O Palácio dos Doges

Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, os venezianos conseguiram transmitir em suas construções o princípio governativo que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.

 

O Palácio Ducal era a sede do Governo de Veneza. Com a vida civil tão menos desenvolvida do que hoje, não havia os escritórios de advocacia necessários para fazer os requerimentos. Assim, nesse lugar, chamado por isso mesmo de “Porta da Carta”, eram colocadas mesinhas onde escrivães redigiam os documentos e petições a serem apresentados aos magistrados.

Almas com altos ideais culturais e religiosos

Eu chamo a atenção para a beleza dessa porta. Notam-se embaixo os batentes grandes, divididos em quadrados esculpidos. Encimando a porta, vemos o leão alado acima do qual se abre uma larga ogiva com vitrais. Tudo enquadrado por duas agulhas de mármore branco que, por assim dizer, “apresentam armas” ao lado do pináculo gótico da janela que termina num ornato no alto.

Diante do leão, símbolo de Veneza, está ajoelhado o Doge Francesco Foscari. Vejam como a janela é bonita, com os vitrais e todo o rendilhado maravilhoso que está acima, formando círculos nos quais se encaixam os vitrais. Tudo isso dentro de uma ogiva sobre a qual estão dois Anjos carregando a figura do Evangelista São Marcos. Por fim, uma sequência de esculturas sobre pedra que culminam numa figura terminal.

É interessante notar essa tendência do gótico, inclusive em Veneza, em terminar os monumentos em altas pontas. Excetua-se o Palácio dos Doges, que se encontra fora dessa regra porque a inverte de um modo muito bonito. Mas vemos essa tendência nas duas agulhas, na ogiva como também no topo de toda essa peça escultural.

A que corresponde essa tendência? Por que aquelas almas se compraziam tanto nisso? Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, nos quais agrada muito ver algo que domina todo um conjunto harmônico de seres. É propriamente o princípio governativo que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.

Essa é uma porta tão bonita que valeria a pena fazer um esforço grande para viajar só para conhecê-la. Entretanto, ela é apenas um pormenor de um palácio que contém incontáveis outras maravilhas.

Preocupação de pôr beleza em tudo

O Palácio dos Doges compõe-se de dois andares sobre uma espécie de galeria coberta que dá para a Praça de São Marcos. Entre o corpo principal do edifício e essa galeria térrea encontra-se um terraço todo ornado por colunas encimadas por rosáceas.

No pátio interno do palácio encontramos mais uma vez uma galeria inferior, não mais com os arcos góticos ogivais, mas com arcos semicirculares, e no andar superior novamente as ogivas. Por fim, o famoso “caixotão” – mas que caixotão! – vazado por janelas grandes e pequenas que completam belamente o conjunto do quadro. No topo, um rendilhado de pedras brancas indicando novamente o amor às pontas. Imaginem o edifício sem esse detalhe; não ficaria meio sombrio? Mas com essa renda de pedras brancas é uma verdadeira maravilha. A pessoa se deleita ao ver isso precisamente porque culmina numa ponta. Tudo o que termina em ponta é belo porque representa o governo perfeito.

Vale a pena prestar atenção no chão do pátio, onde se encontram dois poços, de água doce naturalmente, para as pessoas beberem, lavarem-se, etc. Mas para o chão não ficar muito monótono, fizeram em pedra mesmo esses desenhos, porque para plantar aí provavelmente não daria. Então encheram o espaço dessa maneira agradável. Vemos assim como há a preocupação de pôr beleza em tudo.

A sala do Grande Conselho, no interior do palácio, era o local onde os magistrados de Veneza se reuniam para deliberar. Considerem o contraste entre a extrema ornamentação, de um lado, e a extrema simplicidade, de outro. O teto é todo carregado de ouro, com quadros magníficos encaixados. Ao fundo, vemos um quadro representando o Paraíso, e que toma a parede toda. Uma obra maravilhosa, tendo no alto Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e a Santíssima Trindade.

Portanto, uma sala do Governo dominada por uma cena fundamentalmente religiosa, de tal maneira Governo e Igreja viviam em colaboração nesses felizes tempos. Embaixo, diante dessa obra de arte, encontra-se uma tribuna ladeada por duas portas que contrastam com o conjunto, por causa da cor clara dos batentes, a tal pedra branca veneziana, dando uma nota de alegria a uma sala que estaria exposta a ficar muito soturna se não tivesse algo de branco para contrastar com o carregado das cores.

Solenidade dos atos realizados pelo Conselho

A grande tribuna conta com uma presidência e três lugares de cada lado; um Conselho de sete pessoas, portanto. Ali se decidiam questões que interessavam aos particulares. Então, era livre o acesso à sala aos que tinham assuntos a serem julgados. Não tenho certeza, mas creio que, como nos tribunais, também ali podiam falar as pessoas delegadas pelos interessados para resolverem suas questões junto ao Conselho.

Os membros do Conselho, sobretudo o presidente, participavam da sessão com roupas riquíssimas, em geral com tecidos de valor inestimável, conferindo assim grande realce à solenidade do ato. Era para fazer respeitar o poder público que, segundo nos ensina a Doutrina Católica, provém de Deus. Não que Ele escolha a forma de governo, nem indique quem vai governar. Isso Deus deixa aos homens. Mas toda sociedade humana deve ter um governo. Portanto, é da vontade divina que haja governos, e quando os homens obedecem ao governo, cumprem o desígnio de Deus. Naturalmente eles só devem cumprir a vontade dos governos quando não são contrários à Lei de Deus, porque esta fica acima de toda lei humana.

Nota-se, assim, o desejo de inculcar naqueles que assistem ao julgamento a ideia do valor religioso da decisão a qual será tomada por autoridade de Deus. Pode acontecer que o homem tome uma decisão errada, com ou sem culpa. Com efeito, em consequência do pecado original, Deus quis permitir que houvesse pessoas com pouca inteligência ou mal intencionadas. Entretanto, apesar do risco de “burros” e canalhas governarem os homens, a Providência quis que houvesse governo. Este é o princípio magnificamente expresso aí.

Os doges: homens inteligentes, espertos, meio misteriosos

“Doge” é uma palavra italiana derivada do vocábulo latino “dux”, que deu origem também à palavra “duque”, título nobiliárquico. O Doge de Veneza tinha as honras e as prerrogativas de duque.

Ao analisar os bustos de alguns deles, que se encontram nesse palácio, nota-se que, apesar da natural diferença dos traços fisionômicos, há qualquer coisa de comum entre eles, e que corresponde a um elogio que nem sempre se pode fazer aos chefes de Estado contemporâneos: são homens inteligentes, sabem o que querem e querem o que sabem, voluntariosos e, cada um a seu modo, espertos; meio misteriosos, com a fisionomia enigmática, não dizem o que pensam, mas governam mesmo a República Sereníssima de Veneza. Aliás, como uma pequena cidade como Veneza poderia ser a Rainha do Adriático e, ao cabo de algum tempo, também do Mediterrâneo, se não fosse dirigida por homens capazes disso?

Eles usavam um chapéu denominado “barrete frígio”. A Frígia era uma região da Ásia antiga onde os homens usavam esses chapéus com essa espécie de pontinha atrás. Tornou-se o símbolo dos Estados nos quais o regime de governo não era a monarquia e sim a república. Porém, não eram necessariamente repúblicas democráticas. Veneza era uma república aristocrática, e os doges pertenciam ao Conselho, tendo seus nomes inscritos no Livro de Ouro, que era o registro das famílias nobres, e todos tinham uma grande autoridade sobre Veneza.

A lindíssima Ponte dos Suspiros

A famosa Ponte dos Suspiros comunica o Palácio Ducal às prisões, e consta fundamentalmente de duas janelas. Dificilmente se pode imaginar uma ponte mais bonita do que essa. É lindíssima! É um corredor coberto pelo qual os prisioneiros eram conduzidos para ser julgados pelas autoridades competentes. Como se vê, não há possibilidade de escapar, é uma condução que não oferece perigo de evasão.

A denominação “Ponte dos Suspiros” é muito bonita. Mas exagerou-se, na literatura revolucionária, o alcance disso. Começou-se a dizer que por aí eram levados os prisioneiros destinados a serem executados. Depois, provou-se que não era verdade. Eram conduzidos para comparecer ante as autoridades judiciais, de onde, quiçá, poderiam sair absolvidos. Portanto, era um suspiro de tristeza, mas também de esperança: “Afinal, vou ser julgado. Talvez saio dessa história…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1988)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

Modos de ser dos brasileiros

Com verve e profundidade, Dr. Plinio descreve os modos de ser dos diversos tipos de brasileiros. Ao analisar o pernambucano, transmite as impressões que teve ao visitar um antigo engenho de sua família paterna.

 

Os modos de ser pessoais mudam de acordo com os Estados. Por exemplo, uma coisa é o modo de ser do Rio, outra coisa o de São Paulo. Mas nenhum desses dois é o mesmo da Bahia, mais florida, mais poética, mais retórica. Pernambuco ainda traz um pouco da marca da guerra dos holandeses. E vai daí para a frente…

O militarismo gaúcho tem algo de feudal

O Brasil tem dois Estados militares muito distantes entre si. O temperamento mesmo dos que pertencem a um Estado e outro são diferentes. Um deles, o Rio Grande do Sul, é militar por estar em fronteira.

Quem vive em São Paulo, por exemplo, se encontra a uma distância astronômica da parte da fronteira onde se guerreou. Portanto, a guerra para os paulistas é uma coisa remota, mas para os gaúchos, algo muito mais recente. Por isso estes são muito militares. Grande parte do contingente do Exército brasileiro é constituído por gaúchos.

Há um modo peculiar do gaúcho ser militar. O militarismo gaúcho tem qualquer coisa de feudal. Sua raiz era ainda aquela do velho coronelismo agrícola do Brasil: fazendeiros com propriedades enormes, plantações de mate, criações de gado em quantidade, extensões colossais dominadas por senhores dessas terras, com populações grandes morando ali e que dependiam deles.

Isso fazia com que em cada guerra de fronteira – contra os argentinos, raramente contra os uruguaios – os fazendeiros e a capangada saíam como uma unidade. E viviam à la militar. Não é o militar francês ou austríaco, nem um pouco. Mas o militar caboclo com aquele chapelão, um pouco far West, laço vermelho no pescoço, poncho, chimarrão, com aquela bomba de chupar feita de prata, botas altas e correrias a cavalo pelas vastidões das criações. Eram homens fortes, sólidos e dominadores.

Os cearenses são muito inteligentes…

Outro Estado militar do Brasil inteiramente diferente é o Ceará. A configuração desse Estado terá uma certa influência no militarismo do cearense, que naquela terra seca vagueia nômade em meio aos cactos e à pobreza.

O espírito de aventura não é o mesmo do senhor com uma base na terra e mandando em gente que faz parte da raiz dele. Mas é gente de correria e tropelia por aqueles sertões desérticos, com “mata-mata”, capangada, um far West norte-americano do tempo clássico, mas acomodado às condições e ao temperamento regionais. Portanto, sem aquele ar estável e firme do gaúcho, mas com outro jeito que eu acho simpático também, e que é o espírito de aventura, uma espécie de D’Artagnan(1) da poeira, dando origem a tipos como o Padre Cícero, o Lampião e outras figuras assim, legendárias.

De todos os lugares pelos quais viajei, o Ceará foi o único em que, olhando de cá, de lá e de acolá, falando com este, com aquele, não encontrei ninguém que não fosse muito inteligente. Cheguei a andar sozinho pelas ruas de Fortaleza à procura de alguém pouco dotado de inteligência, mas não encontrei.

…mas muito brincalhões

Entretanto, eles brincam demais…  Em certa ocasião, fui a uma igreja e pedi para comungar. Na sacristia, estava um padre lendo junto a uma escrivaninha. Entrei, cumprimentei-o com meu modo cerimonioso, caracteristicamente paulista.

— Padre, bom dia!

— Bom dia – respondeu-me ele com uma voz cantante e olhar inteligente. Senti que ele estava me olhando para me pregar alguma…

Eu disse:

— Padre, eu queria comungar. O senhor me desculpe, está um pouco tarde, mas o senhor poderia me dar a Comunhão?

— Posso. Mas acontece que sou aleijado e só conseguirei ir até o altar se o senhor me carregar até lá. O senhor está disposto a que eu me pendure no seu pescoço e me leve até o altar?

Enfim, para comungar eu faria qualquer outra coisa. Respondi:

— Padre, o senhor me diga como eu devo fazer que levo o senhor até o altar e lhe fico muito agradecido.

— Não precisa, não.

— Mas, como não precisa? O senhor não quer ir?

— Não. Sente aqui, Doutor Plinio, o senhor pensa que eu não o conheço? Eu o conheço muito.

Puxou uma cadeira e continuou:

— Eu sou o Monsenhor Nini.

Eu nunca tinha ouvido falar de Monsenhor Nini na minha vida… Era tudo brincadeira. O padre queria uma prosa com uma pessoa de fora. Conversamos um tanto, ele perguntou notícias de São Paulo, etc. A certa altura, viu que eu estava com pressa e disse:

— Bem, então vamos para a Comunhão. Levantou-se e foi lépido para o altar e me deu a Sagrada Eucaristia.

O charme, a principal arma de luta do carioca

Passando para o Rio de Janeiro, veremos que o carioca é inteiramente diferente. Em primeiro lugar, não é belicoso, guerreiro, mas coloca sua confiança no charme, que é a sua principal arma de luta. Talvez seja inspirado por alguma circunstância. O Rio foi, durante muito tempo, a capital do País. Deixou de ser no tempo do Juscelino, que mandou construir Brasília.

O mundo diplomático brilhava no Rio de Janeiro, que sediava as embaixadas do exterior ainda num período brilhante em que a vida diplomática era representativa, nobre, com o aroma das velhas cortes europeias. Naturalmente, esse ambiente tinha comunicação com a alta sociedade do Rio, a qual ficava muito impregnada de todos os ventos vindos da Europa.

De outro lado, sendo a capital do Império e, mais tarde, da República, o Rio atraía as elites de quase todos os Estados do Brasil para residirem lá. Havia, portanto, elementos exponenciais do que há de melhor dos vários Estados brasileiros morando junto à doçura e à beleza majestosa, suave, descansada da natureza do Rio, muito mais bonita outrora, com aquelas curvas do mar que tinham sido desenhadas por um francês e, por isso, dotadas da graça francesa. O mar chegava bem mais próximo das casas. No Hotel Glória, por exemplo, que era naquele tempo um grande hotel, sentia-se quase as ondas baterem nos paredões do edifício.

Essa doçura do ambiente carioca, com as palmeiras imperiais, o Jardim Botânico, aquelas montanhas que parecem irmãs molemente encostadas umas nas outras, aquela brisa constante, em geral morna, que sopra no Rio, o Outeiro da Glória, lindamente colocado no Morro da Glória, que é uma verdadeira joia, ao mesmo tempo uma igreja e um brinquedo, de tal maneira é bonito; tudo isso fez com que os cariocas colocassem o seu principal meio de ação no charme. Sempre muito amáveis, brincalhões, mas gentis, sem nada de agressivo, e fazendo disso o meio pelo qual atraíam, de maneira a convergir tudo para o Rio onde reinava uma atmosfera de bonomia elegante.

Paulistas antigos e mineiros

Um tipo humano bem diferente desse era o paulista antigo: fazendeiro, sem guerras, mas senhor a conta inteira, sério, amável, com um fundo de desconfiança, mas não muito carregada, de poucas palavras. Enquanto no Rio uns vão muito nas casas dos outros, entrar na casa de um paulista era uma dificuldade. Porque eles recebiam pouca gente. Eram residências bonitas, muito bem arranjadas, para acolher os parentes e os íntimos, ou as visitas de cerimônia, recebidas numa sala especial chamada sala de visitas. O resto da casa é para a intimidade.

Podemos encontrar uma típica mansão paulista antiga na esquina da Rua Dona Veridiana com a Avenida Higienópolis, onde hoje há um clube social. Outra é o Palacete dos Campos Elíseos, que é uma casa paulista ainda mais característica do que a mencionada anteriormente.

Ao considerarmos o Estado de Minas Gerais, podemos diferenciar duas Minas. Uma é a de Ouro Preto, dos profetas do Aleijadinho, do tempo colonial: recolhida, meditativa, inteligente, calma, desconfiada, rica e econômica.

Ao longo do tempo do Império, certas qualidades foram desaparecendo. O aspecto artístico caiu bastante. Isso foi substituído pela Minas política, bancária, comercial e agrícola, que vai começando a ser também industrial. Os melhores políticos rivalizam com os gaúchos. O mineiro é rei da política na arte de sussurrar, falar baixinho, dizer a metade e dar a entender o resto. A política do gaúcho é declamatória. Eles têm esperteza, verve, agradam as pessoas, mas falando muito, aos borbotões.

Baianos cantantes e pernambucanos mandões

Já a Bahia é histórica, tradicional, cantante, poética, oratória, gastronômica, pitoresca. Basta lembrar esses predicados que todo mundo sabe o que é um baiano. Não é preciso descrever.

Em Pernambuco vejo uma peculiaridade curiosa, que não é propriamente uma mistura, mas os pernambucanos são uns baianos meio apaulistados. Os baianos têm aquele charme da primeira capital do Brasil, que foi Salvador. Como os cariocas, eles possuem a arte de agradar, são leves, engraçados, e têm uma inteligência luminosa.

Os pernambucanos são brincalhões e frequentemente bem inteligentes, mas não dão propriamente para tribunos como os baianos, que postos num púlpito, ou numa tribuna, falam e arrastam. Os pernambucanos discursam bem, escrevem livros muito bem feitos, conhecem o português primorosamente e são espíritos mais tendentes a aprofundar. Entretanto, são muito mais homens de ação, gostam de produzir, de trabalhar. Ademais, são mandões. Na terra de cada um, manda cada um; e ai de quem se meter!

Casa de engenho dos Corrêa de Oliveira, em Goiana

Transmito-lhes algumas de minhas impressões da casa de engenho da família de meu pai, em Pernambuco, quando lá estive. Era uma casa antiga, ainda do tempo colonial, localizada em Goiana. Nesse lugar nasceu um dos maiores brasileiros: Dom Vital Gonçalves de Oliveira, o bispo que lutou contra os inimigos da Igreja no tempo do Império, foi muito perseguido e morreu vítima dessa perseguição. Era um gigante!

Essa residência possuía uma capela própria do tamanho de uma pequena matriz, com imagens coloniais, tudo muito bonito, ligada à casa principal por uma ponte coberta, à maneira da Ponte dos Suspiros de Veneza.

Outrora, a família de meu pai tinha sido muito rica, como todos os donos de engenho de Pernambuco, pois exportavam açúcar para a Europa em quantidade. Contudo, como todas aquelas famílias aparentadas da redondeza, perdeu a fortuna. E a decadência foi tão grande que ruiu a ponte pitoresca, poética entre a capela e a casa, que conduzia diretamente para a parte de cima ocupada pelo órgão, de onde a família assistia à Missa, ficando duas portas abrindo para o vácuo, uma na casa da família e outra na capela.

Nessa casa havia alguns móveis bonitos, sobretudo um relógio do tempo do Império. Mas a “peça-mestra” da residência era meu tio, irmão de meu pai, apelidado de Totonho. Um homem alto, ligeiramente obeso, nariz adunco, olhos penetrantes prontos a percorrer as coisas e registrar, meio quietarrão e comilão ao máximo. Aliás, o pernambucano em geral tem muito bom apetite. Era um homem pobre, mas com uma majestade, um ar de senhorio no modo de olhar admirável. Eu tinha vontade de fotografá-lo.

A família nos ofereceu um almoço pantagruélico. A fazenda ficava perto de um braço de rio, próximo ao mar. A certa altura do dia o mar entrava trazendo mariscos, caranguejos, enfim toda espécie de guloseimas. Quando o mar entrava, os pescadores baixavam uma rede que, com o refluxo, ficava repleta dos mais variados e saborosos frutos marítimos. Tudo sem gasto nem trabalho.

Cultura do espírito

As diversões deles eram as de gente empobrecida também. A fazenda ficava a certa distância da praia. Quase todos aqueles fazendeiros tinham casa na praia, mas construções muito elementares. Chegadas as férias, iam passar uma temporada na praia. Também nessa ocasião vigorava a lei do mínimo esforço. Eles tomavam umas embarcações à noitinha, preparavam sanduíches, comedorias sem as quais o pernambucano não vive, punham dentro dos barcos e iam cantando e tocando viola até amanhecer. Sem fazer o mínimo movimento, porque o rio levava. Não tinha o mínimo risco, porque era uma espécie de canal. Era só cantar, tocar viola, contemplar o luar e comer.

Compreendo que para certos povos isso pareça sem graça, porque não está posto no meio disso o trabalho. Mas se presenciassem a cena entenderiam mais a fundo. Porque durante todo esse tempo, não pensem que se fica ocioso. É um brincar, trocar ditos de espírito, manter um tipo de relação humana que absorve a atenção; é um jogo do espírito que exige da pessoa estar atenta àquilo que faz. Portanto, esse gracejar é um jogo sério do espírito. Não é a piada vagabunda, mas uma coisa dita com inteligência. E por causa disso absorve, e a cultura se desenvolve.

Quem, encontrando uma terra boa trabalha-a e ganha dinheiro, ou enriquece por meio da indústria ou comércio, faz uma coisa louvável, desde que segundo os Mandamentos da Lei de Deus. Entretanto, quem está numa terra que só produz um tipo de fruto, o qual não dá mais dinheiro, como é o caso da cana-de-açúcar, e não tem jeito de ficar rico, o melhor partido que pode tirar da vida é ter uma existência sossegada, mas cheia de cultura. Não a cultura livresca, pela qual o meu entusiasmo é moderado, mas exatamente essa cultura do espírito, que nasce do trato de uns com os outros, da conversa séria, consistente, acompanhada de uma gastronomia esplêndida e sossego. Eu pergunto: não é um “way of life”? Não é um caminho da vida?             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/3/1987)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Principal personagem da peça teatral de Edmond Rostand (*1868 – †1918), “Os três mosqueteiros”.

 

Fundador da Ordem de Cister

Santo Estêvão Harding, juntamente com dois outros bem-aventurados, fundou a Ordem de Cister como reação contra a decadência da Ordem dos beneditinos. Cister teve um enorme progresso com a entrada em suas fileiras de São Bernardo, o homem da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua contra todos os adversários da Igreja do seu tempo.

 

Pretendo fazer um comentário em torno de alguns dados biográficos(1) sobre Santo Estêvão Harding.

Origem da Ordem de Cister

Estêvão Harding, filho de um gentil-homem inglês, consagrou-se muito jovem à vida monástica, na Abadia de Sherborne, em Dorset. Enviado à França, na Universidade de Paris cursou brilhantemente Humanidades e Filosofia.

Terminando os estudos teológicos, foi para Roma em peregrinação. Voltando à França, decidiu conhecer Molesmes, atraído pela reputação dessa casa. Molesmes, embora dirigido por São Roberto e o Bem-aventurado Albéric, decaíra sensivelmente, talvez pelas riquezas que então possuía. Os dois santos acabaram abandonando a comunidade e, conjuntamente com Estêvão e com o apoio do Duque Eudes, de Borgonha, decidiram fundar outro mosteiro.

Essa foi a origem da célebre Ordem Beneditina de Cister, da qual Estêvão foi o prior em 1099 e o redator dos Estatutos, aprovados por Pascoal II.

Em 1109, Santo Estêvão tornou-se abade da nova casa; lutando com ingentes dificuldades para levar os religiosos à vida perfeita e recebendo pouquíssimos noviços, começou a duvidar se seu instituto era do agrado de Deus e rezou para ser esclarecido.

Recebeu então uma resposta que o encorajou e à pequena comunidade que ali vivia.

De Borgonha chegava um gentil-homem acompanhado de trinta companheiros, pedindo admissão naquela casa. Esse nobre é São Bernardo. No ano de 1115, Santo Estêvão construiu Claraval, cujo primeiro abade foi São Bernardo.

E de Claraval surgiram mais oitocentos mosteiros. Nosso Santo veio a falecer em 1134, dizendo não ir para Deus senão com o temor de servo inútil que nada tinha feito de bom. Se o Criador lhe concedera algum dom, temia não ter feito dele todo o uso para o qual o recebera.

Vicissitudes que ocorrem nas Ordens religiosas

Encontramos aqui um desses fatos frequentes na vida das Ordens religiosas, que é a fundação de novos ramos provenientes da Ordem antiga.

Com efeito, há uma dualidade de modos de proceder da graça em relação às Ordens religiosas: todas são dotadas, na sua origem, das graças necessárias para cumprirem a missão que Deus tem em relação a elas; e em geral, pelo menos na primeira fase de sua existência, elas cumprem essa missão.

Porém a partir de certo momento, como acontece em todas as coisas humanas frequentemente – eu não digo por uma fatalidade, nem por uma regra geral que não comporte exceções, mas por uma dessas regras gerais que admitem algumas brilhantes exceções –, as Ordens religiosas passam, depois da era heroica do fundador, dos grandes Santos, dos grandes feitos, por um período de arrefecimento. E esse arrefecimento ou é cortado por alguns novos Santos que aparecem e inspiram, comunicam à Ordem um impulso novo, ou então ela vai lentamente declinando para a decadência. Quando chega a determinado ponto da decadência, abre-se outra alternativa: ou a Ordem religiosa se fecha, ou floresce dando origem a um novo ramo.

Em geral, acontece que quando o ramo novo se forma, ele resplandece com um brilho igual ao da Ordem nos seus melhores dias, e o ramo velho acaba se deixando contagiar pelo ramo novo, e vai acompanhando-o um pouco de longe, como um irmão meio envelhecido acompanha, a duras penas, a marcha do irmão mais novo, mas termina se contagiando mais ou menos e se regenerando, acaba arrastando uma certa vida daí para a frente.

Por que Deus permite que algumas Ordens religiosas morram e por que Ele faz com que outras tenham a sua existência maravilhosamente prolongada, ou por uma continuidade gloriosa que, por vales e montes e sem fundação de novos ramos, marca sempre a sucessão de novas graças dentro do mesmo instituto religioso, ou, porventura, pela abertura de novos ramos? Por que então Deus a umas fecha, ou permite que se fechem, e a outras Ele guia de modo tão maravilhoso?

É que há certas Ordens religiosas, para considerar um aspecto da questão – a qual não se esgota nisso –, que têm um papel perene dentro da Igreja Católica. Elas devem irradiar um determinado perfume do qual Deus não quer que a Igreja seja privada nunca mais, para que tenha sua fisionomia, de maneira que então, de um modo ou de outro, Deus conserva aquilo.

Existem outras Ordens que Deus, na sua infinita sabedoria, julga que não são indispensáveis à economia geral da Igreja. E Ele, então, permite que elas decaiam e desapareçam.

A continuidade da Ordem do Carmo

Entre essas Ordens eu creio que nenhuma apresenta uma continuidade tão maravilhosa quanto a Ordem do Carmo.

Segundo uma tradição muito respeitável – que há todas as razões para se admitir como verdadeira –, a Ordem do Carmo, fundada por Santo Elias, passou por muitos revezes e episódios brilhantes antes da vinda de Nosso Senhor até o aparecimento de São João Batista, o qual, segundo essa tradição, foi essênio e, portanto, pertencia àquele eremitério nas encostas do Monte Carmelo, onde os sucessores de Santo Elias cultivavam a vida religiosa. São João Batista teria sido, então, o maior dos sucessores de Santo Elias.

Com o advento do Novo Testamento e a dispersão do povo hebraico, esse núcleo se transformou na Ordem do Carmo. Depois de muitas vicissitudes, ela foi transladada para o Ocidente devido às perseguições que os maometanos desferiram contra os Lugares Santos.

No Ocidente ela esteve para se fechar, quando Nossa Senhora apareceu a São Simão Stock e lhe revelou a devoção do escapulário – ele era o Geral da Ordem – e veio então uma torrente de graças. Ela decaiu de novo no período de Santa Teresa de Jesus, mas esta e São João da Cruz reformaram de novo a Ordem do Carmo que continuou a brilhar até, pelo menos, a produção de uma de suas mais altas e belas flores, que foi Santa Teresinha do Menino Jesus.

Houve depois o fenômeno da decadência que todos conhecemos. Entretanto, a Providência quis conservar essa Ordem até agora e, segundo profecias privadas dignas de crédito, ela nunca desaparecerá e continuará sempre, de glória em glória, como também de provação em provação, até que volte à Terra o seu fundador, Santo Elias, que deve estar presente nos últimos dias da História do mundo, e lutar contra o Anticristo, ser morto por ele, e ressuscitar.

Há um mistério de união, de sagrada escravidão com Nossa Senhora, e de assistência d’Ela a essa família espiritual, pelo qual ela tem uma longevidade maior do que todas as outras, não só se consideramos sua origem, mas seu futuro também.

Não obstante, foi necessária a reforma empreendida por Santa Teresa de Jesus, que não foi acompanhada por todos, dando origem a dois ramos: os Carmelitas Descalços e os Calçados, entre os quais não faltaram rivalidades ao longo da História. Entretanto, no tempo em que começamos a frequentar a Ordem Terceira do Carmo, edificava-me ver na Igreja do Carmo um altar a Santa Teresinha do Menino Jesus e outro a Santa Teresa de Jesus, que os antepassados espirituais deles de tal maneira tinham combatido.

Assim, dentro da grande paz e cordura interna da Igreja Católica, essa animadversão terminou e as duas Ordens se reconciliaram, e todo o perfume do ramo reformado passou, ao menos de algum modo, para o antigo. A Ordem do Carmo rebrilhou no todo com a glória de Santa Teresa e de São João da Cruz.

Ação que se irradiava à distância

Nós encontramos um fato semelhante na mais antiga das famílias espirituais, não do mundo, mas do Ocidente: os beneditinos.

São Bento foi o Patriarca dos monges do Ocidente, pois o monaquismo ocidental nasceu dele. Ele fundou uma Ordem religiosa gloriosa que se estendeu por toda a Europa, e produziu a conversão de bárbaros numa das situações mais duras da vida da Igreja Católica, que se encontrava internamente devorada por germes de corrupção do paganismo romano, ao qual ela mesma havia combatido. Ademais, esse próprio mundo pagão era hostilizado pelos bárbaros invasores do Império Romano do Ocidente, os quais eram arianos pervertidos por um bispo, Úlfilas, ou completamente pagãos; mas a um ou outro título ambos inimigos da Igreja.

Quando se deu o estrépito tremendo da invasão do Império do Ocidente pelas hordas bárbaras, foram os frades beneditinos que trabalharam para a conversão dos bárbaros, sobretudo na parte mais difícil, ou seja, onde não houvera Império Romano, o Cristianismo não tinha penetrado e se tratava de trabalhar em plena selva.

A conversão da Inglaterra, da Irlanda, depois da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Boêmia, da Áustria, em parte da Hungria também, deveu-se ao impulso dessa imensa família religiosa dos beneditinos que trabalhou de um modo altamente prestigioso.

Aliás, prestígio e beneditinismo são coisas quase que indissociáveis. Em toda a vida da Igreja, a Ordem beneditina conservou uma espécie de prestígio e de categoria que ainda tem um perfume do feudalismo medieval. Como eles trabalhavam? Um missionário ia para os povos infiéis, pregava e fundava um convento, em geral edificado em um lugar ermo, onde os monges começavam a cantar, a praticar a Liturgia, a distribuir esmolas aos pobres, a derrubar florestas, a secar pântanos e fazer plantações regulares. Por causa do prestígio que a virtude deles lhes conferia sobre as almas, as populações iam se constituindo em torno dos conventos. Mesmo quando permaneciam solitários, dos povoados iam pessoas visitá-los, e a ação deles se irradiava à distância sobre as cidades, e ajudava a ação do clero secular que nelas se fixava. Era, portanto, uma preciosidade para uma cidade estar a certa distância de um mosteiro beneditino.

Com efeito, não era próprio dos mosteiros beneditinos instalarem-se dentro das cidades. Eles estabeleciam-se sempre fora, até o momento em que as cidades se constituíram em seu entorno e eles não puderam fugir. Mas, propriamente, a ação deles era esse prestigioso apostolado à distância e de atração, que se põe longe a luzir com todo o seu brilho, atrair com todo o seu perfume, e os povos vêm, então, ao encalço do apostolado beneditino.

Enquanto os beneditinos por essa forma convertiam a Europa pagã, os monges de Cluny – que não era um ramo dos beneditinos, mas uma federação de abadias beneditinas autônomas na Europa – preparavam o florescimento espiritual, cultural, artístico, político, militar da Idade Média.

Cluny foi a alma da Idade Média. Não um ramo novo, mas como que um canteiro o qual, de repente, se pôs a deitar perfumes especiais dentro da família beneditina e se irradiou por toda a Europa.

Santo Estêvão funda Cister, Nossa Senhora lhe envia um sinal equivalente ao nascer de um sol

Mas depois de uma gloriosa dinastia de abades, de ter dado ao mundo papas como São Gregório VII, os cluniacenses começaram a decair também. Neste contexto se insere esse episódio acima narrado, de Santo Estevão Harding. Um Santo que procede da Inglaterra e entra num convento beneditino em decadência, onde encontra dois outros Santos; eles não conseguem reerguer os beneditinos decadentes.

Então saem e formam outro ramo, já com uma disciplina muito mais estrita e severa que a dos beneditinos. Começa um apostolado tão pequeno, tão incerto que até o Superior ficou na dúvida se era vontade da Providência que aquilo florescesse ou não, e pediu um sinal.

Nossa Senhora, Mãe de todas as boas iniciativas da Igreja, deu, risonha, o mais belo dos sinais. Chega um cavaleiro, São Bernardo, acompanhado de trinta outros, para enriquecer essa abadia. Mas acontece que chegar São Bernardo não é uma coisa qualquer, é como nascer um sol. Ele é um dos sóis da Igreja Católica, de toda a devoção mariana. O “Doctor mellifluus”(2) que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia da Santíssima Virgem. Por excelência o homem da penitência, da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua com todos os adversários da Igreja do seu tempo, principalmente com o homem que pode ser considerado, a meu ver, o vanguardeiro do progressismo; uma figura imunda, heterodoxa, asquerosamente sentimental: Pedro Abelardo.

São Bernardo, com os trinta cavaleiros, deu tal estímulo a esse ramo beneditino novo, que o antigo ficou mais ou menos para trás, e começou o florescimento da Ordem beneditina sob um novo aspecto.

Esse ramo o que fazia? O que realizam ainda hoje os cistercienses: silêncio completo, trabalho manual, estudo, clausura total, apenas saindo de vez em quando para missões, perfumadas com toda a beleza e unção da vida de clausura e que trazem uma densidade de riqueza espiritual especial por causa do caráter contemplativo daqueles missionários. Eles fazem uma missão e voltam de novo para o mosteiro.

Imaginem a sensação de um povo vendo entrar na igreja, subir à tribuna um frade o qual, conforme explicou o vigário que o antecedeu, é um homem que não fala nunca, mantendo um silêncio perpétuo, um prisioneiro voluntário e nunca sai das paredes de seu próprio mosteiro. Um homem, portanto, que ao falar incute susto a milhares de pessoas, uma vez que o silêncio perpétuo é uma coisa que assusta muito, e a reclusão voluntária é uma espécie de imagem da reclusão involuntária e traz consigo as mortificações desse estado.

O homem sobe ao púlpito trazendo uma túnica branca – o contrário dos beneditinos que estão sempre vestidos de preto –, e um escapulário negro, com a tonsura característica, trazendo na face aqueles traços típicos do contemplativo verdadeiro, e que se põe a falar coisas extraordinárias, verdades elevadas, a dizer ao povo, de frente, quais são os seus vícios, a invectivá-los, a estimular à virtude, a polemizar com os adversários. Terminado o sermão, o povo vê com assombro esse homem montar num cavalo ou num burrico e partir sozinho para seu convento, deixando atrás de si as multidões atônitas. Compreende-se qual é o valor e o prestígio desse apostolado.

O reerguimento das várias congregações beneditinas

A Ordem beneditina recebeu de Cluny a sua fisionomia verdadeira. É uma ordem muito pomposa. O Abade de Cluny é um verdadeiro príncipe, usando mitra e báculo como os bispos. Dentro do seu convento, não estava sujeito às ordens do bispo diocesano, mas diretamente ao papa, e ele gozava ali de honras parecidas com a do bispo: usava cruz peitoral, anel, tinha o direito do tratamento de excelência, as pessoas se ajoelhavam para beijar sua mão; era uma miniatura de bispo.

Abadias magníficas com um cerimonial faustoso, a liturgia beneditina é riquíssima, com os objetos mais preciosos, nas igrejas os vitrais mais magníficos. Para a vida privada dos seus monges, as abadias beneditinas eram muito austeras: longos corredores com bancos de pedra, celas pobres. Mas no que diz respeito ao culto divino e à pompa com que se cercava o abade havia o maior esplendor.

Entretanto isso degenerou em abusos. E sempre que um abuso se acentua num sentido, a graça realça a nota no sentido oposto. Então apareceu a Ordem de Cister praticando a pobreza muito mais carregadamente noutro sentido. O abade cisterciense gozando de honras análogas ao abade beneditino, mas cercado de muito menos pompa. Toda a vida cisterciense era muito mais pobre. A reação contra a riqueza tomou tal porte que os cistercienses não usaram mais os vitrais coloridos que os beneditinos utilizavam, achando que aqueles vitrais eram um fator de riqueza contra o qual era preciso reagir.

Então, passaram a usar apenas uns vitrais de tons esbranquiçados para proteger contra a luz. Mas a Igreja Católica, ainda involuntariamente, sempre produz a beleza. Usando esse tipo de vitrais, os monges cistercienses arranjaram jeito de fazer vitrais com cores opalinas lindíssimas. É uma forma de beleza discreta tal que esses vitrais brancos, com tons opalinos, disputam em formosura, junto aos colecionadores e especialistas, com os vitrais policrômicos dos beneditinos da antiga observância.

O que resultou daí? Aos poucos, um reerguimento das várias congregações beneditinas. Quase todas elas receberam uma respiração nova. Apenas não recebeu, é duro dizer, a congregação de Cluny. Ela foi decaindo continuamente até a Revolução Francesa, durante a qual do grande mosteiro de Cluny não restou pedra sobre pedra(3). A cólera de Deus caiu sobre aquilo e ficou completamente arrasado. Existem apenas as relíquias dos Santos fundadores dessa Ordem religiosa e, na cidade de Cluny, alguns edifícios auxiliares – parece-me que restos de estrebaria, outras coisas assim do antigo convento beneditino; o resto desapareceu completamente.

Mas a Ordem Beneditina permaneceu, e os beneditinos da antiga observância ficaram também. Cluny, que era uma federação de conventos, desapareceu. Mas uma porção de conventos continuaram e a Ordem Beneditina começou a apresentar essa diversificação magnífica que faz dela como que um leque com várias cores: os beneditinos antigos, com toda a sua pompa, sua dignidade, com todo o seu esplendor; os cistercienses que eu acabo de descrever; os trapistas, aos quais pertencia Dom Chautard(4), que não são missionários, nem saem jamais do convento, e mantêm um silêncio que nunca interrompem. São as várias modalidades da aplicação da Regra de São Bento.

Uma das glórias da Ordem de Cister

Uma palavra sobre São Bernardo e Pedro Abelardo. São Bernardo era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar de Nossa Senhora com tanta unção quanto ele. São Luís Grignion de Montfort o cita várias vezes e com os maiores elogios.

De outro lado, ele era um polemista tremendo. E como viveu numa época em que a Idade Média já decaía e as heresias se multiplicavam, ele travou tantas polêmicas com pessoas daquele tempo, que um dos papas sob cujo pontificado ele reinou – não me lembro qual – deu a ele uma ordem de voltar a seu convento e não se meter em mais nada, porque estava ateando fogo na Cristandade inteira. Ao que São Bernardo respondeu de modo muito pitoresco que não havia coisa melhor para ele do que isso, porque havia se metido nessas polêmicas apenas para servir a Igreja, mas que não queria outra coisa senão a cela dele, agradecia ao papa a reclusão que lhe impunha, e tinha a consciência tranquila porque estava obedecendo.

Era dele, se não me engano, aquela máxima: “o beata solitudo, o sola beatitudo” – ó bem-aventurada solidão, ó única bem-aventurança. Ele queria realmente apenas a solidão. Como polemista tremendo, alcançou sucessos extraordinários.

Uma vez ele esteve na Alemanha, numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. São Bernardo entrou na cidade e a fama de santidade e das virtudes dele era tal que o povo foi todo correndo ao seu encontro. E ele teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado pelos braços e feito montar nele. De maneira que foi um Santo que se apresentou à veneração do universo, montado num imperador. Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Esse Pedro Abelardo, que foi o maior inimigo de São Bernardo, era um tipo asqueroso. Tornara-se frade e ficara apaixonado por uma freira, uma tal Heloísa. E tinha por ela uns desses amores sentimentais, românticos, que já prenunciam toda a choradeira do século XIX.

Era um homem que queria encontrar o meio-termo entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. Por ser um antecessor da Revolução, os escritores revolucionários o admiram muito. E não ousando atacar São Bernardo de frente, fazem insinuações usando fórmulas como, por exemplo: “Pedro Abelardo teve de sofrer a oposição fogosa e implacável de São Bernardo; precisou aguentar os raios que São Bernardo deitava contra ele”. Mas ele apanhou de fato e foi derrotado pelo santo Abade de Claraval. Por causa disso a luta contra ele representa uma das glórias da Ordem de Cister.            v

 

Plinio COrrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

2) Do latim: Doutor melífluo.

3) Posteriormente reconstruída.

4) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.

Maria Santíssima: divina escultora de seu próprio Filho

As faces revelam a alma, mas em certa medida a velam também. Ora, se é tão agradável um homem discernir a alma de outro e ambos se entenderem, não pode haver nada de mais deleitável do que conhecer um espírito angélico que se comunica com toda a sua pureza, majestade e força, como São Gabriel. Que dizer então do contato de alma a alma entre Nossa Senhora e seu Divino Filho, no claustro d’Ela? “Hic taceat omnis lingua”…

 

Há um fato natural de observação corrente, sobre o qual a atenção dos homens materialistas de nossos dias se torna cada vez menos aberta, que é o seguinte:

Jogo de fisionomia, timbre de voz, olhar

Uma pessoa pode ter uma presença, um timbre de voz, um jogo de fisionomia muito agradáveis, dizer coisas muito interessantes, expressivas. Esses são dons que a Providência pode dar a alguém, e dos quais ele pode servir-se tanto para fazer um grande bem quanto para realizar um grande mal.

Entretanto, há um outro dom mais interessante e que não se confunde propriamente com esses. Uma pessoa pode ter um timbre de voz muito agradável, mas conversando-se com ela não se sente sua alma. O timbre de voz não é necessariamente, mas pode ser uma espécie de ressonância do que seja a alma de alguém. Isso especialmente se nota nos cantores. Há cantores que têm o timbre de voz muito agradável. Cantam com muita correção de acordo com a partitura, mas não se sente a sua alma no que ele canta e o resultado é que o público, do ponto de vista meramente sonoro, tem uma impressão agradável, mas não vibra com o cantor. Ele não comunicou sua alma.

A mesma coisa pode ocorrer com um orador. Ele pode ter um timbre de voz esplêndido, mas se é desses homens cuja alma mora num fundo pantanoso e longínquo da sua personalidade, ouvindo-o tem-se a impressão de estar escutando um recado do qual ele mesmo está desinteressado, e não há contato, comércio humano verdadeiro.

Não há coisa que fale mais sobre a alma de um homem do que o olhar. Alguém pode ter lindos olhos, mas isto não significa que possua um lindo olhar. Uma pessoa pode ter olhos feios, mas um lindo olhar; trata-se de uma forma de olhar através da qual uma beleza de alma se comunica. E uma outra pessoa pode ter olhos muito bonitos, mas a alma está longe daquilo. Então, do ponto de vista da pura luminosidade do olhar, do desenho, da cor, aquilo pode ser bonito, mas não tem a verdadeira beleza de uma comunicação de alma.

Comunicação de alma, um dos mais preciosos dons que uma pessoa possa ter

Há, pelo contrário, pessoas que não possuem nenhum dos dons enumerados acima, mas as suas almas de algum modo se comunicam. E o que elas dizem tem verve, graça, interesse; o furor delas faz estremecer, sua simpatia cativa.

A comunicação de alma é um dos dons mais preciosos que uma pessoa possa ter. Uma das coisas de que se deve lamentar é ser desse tipo de gente inteiramente glacial e sem expressão. Assim, o maior atrativo no contato com uma pessoa é o de ver a sua alma, ter um contato de alma a alma onde sintamos que exprimimos o que temos no fundo e fomos entendidos.

Por essa razão o contato entre os puros espíritos deve ser muito mais interessante do que de homem a homem, porque as nossas faces revelam a alma, é verdade, mas em certa medida velam também. E há insipidezes e coisas desse gênero que não só nos impedem de exprimir o que queremos, mas às vezes exprimem o contrário do que desejaríamos.

Saint-Simon(1), por exemplo, fala de um personagem – não me lembro quem – dotado de uma fisionomia comum, até agradável de se olhar, mas que possuía um cacoete por onde, de vez em quando, formava uma cara horrorosa e depois voltava ao natural. Segundo conta Saint-Simon, esse homem não era inteiramente autêntico nem quando estava com o semblante normal, nem com a face horrorosa, mas ele era um terceiro em relação aos tiques nervosos de seu rosto que, em sua normalidade, era exageradamente plácido e, sob a ação do cacoete, excessivamente dramático e agressivo, sendo que o personagem se mantinha por detrás, provavelmente como um terceiro em relação ao que se passava.

Então, o rosto vela e revela a personalidade. Por causa disso só conhecemos a alma do outro de esguelha, não diretamente. O interessante seria a comunicação entre almas que se conhecessem sem a necessidade dos sentidos do corpo, e entrassem em harmonia, em mútua compreensão, em simpatia. Se um pouco que percebamos da alma de alguém por meio dos sentidos já nos parece tão interessante, imaginem entre puros espíritos como seria!

Ora, se é tão agradável um homem discernir assim a alma de outro e ambos se entenderem, não pode haver nada de mais deleitável do que conhecer um espírito angélico que se comunica com toda a sua pureza, limpidez, grandeza, majestade e força. Um Anjo é uma obra-prima de Deus, e se a pessoa está em condições de apreciar esse espírito celeste, ela tem um gáudio santificante e intenso ao contemplá-lo. Toda obra-prima apresenta-se objetivamente, mas a aprecia quem é capaz, ou seja, ela entrega mais de si mesma a quem tem maior capacidade de analisá-la.

Saudação cheia de charme, nobreza, elegância, distinção e majestade

Isto posto, podemos imaginar o mais perfeito dos quadros que seja concebível, analisado pela mais perfeita das criaturas que conhecesse a natureza humana como todos os homens somados não conheceram, e nem conhecerão até o fim do mundo. Com capacidade, portanto, de apreciar um espírito que se comunique de um modo como ninguém faz.

Imaginem que diante dessa criatura, Nossa Senhora, se ponha não o quadro de um Anjo, mas o Arcanjo São Gabriel. Que encontro! O Arcanjo São Gabriel, aquele que leva as mais altas, mais esplêndidas, as melhores mensagens de Deus, que tem, portanto, o dom de comunicar de modo esplêndido o que o Criador quer dizer, de maneira que cada palavra dita por ele é como uma ressonância da palavra divina. E ele mesmo vela e revela o próprio Deus de Quem é mensageiro.

Nossa Senhora está na sua casa, em Nazaré, e de repente Lhe aparece esse Arcanjo, um dos sete mais altos espíritos que estão sempre na presença de Deus, que é mandado a Ela e faz-Lhe uma profunda saudação. Que saudação cheia de charme, nobreza, elegância, distinção, ao mesmo tempo de uma majestade inimaginável porque ele é puro espírito e Ela não é senão uma criatura humana! De um respeito indizível, porque Ela não sabe, mas ele tem conhecimento de que Ela é sua Rainha. Então ele presta a Ela uma homenagem, a mais bela que até então se tinha prestado na Terra, e creio eu que nenhuma outra será dispensada igual, a não ser a que Nosso Senhor Jesus Cristo terá prestado à sua Mãe.

Ela recebe aquela homenagem, mas ao mesmo tempo Se entusiasma porque entende o Anjo até o fundo e percebe perfeitamente Deus através dele. E se entre nós um contato de alma a alma − com nossas pobres almas encardidas, envelhecidas, de nossa natureza concebida no pecado original − nos dá tanto gosto, o que foi o contato de alma a alma de Nossa Senhora com esse Arcanjo?! O gáudio do Anjo contemplando Aquela que por natureza lhe era inferior – porque uma simples criatura humana –, mas dotada de um espírito ligado à carne incomparavelmente mais elevado que o dele.

Exprimindo-se de modo humano, poder-se-ia dizer que ele transpôs todos os espaços que vão de Deus até uma cidadezinha da Galileia, curioso de conhecer de perto a Nossa Senhora.

É, pois, nessa atmosfera que devemos considerar a narração do Evangelho da Anunciação do Anjo a Maria Santíssima, e que por definição é a festa dos escravos de Maria.

Nossa Senhora resplandecia diante de São Gabriel

No sexto mês da gestação de São João Batista em Santa Isabel, foi enviado por Deus o Anjo São Gabriel a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré (cf. Lc 1, 26).

“A uma cidade da Galileia, chamada Nazaré” é um modo de se falar de uma cidade desconhecida. Não posso dizer, por exemplo, “a uma cidade do Estado de São Paulo, chamada Campinas”, pois qualquer um sabe que Campinas fica nesse Estado. Mas uma cidade chamada Nazaré é um lugarzinho…

… a uma Virgem desposada com um varão que se chamava José.

Um individuozinho dentro da cidadezinha. Entretanto, fulgura como um raio sem estrondo o que vem logo depois.

…da Casa de Davi.

A mais alta dinastia que houve.

E o nome da Virgem era Maria (Lc 1, 27).

É como um sol que aparece: uma Virgem também desconhecida, mas o nome d’Ela era Maria. Quantas Marias houve depois na História e haverá até o fim do mundo! Ela tem uma glória que não se compara com nada. “O nome da Virgem era Maria”. Não é verdade que esta simplicidade da narração tem qualquer coisa de grandioso, por onde julgamos entrever o Espírito Santo? Eu falava exatamente desse contato de alma. Nós como que sentimos o Espírito Santo quando ouvimos essa narração tão simples de coisas propriamente esplendorosas.

E entrando o Anjo onde Ela estava…

É uma coisa, portanto, fantástica! O Anjo que nesta cidade escolhe o pátio da casa de Nossa Senhora onde Ela estava, e entra ali. Achamos tão grande coisa a entrada de um rei. Até a Revolução Francesa, os reis faziam entradas nas cidades. Sobretudo a primeira depois da coroação, as entradas eram solenes com participação de milhares de pessoas em grande gala. Então, o Anjo disse-Lhe:

Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo (Lc 1, 28).

É preciso considerar cada palavra que ele disse, pois falava como faz um Anjo. Quando pronunciava a palavra “Senhor”, todo o amor ao Criador que ele tinha queimava, resplandecia nele. Ao dizer “ave”, percebe-se toda a reverência dele para com Ela! A alma enorme, grande, colossal, inimaginável, terníssima, intimíssima, majestosíssima de Nossa Senhora resplandecia diante dele. E Maria Santíssima se sentia como que assumida pelo Anjo quando ele se dirigia a Ela.

Todas as graças criadas para os homens estão n’Ela

…cheia de graça…

É o maior elogio que se pode fazer de alguém. Em Maria Santíssima só havia graça, não existia outra coisa. Em latim – ele não falou nessa língua –, “gratia plena”, de graça cheia, fica muito mais belo do que cheia de graça. Então, a palavra graça, nos como que lábios de um Anjo, tem uma grande beleza. Todo o esplendor da graça de Deus floresce quando ele diz “graça”; e plena dá uma tal ideia de plenitude que até o leito do mar é vazio em comparação com aquela plenitude. Esse “cheia de graça” propriamente não quer dizer, a meu ver, somente que Ela é cheia de graça, mas que n’Ela não há senão graça. Mais ainda, que todas as graças criadas para os homens estão n’Ela e daí transbordam. Isso é de uma riqueza, uma majestade incomparável.

E cada palavra do Anjo é à maneira de uma música única, como nunca ninguém tocou nem tocará. E a obra-prima dele, em todos os séculos, consistia em dizer isto. Era o mensageiro por excelência que comunicava a supermensagem. Eu acredito que, enquanto ele fazia isso, o local onde Nossa Senhora estava foi se enchendo de Anjos, todos cantavam e jubilavam sem fim, sem que ninguém ouvisse, mas Ela ouvia.

E tendo ouvido essas coisas, Ela turbou-se com as palavras do Anjo e discorria, pensativa, indagando que saudação seria essa (cf. Lc 1, 29).

A narração continua a ter uma simplicidade evangélica fantástica. Não sei se esse Anjo falou a Ela apenas comunicando-se como uma alma, ou se tomou um corpo – como fez o Arcanjo Rafael com Tobias – para falar-Lhe de um modo sensível.

A Santíssima Virgem concebeu o Homem-Deus e começou a adorá-Lo

Nossa Senhora não se espantou com o fato de ter um contato com um ser tão extraordinário. Ela é tão ordenada que, dentro dessa cena cheia de impressões, foi ao ponto. Cogitava o que queria dizer essa saudação. Ela prestava atenção no sentido das palavras para entender o que Deus mandava dizer-Lhe. Ou seja, Ela raciocinava, não perdeu a distância psíquica(2), não se tomou de frenesi; certamente sentiu até o fundo a cena, mas sobretudo cogitava: “O que quererá dizer isto?” E como Ela não entendia, ficou perplexa, o que se nota pelas palavras do Anjo que vêm logo depois:

Não temas, Maria, pois achaste graças diante de Deus. Eis que conceberás no teu ventre e darás à luz um Filho, e por-Lhe-ás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo (Lc 1, 30-32).

Podemos imaginar a majestade com que ele proclamou isto. Primeiro quando pronunciou o nome de Jesus, e depois quando disse: “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo”. Isso dito por um de nós não é nada, mas afirmado por um Anjo… como aparece a grandeza! O “Filho do Altíssimo”! Superior a qualquer cogitação.

E o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi (Lc 1, 32).

Quer dizer, era de dinastia deposta, decaída, São José um carpinteiro; entretanto, o Filho d’Ela vai ter o trono de Davi. Ela sabia bem que era uma coisa simbólica, que esse trono era um trono da realeza espiritual de Nosso Senhor.

E reinará eternamente na Casa de Jacó e seu reino não terá fim.

Maria perguntou ao Anjo, como se fará isto, pois eu não conheço varão? (Lc 1, 33-34).

Nota-se como o espírito d’Ela está no âmago do assunto, e todas as impressões colaterais não dizem nada diante da grande pergunta. Não é uma objeção, mas uma pergunta: “Como será isso, se Eu tenho o voto de virgindade?”

E respondendo o Anjo disse-Lhe:

O Espírito Santo descerá sobre Ti e a virtude do Altíssimo Te cobrirá com a sua sombra. E por isso mesmo o Santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus. Eis que também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice, e este é o sexto mês daquela que é tida como estéril (Lc 1, 35-36).

Então, Maria afirmou:

Eis aqui a escrava do Senhor faça-se em Mim segundo a tua palavra. E o Anjo afastou-se d’Ela (Lc 1, 38).

Foi precisamente no momento em que Maria Santíssima declarou “eis aqui a escrava do Senhor” que o Espírito Santo baixou sobre Ela. Ela concebeu e o Homem-Deus começou a viver n’Ela, lúcido inteiramente desde o primeiro instante do seu Ser, e Ela começou a adorá-Lo.

Convívio da alma de Maria Santíssima com a Alma de seu Filho

O sentido desses comentários é fazer-nos tomar o gosto pela cena para melhor a compreendermos e adorarmos a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, praticarmos o culto de hiperdulia a Nossa Senhora. Assim, para a sentirmos melhor, consideramos antes uma série de sensações tão diferentes e, ao mesmo tempo, um pouquinho parecidas com esta, do contato de alma a alma, para nos servir de termo de comparação do contato de Maria Santíssima com o Anjo.

Depois disso começa outro contato de alma a alma. É de Nossa Senhora com Nosso Senhor, no claustro d’Ela. “Hic taceat omnis lingua”(3). Fazemos como o Anjo São Gabriel porque fica no mistério. É preciso apenas dizer o seguinte: como Nossa Senhora era concebida sem pecado original, nenhuma operação no seu corpo se fazia sem que Ela soubesse e quisesse.

De muitas operações que nosso corpo faz não temos nenhuma ideia. Por exemplo, o coração de cada um de nós bem ou mal está bombeando sangue pelo corpo, senão morreríamos. O coração vai fazendo isso e, sobretudo, parará de fazer sem que queiramos.

A Santíssima Virgem conhecia, portanto, tudo que se passava n’Ela e no fenômeno misteriosíssimo, complexíssimo da geração; cada vez que o seu corpo fornecia ao Corpo Sacratíssimo de Nosso Senhor Jesus Cristo um certo elemento para se constituir, era porque Ela queria. Por assim dizer, Ela foi a arquiteta do seu Filho.

E a concessão de cada elemento para o Corpo d’Ele, além do lado propriamente fisiológico, tinha um aspecto simbólico. Podemos imaginar, por exemplo, Ela dando o contributo materno necessário para formar os divinos olhos d’Ele. Olhos perto dos quais nenhum olhar é olhar e nenhum olho é olho, porque olhos são aqueles! Olhar! O olhar que converteu São Pedro…, que no meio da sangueira no alto da Cruz olhou pela última vez para Nossa Senhora.

Isto é olhar! O resto… Pobres de nós, que subúrbios, que bairros miseráveis, que charneca, que tristeza!

Cada vez que Maria Santíssima contribuía, então, para a formação dos olhos d’Ele, Ela queria aqueles olhos, com aquele olhar, e previa tudo o que aquele olhar faria de bem até a consumação dos séculos, inclusive quando Ele vier gladífero no fim do mundo para punir.

Aí então começa um convívio de alma d’Ela com a Alma humana d’Ele hipostaticamente unida com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, um convívio de que ninguém tem ideia, e a respeito do qual se falará talvez noutro dia e de outro modo.

Fica-nos apenas a ideia do Anjo que vai embora, e da Encarnação que se opera. E Nossa Senhora, a divina escultora de seu próprio Filho. Temos, assim, uma noção da grandeza da festa que a Igreja celebra nesse dia.       v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/3/1979)
Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Duque de Saint-Simon (*1675 – †1755). Escritor francês que, em suas Memórias, descreveu com penetração, finura e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís XIV.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Do latim: Aqui se cale toda língua.

Esplendor da verdade e do bem

Embora entusiasta do conhecimento meramente abstrato, Dr. Plinio afirmava ser necessário, para os seres humanos, sempre uni-lo ao conhecimento concreto. Quando o homem se põe a raciocinar sem recorrer continuamente a exemplos que, à maneira de imagens, ilustram o que está pensando, facilmente ele se perde no vácuo e chega a conclusões abstratas que são perigosas, porque nelas a realidade humana não cabe mais.

 

Vida intelectual, para quem não tem tempo de ler, só se faz com fiapos de elucubração nos interstícios da vida; é uma coisa singular, mas a pessoa martela um ponto, não consegue resolver e de repente, na hora de tomar um chá de hortelã, algo vem à cabeça: É assim!

Agora se deu isso.

O conhecimento intuitivo e a explicitação racional

Eu durante toda a vida tive um problema, que é o seguinte:

Nos círculos comuns de Filosofia escolástica, em São Paulo e outros lugares do Brasil, com quem tive contato outrora, apresentava-se a beleza com uma definição muito correta: é o esplendor do bem.

Mas o que é esplendor?

O indivíduo de espírito banal responderia logo o seguinte: “Você não sabe o que é o esplendor? É intuitivo, qualquer um sabe”.

Este é um ponto no qual alguns patrícios meus não estão de acordo comigo: eu aprecio muito o conhecimento intuitivo, mas considero uma conquista sempre que uma coisa intuitiva se explicita em termos racionais. O resto é preguiça.

Há muitos que não pensam assim e dizem: “É intuitivo, para que pensar sobre isso?” Não! Fazer penetrar a razão dentro do terreno do intuitivo, explicitar e pôr aquilo num raciocínio, se possível fulgurante, é uma coisa magnífica!

Várias vezes tenho me perguntado sobre o que é o esplendor, e não encontrei uma solução que me agradasse inteiramente. Agora, de repente, aqui conversando, não achei a solução, mas o caminho para ela. E, dialogando a respeito do caminho, acabamos por chegar à solução.

Aqui está a coisa nova: O esplendor do bem, para o homem, como é? E para o Anjo? Qual é o conceito de “pulchrum” para o Anjo e qual é esse conceito para o homem? É claro que uma coisa é reversível na outra.

Para que seja conhecimento humano, é preciso que o objeto se apresente normalmente em formas sensíveis, pelo princípio de que nada há no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos.

Portanto, quando uma coisa se apresenta ao homem muito esplendorosamente, mas aquele esplendor não passou pelos sentidos, ele não sossega enquanto, por uma espécie de “conversio ad phantasmata”(1), não encontra uma forma sensível de exprimir o “pulchrum” que ele concebeu do lado intelectivo.

A beleza do raciocínio

E propriamente há para o ser humano duas espécies de esplendor: um intelectivo e outro sensível. Ambos são indispensáveis. Para o Anjo é indispensável apenas o esplendor intelectivo; por exemplo, uma bela disposição de alma.

Além disso, há uma forma de “pulchrum” dotada de um esplendor próprio correspondente à parte racional, o qual se põe para o homem, à primeira vista, de um modo trivial.

Quando o indivíduo se alça a uma consideração muito elevada, sente uma espécie de esplendor de si mesmo, sem ser vaidoso. Pode facilmente tornar-se vaidoso, mas não é vaidoso de si. Ele sente uma espécie de esplendor pelo fato de ter conseguido elaborar aquele raciocínio. A beleza do raciocínio, enquanto esforço, fá-lo ver a beleza de sua alma e da operação realizada por ela. E isso é o primeiro esplendor.

O raciocínio difícil, que chega a gerar uma verdade, tem uma beleza operativa como a de um alpinista que sobe a montanha e fica encantado de ter conseguido galgar o cume. De maneira que, antes mesmo de olhar o panorama, ou enquanto o contempla, ele é alternativamente seduzido pela beleza do ato que praticou e pela pulcritude do panorama que tem diante dos olhos.

Nisso já entra uma espécie de beleza que é a pura pulcritude intelectual, quer dizer, a beleza com que o espírito vê o fulgor da operação intelectual, e que é o esplendor do bem, porque aquela operação intelectual é boa, é um bem em si, pois é reta e conforme a natureza.

Um modo de conhecer e de amar

Depois entra uma coisa mais profunda, que não é apenas operação intelectual, mas é propriamente o belo daquilo que foi pensado. São três coisas distintas: o belo sensível, o belo operativo para chegar ao resultado e o belo do objeto abstrato que se viu.

A meu ver, a mais alta semelhança com Deus não está nas coisas sensíveis, mas naquelas que o homem conhece e não são sensíveis. Estas têm uma beleza por onde, contempladas, deixam ver algo de Deus que as coisas sensíveis não conseguem; e, na ordem do criado, constituem o que mais altamente dá ao homem algo de parecido com a visão beatífica. Não é a visão beatífica, pois esta é sobrenatural, e o ato de que tratamos é natural. Mas é o ato natural que mais se parece com a visão beatífica. Razão pela qual ali se capta a maior beleza.

O que é aí beleza? É o esplendor do bem pelo qual ele é parecido com Deus. É o perceber algo que tem nexo com Deus.

Então o esplendor da verdade ou o esplendor do bem é o aparecimento — por via simbólica, quer dizer, da semelhança — de algo de análogo a Deus, e que é mais possante na concepção puramente espiritual do que na física, mas que nesta última também se deixa notar. O esplendor é a “deiformidade” da coisa que aparece.

O esplendor é essa participação enquanto vista e conhecida. Se fosse uma participação que nenhuma criatura conhecesse, não sei se ela poderia se chamar esplendor. É a beleza de Deus enquanto cognoscível pela criatura e historicamente participada.

Um equívoco que precisaríamos evitar é o de julgar que o esplendor é o único modo de conhecer, pois pode ficar a impressão de que o esplendor e a cognição são de tal maneira idênticos, que o esplendor é a única forma de cognição. Eu vejo o esplendor como uma alça, porque ele é um modo de conhecer e amar.

Ademais, tomado no sentido comum, em que é considerado como uma espécie de adjetivo e não de substantivo — e, portanto, não como subsistente por si, mas como a propriedade de algo —, o esplendor é um estado da bondade ou da verdade. Mas ele não tem uma existência em si distinta, como a bondade e a verdade têm.

A coragem em geral

Um ato moral bom pode, de vez em quando, emitir uma centelha de belo muito grande. Por exemplo, a coragem. Há um “pulchrum” próprio da coragem, que é o “pulchrum” moral em matéria de coragem. O que é o “pulchrum” aí?

O “pulchrum” — para dar a mais rasa das explicações, mas necessária para chegar até as outras — é a propriedade que tem um ato moral de se exprimir em termos estéticos, em termos de beleza para alguém, de maneira tal que psicologicamente a pessoa fica encantada com aquilo e toda a sua sensibilidade fica arrastada para aquilo. É, portanto, uma propriedade do ato moral que se reveste de aparências sensíveis, autênticas — não são falsas, são verdadeiras —, que atingem a sensibilidade e fazem a sensibilidade vibrar em uníssono com tudo quanto o raciocínio diz de meritório sobre aquilo.

Então, o que foi o esplendor aí? Foi o aparecimento no ato moral de uma certa luz, e no espírito humano de uma certa ótica, por onde a luz e a ótica se encontraram, e que deu este efeito que estou descrevendo aqui em termos psicológicos.

Há um outro aspecto da questão, que é o seguinte:

Meu espírito já conhecera intelectivamente o bom da coragem. E não só da coragem, mas daquela coragem plena, que é do general, uma coragem de alma e não apenas do corpo: é a coragem do mando, de tomar a responsabilidade, de correr o risco, de passar por derrotado, de ficar desmoralizado aos olhos dos outros, mas de enfrentar aquilo, juntamente com a coragem de arriscar a vida. É, portanto, uma coragem mais plena.

Esta coragem, intelectivamente, eu conhecia. E sabia, pelo raciocínio, ser ela meritória, porque corresponde a tais ordenações internas boas e à finalidade da ação militar, que é de fazer prevalecer o direito de uma causa ou de uma nação. Então vejo nisso uma série de coisas boas.

Mas no momento em que — pelo gesto do Condé na famosa pintura representando a batalha de Rocroi(2), por exemplo — percebi o fulgor, ao conhecer o símbolo acrescentou-se algo sensível a tudo quanto eu conhecia de modo puramente intelectivo a respeito da coragem.

É que minha inteligência, sendo de homem e não de Anjo, embora eu possa ter um conhecimento muito límpido e muito correto do que é a coragem em abstrato, se eu não tiver vários símbolos da coragem conhecidos por mim, o conhecimento humano eu não possuo, porque este supõe imagens sensíveis que eu reverta nas espirituais.

Há, portanto, um complemento de reversibilidade que é o momento no qual o indivíduo que possuía o conceito abstrato, tendo agora o fulgor, soma o fulgor ao conceito abstrato para compor a cognição inteiramente humana.

Assim, passada a batalha, o indivíduo que participou dela gostará de ver os quadros pintados, as descrições literárias — poéticas ou em prosa —, as narrações históricas, sem pretensão literária, da batalha. Assim ele verá melhor expresso coisas que ele sentia, mas não sabia dizer; e que, enquanto não sabia explicitar, não conhecia, porque o homem só conhece inteiramente o que sabe exprimir.

A coragem de Nosso Senhor Jesus Cristo

Aqui se tem o primeiro grande passo no bloco da cognição. Há um passo mais fino que é o seguinte:

Pelo próprio senso do ser, o indivíduo que assim conhece algo, feita a operação que acabo de expor, sente uma plenitude e, ao mesmo tempo, um vazio, devido à percepção de que aquilo poderia ser ainda melhor.

E nessa ideia de que aquilo poderia ser melhor, ele tem uma sede do melhor, uma admiração pelo que conheceu, a qual lhe dá mais fome de conhecer uma certa perfeição que, à medida que ele vai fazendo essa operação primeira, a noção de perfeição vai saindo da penumbra e ele vai explicitando como seria a perfeição total.

Fazendo reversibilidades de formas, de impressões, com coisas teóricas, o homem pode subir a um auge difícil de imaginar.

Por exemplo, algo que eu gostaria de fazer, se tivesse tempo: a história da coragem, com todas suas modalidades e belezas; a antologia da coragem. Se eu realizasse isso, chegaria, através de várias operações como descrevi, à ideia de uma certa coragem que não houve na natureza humana, porque é uma coragem de que Anjos seriam capazes, e não homens. Eu teria subido à trans-esfera. E, por via de hipótese, de analogia, subiria até aquilo que Deus não fez, isto é, os seres criados “ab æterno”. Então nossa cognição teria chegado, nessa matéria da coragem, ao mais alto que se pode atingir.

Eu deixo de lado um assunto supremo, divino, porque no momento não seria fácil instalá-lo com toda a adequação possível: a coragem e todas as outras virtudes de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque nós não podemos raciocinar como se Ele não Se tivesse feito carne e não tivesse habitado entre nós.

Mas desde já é preciso dizer que Ele foi o mais corajoso dos filhos dos homens, em certo sentido da palavra. O Redentor veio dar exemplo de certo tipo de coragem, dentro do qual está implícita toda forma de coragem com uma superação incomparável. Mas não está necessariamente com a forma de sensibilidade de que estamos tratando aqui.

De maneira que é preciso tratar o tema com muito respeito, muita reverência, muito tato, para caber bem dentro do assunto.

União entre o conhecimento abstrato e o concreto

O até aqui exposto nos oferece algumas noções de esplendor. O que é, pois, esplendor? É uma percepção — em geral, não necessariamente inesperada — muito intensa de uma beleza que se vê, quando o conceito abstrato e a forma concreta se juntam para explicar uma mesma excelência metafísica profunda. Aqui está a definição que procurávamos no começo da reunião.

Nós estamos estudando o bem e o sensível, a verdade e o sensível. Quando o bem é eminentemente bom, a verdade é eminentemente boa, e se dá essa reversão — ela existe ontologicamente —, quando esta é percebida o homem nota um esplendor.

O esplendor é uma coisa que existe na ordem concreta dos fatos, não é uma criação da vista ou imaginação do ser humano. O homem o percebe de vez em quando. Esse esplendor não é necessário à ordem angélica, mas sim à ordem humana.

A meu ver, há duas formas de esplendor. Um da linguagem corrente, ao qual nos referíamos há pouco, e que é a magnificência do “pulchrum” resultante da magnificência do “verum e do bonum”.

Mas há outro sentido da palavra esplendor, que é um esplendor, por assim dizer, didático, por onde a coisa considerada toma uma tal clareza que, de confusa que era, salta aos olhos como uma evidência, causando um efeito parecido com o esplendor, embora não o seja propriamente.

E, às vezes, quando se dá o casamento entre o conceito abstrato e a forma sensível — mesmo quando estes não dizem respeito a algo de ontologicamente esplêndido —, há uma evidência do “verum” e do “bonum” que estão ali, a qual, enquanto evidência de algo minor, se chamaria esplendor por um esticar quase ilegítimo da palavra. Uma refulgência que já não seria o esplendor, mas fruto também ela deste encontro entre o conceito abstrato e a realidade, quando se dá em coisas não excelentes. E aí se esclarece tudo perfeitamente. Portanto, o que se diz criteriologicamente esplendor, pode se afirmar também, “servatis servandis”(3), dessa refulgência didática.

Visão beatífica e Céu empíreo

A propósito disso, podemos tratar do esplendor que decorre da analogia entre coisas diversas. Uma dessas analogias, que de tão grande se tornou banal, é a que se costuma fazer entre o rei e o Sol. Ambos os conceitos se revertem. Pode-se dizer que o Sol nos ajuda a compreender um rei e que, reversivelmente, a imagem do rei ajuda-nos a entender a relação que o Sol tem com outras realidades.

Há nisso uma reversibilidade que emite uma beleza própria. E quanto mais ousado o salto entre uma criatura e outra, maior é a beleza do fulgor que transparece.

No que, por exemplo, o “verum” ou o “bonum” da situação do rei se transplanta para o “pulchrum”? As relações humanas não são capazes de agradar os sentidos como certas outras criaturas. De maneira que um tratado que nos faça ver qual é o papel da realeza num país, pode mostrar-nos o “verum” e o “bonum” presentes na realeza. Mas se o indivíduo, pela primeira vez, vê uma comparação com o Sol capaz de fazer entender bem o “pulchrum” da realeza, neste “pulchrum” ele compreende melhor o “verum” e o “bonum”. Assim, de fato, a imagem do Sol dá o esplendor da verdade e o esplendor da bondade.

Quando o homem se põe a raciocinar, sem se fazer acompanhar continuamente por algo à maneira de imagens daquilo que está pensando, facilmente se perde no vácuo e sai para conclusões abstratas que são perigosas, porque nelas a realidade boa e cotidiana, humana, não cabe mais.

Ele envereda, então, por uma espécie de pseudo-angélico, a respeito do qual há em mim um pavor e uma preocupação constante de me apoiar no real, que constitui uma segunda natureza, por hábito. É uma “bengala” sem a qual não dou um passo.

Por isso, parece-me que raciocinar sem estar relacionando toda ideia abstrata com o concreto, o tempo inteiro, não se obtém, de fato, o equilíbrio.

Só depois de encontrarmos com segurança o caminho, será bom fazermos, tanto quanto possível, também a exposição em termos meramente metafísicos.

Na cognição humana há algo por onde ela é incompleta. Não à maneira de um aleijado, nem por causa do pecado original, mas por ser o homem um composto de corpo e alma, apenas por isso. De sorte que, por um lado, o homem sacia o espírito na Metafísica e, por outro, no próprio campo da Metafísica ele precisa de uma complementação não metafísica para compreender bem a coisa.

Por vezes, a condição de contingência é apresentada quase como enfermiça e dolorosa, como um pecado original, com a insinuação de que quando o indivíduo vir Deus face a face, no Céu, seu espírito, na ordem natural, se retifica e torna-se um espírito de Anjo.

Ora, nada disso é verdade.

Sem dúvida, Deus pode revelar-Se diretamente ao espírito, ao conhecimento do homem, com plenitude e perfeição; e o fará na visão beatífica. Mas esta é uma operação sobrenatural na nossa mente, a qual, por sua natureza, continua incapaz.

Surge, assim, com muita propriedade, a ideia do Céu empíreo, com todas as suas delícias, para satisfazer a nossa mente, como esta é naturalmente, para ela não ter apenas um deleite sobrenatural — de fato imensamente superior ao natural —, mas possuir também o deleite natural que o acompanhe.

Daí a necessidade de uma cultura terrena como complemento da instrução religiosa nesta Terra; e da sociedade temporal acolitando a sociedade espiritual, para uma missão de alunos que explicam para outros alunos a aula do professor.

Assim a sociedade temporal, que é discente, explica o “verbo” da Igreja para os componentes da sociedade temporal, utilizando-se das metáforas da natureza.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/2/1984)

Revista Dr Plinio (Março de 2014)

 

1) Do latim: volta às representações imaginárias. Refere-se à doutrina de São Tomás de Aquino, segundo a qual o ser humano necessita reportar-se ao sensível para adquirir o pleno conhecimento (cf. S. Th. I, q. 86, a. 1).

2) Em 19 de maio de 1643. Combate no qual o exército francês, liderado pelo Duque d’Enghien (futuro Príncipe de Condé) derrotou as tropas espanholas.

3) Do latim: conservadas as coisas que devem ser conservadas.

Nada é tão necessário, útil, doce e glorioso!

Na Idade Média, uma homilia sobre a Cruz e os novíssimos do homem comovia as pessoas, e muitas vezes os pecadores mudavam de vida. Entretanto, a Revolução instaurou nas almas tal forma de dureza, de frieza, que em nossos dias os homens não se interessam por esses temas fundamentais.

 

Continuação dos comentários sobre a “Carta-circular aos Amigos da Cruz”, de autoria de São Luís Maria Grignion de Montfort(1).

Se Deus nos tratasse apenas com justiça, mereceríamos o Inferno

[20] “Crucem”, a cruz; que ele a leve, pois nada existe que seja tão necessário, tão útil, tão doce ou tão glorioso quanto sofrer alguma coisa por Jesus Cristo.

Então, necessário, útil, doce e glorioso; são quatro proposições. São Luís Grignion vai começar por provar como é necessário.

  1. a) Nada tão necessário — para os pecadores!

[21] Com efeito, queridos Amigos da Cruz, sois todos pecadores; não há um só dentre vós que não mereça o Inferno, e eu mais que ninguém. É preciso que nossos pecados sejam castigados neste mundo ou no outro; se o forem neste, não o serão no outro.

Essa afirmação de que todos nós mereceríamos o Inferno pode parecer uma demasia, uma coisa maluca e, entretanto, não é. Ela se baseia na ideia de que nenhum homem é capaz, por si mesmo, de corresponder à graça de Deus, constantemente, durante a vida inteira. Não se trata aqui da possibilidade do homem agradar a Deus com a graça, mas é uma outra ideia: se a graça for dada ao homem parcimoniosamente, apenas a graça suficiente, ele faz dela um tão mal uso que acaba desmerecendo-a e, portanto, perde-a, e por isso merece o Inferno. Nesse sentido, só quem não teria merecido o Inferno seria Nossa Senhora, porque Ela, em todos os dias de sua vida, correspondeu de um modo perfeito às graças que Deus lhe dava. Então, isto coincide com a metáfora apresentada por São Luís, segundo a qual todo homem é como o sapo, a serpente, o porco(2).

Então, é coerente que ele ache que todos os homens mereceriam o Inferno se Deus os tratasse, não com misericórdia, mas apenas com justiça. Essa noção é fundamental numa visão contrarrevolucionária das coisas, como é fundamental na própria doutrina católica.

Trata-se da compreensão da maldade fundamental do homem e, portanto, de como devemos viver de pé atrás em relação aos outros, e em relação a nós mesmos. E isso vale também para os santos. Por essa razão, São Luís de Montfort diz que ele mesmo, se não fosse a misericórdia de Deus, teria ido para o Inferno.

Somos filhos da misericórdia

Alguém objetará: “Mas, Dr. Plinio, isso não está em contradição com as palavras de São Paulo, antes de morrer: ‘Combati o bom combate…’?(3)” A resposta é muito simples: não está nem um pouco em contradição. São Paulo não diz que ele conseguiu combater o bom combate e fazer o percurso todo da pista por mera justiça de Deus. Ele faz tal afirmação, mas sem entrar na indagação. É claro que o conseguiu pela misericórdia. Se Deus não tivesse sido misericordioso, ele não conseguiria preencher as condições que lhe davam, em justiça, o direito ao Céu. De maneira que o Paraíso é devido, em justiça, à alma que morre bem, mas é por causa da misericórdia que a alma morre bem, de maneira que todos nós somos filhos da misericórdia, e com a mera justiça nós nos perderíamos.

A esse propósito é preciso dizer — eu insisto um pouquinho nesse ponto — que não é uma doutrina muito esplanada, em geral. Creio que vale a pena desenvolver esse assunto. A doutrina que não se ensinava, mas ao menos se insinuava no meu tempo de aluno de colégio, era essa: Deus me dá a graça suficiente. Eu correspondendo inteiramente à graça — o que está inteiramente em meu poder — obtenho, em justiça, mais graças. Assim, vou merecendo do Altíssimo promoção e mais promoção, até o estado em que deverei ficar quando eu morrer. E aí eu me apresento perante Deus com um sorriso, de igual a igual, e com um cheque na mão. Quer dizer: “Eu fiz, eu mereci, agora cumpra sua palavra, honre sua promessa, porque realizei o que era de minha parte”.

Isso não é verdade. Eu sou filho da misericórdia. Com a graça suficiente — que é suficiente mesmo! — eu poderia corresponder bem; mas é certo que não vou corresponder, e fico, portanto, em débito perante Deus. E se não houver uma intervenção contínua da misericórdia, a restaurar aquilo que usei mal, não vou para o Céu. E isso comanda as minhas orações com o Criador. É um colorido que entra em todas as perspectivas de minhas relações com Deus. Estou continuamente precisando da misericórdia d’Ele. E é por isso que se veem os maiores santos morrerem, recomendando-se à misericórdia do Altíssimo. Não é por um ato de humildade.

Quer dizer, se no fundo de minha cabeça eu penso que vou me salvar por justiça mesmo — e me impondo à justiça de Deus, mas, em última análise, vou ser humilde e direi ao Criador que tenha compaixão de mim —, estou errado. Deus precisa ter compaixão de mim para que eu me salve, senão não me salvo. Ou seja, a salvação é uma obra da misericórdia de Deus.

Misericórdia e espírito conservador; o papel de Nossa Senhora

Alguém poderia perguntar: “Compreende-se que a justiça tenha fundamento em Deus, mas que fundamento tem no Criador a misericórdia?”

Não sei se os presentes neste auditório se lembram de uma conferência, na qual eu mostrava que a virtude da misericórdia e o espírito conservador são coisas conexas. Todo artista, por exemplo, gosta de conservar as suas obras de arte porque são reflexos dele; de maneira que, se uma delas se estraga, ele por amor a si mesmo trabalhará para conservar essa obra de arte. Ora, cada um de nós é uma obra de arte irrepetível de Deus. E Ele, por amor ao plano que teve ao criar aquela obra de arte, condescende em restaurá-la, e nisso está a misericórdia do Criador. Não é um direito da obra de arte ser restaurada por Ele.

E é por isso que Deus usa para conosco de um espírito conservador, na misericórdia. A misericórdia e o espírito conservador são a mesma coisa. E o homem, querendo que tudo que existe e possa continuar a existir, continue a existir, é conservador; quer dizer, essa espécie de amor a tudo quanto existe é uma perfeição, que no homem é análoga à perfeição de Deus enquanto misericordioso. De maneira que o verdadeiro misericordioso é conservador; e o verdadeiro conservador é o homem de misericórdia. Essas são noções conexas e que dão a ideia da misericórdia divina. É dessa misericórdia que eu vivo; não vivo da justiça de Deus.

Aí também se compreende melhor o papel de Nossa Senhora. Porque a misericórdia é um dom. Se é preciso ter esse dom, deve-se pedi-lo. Mas só poderei ser atendido por misericórdia. Como posso obter misericórdia se eu não pedir? A solução é rogar a Nossa Senhora, cuja oração é perfeita e imaculada, que reze por mim. E, se Ela rezar por mim, poderei ter certeza de que serei atendido. Então, Nossa Senhora é a ponte entre Deus e os homens; é o canal da misericórdia d’Ele; uma pessoa que o Altíssimo criou para que a misericórdia d’Ele se realizasse de um modo esplêndido. Ela é Mãe de misericórdia.

É melhor sermos castigados nesta vida do que na outra

Compreendemos, assim, como toda a nossa vida espiritual é filha da misericórdia. E uma vida espiritual que faça abstração disso se torna insuportavelmente pesada, dura, fria. Se tivermos apenas a ideia de um Deus justo em relação a nós, é-nos impossível amá-Lo. Precisamos compreender que Ele é um Deus misericordioso, que condescende conosco, tem pena de nós, perdoa as nossas faltas. É essa ideia de Deus misericordioso, que São Luís Grignion inculca e está subjacente nesse trecho.

Então, diz ele que é melhor sermos castigados nesta vida, do que na outra. Portanto, as cruzes afastam de nós o Inferno.

Se Deus os castigar neste mundo de concerto conosco, sua punição será amorosa. Quem há de castigar será a misericórdia, que reina neste mundo, e não a justiça rigorosa; o castigo será leve e passageiro, acompanhado de atenuantes e de mérito, seguido de recompensas no tempo e na eternidade.

Quando formos julgados no fim do mundo, termina o reino da misericórdia e começa o da justiça. As pessoas serão depois enviadas para o Inferno ou para o Céu, de acordo com o “veredictum” final, que é da justiça. Ora, afirma São Luís, se nós formos castigados neste mundo — ainda não é o reino da justiça, mas da misericórdia —, então, virão mil cruzes, mas consentidas por nós, com atenuantes, com mil provas de amor; enquanto que no Inferno o tormento é eterno, que nem sequer merece o nome de cruz.

[22] Mas, se o castigo necessário dos pecados que cometemos for reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue! Castigo espantoso, “horrendum”, inefável, incompreensível: “quis novit potestatem iræ tuæ”? — Quem conhece o poder de tua cólera?(4) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericórdia”(5), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim.

É o castigo do Inferno.

“Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes, esse pensamento mau e voluntário, que escapou a vosso conhecimento(6), essa palavra que o vento levou, essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, serão punidos eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônio no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem misericórdia e sem fim!

Ele coloca esta antítese: os sofrimentos desta vida e os sofrimentos do Inferno.

O Purgatório

[23] Será que pensamos nisso, queridos irmãos e irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes por podermos trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência!

Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, para cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Então, ele passa a falar do Purgatório.

Ah! paguemos neste mundo, de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último ceitil, mesmo uma palavra ociosa(7). Se pudéssemos arrebatar ao demônio o livro de morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande “debet”(8) verificaríamos, e como nos sentiríamos encantados em sofrer durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Esse é um pensamento que a pessoa deve ter quando sofre. A maior parte dos homens, quando tem um sofrimento, sofre inconformada; não se lembra do Inferno, do Purgatório. Entretanto, a pessoa deve dizer: “Como me alegro de sofrer! Estou padecendo agora, mas esse sofrimento vai me tirar outro, mil vezes pior. Esse padecimento, por pior que seja, afinal de contas acaba. E o sofrimento nesta Terra é menos ruim do que no Purgatório, para não falar no Inferno”.

Então, com espírito de Fé, com amor, devemos abraçar esse pensamento, e cada vez que sofremos precisamos aceitar de bom grado esse sofrimento.

Modorra do homem contemporâneo diante dessas verdades

A respeito disso, há uma coisa curiosa e que faz parte da crise religiosa do Ocidente. Quando um pregador dizia coisas dessas, na Idade Média, as pessoas se comoviam, os pecadores muitas vezes se arrependiam, mudavam de vida. Eu não sei o que aconteceu, o que caiu sobre o gênero humano, mas essas verdades tão fundamentais — que todos nós deveríamos amar — encontram uma espécie de modorra no homem contemporâneo, e mesmo nos homens piedosos. Enquanto que os santos meditavam essas verdades com delícias.

E eu tenho uma certa vergonha de desenvolver isso aqui, com a sensação de estar tratando de uma coisa tão banal, tão sabida, que as pessoas se espantam ao ouvir o que estou dizendo. Entretanto, se formos analisar, o proveito que tiramos para a nossa vida espiritual é muito bom. “Meditai em vossos novíssimos e não pecareis eternamente”(9). Os novíssimos do homem, as últimas coisas que lhe sucederão, são quatro: a morte, o Juízo, o Céu e o Inferno.

Não sei o que há, mas a meditação sobre a bem-aventurança do Céu, a visão beatífica, com todos os mil enlevos que deveriam decorrer daí, tudo isso acabou ficando como fonte estancada; procura-se tirar dela alguma água para a vida espiritual, porém as almas não se abeberam nem se dessedentam com isso.

Entretanto, pensamentos às vezes menos importantes, menos nobres, produzem um efeito maior do que o causado por tal meditação.

Ora, para quem tem Fé não é razoável que isso seja assim. O que pode mover mais alguém a aceitar a cruz do que isso? Entretanto, acaba sendo — e tenho impressão que os presentes neste auditório sentem isso na própria pele — que isso não move as pessoas; parece que a fonte está seca, se estancou.

Vemos aqui o mistério da dureza que a Revolução fez cair sobre os homens. Porque essa atitude de alma do homem contemporâneo é a mesma com relação à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, à meditação sobre o amor misericordioso d’Ele, sobre a Sagrada Eucaristia. Por exemplo, Deus está na Sagrada Eucaristia, continuamente oferecendo reparações por nós, mas não há quase ninguém que vá adorá-Lo.

Essas meditações dizem pouco às pessoas. Entretanto, isto é o melhor suco, o melhor leite da vida espiritual, a flor de trigo da piedade. São os pensamentos inspirados por Nosso Senhor para nos salvar. Nossa Senhora ditou a Santo Inácio, em Manresa, meditações a respeito desses temas sobre os quais acabo de falar. Entretanto, qualquer coisa secou.

Cogitações ao passar em frente da Igreja da Consolação, à noite

Às vezes, por exemplo, quando estou voltando à noite de um restaurante, o automóvel passa em frente da Igreja da Consolação e a pequena distância das janelas da capela do Santíssimo; ali dentro está o tabernáculo. E faço pequenos comentários: que maravilha deve estar se passando dentro dessa capela!

É uma capela qualquer do Santíssimo Sacramento, à noite, no auge da solidão. Pensar nas coisas inenarráveis que Nosso Senhor está dizendo para as outras Pessoas da Santíssima Trindade! Nos Anjos e nos Santos que estão ali presentes, pelo menos pela atenção e pelo espírito, adorando-O! E aquela lamparina vermelha com a luzinha acesa; aquele silêncio próprio de capela do Santíssimo, onde os menores estalidos se ouvem, os ruídos da rua passam cortando o ar, como se fossem profanações, mas cessam também e continua um longo silêncio grosso de abandono, de recolhimento, de soledade — que coisa magnífica a soledade! É um silêncio assim que impregna a capela.

Como eu gostaria de poder abrir àquela hora da noite a igreja, entrar sozinho na capela do Santíssimo Sacramento e ficar o resto da noite rezando lá. E o ideal é ir sozinho, sem mais ninguém, para termos a sensação de que Nosso Senhor está ali só para nós, de que Ele não presta atenção em mais ninguém, e de que penetramos, a bem dizer, no Coração de Jesus. E ter ali uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual possamos rezar. E até às primeiras claridades da aurora, ficarmos envoltos nesse mistério, nesse fluxo de orações que há ali dentro. Isso é uma coisa verdadeiramente celeste. Ainda que seja algo insensível, sabemos que é assim.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, que diferença faz noite e dia? O senhor pensa que Nosso Senhor adora menos ao Padre Eterno durante o dia do que à noite? E que nossos miseráveis barulhinhos terrenos são capazes de perturbar a Ele?”

Certas coisas não se sofismam assim… Por exemplo, São João Batista e Nosso Senhor iam para o deserto rezar. Deus está tão presente nos desertos quanto nas cidades. Mas há uma graça da solidão total no deserto, onde se tem a impressão de que o Altíssimo, na solidão d’Ele, se manifesta melhor ao homem que está só. E que o Criador abraça o homem, e o homem como que pode também abraçá-Lo melhor. E este é exatamente o deserto eucarístico, que é uma capela do Santíssimo Sacramento à noite.

E se não fosse chamar a atenção, eu teria vontade de, numa noite, mandar parar o automóvel bem junto à parede da capela do Santíssimo, e ficar adorando Nosso Senhor do lado de fora. São coisas tão verdadeiras e tão evidentes!

Se prestarmos atenção nos automóveis que passam por ali a toda velocidade, podemos perguntar qual é a alma que se lembra de Deus e seja capaz de fazer, pelo menos, uma jaculatória ao Santíssimo Sacramento.

Pior! Muitas daquelas pessoas estão voltando do pecado, ou indo para o pecado; vão descansar para pecar, ou descansar do pecado. E no meio daquela praça, com aquele trânsito todo, está a Igreja da Consolação; então, o abandono de Nosso Senhor fica ainda mais pungente!

Por que isso ocorre? Porque essas coisas acabaram um tanto gastas. Mas o gasto não está nelas e sim em nós, porque elas são insondáveis, eternas. Por que isto está gasto em nós? Que mistério houve para que essas coisas sumamente tocantes tenham deixado de tocar?

E é claro que este gasto é o resultado do pecado de Revolução. Quer dizer, a Revolução instaurou na alma humana uma forma de dureza, de frieza, que gastou essas coisas e fechou as almas para isso.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/8/1967)

 

1) Outros trechos comentados por Dr. Plinio encontram-se nos números 109, 112, 113, 114, 115, 116, 118, 122, 123, 127, 184, 186 desta Revista.

2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 79.

3) 2Tm 4, 7.

4) Sl 89, 11.

5) Tg, 2, 13.

6) Nota da edição de 1954: Isto é, que esquecestes por falta de exame.

7) Mt 12, 36.

8) Do latim: dívida.

9) Eclo 7, 40.

A vitória da confiança – III

Enquanto incutia terror nos adversários, a Santíssima Virgem não Se mostrava aos defensores de seu Santuário, deixando-os num aparente abandono, pois queria deles um supremo ato de confiança.

 

Depois de peripécias, riscos internos e externos de toda ordem e tamanho, a guarnição heroica do Santuário de Czestochowa conseguiu resistir até um determinado momento em que os suecos, desanimados, se retiraram.

Pela calma, impavidez e confiança iremos desconcertar os adversários

Conforme o costume, os defensores continuaram as comemorações de Natal com cantos e cerimônias. As tropas suecas julgaram, entretanto, tratar-se da comemoração de alguma vitória e começaram a abandonar suas posições, desconcertadas.

Enquanto os suecos mantinham o cerco, os sitiados fizeram uma festa de Natal dentro do mosteiro. Com isso, os inimigos ficaram desconcertados – evidentemente por um milagre, pois eram muito bons guerreiros e não iriam se iludir tão facilmente assim – e começaram a abandonar suas posições.

Os oficiais, dando-se conta do que realmente se passava, concluíram, por seu turno, que os sitiados deviam estar muito bem providos em mantimentos e munições para se permitirem tais festas. Na realidade, as provisões estavam já no fim. Trinta e oito dias de sítio haviam transcorrido.

É muito bonito e significativo para vermos o valor da piedade e da confiança na Providência. Os defensores de Jasna Gora estavam perdidos, não tinham mais munições. A luta estava quase desesperada, mas eles confiavam. Fizeram, então, uma comemoração interna. Na hora de fazer a festa – que é a festa da confiança – os suecos perdem a confiança.

Vendo isso, os suecos concluíram: “Não, está tudo perdido. Nós estamos no nosso supremo “élan”, e agora essa gente começa a cantar e festejar o Natal! Eles têm munições em quantidade. Vamos embora!”

Se tivesse sido calculado pelos católicos, seria verdadeiramente um recurso de guerra psicológica. Os guerreiros mais terríveis da Europa naquele tempo foram desbaratados.

Evidentemente são dessas coisas dispostas pela Providência. Virão dias em nossas vidas em que vamos desconcertar os adversários pela nossa calma, impavidez e confiança. Eles vão pensar que nós temos recursos muito maiores do que realmente dispomos e irão embora.

Ó intransigência sagrada!

Na escuridão da noite, os canhões pesados foram retirados de suas posições. De madrugada, os comandantes de tão numeroso exército se retiraram, cada um para seu lado.

Miller se dirigiu para Piotrkoy; o Conde de Wrzeszczewicz partiu para Wielun; o General Sadowski, para Sieradz; o Príncipe saxão para Cracóvia.

Como pode ter acontecido que apenas setenta religiosos, absolutamente não combatentes, sentissem tanta força em si que, com cinco nobres e seus poucos criados, mais cento e sessenta soldados de infantaria, em sua maior parte simples camponeses, ousassem opor resistência a um exército tão numeroso, se o próprio Deus, tutelando esse lugar consagrado à glória de sua Mãe, não houvesse inspirado essa determinação aos religiosos?

Porquanto, embora algumas vezes perdessem a esperança, sempre que após a recitação das orações se reuniam no refeitório e cada qual era consultado; todos votavam unanimemente que preferiam antes tombar, sofrendo a mais terrível das mortes, do que permitir que o infame jugo sueco maculasse com seus pés o lugar consagrado à Virgem Puríssima.

Podemos imaginar o que seriam essas noites propriamente épicas? O dia terminou, vão à igreja rezar e depois para o refeitório comer uns restos de pão, enfim, o que deveria haver lá, com uma água qualquer. Nessa hora são comunicadas as notícias do dia. É o momento em que os fracos se sentem desanimados. Tal pessoa ficou ferida, tal perigo cresceu, tal outra coisa se agravou, notícias de catástrofe iminente.

O Pe. Kordecki, presidindo, pergunta:

— Então, o que havemos de fazer?

Todos, unânimes, respondem:

— Nós preferimos morrer a que pés protestantes pisem no santuário de Nossa Senhora!

É o falso ecumenismo liquidado, rejeitado. Ó intransigência sagrada, ó exemplo para nós!

E quando alguns dentre os nobres nos perguntavam se esperávamos os reforços turcos, ironicamente respondíamos que não confiávamos no auxílio dos homens, mas no poder e na proteção de Deus sobre esse santo lugar, e estávamos preparados para derramar o sangue pela honra de Deus, para guardar sem mancha a fidelidade a Deus, à pátria e ao rei.

Deus mesmo de tal modo dispôs essas coisas para que, entre os montes célebres pelos milagres, também se contasse esse Monte Claro da Polônia, defendido por uma mercê especial de Deus obtida pela Santíssima Virgem para que nenhum homem pudesse se gabar de havê-lo salvo ou ao menos repetir frases orgulhosas e jactanciosas: “Foram nossas mãos que realizaram isso!”

A Virgem Maria vai à tenda do inimigo e lhe incute terror

Agora vem o mais belo.

Segundo o testemunho dos suecos, é manifesto que Jasna Gora foi defendida milagrosamente e com sucesso, pois o senhor de Grodzicki, comandante da artilharia do Rei da Suécia, e outros revelaram que Miller relatava no acampamento que o único motivo que o levara a levantar o sítio de Jasna Gora foram as palavras e a face ameaçadora de uma nobre Senhora que apareceu diante dele, deixando-o perturbado.

Que bonito! Nossa Senhora não apareceu para os defensores, nem lhes contou que Ela estava intimidando os suecos. A Santíssima Virgem deixou os sitiados na escuridão completa, pois queria ter essa homenagem de confiança. Enquanto isso, Ela desbaratava os suecos.

Quantas vezes na nossa vida parecemos completamente bloqueados, perdidos, e Nossa Senhora não nos diz que vai nos ajudar. Mas Ela está derrotando o inimigo, e passamos impunemente. Maria Santíssima ama que tenhamos confiança n’Ela no momento em que parece nos abandonar. É na hora da aridez que Nossa Senhora gosta que confiemos n’Ela.

Quando formos tentados de insegurança, a virtude a ser praticada é a confiança contra toda verossimilhança: “Isso há de se solucionar porque está no caminho de Nossa Senhora, é arquitetônico, razoável, e porque Ela deixou, em meio à aridez, sobreviver em meu espírito a noção de alguns indícios contundentes. Por causa disso continuarei e perseverarei, dê no que der. A noite parece escura, o adversário mais poderoso, e os reveses mais evidentes e estrepitosos do que nunca. Pois bem, é preciso continuar a confiar!”

Santa Teresinha do Menino Jesus tinha um pensamento muito bonito a propósito do episódio em que os Apóstolos acordaram Nosso Senhor no Lago de Genesaré, enquanto Ele dormia na barca. Gritaram eles: “Senhor, salvai-nos porque perecemos!” Comenta Santa Teresinha que fizeram bem, mas teria sido mais bonito se eles não O tivessem acordado. E acrescentou: “Nosso Senhor gosta de dormir no fundo das almas que parecem afundar”.

Quer dizer, Ele gosta de dar a impressão de estar alheio ao perigo. Mas, durante o sono, Ele faz tanto ou mais do que se estivesse acordado. De maneira que os Apóstolos teriam feito melhor deixando-O dormir, porque os ventos e as tempestades se teriam aplacado da mesma maneira. A barca onde está o Filho de Deus não pode ir ao fundo.

Às vezes essa barca é nossa alma. Nós estamos num desconcerto único, não sabemos como as coisas vão se arranjar, enfrentamos o adversário como nos é dado no momento, e Deus parece dormir no fundo de nossa alma. Segundo Santa Teresinha do Menino Jesus, não nos importemos. Nosso Senhor dorme, mas seu Coração vigia e Ele nos socorrerá. No momento adequado isso acontece.

No cerco de Jasna Gora Nossa Senhora parecia dormir, mas vigiava. Não estava entre os d’Ela, mas no meio dos inimigos. Ela ia à tenda do Miller meter medo nele, e o poderoso general fugiu. Isso me parece supremamente arquitetônico e característico de nossa via. Portanto, deveria ser marcado em letras de ouro e de fogo em nossas almas.

Algo de celestial e divino brilhava em seu rosto

Daí espalhou-se entre os suecos a notícia de que Miller levantara o sítio por ter sido enganado por uma donzela a serviço dos monges. O que corria entre o povo, entretanto, é que o general fora advertido severamente por uma senhora que lhe aparecera, para que levantasse o cerco sob pena de fazer desaparecer completamente o seu exército.

Com tal descrição concordaram as cartas das freiras dominicanas de Piotrkow às irmãs que estavam em Jasna Gora, as quais contêm, entre outras, a seguinte referência:

Piotrkow era a cidade onde se encontravam os suecos. Portanto, essas irmãs estavam em contato com eles e escreveram às de Jasna Gora, dizendo o seguinte:

“Miller observou com grande atenção aqui em nossa igreja o quadro de Nossa Senhora de Czestochowa, e como o intérprete pedira que lhe fosse obsequiada uma cópia dessa imagem, nós lha demos e o próprio Miller pegou-a das mãos do intérprete.”

Um protestante pegar uma imagem de Nossa Senhora, naquele tempo era uma coisa que nunca se tinha visto!

“Daí tornou-se-nos claro que o general queria verificar se a visão que tivera à noite era parecida com a do quadro. As próprias religiosas de Piotrkow relataram posteriormente ao padre provincial, sob cuja jurisdição está também o convento de Czestochowa, que Miller, tendo tomado o quadro das mãos do intérprete, disse o seguinte: “Absolutamente não é parecida com aquela virgem que me apareceu, pois não é possível ver alguém comparável na Terra. Algo de celestial e divino, com o que me assustei desde logo, brilhava em seu rosto”.

Aparição de São Paulo, eremita

E continua a carta:

“Afirmavam os próprios suecos que alguns deles viram uma senhora sobre os muros, apontando os canhões e fornecendo com as suas próprias mãos as armas necessárias aos defensores.”

Vejam que beleza! A luta estava dura, alguns não tinham força para arrastar um canhão, outros já não possuíam coragem para dar um tiro, mas afinal conseguiam. Eles não sabiam de onde lhes tinha vindo a força para isso. Porém era Nossa Senhora, a quem eles não viam, que os ajudava. Entretanto, o inimigo via.

Então os adversários estavam nas trincheiras; e aos que escavavam a rocha, que era na base da montanha onde estava o convento, em direção aos muros, apareceu um venerável ancião que os aconselhou a deixarem o trabalho inútil, pois que mesmo em sete anos não o conseguiriam realizar. Amedrontados, pois, com essas aparições, desistiram de dar continuidade ao cerco.

E isso foi ouvido dos suecos pelo senhor Aleksy Sztrzalkowski, que o relatou aos monges, sob palavra de honra.

A Sra. Jaroszewska contou igualmente que vira a figura do venerável ancião, que a animava com a esperança de que Deus em breve manifestaria sua misericórdia e o inimigo levantaria o cerco de Jasna Gora. Nessa visão, um frade em hábito branco celebrava Missa junto a um altar situado num canto à direita do lado oriental da igreja. Não podemos considerar o ancião como outro senão São Paulo, primeiro eremita e nosso patriarca, em cuja honra está consagrado esse altar.

Os senhores da nobreza polonesa testemunharam que haviam ouvido os suecos contando como estes tinham visto um ancião ao lado de uma senhora, que aparecia sobre os muros e rebatia os projéteis suecos.

Nossa Senhora de Czestochowa, Rainha e Mãe da Polônia

Estamos vendo, portanto, os segredos da vitória de Jasna Gora, após a qual o Rei João Casimiro, que antes estava com a sua causa perdida, fez um ato de consagração a Nossa Senhora, começou a reconquista e sua situação mudou.

Reunidas as forças fiéis e para que a contraofensiva alcançasse o maior êxito, o Rei em companhia da nobreza e do povo, com a aprovação do Senado, proclamou solenemente Nossa Senhora de Czestochowa como Rainha e Mãe da Polônia.

Logo depois dessa consagração, os suecos começaram a perder o seu ímpeto e, derrotados batalha após batalha, tiveram que recuar para a Prússia, perdendo a maior parte de seus contingentes.

Poucos dias depois da chegada do Rei a Jasna Gora, onde se encontrava o Santuário de Czestochowa, apareceu, no lado sul, um triplo Sol e ao mesmo tempo viu-se uma dupla coroa solar, uma das quais deslocou-se pelo ar e envolveu a colina com o claustro.  A outra, muito mais voltada com o seu cimo para o sul, tocava o próprio disco solar.

Portanto, um milagre manifesto. O Sol se desdobra e aparecem duas coroas: uma delas tocando no Sol com o próprio cimo e a outra foi pousar sobre o Santuário de Jasna Gora.

Era belo contemplar esse fenômeno celeste, pois o considerávamos como simbolizando uma vitória e uma manifestação visível do aplacamento da ira divina. Assim como os trágicos sinais de há três anos no Sol poente prenunciavam a crueldade da guerra e o imenso derramamento de sangue, assim o brilho claro do Astro-Rei que volta e as coroas incomuns, a todos pareciam anunciar a palma da vitória da paz.

Nossa grande arma é a confiança cega na Mãe de Deus

Eu compreendo que alguém fique perplexo e faça o seguinte raciocínio: “Dr. Plinio fala aos borbotões e com essa facilidade a respeito da confiança. Ele mesmo terá passado por esses apuros, para falar assim com essa facilidade? Já sentiu a insegurança que sente a minha geração? Dr. Plinio pertence a uma geração que é um monólito, um rochedo, não se abala com nada. Para ele, confiar é fácil. Eu queria saber se ele, sendo da minha geração, confiaria também. Nele não existe uma confiança sobrenatural, mas um temperamento feliz, bem construído, otimista. Ele se reconhece dotado de alguns recursos e sabe que, na hora H, tira lá de dentro dos reservatórios dele um vitupério, uma agressão ou uma cilada e, no fim, tudo dá certo”.

Na verdade, as novas gerações se defendem da insegurança por um processo errado: a imprevidência. É muito próprio a elas não olhar muito para os perigos e o dia de amanhã, porque se forem prever sentem uma tal insegurança que preferem adotar a política do avestruz.

Pelo contrário, diante do perigo a minha geração prevê longamente, estando sempre de atalaia para o menor risco espiritual ou tático de apostolado, a fim de perceber e tomar as providências. De maneira que, quando o perigo se torna mais imediato, já se tem uma série de planos de ação postos para o caso dele se positivar.

Isso faz com que a pessoa não tome sustos, é bem verdade. Mas é bem verdade também que o número de perigos que se veem é muito maior, a quantidade de riscos contra os quais temos que exercer a prudência é terrível. Na luta em que nos encontramos, desde manhã até a noite, quase não fazemos outra coisa senão prever.

Resultado: à medida que vamos prevendo, notamos o quanto o homem é pequeno e como todas as previsões, embora necessárias, servem mais para descobrirmos o risco do que para o remediarmos. Devemos prever o perigo, mas ficamos às voltas com hipóteses tão numerosas, possibilidades de derrota tão acachapantes, que chegamos forçosamente a esta conclusão:

Deus deseja de mim isso, e quer realizar essa obra por meio de sua Mãe Santíssima. Mas essa vitória, se for alcançada, é d’Ela, não nossa. Porque não há um homem capaz de tocar a Contra-Revolução para a frente, nas dificuldades em que nos encontramos. É a interferência de Nossa Senhora que salva a situação, reconduz o barco, fazendo-o flutuar de novo.

Compreende-se, assim, como na posição de uma pessoa de minha geração é preciso ter confiança. Por vezes, quando os infortúnios se sucedem um ao outro e se tem a impressão de que nada mais vai para a frente, como é preciso, de fato, confiar no sobrenatural, dentro da aridez, sem nenhuma vontade de confiar, sem sentir nem um pouco que Nossa Senhora vai nos ajudar, tendo até a impressão de que Ela nos abandonou! Esses são os momentos de maior união com Ela, são as horas da confiança, em que se diz: “Minha Mãe, tenho a impressão de que está tudo perdido. Mas volto-me para Vós e Vos peço que me auxilieis. Eu nada mais posso fazer.”

Em nossas vidas, encontrar-nos-emos inúmeras vezes em situações assim. Devemos, pois, preparar as nossas almas para a ideia de resistir, e a nossa grande arma, o nosso grande meio de êxito é a confiança cega. É nessa virtude que devemos nos amparar.

Vimos como nesse convento, onde havia “quinta-coluna” e toda espécie de dificuldade, um punhado de heróis resolveu resistir até o fim. Esses heróis teriam sido estraçalhados, mas não sabiam que no alto das muralhas onde lutavam, Nossa Senhora combatia por eles. E até na própria tenda do adversário Ela entrava para incutir terror.

Como eu lamento não ser pintor para pintar o cerco de Jasna Gora, os heróis lutando e a Virgem Maria, como uma figura diáfana, cristalina, toda prateada, armando os canhões e fazendo disparar os tiros! Que esfacelamento para a “heresia branca”, que liquidação para os sentimentais, que lição para confiarmos contra toda a esperança! Maria Santíssima, invisível aos olhos dos combatentes e disparando canhões nos altos da muralha, mereceria bem ser chamada Nossa Senhora da Confiança.

Peçamos a Maria Santíssima que nos dê essa confiança n’Ela, e com isso venceremos obstáculos que nunca imaginaríamos vencer. Foi para isso que conduzi essa tão longa e bonita história de Nossa Senhora de Czestochowa.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 5/9/1972)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

Nossa Senhora ama a oração insistente e confiante

Oh, minha Senhora e minha Mãe, olhai misericordiosamente para a minha alma e dai-me o espírito de oração pelo qual eu recorra sempre a Vós com tanto maior empenho quanto mais me atenderdes, pois vossas dádivas nos incitam a pedir dons maiores.

Mas Vos rogo ainda outra graça: é de que eu Vos peça com tanto maior persistência quanto mais demorardes em me atender. Dai-me a graça de ter presente que Vós amais a oração insistente e confiante, e que quanto mais tardais em conceder, maior será a graça que me preparais.

Minha Mãe, está tardando para eu ser atendido, mas vosso Coração me amará tanto mais quanto maior for minha insistência. Atendei-me, pois.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 30/7/1971)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

Castidade comunicativa

São Casimiro era tão casto, que comunicava aos outros o desejo de serem puros. É bonito este fato, porque muitas vezes encontramos pessoas puras, mas a quem a Providência não deu esse dom de tornar comunicativa sua pureza. Sabe-se que são puros, admira-se, presta-se homenagem, mas sua virtude não é comunicativa.

Ora, uma das melhores formas de fazer apostolado é ter essa virtude comunicativa que passa de uma pessoa a outra como que por osmose. Às vezes isto acontece, e castidade comunicativa é um dom enormemente precioso para se fazer apostolado.

Mas como Deus está irado com o mundo, dons como esse se tornam raríssimos. Por isso precisamos recorrer a um São Casimiro no século XV para compreender o que é a pureza convidativa e irradiante, a qual atrai as pessoas para a virtude que é o contrário da impureza, da voluptuosidade também conquistadora, a qual arrasta para o mal.

A virtude arrastando para o bem é algo que pouco se vê em nossos dias e, no entanto, dá tanta glória a Nossa Senhora!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/3/1967)

Com uma simples palavra, Nossa Senhora pode nos santificar

Quem tenha algum desânimo, alguma tristeza ou alguma perplexidade na vida espiritual pode parafrasear o centurião que se dirigiu a Nosso Senhor, e pedir a Maria: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma será transmudada, de um momento para outro, se vós assim o quiserdes”.

Nossa Senhora pode, de um momento para outro, nos santificar, dando-nos um grau eminente de virtude. Nós devemos pedir a Ela que sua voz se faça ouvir no íntimo de nossas almas e nos santifique, concedendo-nos uma virtude que, às vezes, anos de lutas e de trabalhos não nos proporcionaram, pois uma palavra de Nossa Senhora pode nos conceder isto.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1970)