquela severidade implacável que a condição de seriedade de todo exame de consciência exige, consideremos estarmos chegando um pouco atrasados na nossa preparação espiritual para esses acontecimentos.

Pois bem, nós devemos fazer uma oração, lembrando-nos de São Tomé. Se chegarmos atrasados, que Ela nos dê o favor especial particularmente rico e suave, por onde, de um momento para outro, nos preparemos de maneira tal que, quando bater à porta de nossas almas a graça dos dias terríveis que se aproximam, estejamos prontos, cheios de enlevo e capazes de seguir a vocação que Nossa Senhora nos deu.

Esta é a reflexão que me ocorre por ocasião da Assunção de Nossa Senhora. Se quisermos fazer uma meditação bonita sobre a Assunção, podemos ler as revelações de Fátima, narrando o milagre do Sol, que se manifestou de um modo tão terrível e esplêndido naquela ocasião. O astro-rei há de ter sido esplêndido, sem terribilidade, por ocasião da Assunção de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira