Rainha do Conselho

Nossa Senhora foi o oráculo vivo que São Pedro consultou nas suas principais dificuldades, a estrela que São Paulo não cessou de olhar para se dirigir em suas numerosas e perigosas navegações — afirma um piedoso autor a propósito das relações de Maria com a pregação da Igreja nascente. Esse papel inspirador da Virgem Santíssima nos sugere cenas de rara beleza.

Por exemplo, Ela tendo a seu lado São Pedro, São Paulo ou São João Evangelista, explicando, interpretando e os ajudando a compreender os fatos da vida de Nosso Senhor, realçando este ou aquele episódio, espargindo assim o aroma do bom espírito que perfumava a Igreja inteira. Não sem razão, portanto, se A exalta no “Cantus Marialis” como a Rainha da prudência e do conselho, vaso de eleição, de ortodoxia, sabedoria e santidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Restava enfrentar a última batalha

No alto da Cruz, Nosso Senhor já havia passado pelos mais atrozes sofrimentos. Entretanto, Ele ainda padeceu a aridez, outras terríveis aflições e enfrentou a última batalha, antes de morrer. Sofreu para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, os homens que estavam na Terra e todos os que existirão até o fim do mundo.

 

Eu gostaria de comentar alguns aspectos do crucifixo que se encontra na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei, Minas Gerais. Desejo, assim, chamar a atenção para uma das formas de dor que mais caustica o mundo contemporâneo. O homem hodierno está sofrendo? Está. Mas ele mais sofre da dor que ele percebe que caminha em direção a ele, do que da dor que está padecendo. A previsão da dor é, muitas vezes, pior do que a própria dor.

O lance final mais tremendo do que todos os outros

Esse crucifixo consegue, de um modo impressionante, tornar claras duas posições da alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus. Quer dizer, da sua humanidade ligada hipostaticamente à sua divindade, e colocada diante do tormento da dor que vai cair sobre Si, dominada por um pânico correspondente à reação de toda a natureza humana, mas que não cede e avança, que está resignada e, ao mesmo tempo, apavorada.

Notem como o olhar está fixo, aberto e até arregalado, e não presta atenção em nada a não ser no espectro de uma dor tremenda que Lhe vem por cima. Toda a Paixão está para trás, Ele já sofreu tudo e está crucificado. O que Nosso Senhor olha tão fixamente, com tanto pavor, tão desoladora e varonilmente de frente?

Para compreender bem isso, deitem a atenção na boca, meio entreaberta, prestes a pronunciar uma palavra que já não tem força para articular. Considerem as sobrancelhas arqueadas e muito acima das cavidades oculares. É a morte que vem… É o fim! Depois de tanto e tanto sofrimento, é aquele momento extremo de dor, no qual o Divino Redentor vai bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E depois inclinará a cabeça e dirá: “Está tudo consumado” (Jo 19, 30). O oceano das dores foi bebido e está tudo feito.

Eis o lance final, trágico, mais tremendo do que todos os outros, aos quais se acrescenta um dilúvio de dores, à vista de cujo horror vemos Nosso Senhor Jesus Cristo estremecer e ainda enfrentar a última batalha.

Há um versículo que se refere profeticamente a Ele dizendo: “Ego autem sum vermis et non homo, opprobrium hominum et abiectio plebis. – Eu sou um verme e não um homem, o desprezo de todos os homens e o escárnio do povo” (Sl 22, 7). Ei-Lo no alto da Cruz, sofrendo tudo isso para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, as que estavam na Terra e as de todos os homens até o fim do mundo.

O Salvador tem sede da alma de cada um de nós

É muito importante compreendermos que Nosso Senhor Jesus Cristo era o Profeta perfeito, porque profetizou e cumpriu a sua profecia. Os outros profetas previam o que Deus faria; Ele, sendo Deus, profetizou e realizou tudo quanto profetizara. Ora, esse Profeta previu no seu interior todos os pecados cometidos na humanidade até o fim do mundo. Por isso, nesse olhar há doçura, amor, e este amor se volta para cada um de nós. Inclusive àqueles dentre nós que estejamos mais longe d’Ele, por nossa culpa, nossa culpa, nossa máxima culpa… Nesse crucifixo o olhar é de quem diz: “Se for preciso sofrer tudo por esse, Eu sofro! Ainda que ele rejeite tudo isso, Eu ainda sofro mais para ver se, afinal, ele aceita”.

“Sitio – Tenho sede” (Jo 19, 28), disse Nosso Senhor no alto da Cruz. Quanto gostaríamos de dar água para Ele beber! Ora, Ele tinha sede de almas. O Salvador tem sede da alma de cada um de nós! Portanto, essa água nós podemos Lhe dar! É a nossa alma, o nosso interior, a nossa boa vontade, a nossa contrição.

Peçamos para nós, por meio de Nossa Senhora que está aos pés da Cruz, uma contrição profunda que emende as nossas almas e faça de nós uma razão de alegria para seu Divino Filho. Assim poderemos dizer: “No alto do Calvário, eu fui para Ele uma alegria e não uma dor”.

Penetrou pelos precipícios da morte porque quis nos salvar

Em outro ângulo pelo qual se contempla esse crucifixo, Nosso Senhor parece não tanto apavorado, mas derrotado. E a compaixão, ao menos em mim, se torna mais viva. O olhar d’Ele é igualmente fixo, aterrorizado, mas como quem entende não haver nada para fazer, pois Ele é o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo… A única coisa que resta é padecer a pancada atroz e injusta que Ele, inocente, sofrerá por nós, culpados, para podermos salvar as nossas almas. Devemos, pois, dizer do íntimo dos nossos corações aquela jaculatória recitada na Via Sacra e que sempre me impressionou muito, a qual rezo cada vez que passo diante do crucifixo presente em nossa Sede: “Adoramus te Christe et benedicimus tibi, quia per sanctam Crucem tuam redimisti mundum – Nós Te adoramos, ó Cristo, e Te bendizemos, porque pela tua santa Cruz, redimiste o mundo!”

Aí está o onipotente, o Homem-Deus. Há algumas horas perguntavam-Lhe se era Jesus, o Nazareno, e Ele respondeu: “Eu sou.” E tal é o poder d’Ele que todos caíram por terra (cf. Jo 18, 4-6). Nosso Senhor poderia pôr de cara no chão essa multidão que estava em torno d’Ele e que O vaiava. Se Ele quisesse, poderia fazer entrar para os antros mais profundos do Inferno, naquele mesmo instante, a corja de demônios que andavam pelos ares atiçando os homens contra Ele. Nosso Senhor poderia descer da Cruz e, por um império de sua própria vontade, recuperar-Se em toda a força da sua juventude, na plenitude de seus trinta e três anos, a idade perfeita do homem. Mas Ele não quis. E podendo afastar-Se da morte com uma facilidade suma, penetrou pelos precipícios dela, porque Ele quis nos salvar!

Sem dúvida, temos sacrifícios a fazer para salvar nossas almas. Entretanto, como são menores – a perder de vista! – do que o que Ele realizou por nós! Diante disso, não teremos coragem de fazer o sacrifício que nossa salvação exige de nós? Que vergonha é essa?! O tema é tão augusto que quase não comporta a brutalidade da palavra que vou usar: que indecência é essa?!

Imploremos ao Divino Crucificado que nos dê força a fim de fazermos todos os sacrifícios para a salvação e santificação de nossas almas, e trabalharmos pela causa d’Ele e de Nossa Senhora no mundo contemporâneo.

Tudo está toldado!

Vista por outro aspecto, a fisionomia de Nosso Senhor nesse crucifixo corresponde a uma situação para a qual não encontro no vocabulário português nenhuma palavra inteiramente adequada, como é o termo francês “détresse”. É uma aflição que estica ou contorce o homem de todos os modos, e para a qual não há remédio. Nosso Senhor Jesus Cristo parece olhar para o Padre Eterno, e não mais para os homens, e dizer: “Meu Pai, nem em Vós encontro compaixão!” Nessa hora, como que uma misteriosa cortina se interpôs entre a divindade e humanidade d’Ele. Esta encontrava-se na aridez, enquanto a sua divindade, no Céu, estava imersa na glória e na felicidade eternas, inseparáveis da natureza divina. Na sua humanidade, Jesus está olhando para o Céu, como quem diz: “Tudo está toldado, não há saída!”

Em quantas situações da vida nós temos a impressão de que tudo está toldado e não há saída! Nessas horas, saibamos rezar, pedir socorro por meio de Nossa Senhora, e certamente seremos atendidos pelo Céu.

Outra fotografia do mesmo crucifixo apresenta a pobre natureza humana colocada próxima à morte. “Mortis dolores circundederunt me – As dores da morte me cercaram” (Sl 114, 3). Elas vão, dentro em pouco, me devorar. E, Homem que sou, tenho horror da morte! Mas Eu a quero para salvar os homens!”

Tem-se a impressão de que toda forma de aflição O esgotou tanto, que Ele está como que entregue e olhando as suas próprias dores como algo que já se apoderou d’Ele inteiramente. De maneira que só Lhe falta dizer “consummatum est” e morrer. O cálice está bebido. Dir-se-ia que houve um sobressalto, mas há algo da aceitação do fato consumado, onde está presente a doçura das resignações últimas.

Notem o aspecto impressionante da bofetada criminosa dada no rosto, e a chaga que abriu na face divina.

Ó Senhor, pelo Sangue de Jesus e pelas lágrimas de Maria, tende pena de mim!

Esses são os comentários sugeridos por essa esplêndida sequência de fotografias do crucifixo da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei. São palavras que nos predispõem para os sentimentos de contrição que devemos ter durante a Semana Santa.

O segredo das almas quem o poderá desvendar? Dentre os que lerão esses comentários poderá haver almas muito desanimadas, talvez sem esperança de se reerguerem inteiramente. Argumentemos diante da justiça divina com os méritos de Jesus, nosso Redentor, e de Maria Santíssima, Co-Redentora, e digamos:

“Senhor, não sou digno de vossa misericórdia, mas a misericórdia de vosso Filho já se exerceu em meu favor. Ele já verteu seu Sangue, e eu estava na lista dos filhos por quem Ele morreu, pois sou homem, e Nosso Senhor quis morrer por todos os homens. Fui remido, e quando Nossa Senhora chorou, verteu lágrimas também por mim. Eu alego esse Sangue e essas lágrimas, e Vos digo, por meio de Maria Santíssima: Ó Senhor, pelo Sangue infinitamente precioso de Jesus e pelas lágrimas de Maria, a quem amastes tão especialmente, Senhor, tende pena de mim!”

É o que cada um de nós deve dizer na Semana Santa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

O que é a coragem?

É um erro pensar que a autêntica coragem consiste apenas em enfrentar os riscos com valentia, impulsionado por um entusiasmo sensível. Nosso Senhor Jesus Cristo nos dá o exemplo da perfeita coragem.

 

A coragem é, por definição, a disposição de alma, a virtude pela qual o homem enfrenta grandes provas, grandes dores, grandes dissabores, grandes desgostos, grandes perseguições, por um ideal que ele coloca acima de tudo.

Diversas formas de coragem, dois estados de espírito

Há diversos tipos de coragem. Uma coragem para aguentar os sofrimentos da alma, outra para suportar os padecimentos do corpo, outra para arcar com ambos os sofrimentos. Há modalidades de coragem para enfrentar os padecimentos da doença, e outras para os tormentos da guerra. Varia muito.

Entretanto, ao resolver enfrentar o sofrimento necessário para alcançar seu objetivo, o homem pode assumir dois estados de espírito diversos.

Um é o entusiasmo sensível. Ele se vê na contingência de sofrer muito por uma alta finalidade, e resolve, no seu arrebatamento: “Vou sofrer!” E vai para a frente.

Outras vezes, não. O homem não tem qualquer entusiasmo sensível em relação ao que vai fazer. Na sua mente, ele compreende que deve, e quer realizar aquilo. Mas a sua sensibilidade não está de acordo, encontra-se fraca, abatida. E ele tem que ir adiante, apesar de sua sensibilidade estar rumando para o sentido oposto.

A perfeição da coragem

O Corajoso dos corajosos, o Forte dos fortes foi Nosso Senhor Jesus Cristo, evidentemente. No Horto das Oliveiras, quando começou sua Paixão, Ele não tinha nada que representasse, na sensibilidade d’Ele, um “élan”, um gosto, uma satisfação para sofrer. Antes, pelo contrário, os Evangelhos nos contam que Ele começou a pensar em tudo o que ia acontecer, e a preparar sua Alma para isso. E, em vez de Se alegrar, diz o texto sagrado que Ele começou a sentir tédio, pavor, e a ficar triste(1).

Diante do que Lhe deveria acontecer, o seu celeste, admirável, perfeito instinto de conservação fê-Lo ter tanto medo, que as capilaridades das veias arrebentaram e Ele começou a suar Sangue.

É um fenômeno estudado na Medicina, conhecido perfeitamente. Há pessoas que, levadas por um grande receio, um grande temor, acabam transpirando sangue.

Nesse momento, Ele teve o supremo gesto de coragem, dirigindo-Se ao Padre Eterno e dizendo: “Meu Pai, se for possível afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”(2).

O auge da coragem estava nisso: Deus tem desígnios que, segundo a infinita perfeição d’Ele, às vezes remove, às vezes não remove. E apesar de tudo quanto levava o instinto de conservação perfeitíssimo de Nosso Senhor a ficar absolutamente tenso na perspectiva do que viria, Ele deliberou: “Eu vou, Eu aceito! Faça-se a vossa vontade e não a minha” É a perfeição da coragem!

O Evangelho conta que um Anjo baixou do céu e o fortaleceu(3)

Quer dizer, para essas almas que têm medo, tensões, e ficam dilaceradas pelo pavor do que pode acontecer, há uma misericórdia especial. Para umas almas a misericórdia consiste em dar essa sensibilidade para a luta; para outras, a misericórdia consiste em deixar a pessoa sentir-se desamparada. Mas, na hora H, vem uma ajuda e a pessoa avança.

Deus nunca abandona quem se mantém fiel

Não se deixem levar pelo erro que a linguagem corrente coloca — ao menos no português do Brasil —, de imaginar que coragem é a mesma coisa do que essa valentia sensível pela qual se enfrenta tudo. Não é esse o único corajoso. É uma forma de coragem, mas não é a única.

Esta coragem na dor, na desolação, na agonia, é uma forma de coragem esplendidíssima, porque é a coragem da qual nos deu exemplo, pessoalmente, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Nas ocasiões comuns da vida, a pessoa pode não ter coragem para as coisas extraordinárias e, portanto, por causa disso ter um acesso de medo. Mas quando se trata de ser fiel à graça de Deus, não tem por onde escapar: a pessoa pode estar como for, vem para ela uma graça. E, no meio do medo, ela aguenta.

Santo Inácio de Antioquia, por exemplo — um mártir famoso —, foi para o martírio, chegou diante das feras, abriu os braços e exclamou: “Meu Deus, que meu corpo seja triturado pelos dentes das feras, e esmagado como se faz com o trigo usado na transubstanciação!” E realmente as feras caíram em cima dele e o estraçalharam; e ele, na alegria, foi para o Céu. É uma coragem admirável!

Os romanos levavam os cristãos, na véspera da execução, para o Coliseu ou para o Circo Máximo, e eles ficavam a noite inteira acordados, com medo do martírio do dia seguinte. E as feras que lhes deviam comer estavam ali perto, em outro cárcere, uivando. De maneira que, no silêncio da noite, de repente se ouvia o rugir de uma fera faminta. E o católico sabia que seria ele o alimento daquele animal.

Então, diante dos leões, leopardos, tigres, panteras, que começavam a uivar, durante a noite, alguns católicos ficavam entusiasmados, outros se encolhiam, pois receavam não ter coragem. Chegada a hora do suplício, eles tinham uns procedimentos admiráveis.

Houve uma santa que pediu a Deus o seguinte: ela estava disposta a aguentar tudo, mas não tinha coragem de ser comida por um leopardo, por ter um medo especial desta fera. Apareceram as feras, entre as quais havia leopardos. A santa olhou aquilo e pensou na oração que fizera. Veio um outro animal, que não era leopardo, e atirou-se sobre ela, devorando-a.

Outras vezes, as feras se aproximavam, mas não ousavam fazer nada contra o santo. Então o imperador mandava lhe cortar a cabeça. E todos os mártires tinham atitudes admiráveis.

Os “lapsi”

Existia no meio do Coliseu um ídolo, junto ao qual ficavam uma espécie de tigela com incenso e uma pira com fogo. Os cristãos que se aproximassem do ídolo e jogassem incenso no fogo, indicavam por este gesto terem adorado o ídolo. Então, imediatamente eram soltos e podiam voltar para casa. Esses eram chamados “lapsi”.

Um monge relapso é um monge que não teve coragem de levar até as últimas consequências sua vida monacal. Um aluno relapso é o que não teve a coragem de aguentar o peso do estudo.

Os “lapsi” — a palavra “relapsos” vem de “lapsi” — tinham que voltar para a catacumba e apresentar-se com vergonha, como “lapsi”. E continuavam a viver a vida de todos os dias dentro do opróbrio.

Tanto mais que existiam outros meio estropiados porque tinham conseguido sobreviver aos tormentos, sendo depois resgatados, à noite, pelos outros cristãos que, durante a noite, recolhiam os corpos dos mártires, e os eventuais feridos com vida, levando-os para serem cuidados. Esses sobreviventes eram heróis, tinham enfrentado as feras!

Imaginem um daqueles “lapsi” olhando para uma moça frágil, que perdera os dois braços, e que está na catacumba, rezando. Ele, um atleta. Que vergonha! Dá vontade de sair correndo…

Às vezes os “lapsi” que voltavam eram novamente presos. E, na segunda vez, eles se mostravam corajosos. Apesar do pecado cometido, a graça de Deus ainda os apoiava na hora do martírio.

Vivamos e morramos como Deus quer

Quando chegar a nossa hora, devemos pedir a Nossa Senhora que nos dê qualquer forma de coragem, contanto que sejamos fiéis a Ela, custe o que custar. O resto não tem uma importância decisiva. Mas é preciso, nesta hora, ser corajoso.

Eu me lembro de ter ouvido falar de um santo que pregava muito sobre os novíssimos do homem, entre os quais está a morte. Mas ele tinha um pavor de morrer, que era uma coisa medonha! Quando ficou velho, chegou a vez dele. Veio a morte, e ele morreu com uma serenidade impressionante, uma coisa admirável!

São os diferentes desígnios de Deus para cada pessoa.

Queiramos viver a nossa vida e morrer a nossa morte como Deus quer. Vê-Lo no Céu, por toda a eternidade, é o que devemos pedir a Nossa Senhora. v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/9/1989)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

 

1) Cf. Mt 26, 37-38.

2) Cf. Lc 22, 42.

3) Cf. Lc 22, 43.

Oração pedindo proteção contra o coronavirus

Ó Estrela do Céu, que alimentastes o Senhor e extirpastes a peste da morte que o primeiro homem plantou.
Que esta Estrela se digne agora acalmar o Céu, cuja ira fere o povo com a praga da morte.
Ó piedosíssima Estrela do mar, socorrei-nos da peste.
Ouvi-nos, Senhora, pois Teu Filho te honra, nada negando a Ti.
Salvai, Jesus aqueles pelos quais Vossa Virgem Mãe intercede. Assim seja!

O Sepulcro do Senhor

Imaginando o Santo Sepulcro, Dr. Plinio faz riquíssimas considerações que podem inspirar-nos à meditação por ocasião da Páscoa.

 

Atualmente, o ambiente que cerca o Santo Sepulcro difere bastante daquele existente quando Nosso Senhor ali estava morto na sua humanidade.

Entretanto, a fim de fazer uma meditação sobre a Ressurreição de Cristo, farei o que Santo Inácio de Loyola chama, nos Exercícios Espirituais, a composição de lugar, sabendo que o Santo Sepulcro assim não foi. Vou imaginar um sepulcro em concreto, ou seja, real, e depois descreverei a impressão que ele me causaria, se lá estivesse.

Um arco prodigioso, não definido

Eu imaginaria o Santo Sepulcro como algo completamente tosco, aberto na pedra pelos pedreiros de José de Arimateia, que formavam talvez uma das primeiras empresas funerárias do mundo.

ma coisa tosca, mas para quem soubesse interpretar e conhecesse o gótico, olhando para aquilo perceberia que formava um arco prodigioso, não definido. Um indivíduo que vivesse no tempo de Jesus não perceberia, mas um medieval diria: “Olha o gótico!” Se quiserem, foi a primeira ogiva da História.

A lápide que encerrava o Santo Sepulcro, ao contrário de ter aquela beleza leve do gótico, aquele charme, seria uma pedra bruta como que fazendo carranca.

E a ogiva era um louvor do Filho de Deus e a tragédia do deicídio, a justaposição do lindo e do horror da morte, da virtude e do pecado.

A câmara mortuária em forma de cruz

Como se poderia imaginar a câmara mortuária onde estava Nosso Senhor?

Poder-se-ia representar, não uma montanha gigantesca, seria ridículo, mas uma rocha muito grande, ainda com terra por cima, com plantas, de maneira que se sentisse que ela é muito maior do que nossos olhos percebem.

Afastada a pedra de abertura, entrar-se-ia numa espécie de corredor, no fundo do qual se tem a ideia do âmago da morte. E no âmago da morte, o Deus vivo.

É bonito imaginar o cortejo que entra, levando o sagrado Corpo: os archotes, a resina dos mesmos e a fumaça marcando o teto e as paredes; aquela escavação escura e tenebrosa vai recebendo uma luz surpreendente. Nessa escavação, cuja forma seria alongada, haveria uma como que mesa de pedra, sobre a qual se colocaria o Corpo divino.

Quem prestasse uma atenção amorosa e meditativa perceberia, não à primeira vista, mas à terceira ou quarta, que aquilo formava uma cruz. No âmago da morte não cabe a festa nem o “pulchrum” ostentado, mas apenas insinuado, entrevisto.

Contraste entre Nossa Senhora e a montanha de pedra

Prestando-se atenção nas paredes e na estrutura geral, se compreenderia que aquilo representava um dossel fabuloso, embora de pedra comum, o dossel de todos os séculos, pois ali estava colocado o Corpo de Nosso Senhor.

Talvez não se devesse imaginar que também Nossa Senhora entrasse. Ela, em cujo claustro Nosso Senhor tomou vida, vendo agora o sepulcro onde está o seu Filho morto! Seria lancinante o contraste entre a Virgem-Mãe e a montanha de pedra, a vida que começa e a morte dando seu golpe brutal, o crime mais inopinado, mais satânico, mais estúpido, se não fosse diabólico.

Assim, podemos conceber que Ela julgasse não dever estar ali, como uma espécie de protesto das entranhas que O geraram contra a entranha de pedra que O vai conter: uma incompatibilidade intransponível.

É mais bonito supor que todos saem, ficando ali apenas o sagrado Corpo ultra-aromatizado, isolado, na escuridão completa, havendo, na aparência, a vitória deslumbrante da impiedade, da vulgaridade, da morte, do pecado, sobre Nosso Senhor Jesus Cristo.

Fosforescência lívida, mas gloriosa

Se, pela ação de um anjo, uma pessoa tivesse a felicidade de ver através da rocha, perceberia que do Corpo emanava uma discretíssima claridade, não a de um homem vivo, mas a de um cadáver.

ara a autenticidade da Ressurreição era preciso que Jesus estivesse morto, com todas as características da morte, exceto a putrefação, que n’Ele não cabe. Se não fosse irreverência, poder-se-ia comparar essa luminosidade à fosforescência. Seria uma fosforescência lívida e cadavérica, mas gloriosa.

Num canto qualquer, e também no solo, uma luz mantida por anjos, que brilhasse de um modo lindíssimo, como um vitral iluminado por detrás. Brilharia apenas num canto, sem chegar a iluminar tudo, como são os quadros da escola holandesa.

E por que no chão? Porque a glória de Nosso Senhor impunha que, junto ao cadáver d’Ele, nunca se fizesse noite completa.

Seria de certo modo o “lumen gloriae”(1) porque, no lugar da morte, a luz não tem a sua residência própria. Ela está como que enxovalhada, posta de lado, iluminando só um canto, enquanto a vida não voltar para Ele. Tratar-se-ia de luz angélica, que não precisa de oxigênio, pois independe das leis da Física.

E essa luminosidade aumentaria paulatinamente, se desdobrando em como que fosforescências cada vez mais bonitas, cujas várias zonas lembrassem os tormentos d’Ele e tudo quanto em sua alma humana, em união hipostática com a Divindade, se passou durante a existência: a vida íntima da Sagrada Família, os três anos da vida pública, a aurora radiosa, a glória, a perseguição, as apreensões, o Horto das Oliveiras, tudo isto iria se desdobrando em luzes. Seria como que uma narração.

Poderíamos imaginar também que as feridas, as chagas sagradas, fossem gradualmente tomando, em harmonia com isso, à maneira de matizes, fosforescências próprias, indicando o significado de cada uma, o que Ele havia sofrido e expiado em cada passo da Paixão.

Quando isto estivesse inteiramente representado, seria preciso pensar nas legiões de anjos adorando o sagrado cadáver. E, incomparavelmente superior a todos os anjos, Nossa Senhora à distância, no Cenáculo, em contínua adoração. Poder-se-ia objetar: “Está bem, mas anjo não precisa de fosforescência”. Sim, mas ela poderia existir para que algum dia fosse o seu sentido meditado por outros.

Nesse momento, algo de novo começaria a se dar dentro do Santo Sepulcro.

Duas formas de imaginar a Ressurreição

Podemos imaginar duas formas de Ressurreição.

Cristo morto, deitado, em determinado instante, dá sinais de vida; a fosforescência se torna uma luminosidade e sua Alma imediatamente glorifica a Deus Pai, faz um ato de amor ao Espírito Santo. A Pessoa do Verbo Se levanta com uma majestade indizível e caminha no sepulcro transformado, de repente, numa catedral feita de luzes, em meio aos cânticos dos anjos.

Chegando junto à entrada, os anjos rodam a pedra e Ele… meus ouvintes estão imaginando que Ele apareceria a Santa Maria Madalena. Não. Do momento em que Nosso Senhor se levantou até o instante em que ela O reconheceu, houve um interstício insignificante. É-nos lícito imaginar que, com o deslocamento rapidíssimo dos corpos gloriosos, neste interstício Jesus esteve no Cenáculo e apareceu a Nossa Senhora. Assim, imagino ter sido Ela a primeira pessoa que O viu. E logo depois Se apresentou a Maria Madalena, tendo então lugar a cena que o Evangelho descreve.

Essa seria uma modalidade de imaginar a Ressurreição.

Conforme a piedade e o modo de ser de cada um, poder-se-ia supô-la de outro modo: nas trevas intensas, de repente, à maneira de um corisco sublime, a montanha como que racha, Nosso Senhor se levanta como um raio e, num instante, está junto à porta. Um anjo rola a pedra e Ele se encontra diante dos olhos de Maria Santíssima.

Fato tocante: durante toda a Paixão, Nossa Senhora teve em Si a presença eucarística

Há, entretanto, um fato tocante, do qual as pessoas que meditam sobre a Ressurreição nem sempre se lembram: Nossa Senhora fez sua primeira Comunhão no Cenáculo, quando Jesus instituiu a Eucaristia; e a partir desse momento — hipótese defendida por inúmeros teólogos(2) —, nunca mais a presença real n’Ela cessou. E depois de sua morte, Jesus de fato estava em dois lugares no mundo: na sepultura e em Nossa Senhora.

Isso forma, a meu ver, um contraste lindíssimo e afirma, de um modo tão glorioso que não encontro palavras para qualificar, a vitória de Nosso Senhor sobre o demônio, porque Ele morto estava em seu paraíso, ou seja, Maria Santíssima. E, durante a Paixão, Ele estava atado à coluna, carregando a Cruz, crucificado e até morrendo, mas permanecia ao mesmo tempo no paraíso d’Ele e — julgo indispensável considerar isso — desse modo triunfava dentro de sua derrota.

Eis aí, de modo esquemático, alguns pontos que depois devem ser desdobrados, para se fazer uma meditação sobre a Ressurreição.

No fim do mundo, o incêndio poupará o Santo Sepulcro

Devemos também recordar a glória que ao Santo Sepulcro deram os fiéis em todo o curso da História, mas me comprazo em pensar especialmente nos que derramaram o sangue para libertá-lo.

Ficaram eles desolados quando souberam que o Santo Sepulcro estava ocupado pelos inimigos da Igreja, impedindo aos católicos do Oriente de para lá se dirigirem. Além da desolação, houve a indignação do Papa Bem-aventurado, Urbano II, que pregou a Cruzada. Ocorreu, então, por toda a Europa aquela espécie de santa propagação, como a luz, do brado “Deus o quer!”, e avalanches de cruzados, durante muito tempo, lutaram para libertar o Santo Sepulcro.

Depois podemos imaginar o Santo Sepulcro cercado pelas labaredas que vão consumir quase toda a Terra no fim do mundo. Digo “quase” porque alguns lugares sagrados, antes de tudo o Santo Sepulcro, vão ser poupados.

Julgo que, no fim do mundo, todas as relíquias da Paixão que restarem — relíquia é o que restou — serão reunidas gloriosamente junto ao Santo Sepulcro.

Quanto ao Santo Lenho, há relíquias autênticas misturadas com outras que não o são. A coroa de espinhos e os instrumentos da Paixão, os cravos, não estão inteiros. Poder-se-ia imaginar que para tais relíquias haveria uma espécie de ressurreição, ou seja, as autênticas seriam desentranhadas para se reincorporarem.

Essa é uma ideia pelo menos muito simpática e enormemente atraente. Nem por isso é prova de que seja verdadeira, porque pode haver obstáculos metafísicos e teológicos a isso; seria preciso estudar o caso.

Lábaro de dor

A respeito do Santo Sudário, parece-me que poderá ocorrer o seguinte: continuará sendo uma espécie de lábaro de dor, lembrando as sofrimentos de Nosso Senhor; ou acontecerá o que sucedeu com suas chagas, as quais se tornaram gloriosas, recordando todos os crimes cometidos contra Ele. Quem sabe, o Santo Sudário conserve esse aspecto funerário e doloroso — é como que a fotografia da própria dor —, mas irradiando uma glória como as chagas.

Ninguém pode descrever como seria essa glória. O Santo Sudário é uma “fotografia” — entre aspas — de Nosso Senhor; todo o brilho que aquele emitir vai ser uma espécie de réplica do esplendor que do Divino Redentor promanará, e será objeto de enlevo, de adoração, etc., de todos os anjos e bem-aventurados.

O Corpo sacratíssimo de Nosso Senhor, com suas chagas, e analogamente o Santo Sudário, brilharão, constituindo o gáudio de todos os eleitos. E cada um de nós verá então, com reconhecimento, o que custou seu próprio resgate.

O Imaculado Coração de Maria: a mais perfeita figura de Nosso Senhor

Tudo quanto Nosso Senhor sofreu e, lindamente, Maria Santíssima padeceu em união com Ele, se projetará sobre os anjos maus e os réprobos de maneira a estertorarem de ódio e de horror.

Imaginemos que o indivíduo A tenha inveja do indivíduo B. De repente, A descobre que B é príncipe e será coroado rei. A não vai assistir a coroação, preferindo ficar em algum antro se contorcendo de inveja e de ódio. Embora não esteja vendo a coroação, cada rito da mesma, cada brilhante da coroa, etc., o dilaceram. A inveja e a revolta o devoram. Assim, podemos calcular qual foi o ódio dos demônios diante do Santo Sudário e de Nosso Senhor Jesus Cristo, apesar de não os verem.

Mas acima do Santo Sudário há uma representação mais alta de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É o véu da Verônica?

Não. É o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria. Aquele que é a própria Beleza ali se representa com complacência.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/4/1981)

 

 

1) Luz da glória.
2) Entre os que defendem esta piedosa hipótese está o Revmo. Pe. Gregório Alastruey em sua obra Tratado de la Virgem Santíssima. (Madrid: BAC, 1956.)

“Tenho sede”

Quando do alto da Cruz Nosso Senhor disse “tenho sede”, Ele sentia sede corporal, por ter vertido muito Sangue. Mas isso era um símbolo de sua sede das almas, conhecidas por Ele individualmente, especialmente as que viriam a constituir, até o fim do mundo, a Santa Igreja Católica. 

Em Jesus Cristo as naturezas humana e divina estavam hipostaticamente unidas, formando uma só Pessoa. Portanto Ele, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada para nos salvar, era  verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Este é o ensinamento  da Igreja Católica a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quis verter todas as lágrimas e todo o Sangue para nos salvar

Sendo Homem-Deus, Ele poderia ter permanecido na Terra o tempo que quisesse. E poderíamos imaginar que Ele ficasse fazendo apostolado, pregando, ensinando até o fim dos tempos, sem morrer. Todos morreríamos, mas nós somos como as águas que correm num rio. Jesus Cristo era como uma pedra celeste, junto à qual todos passam, se abrem e depois se fecham de novo. Ele fica ali de pé, parado, dando vida, beleza, esplendor a tudo.

Ele não quis isso, preferiu morrer na Cruz, depois ressuscitar e subir ao Céu e nos deixar, na aparência, longe d’Ele. Custa compreender que tenha sido assim, pois poderia haver algo mais  extraordinário do que se encontrar com Ele? Entretanto, Nosso Senhor Jesus Cristo julgou ser isso o melhor para a salvação dos homens.

Imaginem que Ele residisse em Jerusalém, num palácio esplendoroso ou num templo, porque estava à altura d’Ele morar dentro de uma igreja, como objeto contínuo de nossa adoração, não  precisando de repouso, de alimento, de nada, pois a vontade d’Ele era soberana; continuamente adorado, adorável e fazendo bem aos homens.

Se Jesus residisse em qualquer parte da Terra, sem dúvida se construiria uma enorme cidade em torno d’Ele, tal seria o número de pessoas que quereriam morar perto d’Ele. Ele poderia fazer este milagre: conservar a vida de Nossa Senhora junto a Ele.

Não é exprimível a quantidade de vantagens, de dons, de bondade e de tudo que os homens receberiam. Entretanto, Nosso Senhor não quis  porque nada disso salvaria os homens. Para salvar os homens era necessário que Ele sofresse, que o seu Sangue infinitamente precioso fosse derramado por nós em expiação dos nossos  ecados. E todo o bem que Ele nos pudesse fazer, estando nesta Terra, não seria comparável ao bem da Redenção infinitamente preciosa que Ele nos conquistou, a qual Nossa Senhora como corredentora do gênero humano obteve para nós.

Na circuncisão Ele verteu Sangue. Os teólogos dizem que simplesmente as gotas de Sangue ali vertidas já teriam sido suficientes para resgatar toda a humanidade. Mas tal é a insondável, incompreensível e adorabilíssima bondade de Nosso Senhor, que Ele não se contentou com isso e quis verter todo o Sangue que derramou na sua Paixão, Crucifixão e Morte.

Ele quis verter todas as lágrimas que verteu, sofrer tudo quanto sofreu, para que nós fôssemos salvos, e constituir com esses que ele remiu a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Temos assim um meio de medir toda a glória que a Esposa de Cristo dá a Ele e de compreender como devemos amá-la. Por conseguinte, precisamos entender o que representa a repetição, na Santa Igreja atólica, do martírio sofrido por Ele.

Uma ideia muito bonita a respeito do universo Nosso Senhor Jesus Cristo remiu- -nos com o seu Sangue infinitamente precioso e, a partir do momento de nosso Batismo, somos transformados em templos do Espírito Santo e a vida da graça começa em nós  e, com ela, Nosso Senhor passa a viver em cada um.

Isso determina uma misteriosa união entre nós que estamos habitados pelo mesmo Deus, constituindo  um vínculo enormemente maior do que qualquer liame de amizade, de respeito, de consideração, de estima, de parentesco, seja o que for. O fato de que a divina graça habita em mim e num outro nos une mais do que todos os laços meramente humanos.

Às vezes, veem-se pessoas conversando sobre o parentesco que têm entre si, recordando os ancestrais, etc. Certamente é de se tomar em consideração. Mas o que é isso em comparação com o fato  e que o Divino Espírito Santo tem sua morada naquelas almas, e ambas são membros do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo?

Que maravilha se todos os membros da Igreja Católica compreendêssemos, por exemplo, isto: lendo no jornal que uma criancinha de um país longínquo acaba de ser morta, tendo recebido o Batismo segundos  antes de falecer, a alma dela passou a ser habitada pelo mesmo Espírito Santo que está na minha alma e, por isso, ela passou a ser parentíssima nossa pelo fato de se ter tornado uma célula viva do mesmo Corpo sobrenatural ao qual pertencemos: o  Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo! Deus fez da Igreja a verdadeira obra-prima de toda a Criação.

Os antigos tinham uma ideia muito bonita. Diziam eles que, como na Terra nasceu, viveu, sofreu e morreu Nosso Senhor Jesus Cristo, então ela deveria ser o centro de todo o universo. E  maginavam que o centro da Terra fosse Jerusalém, porque ali, no meio de tormentos e de dores incomensuráveis, o Divino Redentor disse “consummatum est” e redimiu o gênero humano. Dali a sua Alma desceu ao Limbo para se encontrar com Adão, Eva e todos aqueles que Lhe tinham sido fiéis na Antiga Lei.

De lá voltou para a Terra, ressuscitou gloriosamente, inundou de alegria e de  lória a Nossa Senhora. E, depois de passar algum tempo ainda na Terra, subiu ao Céu do alto do monte Tabor com um esplendor, uma glória de que ninguém tem ideia. E assim a sua vida terrena estava terminada.

Fica-se com o coração partido. Mas como Jesus Cristo foi embora e nós ficamos na Terra, Ele deixou  quem o representasse, São Pedro, a quem Ele disse aquelas palavras magníficas: “Tu és Pedro, e sobre essa pedra Eu construirei a minha  Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). De lá para cá, formou-se a mais antiga dinastia que há na Terra, a dos pontífices romanos. Dinastia inesperada e singular, onde ninguém é pai daquele que o sucede e ninguém é filho daquele a quem sucede. Dinastia, entretanto, tão contínua e tão augusta: a enorme procissão  os papas através da História. Que magnífica série, que dinastia sem igual essa que vai de São Pedro até aquele que será o último papa sobre a Terra!  Que coisa grandiosa!

Imaginem, no dia do Juízo Final, o cortejo enorme dos papas, dos bispos que ao longo de toda a História apascentaram o rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo! Depois, o séquito dos sacerdotes  ue durante toda a História, ininterruptamente, renovaram de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, rezando a Santa Missa. Em seguida, o imenso cortejo de todos os que viveram no estado religioso, almas especialmente consagradas a Deus: é a Santa Igreja que passa com sua luz, seu esplendor naqueles elementos que, ou exerceram dentro dela governo, ou foram chamados a ar especialmente o bom exemplo.

Por mais que possa haver vácuos, falhas nessa série, que grande quantidade de santos e de serviços prestados; que imensa glória até que o último papa, o derradeiro bispo e o último padre possam  soltar-se para Deus e dizer: “Está cumprido tudo, a tarefa foi realizada, a glória está conquistada. Senhor, encerrai a História, porque o fim de vossa Igreja na Terra chegou!”

Fonte de toda a verdade, todo o bem e toda a beleza

Se não me engano, foi São Pio X quem escreveu um documento no qual ele falava, de passagem, a respeito da civilização cristã. Tal documento foi lançado em fins do século XIX ou no começo do  éculo XX, antes da Primeira Guerra Mundial. Esse período representou o apogeu da Europa, em que ela estava no auge de todo o progresso, de toda a glória. A América do Norte, filha da Europa,  ma vez que era filha da Inglaterra, começava a tomar lugar entre as grandes potências. Dos vagidos de suas vastidões, suas brumas, suas selvas, de junto de seus mares esplendorosos, ia surgindo uma coisa que seria a glória e a esperança da última parte do século XX: a América Latina, nascendo como uma virgem, filha de Portugal, da Espanha, filha da Fé, prolongada em todas essas vastidões que vão desde o México  até a Patagônia.

Esse documento trazia o seguinte comentário: “Se quereis saber qual é a Religião que ensina a ordem divina ao mundo, olhai para os resultados. Vede as nações que confessam o nome de Jesus Cristo, como elas estão acima de todas as outras em glória, em poder e em toda forma de esplendor e perfeição. Eu vos pergunto, então: Quais as nações que têm a ordem perfeita, senão as que se orgulham do nome de Jesus Cristo? E qual, então, a fonte de todo o verdadeiro bem, de toda a beleza, de toda a maravilha que contemplais na civilização cristã?

Essa fonte está na própria Igreja Católica Apostólica Romana!

Cristandade, tu és bela, gloriosa! Entretanto, digo eu, a corola dessa flor não é nenhuma das nações que te compõem, mas a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. E para que isso fosse assim,  osso Senhor Jesus Cristo sofreu tudo quanto quis sofrer. Sofrimento tão atroz que O levou a dar aquele brado magnífico: “Eli, Eli, lamá sabactâni?” – “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Pouco depois, como se estalasse de dor, Ele disse: “Consummatum est” e expirou… (Jo 19, 30).

A primeira canonização da História

Mas Jesus conhecia tão bem a glória que O esperava que, pouco antes Ele tinha dito a um ladrão: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Nosso Senhor tocou a alma daquele  miserável,  perdoou-o e profetizou essa coisa preciosíssima: ele não iria desesperar, nem pecar até a hora de morrer.

A Santa Igreja, por razões verdadeiras e excelentes, estabeleceu que o padroeiro da boa morte é São José, uma vez que ele morreu tendo Nosso Senhor a seu lado, ensinando-o a bem morrer, e  ossa Senhora junto aos dois rezando a Jesus por José, para que a morte dele fosse perfeita. Não se pode morrer melhor.

A morte de Nossa Senhora foi tão leve que os teólogos falam de “dormição”, como um sono. E quando Ela ressuscitou não dava a impressão de ter saído das garras da morte, mas de que florescia  ais uma vez. Excetuadas essas duas mortes, que outra poderia ser bela como a do bom ladrão?

Imaginemos a cena: o bom ladrão ao lado de Nosso Senhor, contorcendo-se de dor; um bandido que, tocado pela graça, estava arrependido e, em meio a todos seus sofrimentos, pensava: “Eu aqui, o meio de minha dor e vendo a dor d’Ele, sinto-me mais feliz do que em qualquer momento de minha vida! A morte se aproxima de mim com seus passos pesados e suas garras terríveis, mas Ele  lha para mim com amor e me restituiu na amizade d’Ele. Se eu pudesse ficar eternamente cravado nessa cruz, sofrendo como estou, mas olhando para Ele, ah, como seria bom! Só sou alguma coisa porque Ele olha para mim e eu para Ele. Nunca mais quero deixá-Lo. Se a morte me agarra e me leva, o que será de mim?”

Talvez nesse momento auge de dor, Jesus, que tanto sofria, mas olhava com tanta compaixão para a dor dos outros, tenha dito para o bom ladrão: “Tu hoje estarás Comigo no Paraíso”.

Assim, naquele momento em que a Inocência e o criminoso, contrito e penitente, se reuniam, ali estavam Nossa Senhora, São João Evangelista e as santas mulheres. A Santa Igreja fazia a sua primeira canonização. Como é benfazejo, assistindo às cerimônias de canonização conforme eram realizadas antigamente no Vaticano, tão pomposas e magníficas, com os sinos e as trombetas que  ocavam, etc., lembrarmos que a primeira canonização foi feita na dor e na aflição, na humilhação e no terror, mas com uma promessa incomparável! É glorioso para a Igreja Católica simplesmente esse fato de ela poder inclinar-se sobre a história desses ou daqueles que viveram na Terra, e dizer com poder infalível: tal pessoa está no Céu. É parecido com Nosso Senhor afirmando: “Tu estarás no Paraíso”. Não é igual, pois Nosso Senhor garantiu ao bom ladrão o Céu.

A Igreja não garante o Paraíso a ninguém, mas declara que alguém já falecido está no Céu, num alto grau reservado aos heróis. Quanta beleza e quanta glória da Igreja Católica! Ela deu origem a todas as pulcritudes da Europa, do mundo, e à maior de todas as belezas: a das almas!

Sede de almas

Foi por amor às almas que Nosso Senhor sofreu toda a Paixão. E quando Ele, do alto da Cruz, disse “tenho sede”, todos os intérpretes estão de acordo em dizer que Jesus sentia muita sede  corporal, o que é explicável por ter vertido muito sangue; mas isso era um símbolo da verdadeira sede d’Ele, que era a de almas.

Sede da alma de cada um de nós. Ele nos conheceu individualmente, sabia como nos chamaríamos, como seríamos, como O injuriaríamos… Entretanto, conhecia também os momentos de bondade nos quais, Ele tocando nossas almas, nós nos arrependeríamos e voltaríamos para o bom caminho. Ele sabia de tudo e queria que nossas almas Lhe pertencessem. Quer dizer, que nossas almas Lhe fossem fiéis e a graça pudesse viver nelas. Foi por ter esta sede desmedida de almas que Ele sofreu também desmedidamente e verteu seu Sangue sem nenhuma medida, desde o primeiro instante em que no Corpo sacratíssimo d’Ele, enquanto agonizava no Horto das Oliveiras, começaram a estalar as primeiras veias e Ele principiou a suar Sangue, até ao fim de sua  paixão, quando veio Longinus e O perfurou com uma lança para que saísse o resto do líquido existente no seu Corpo santíssimo. Ele quis dar e derramar tudo por causa dessa imensa sede de almas!

Se é verdade que muitas almas se perdem, é também verdade que várias outras se salvam. Se pensarmos  simplesmente no mundo contemporâneo, no meio do oceano de pecados que se cometem,  quantas crianças vão para o Céu porque foram batizadas e morreram sem atingir a idade da razão, e brilharão no Paraíso como  sóis por toda a eternidade, compreenderemos quantas almas sobem ao Céu como bolhas de um gás dourado que sai do fundo da humanidade, dos extremos da Terra. E as almas dos recém-nascidos batizados, cantando para todo o sempre a glória de Deus.

A mais bela púrpura de todos os tempos

Em breve celebraremos o Domingo de Ramos, que precede de pouco a Paixão e Morte de Jesus. É o domingo em que Ele entra em Jerusalém aclamado pela multidão, montado num burrico, com mansidão e humildade, o  Filho de Davi e Rei por direito daquela terra que se entregara aos romanos pagãos, não soubera conservar a sua independência e, sobretudo, a sua fidelidade à verdadeira religião.

Nessa entrada triunfal, entretanto, Jesus está meio triste porque, apesar de receber com agrado aquela glória, por serem almas que O amam, Ele olha para elas e, conhecendo todas, não tem ilusão  obre nenhuma. A começar pelos Apóstolos que O acompanhavam. Eles não sabiam, mas Jesus estava ciente do que iria acontecer. Conhecia o sono do Horto das Oliveiras, a fuga medonha no omento em que Ele era preso, as infidelidades dessa gente para com Ele.

O Divino Redentor sabia que aquela aclamação toda provinha de um povo superficial, frívolo, ingrato, que naquele momento gritava “Hosana ao filho de Davi!”, mas pouco depois estaria preferindo Barrabás.

Vem a Quinta-Feira Santa e a Ceia na qual Ele anuncia: “Um de vós há de Me trair!” Todos começam a perguntar: “Quem será? Serei eu?” (Mc 14, 18-21). Fazem sinal a São João para que pergunte  Jesus.

Sendo ele o discípulo predileto, a oração de São João podia alcançar esse favor. Então Nosso Senhor lhe diz baixinho: “É aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Molha e como cortesia o  á  para Judas, o qual o recebe e, naquele momento, o demônio entrou nele (Jo 13, 25-27).

Nosso Senhor disse-lhe: “Judas, o que tens a fazer, faze-o logo” (Jo 13, 27). Judas saiu… E o Evangelho diz que era noite; ele entrou na treva, penetrou no horror! Terminada a Ceia, em que Jesus instituiu a Sagrada Eucaristia, todos saem do cenáculo entoando, segundo o ritual antigo, um cântico da Páscoa – isto é, a saída dos judeus do cativeiro do Egito e a travessia do Mar  ermelho, a pé enxuto, por um milagre de Deus – e se dirigem ao Horto das Oliveiras.

As tristezas vão-se acumulando na alma de Nosso Senhor e os Apóstolos não compreendem. Ele os manda aguardar, enquanto Se retira para rezar, levando consigo apenas São Pedro, São Tiago e  ão João. Ali começa a sua Paixão, na previsão de tudo quanto aconteceria. Pela pressão moral diante do terror dos acontecimentos – isso se explica inclusive do ponto de vista médico –, algumas veias capilares começaram a se romper e a derramar Sangue; e Ele suou Sangue no seu Corpo inteiro. Quando os romanos e os judeus O foram prender, com certeza a sua túnica estava purpúrea como a de um rei, mas com a mais bela púrpura de todos os tempos: o Sangue do Filho de Deus, que era o Sangue de Maria, porque a Carne de Cristo é a carne de Maria, e o Sangue  e  Cristo é o sangue de Maria.

Desenrolaram-se, então, todos os episódios da Paixão. Nosso Senhor sofreu a Paixão naqueles dias, mas previu o que a sua Igreja padeceria ao longo da História. Assim, Ele sofreu também por  udo isso, por todos os nossos pecados, por esses dias nos quais vivemos, mais catastróficos do que quaisquer outros da História da Igreja, em que o mal parece ter chegado ao auge. O Redentor Se sacrificou por tudo isso, para nos resgatar. Embora não quisesse que se praticassem esses  horrores, Ele não tirou a liberdade do homem. Este, recusando a graça, fez da sua liberdade o péssimo som que estamos vendo em nossos dias.

O “fatinho” da vida de cada um de nós

Diante disso, o que devemos fazer? O que Ele quer de nós? “Christianus alter Christus”: Todo  cristão é um outro Jesus Cristo. Nessa situação devemos dizer: Vou sofrer a Paixão com Nosso Senhor Jesus Cristo! Se eu tiver sido inocente como São João, estarei ao pé da Cruz amando-O e pedindo-Lhe que preserve a minha inocência. Se fui pecador como São Dimas, ficarei junto à Cruz, quer dizer, aos fiéis, ao que resta da Igreja, pedindo: “Não permitais que eu me separe de Vós!” Rogarei isso por meio de Nossa Senhora, sem cuja intercessão nenhuma oração é válida.

Se eu dever sofrer, ser odiado, perseguido e desprezado, porque fui fiel aos aspectos imutáveis e eternos da Santa Igreja Católica, que aconteça! Meu martírio de alma ou de corpo será um prolongamento do sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Oh, glória! Peço à Mãe d’Ele que me obtenha coragem, e irei para a frente. Debaixo do desprezo e do ódio do mundo inteiro, estarei de pé para dizer: “Blasfemadores e prevaricadores, vós andais mal! Eu estou com Jesus e Maria, com a Santa Igreja Católica Apostólica Romana!” Devemos desde já apresentar esse pedido a Nossa Senhora, incorporando a ele todas as almas existentes, inclusive aquelas que pecam contra Deus, fazendo esses horrores, para que Ele as toque e as converta.

Contudo, merecem um lugar especial em nosso amor aqueles a quem Nossa Senhora chamou para serem, conosco, os batalhadores pela Causa d’Ela. Rezemos especialmente por todos os católicos  e nossos dias, para que sejam inteiramente fiéis e suportem carregar a cruz às costas, aguentem a crucifixão, dispostos a qualquer coisa para acompanhar até o fim Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.

Os mais augustos episódios, os acontecimentos que o mundo de hoje reputa tão importantes não são nada em comparação com isso. Esses são os grandes fatos da História. Não obstante, devemos tomar em consideração este “fatinho” da vida de cada um de nós: lembrarmo-nos do instante em que fomos chamados, do momento em que alguém passou junto de nós e disse: “Vem, o Senhor te chama!”, quando sentimos a nossa alma tocada e respondemos: “Sim, eu vou seguir!” E, então, nossos passos começaram a percorrer as primeiras distâncias na enorme caminhada que nos esperava; os nossos olhos maravilhados e o nosso coração cheio contemplavam esta sublime “descoberta”: a Igreja Católica! Lembrarmo-nos de que isso foi conquistado para cada um de nós no instante em que Nosso Senhor disse “Consummatum est” e, junto à Cruz, com os sete gládios de dor traspassando o seu Coração, estava chorando a Santa Mãe do Redentor.

Flávio Lourenço

A morte é como um ladrão, vem quando menos se pensa. Que ela seja o fim dessa caminhada, no momento em que Nossa Senhora nos der a graça de fazermos um grande Sinal da Cruz e, com os  lhos postos numa imagem d’Ela e nosso coração transbordante de amor à Santa Igreja Católica, pudermos dizer também: “Consummatum est”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1985)

Um guerreiro perfeito: São Nicolau de Flue

Embora inclinado desde a infância à vida contemplativa, São Nicolau de Flue exerceu os mais variados ofícios, como o de um simples pastor, militar, juiz e pai de família. Soldado de bravura invulgar, empunhava numa mão a espada e na outra o Rosário. Entretanto, o que mais o caracterizou foi o fato de em toda a sua vida, exercendo as mais variadas atividades, nunca deixou de ter visões e revelações místicas.

 

Comentarei uma ficha a respeito de São Nicolau de Flue, tirada do livro Os Santos Militares, do Pe. Charles Profillet.

Inclinação para a vida contemplativa

Nicolau de Flue nasceu no dia 25 de março de 1417, falecendo no mesmo dia, no ano de 1487. Era natural do cantão de Unterwalden, na Suíça. Filho de modestos agricultores, demonstrou, desde criança, aptidões invulgares de inteligência e piedade.

Por isso seus pais procuraram dar-lhe uma educação um pouco melhor daquela que seria ministrada a um futuro lavrador. Nicolau sentia enorme inclinação para a vida  contemplativa.

Tinha visões que o convidavam a isso. Mortificava-se tão violentamente que sua mãe temeu por sua saúde e procurou orientá-lo nesse sentido. É interessante que, mesmo  com tal vocação, Nicolau casou-se, tendo numerosa prole e atingindo seus descendentes as mais altas dignidades do país.

Casado, continuou com seu gênero de vida: levantava-se cada noite para rezar e todos os dias recitava o Saltério em honra de Nossa Senhora. Aos 23 anos foi ele chamado a lutar contra o cantão de Zurique, que se rebelara contra a Confederação Helvética.

Já naquele tempo, a Suíça era dividida, como hoje, em cantões, ou seja, províncias tão pequenas que quase poderiam ser comparadas a municípios. Na época de São Nicolau de Flue, esses cantões eram quase completamente independentes uns dos outros. Tinham uma vaga confederação e viviam numa certa luta entre si, porque a influência  política dentro da Suíça era disputada pelos países vizinhos. Cada grupo de cantões – de língua francesa, alemã, italiana, etc. – era trabalhado pela potência que lhe era afim.

Então, isso proporcionava um jogo político muito intenso. É preciso considerar que esse foi o século militar da Suíça. Foi nesse período que os suíços começaram a se revelar grandes militares, fornecendo tropas mercenárias para a Europa inteira. A Guarda Suíça, que ainda serve os Papas, é uma reminiscência dessa tradição. Portanto, nessa  época a Suíça ia entrando no seu período, relativamente rápido, de glória militar.

Numa das mãos a espada, noutra o Rosário

Quatorze anos mais tarde, ainda nessa luta, comandou, como capitão, uma companhia de cem homens. Nicolau, na guerra, lutava sempre tendo numa das mãos a espada e, na outra, seu Rosário. Soldado de bravura invulgar, foi agraciado com a mais alta condecoração de sua terra.

Que linda cena! Entrar esse homem valoroso no campo de batalha com uma das mãos portando a espada, desferindo golpes, e com a outra segurando o escudo e o Rosário.

É de se notar como o ambiente que cerca os objetos de piedade foi mudando ao longo dos séculos, por causa da influência do espírito “heresia branca”. Quem, vendo hoje um Rosário, diria: “Esse objeto me lembra um guerreiro”? Pelo contrário, a maioria das pessoas associará o Rosário a um símbolo do homem incapaz de guerrear, de tal  maneira a mentalidade “heresia branca” foi transformando a fisionomia moral do católico, e a ideia do católico guerreiro foi se apagando. Ora, essa é uma grave injustiça  para com o Rosário.

Contínuas visões, mesmo exercendo os mais variados ofícios

Ao voltar para casa, quiseram fazê- lo prefeito, mas ele não aceitou por causa da humildade de sua origem. Vejam a beleza do espírito de hierarquia! Ofereceram-lhe um  cargo público, mas ele declara não querer  exercer tal função por ser de uma origem muito humilde, em respeito às pessoas de condição mais alta que havia em seu cantão.

Entretanto, exerceu com rara habilidade o cargo de juiz. Deixou-o após nove anos, para se dedicar exclusivamente ao cuidado de sua alma. Suas visões não o deixavam. Guardando o rebanho viu, certa ocasião…

Isso precisa ser visto na atmosfera suíça. Devemos imaginar uma montanha na Suíça, com o gado em suas encostas, aquela paisagem muito bonita, São Nicolau tocando, ao  pôr do sol, um chifre que serve de corneta para reunir todo o gado. Depois, rezando o Angelus sozinho e se dirigindo ao estábulo para guardar os animais.

Que bela a simplicidade desse homem que, tendo sido guerreiro, escolhido para prefeito e juiz, recolhe-se à vida privada e vai guiar rebanhos. Ademais, durante todo o  tempo ele teve visões. A ficha afirma: “Suas visões não o deixavam.” Quer dizer, tanto enquanto guerreiro, como juiz e pastor, ele tinha visões.

Então, num tribunalzinho do lugar está sentado o juiz Nicolau de Flue. Enquanto as pessoas discutem para decidir uma causa, de repente, o olhar dele se torna extático, sua face se ilumina, ele vê uma cena celeste qualquer, todo mundo para, os ódios se desarmam. Quando cessa a visão, as partes estão reconciliadas e o pleito está resolvido.

Há algo mais bonito do que um pastor ter visões nas encostas dos Alpes? Coisa maravilhosa! Naquela natureza poética, ele toca o olifante e, de repente, ouve um Anjo que  continua o seu toque. Esse Anjo vai para os Céus e o gado se recolhe tranquilamente ao redil, guiado por outro espírito angélico. Está feita uma visão, num desses  crepúsculos ou numa dessas auroras feéricas da Suíça, em que a neve fica rosada, azul-claro, e o céu se tinge de todas as cores… Um Anjo em meio à inocência daquela natureza é uma coisa absolutamente superior!

Não vulgarizar os favores celestes recebidos

Guardando o rebanho viu, certa ocasião, um lírio maravilhoso que saía de sua própria boca e elevava-se até as nuvens mas caía sobre a terra e era devorado por um cavalo. Compreendeu, então, que a contemplação das coisas celestes, em sua vida, era frequentemente absorvida pelos cuidados materiais.

Lindo simbolismo: um pastor vê uma haste delgadíssima e um lírio brilhante que sobe ao céu. É uma coisa maravilhosa!

Mas, depois, cai no chão e um cavalo o come. “Que coisa esquisita…”, pensaria ele. Então conclui que, embora se elevasse, às vezes, a considerações muito altas, as coisas  terrenas  faziam passar essas considerações.

Se a algum de nós acontecer de, às vezes, ter algum pensamento muito elevado e depois voltar para as coisas da Terra – já não digo que os cavalos comam, mas os  automóveis esmaguem! –, então seja devoto de São Nicolau de Flue que, favorecido até por visões, tinha o mesmo problema.

É um alento para nós vermos como os Santos lutaram, tiveram as mesmas dificuldades que nós; como Nossa Senhora os acorreu maravilhosamente porque eles eram  homens de oração e de amor de Deus.

Peçamos a São Nicolau de Flue a graça, que com certeza ele obteve nessa ocasião, de não vulgarizar, na vida de todos os dias, os favores celestes recebidos. Imploremos  também que ele se apiede de nós e se debruce sobre nossa fraqueza, e dê estabilidade aos bons pensamentos que possam passar por nossas almas.

Apaziguador de rixas entre seus conterrâneos

Abandonou, então, mulher e filhos e fez-se eremita. Evidentemente, a mulher deve ter concordado, do contrário ele não seria Santo. Tornou-se um extraordinário extático. Por anos, alimentou-se somente da Santa Eucaristia, recebida uma vez por mês.

Amado e venerado por seus concidadãos, que muitas vezes o chamaram para apaziguar rixas entre os cantões, ele sempre obteve êxito nessas missões. Notem o que era a  visão política da Idade Média, apesar de já decadente.

Aqueles cantões, como dissemos, tinham entre si rixas que chegavam a provocar guerras.  Nessas contendas, com certeza, uma das partes não tinha razão – quando não acontecia de ambas as partes estarem de má-fé; para evitar o derramamento de sangue, os dois lados iam procurar o Santo. E São Nicolau de Flue nunca foi malsucedido na  sua missão. Ora, qual foi a missão em que a ONU foi realmente bem-sucedida? Ademais, com que confiança se procurava um Santo, e com que mil reservas se procura a  ONU… Do que adianta um aparato jurídico quando falta a santidade?

Pouco antes de morrer, Nicolau foi atingido por dores violentas. “Ah, como a morte é terrível!”, dizia ele. Mas exalou o último suspiro com grande calma. Há uma concepção  “heresia branca” segundo a qual o Santo nunca tem medo de morrer. Ele falece sempre dizendo: “Ó morte, vinde a mim!” Não é verdade. Há muitos Santos que faleceram no  terror da morte, mas Deus os sustentou e quase todos eles, no fim, tiveram uma morte calma. São Nicolau de Flue sentiu dores violentíssimas e dizia: “Como a morte é  terrível!” Mas, depois, a morte foi plácida; ele entregou a alma a Deus na tranquilidade.

Condecorado com honras militares mesmo após a morte

Seus restos mortais foram depositados na igreja de Saxen, aldeia natal do bem-aventurado. Quem a visita hoje vê, sob o altar, o esqueleto do “Irmão Klaus”, como o chamam, ornado de ouro e diamantes, trazendo ao pescoço condecorações de numerosas Ordens militares… É uma coisa linda! Como ele foi santo e militar, as grandes ordens  militares mandam-lhe condecorações com  as quais se cobre o cadáver. De maneira que esse homem, que em vida teve apenas uma lutazinha entre os cantões, está  constelado de comendas de Ordens militares. Notem o respeito à santidade que isso significa! …que foram conquistadas pelos seus descendentes ao servirem outros países.

Isso é muito bonito também. Os descendentes desse Santo, ao conquistarem insígnias, enviam para ser postas sobre o cadáver dele e o condecoram com elas. Vejam que respeito à tradição e que amor ao passado isso indica! A Europa está cheia de ensinamentos desses.

Aqueles que negam qualquer valor à hereditariedade levam com isso um verdadeiro soco. O herói que tira a condecoração do peito para honrar o Santo, seu antepassado, dá a entender ser mais bonito descender de São Nicolau do que estar coberto de todas as honras da Terra. Essa atitude é densa, cheia de significado. Ah, Europa sagrada!

Predicados de um perfeito guerreiro

Um contemporâneo descreveu o Beato Nicolau como um homem de estatura elevada; sua cela tinha seis pés de altura, o que era o limite extremo para ele se manter de pé.  Magro, a ponto de parecer feito somente de pele e ossos. Sua pele era bronzeada. À medida que foi envelhecendo, o cabelo, no alto de sua cabeça, adquiriu um tom cinza escuro. Duas mechas de barba desciam de seu queixo. Tinha os olhos negros e serenos, o olhar enérgico e penetrante.

O som de sua voz era másculo, digno e imponente. Que beleza! Assim deve ser um homem. Como isso é diferente de certas imagens que se veem em igrejas, onde se tem a  impressão de que se aquela figura falasse emitiria um som roufenho e amolecido.

Seus pés tocavam a terra, mas seu espírito parecia pairar nas regiões celestes. Enfim, está feito nosso preito de admiração a São Nicolau de Flue. Que ele nos dê coragem  para, nos dias difíceis que esperam todo homem contemporâneo, podermos caminhar para o inimigo empunhando uma arma, o Rosário, e tendo visões e revelações. Esse é o  guerreiro perfeito! 

(Extraído de conferência de 6/4/1971)

São João de Deus – Extraordinária força de alma

São João de Deus foi fundador de uma Ordem religiosa famosa, tornando-se um dos homens mais conhecidos de seu tempo.

Sua fisionomia é toda marcada pelo olhar. Os traços são comuns, regulares, não dizem nada de especial. O bigode, muito fininho, ralinho, com certeza fazia parte dos costumes do tempo; e a barba aparada, cobrindo quase todo o rosto. Caixa ocular bem feita, com certa profundidade, mas nada de extraordinário. Nariz, sobrancelhas, testa e carnatura comuns. Entretanto, tudo sai do banal por causa desses olhos escuros e profundos.

Olhar pensativo e analítico, ao mesmo tempo de um místico e teólogo, cogitando em algo muito elevado que o toma por inteiro. Uma força de alma verdadeiramente extraordinária.

Quando consideramos um semblante como este, devemos compará-lo com as fisionomias que encontramos nas ruas. Quantas caras comuns existem pelas vias públicas! Mas este olhar, onde encontraremos?

Compreendemos assim o trabalho da graça, colhendo um homem que provavelmente foi comum, tornando-o uma grande alma e fazendo, através dele, uma grande obra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1986)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

Coragem e galhardia, disciplina e gentileza

Profundo conhecedor da simbologia dos animais e da psicologia dos homens, dos povos e até das civilizações, Dr. Plinio, com base na projeção de dois filmes(1), tece interessantes comentários sobre o cavalo, o touro, o pavão e o cisne, analisa os modos de ser dos latinos e dos não latinos ocidentais, focaliza as características do austríaco e do espanhol, e afirma que suas qualidades são frutos da civilização cristã e, no fundo, do Sangue de Cristo e das lágrimas de Maria.

 

Todos ficaram empolgados com o que se passou. A reação dos presentes neste auditório foi como a de um só homem: entusiasmados!

Agora, devemos como que passar novamente o filme em câmara lenta, dentro de nossas cabeças, para perceber quais são as razões desse entusiasmo.

O cavalo e o touro

A primeira razão é a impressão que se tem do risco que aquilo causa, e da marcha do cavalo e do cavaleiro diante do perigo. Há um gosto, uma espécie de alegria, de euforia de se atirar dentro do risco. Tem-se a impressão de que o risco produz psicologicamente, no cavalo e no cavaleiro, como que um arejamento fresco e agradável. Cavalgar dentro do risco e do imprevisto; improvisar, ali na hora, as coisas que devem ser feitas: avançar, recuar, etc. E tudo realizado de acordo com uma certa regra interior, que faz exatamente a beleza do jogo.

O cavalo corre muitíssimo bem! Ele tem um passo lindo e audacioso. Esse cavalo mereceria ter o nome de Relâmpago ou de Corisco. Dir-se-ia — não é assim, porque é puro instinto — que o animal possui uma noção raciocinada do que está se passando, e que acha uma verdadeira beleza jogar-se para a frente e raspar no perigo. Tem-se a impressão de um bem-estar do cavalo — não estou falando do cavaleiro — na hora em que o touro avança contra ele, quase raspa… e ele sai com elegância!

Parece que o cavalo diz: “Touro, você não é senão touro; eu sou cavalo, sou elegância, força e garbo; você é massa bruta, mera força. E, por causa disso, posso raspar-me em você e até permitir, se for o caso, que seu chifre me risque, e eu ter a alegria de ter raspado pelo perigo e saído vitorioso!”

Realmente, o cavalo possui uma série de reações que lembram as do espírito humano. Certos tipos de homens, colocados diante do perigo em várias circunstâncias da vida, têm atitudes assim; e não só quando correm risco de vida, mas numa argumentação, numa jogada política, ou qualquer outra coisa. O touro, não. Ele é forte, e agrada-nos ver aquela força, mas não tem expressão; não possui nada de “humano” na atitude dele. No cavalo há qualquer coisa pela qual, por algum lado, ele parece transcender — não transcende — a mera condição de bicho e entrar um pouco no reino dos homens, pelas atitudes que demonstra.

O pavão e o cisne

Aliás, isso se dá com mais de um animal. É muito bonito perguntar-se quais os desígnios de Deus, tendo feito isso assim. Por exemplo, o pavão, com aquela sua roda e atitudes. Prestem atenção quando ele abre a roda. Não percam muito tempo olhando para a cauda dele, que é lindíssima; reservem para outra ocasião. Observem o pescoço dele e os ares que toma: ares de superioridade, como quem diz: “Eu sou dono desta roda magnífica atrás de mim; mas não é somente uma exposição de penas que levo comigo: sou superior; olhem a minha marcha, o meu pescoço todo feito de joias, a posição de minha cabeça! Observem o meu olhar, o meu bico! Eu sou o pavão!” Há qualquer coisa nele que demonstra uma expressão para-humana.

Uma muita bonita expressão tem também o cisne, entretanto tão menos ornado do que o pavão, o qual, com aquela sua joalheria toda, é um dos animais mais belos que Deus tenha criado. O cisne é de uma cor só: branco ou preto. Mas vejam o seu jeito de deslizar sobre as águas! Quando quer se mover um pouco, nota-se que ele faz um leve movimento por debaixo d’água, e desliza… Tem-se a impressão de que ele se contempla nas águas, e que estas ficam contentes de refleti-lo.

São duas formas de beleza — a beleza ornada do pavão e a beleza singela do cisne — levadas pelo Criador a uma perfeição que nos deixa pasmos.

O delicioso licor do risco

Quanto à cena a que acabamos de assistir, vê-se que o cavalo participa do heroísmo de quem o monta. O verdadeiro cavaleiro sabe transmitir alguma coisa de sua personalidade ao cavalo. Este é destro, esguio, cheio de movimentos ágeis e, quando raspa pelo perigo, tem euforia. Quando o cavalo dá aquela volta diante do touro para que o cavaleiro crave a “banderilla”, e em que o touro quase raspa nele, seria comparável a um homem que está bebendo um licor e dá seu melhor trago. É o delicioso licor do risco!

Aqui entra um ponto do qual, embora um pouco à margem do tema, pode-se tratar dele muito de passagem.

Em geral, o homem contemporâneo quer proporcionar para si e aos outros uma existência deliciosa. E para isso quer afastar o risco e levar uma vida boa, evitando ao máximo que alguém seja ferido, contundido. Pessoas assim não compreendem que a criatura humana, por sua natureza, tem um certo gosto do risco, o qual é um dos elementos para tornar feliz a vida. E afastar o risco da existência de homens que sentem apelo ao risco, significa lhes prejudicar a vida.

O bonito na cena que vimos não é só o avanço do cavaleiro, mas também quando ele dá umas investidas e sai fugindo. A atitude do cavalo e do cavaleiro não é de fugir, dando as costas ao touro e sair correndo. Vão de lado… E um ir de lado procurando tornear o touro, para fincar mais uma “banderilla”! É a imagem da distância psíquica(2).

Olhando-se o toureiro e o cavalo, nota-se que os dois estão numa posição em que não têm medo; não perderam a noção da realidade e só estão procurando dar uma volta com elegância e com distinção, para espetar mais uma farpa!

O homem tem necessidade de lutar

Aí entra outra coisa: o prazer de vibrar um golpe. É um gáudio superior!

Naturalmente, não pode ser um prazer bárbaro. Não é o gosto do homem justo que vibra o golpe em outro homem justo. Mas há ocasiões em que o justo se vê numa luta com o injusto, em que ele tem obrigação de dar o golpe. É belo que o homem, em presença do mal, goste de calcá-lo aos pés. Na sensação de ter dado o golpe que atinge o alvo, o homem se realiza inteiro.

Eu não estou a par dos programas de ensino hoje em dia, mas acho muito provável que nos assuntos escolhidos para composições, os temas do golpe, da força, da luta contra o mal não entram nunca. Julga-se com isso proporcionar uma infância e uma adolescência desanuviada e alegre.

Não é o que conseguem… porque há no homem, concebido com o pecado original, e posto em presença do mal, uma necessidade pessoal de enfrentar riscos, de lutar e de golpear. Bem entendido, na ocasião justa, quando há propósito, não levado por um furor estúpido, mas por altos desígnios da Fé, e de maneira sumamente equilibrada. São impulsos que, quando dominados pela Moral católica e orientados para o bem, dão vazão a tendências da natureza humana que precisam ter a sua vazão! Portanto, está direito. É o lado que me parece esplendoroso dessa luta.

Há um outro aspecto. Todos sabem que se o homem não toma cuidado, facilmente se torna teatral. E o lado fraco do homem é quando ele sofre alguma coisa qualquer e procura chamar a atenção dos outros sobre si. Entretanto, no filme a que acabamos de assistir, três ou quatro homens estiveram deitados no chão, logo após ter entrado na arena um touro particularmente excitado. Mas mantinham-se com dignidade, pois em nenhum momento tiveram uma atitude de drama, esperando que todo mundo estivesse torcendo por eles, como se fossem uns colossos.

Nada disso! Estavam deitados no solo, o que era razoável, e sabiam que o socorro viria. Cada um deles, quando entrou nessa espécie de corrida, sabia que isso podia acontecer. Aconteceu, não deve espantar-se! Agora, aguente com dignidade! Não comece a gritar: “Ai, ai, ai!” Fique deitado, porque o socorro médico vai chegar. Não há a dramaticidade romântica do século XIX.

O latino e o não latino

Existe um dado que caracteriza os latinos em geral, filhos da Península Ibérica — espanhóis e portugueses igualmente —, embora com tonalidades diversas.

Mas falemos antes dos não latinos. Estes possuem uma construção de espírito pela qual têm uma espécie de desconfiança da própria sensibilidade. A razão desconfia que a sensibilidade possa levar a qualquer desordem. E não há tourada de não latino. Eu não conheço…

O não latino entraria na tourada com medo do medo, portanto estrangulando-se para não ter medo. Assim ele avança. É uma coisa digna, mas que toma a sensação como inimiga da razão, e esta sempre dirigindo a sensibilidade com aquela força para evitar que, de repente, a sensação tome conta.

No latino, isso é necessário também, mas de outro modo. Nele a sensação já nasce, muitas vezes, na linha em que vai nascer a razão. Esse conflito da sensação e da razão não se verifica no latino, em quase todas as ocasiões, exceto em algumas…

Vemos que esse toureiro não está prestando atenção em si. Nada existe nele que o faça ter medo de que a coragem lhe pregue uma. Naturalmente, conhece bem o seu ofício, está muito bem treinado; mas todas as sensações que nascem nele são enriquecedoras da razão e tomam uma atitude de impulso, dando a impressão de ser irrefletido, por não se compreender bem como uma coisa se liga à outra.

Eu vi uma vez uma fita, há muitos anos atrás, representando uma história de Júlio Verne. Havia um homem que sobrevoava a Europa num balão. Era um desses ingleses do século XIX, ultra-seguro de si, muito bem vestido, que estava na cestinha do balão, com chapéu coco, bengala e gravata borboleta grande, como se usava naquele tempo.

Ele acabara de sobrevoar a França, com seus castelos maravilhosos, e olhava com certo cuidado, como quem diz: “Castelo, vou te analisar depois, porque se o fizer agora, perco a distância psíquica…”

Depois, o balão desce na Espanha, e o inglês vai andando por uma cidade pequena. Em certo momento, entra numa praça onde se veem mesinhas, cadeiras e uns dançarinos bailando aquelas danças espanholas não muito diferentes das touradas, como, aliás, estas também não são muito diferentes da dança. No meu sentir, há uma inter-relação entre as duas coisas. É um depoimento de um não espanhol que quer muito bem à Espanha.

O visitante senta-se junto a uma das mesinhas, manda vir uma bebida e fica olhando, fleumático e de braços cruzados, aqueles homens e mulheres a dançar. Em certo momento, a animação é tanta que ele se deixa contagiar, a face dele inteira amolece um pouco e uma lágrima sai de um olho. Pouco depois, cessa a dança, ele paga a conta e se levanta pensativo. O inglês procurara o tempo inteiro defender-se contra a sensação, para depois pesar a coisa como era. Nessa cena se mede bem a diferença entre os povos.

Existe até mesmo uma certa analogia entre o modo pelo qual o espanhol cavalga ou dança, e a maneira do espanhol ou português fazer uso da própria palavra. Nós, latinos, vamos falando e não é necessário que seja devagar, para fazê-lo refletidamente. Há uma interação por onde se fala, e a própria palavra produz o pensamento.

Quem visse isto de dentro dos olhos de um inglês diria que entra a irreflexão. Quem observa de dentro da pele de um brasileiro, de um hispano, de um português ou de um espanhol, nota o contrário. Com a pressa daquele cavalo cavalgando, assim também o pensamento percorre aos saltos o tema, nas suas mais variadas diretrizes. E, no fim, tira o chapéu e saúda!

Sou insuspeito para dizer isso, porque costumo afirmar o seguinte: creio que se eu fosse passar seis meses na Alemanha, ao cabo desse tempo estaria tão habituado que me sentiria nascido naquele país. Portanto, por conaturalidade; e na Inglaterra também. Eu gosto muito dos ambientes onde se fala pouco, se pensa antes de falar, se bebe um trago antes de pensar, onde as coisas andam devagar. Eu aprecio e sei entrar dentro desse papel.

Estilo holandês… Lembro-me de um quadro representando o interior de uma casa de pescadores flamengos. Numa cabana estão quatro homens, lobos do mar, conversando… Todos estão quietos e têm nas mãos umas taças com alguma bebida típica. O quadro poderia chamar-se: “Conversação de quatro amigos”.

Eu compreendo e entraria dentro disso. Mas como sei estar também dentro do meu papel natural, entendo as diferenças e vejo as belezas nas obras de Deus. Acho que é uma tolice querer daí fazer com que um caçoe do outro. Não! É preciso que cada um entenda bem como é o jogo, qual é o papel do outro.

É debaixo desse ponto de vista que eu interpreto a tourada.

[A seguir, Dr. Plinio passa a comentar a projeção sobre a Escola Espanhola de Equitação de Viena.]

Alemanha guerreira e Áustria diplomática

Para interpretar esse filme, há que conhecer um pouquinho as linhas gerais da História da Áustria e do seu temperamento.

A Áustria é uma parte do mundo ocupada pelo povo alemão, mas com características próprias. Uma das particularidades do povo alemão é a expansão: tendem a se prolongar para além de suas fronteiras. Basta folhear um livro de História da Alemanha para se perceber as várias tentativas de satisfazer essa tendência.

Quando se quer conquistar a casa de alguém, há duas possibilidades: uma é a força e a outra o jeito. Quanto a este, a pessoa chega à residência e diz, com amabilidade, por exemplo: “Olhe, vim aqui fazer uma conversa.” Senta-se, inicia uma prosa muito agradável, muito gentil… Depois, em última análise, percebe-se que o homem calculou que havia naquela casa uma moça, única herdeira da família, com quem ele se poderia casar. De maneira que, chegando lá e conversando muito amavelmente, o indivíduo acaba casando com a jovem e herdando a casa. Então, sem brigar, e de um modo aveludado, ele ficou dono da casa, como outro que tivesse brigado. É a diplomacia.

Outro modo seria: bater com a coronha do fuzil na porta até que se abra, e dizer: “Olhe aqui, isso tudo está mal arranjado, mal administrado. Eu sei como fazer melhor. Vá para aquele canto! Agora, eu vou organizar…” E organiza superiormente bem.

O que diferencia a Áustria da Alemanha é que esta é mais guerreira, enquanto a primeira é mais diplomática. A diplomacia é propriamente um traço distintivo da Áustria. Não que ela não tenha tido muito bons guerreiros — ela os teve —, mas não é sua nota dominante.

O lema da expansão da dinastia austríaca, a Casa de Habsburg, em latim, numa época em que todo mundo falava essa língua, se reduzia a todas as vogais: “A, E, I, O, U. Austriæ est imperare orbi universo” — Compete à Áustria mandar no mundo inteiro. Para isso há um método que se exprime assim, em latim: “Bella gerant alii, tu felix Austria, nube!” — Que os outros façam guerras à vontade; tu, Áustria feliz, casa-te.

Imperatriz Leopoldina e Dom Pedro I

Na Áustria havia uma família imperial muito numerosa e prolífica, de maneira que sempre existiam príncipes e princesas para casar onde conviesse. E estes eram educados, desde há muito, por um princípio: o membro da Casa d’Áustria não se casa com quem quer, mas acaba querendo bem a pessoa com quem se casou. Quando recebe ordem da diplomacia austríaca, ele deve, pois, aceitar casar-se com quem for, qualquer que seja o sacrifício ou a dificuldade.

Podemos imaginar o que era a heroica e gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1816. Foi nesse ano que D. Pedro I, ainda Príncipe Regente do Reino Unido de Portugal e Brasil, se casou com a Imperatriz Dona Leopoldina. Comparem o Rio com Viena daquela época: era uma diferença fenomenal!

Isso se passou da seguinte forma: em determinado momento, o Rei de Portugal, D. João VI, mandou pedir a mão de uma das filhas do Imperador da Áustria para se casar com o filho dele. Convinha-lhe ter toda essa orla do Atlântico dominada por uma princesa da Casa d’Áustria; e entrar esse sangue na dinastia dos Habsburg era conveniente à Áustria. Por causa disso, era preciso executar. Então, o Imperador da Áustria, Francisco II, chamou Dona Leopoldina e lhe disse: “Recebeste do Príncipe do Brasil, D. Pedro de Alcântara, herdeiro do trono de Portugal, este convite de casamento. Teu pai resolveu que deves ir.” Não houve dúvida: ela veio, viveu e morreu aqui. Adaptou-se à vida no Brasil, entrava na floresta para caçar borboleta, e gostava daqui. Habituou-se.

Uma filha do Imperador da Áustria e Napoleão

Outro caso. Uma irmã dela brincava, em pequena, no quarto de brinquedos dos principezinhos, de enforcar uns bonequinhos chamados “Napoleões”. O grande inimigo da família do pai dela e de seu país era Napoleão.

Quando houve a grande derrota da Áustria, em Austerlitz(3), os austríacos pensavam que Napoleão exigiria condições arrasadoras, porém apresentou-as suaves. Não era próprio àquele homem apresentar nada de suave, mas ele tinha um interesse que explicou: “Faço as condições suaves, contanto que eu receba em casamento a mão de uma das filhas do Imperador da Áustria”.

O Imperador chamou a filha e lhe disse: “Vais casar-te com Napoleão”. Ela se casou com ele, e representou o papel de Imperatriz na perfeição.

Quando Napoleão foi mandado para o exílio, ela retornou a Viena. Depois viveu no Norte da Itália, num pequeno principado que o pai lhe arranjou, e levou a vida que ela quis. Contudo, enquanto existiu o interesse da Casa d’Áustria, ela foi a esposa de Napoleão.

Então essa diplomacia era completada por um grande senso de sacrifício, uma grande disciplina sobre si mesmo, uma grande seriedade. Mas, no lado exterior, muita delicadeza, muita gentileza, muita elegância e muita disciplina.

Carlos V e Filipe II

Dessa forma aconteceu que o maior império reunido sob a direção de um europeu, na História do mundo — maior que o Império Romano —, foi o de Carlos V, Imperador da Áustria. E, depois, Filipe II e os demais reis espanhóis da Casa d’Áustria.

Carlos V era filho de uma princesa espanhola, Joana, a Louca, e de Filipe, o Formoso, Arquiduque da Áustria. Foi Imperador do Sacro Império Romano-Alemão, dominando praticamente, para simplificar, toda a Europa Central, com possessões importantes na Itália; senhor do reino da Espanha, que herdara por parte de mãe; e, com a Espanha, herdou todas as suas colônias.

Filipe II, filho dele, além de ter herdado todas as colônias da Espanha, herdou a coroa de Portugal. Durante algumas gerações, os Imperadores da Casa d’Áustria foram Imperadores do Sacro Império, Reis da Espanha, senhores de todas as colônias espanholas, Reis de Portugal e do Brasil. Portanto, toda a América, desde o México até a Patagônia, do Pacífico ao Atlântico lhes pertencia.

Carlos V dizia com ufania que era o Império onde o sol não se deitava nunca. Como isso foi conseguido? Muita diplomacia, muito jeito e umas tiradas guerreiras de primeira ordem. Em Lepanto, o comandante era D. João d’Áustria, um príncipe espanhol. Assim, vários outros feitos.

O modo de ser nobre do austríaco e do espanhol

É isso que se nota neste filme sobre os cavalos de Viena. Aqueles homens, os cavaleiros, estão numa atitude perfeita, nobre, distinta e elegante. Mas de homens bastante sérios para, sendo necessário, partir para a guerra, e lá serem corajosos.

Eles poderiam ser guerreiros, entretanto vestidos sem uma espada, sem qualquer arma. Entram com solenidade, não numa arena, mas numa sala de palácio, com lustres de cristal lindos e arquibancadas. É uma sala de espetáculos, cujas galerias estão ornadas com flores e faixas vermelhas e brancas, que são as cores da Áustria.

Quando entram, a primeira preocupação é saudar o povo. O público fica logo encantado e bate palmas. Depois disso, começam a dar exercícios sucessivos de disciplina aos cavalos. As atitudes destes, como se estivessem num salão, são próprias a fazer sorrir o homem. O cavalo tem todas as cortesias, gentilezas e atenções de um homem de salão: levanta-se, cavalga com leveza, enfim, faz tudo, no mundo dos cavalos, o que uma pessoa bem educada faria. Reduzir a brutalidade do cavalo ao mimo do salão é uma obra-prima, em certo sentido maior do que formar um homem para ser bem-educado.

Há, por detrás disso, um senso de direção, de sacrifício, uma distância psíquica para poder ser amável, agradável e gentil, que é exatamente próprio a um diplomata, a um bom político e ao homem fino.

Vemos, por aí, como há várias maneiras de ser nobre. Esta é a maneira do austríaco. A do espanhol é ser corajoso. Se deixasse de haver Espanha ou Áustria, a cultura mundial perderia irremediavelmente.

Mais ainda, as duas coisas se compensam. Um mundo só à austríaca ficaria adocicado; um mundo só à espanhola lucraria em ter uma certa doçura. A composição de ambos os aspectos dá uma espécie de plenitude da alma humana, que verdadeiramente alegra.

Portanto, uma coisa completa a outra. É o garbo, a galhardia, a coragem, o desassombro, o esplendor da distância psíquica e da varonilidade que enfrenta o perigo; e, ao mesmo tempo, a disciplina, a gentileza. Essas qualidades se completam e são frutos da civilização cristã.  Detrás de tudo isso está o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e as lágrimas de preço inestimável de Maria. v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1989)

Revista Dr Plinio 192 (Março de 2014)

 

1) Um sobre uma tourada (rejoneo) a cavalo, e outro a respeito da Escola Espanhola de Equitação de Viena.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Na Morávia (hoje parte oriental da República Tcheca), em 1805.

Ascese da Companhia de Jesus – I Vigoroso torreão da Cidade de Deus

Em 1941 celebrou-se o IV centenário da fundação da Companhia de Jesus por Santo Inácio de Loyola. No marco das comemorações pela efeméride, foi Dr. Plinio convidado a falar para um seleto público na Sala João Mendes Júnior, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 22 de maio. E o fez com o eloquente desembaraço de quem conhecia de perto a obra e a fisionomia moral jesuíticas, à luz da grandiosa missão para a qual os filhos de Santo Inácio foram suscitados.

 

Pretendo tratar daquilo que o espírito da Companhia de Jesus tem de mais essencial, íntimo e caracteristicamente seu, isto é, da ascese inaciana.

Num mundo em crise, surge a Companhia de Jesus

O ambiente em que nasceu a Companhia de Jesus é assaz conhecido. Ninguém ignora as profundas comoções de ordem intelectual, artística, social, política e econômica que assinalaram a passagem da Idade Média para os Tempos Modernos. As novas concepções religiosas, pretendendo proclamar a independência do homem perante a autoridade infalível da Igreja, sujeitaram a doutrina bíblica aos caprichos da livre-interpretação. E, através dessa fenda imensa, aberta na armadura psicológica da Europa católica, não houve erro nem rebeldia que não se mostrassem à luz do sol, ataviando-se com os ilusórios enfeites de uma teologia ou de uma filosofia errônea. Seria, entretanto, manifestar singular superficialidade de espírito, pretender que o surto tumultuário de idéias subversivas, ocorrido na Renascença, constituísse um movimento de completa anarquia doutrinária. No entrechoque dos pensamentos diversos e dos extremismos que entravam em colisão, havia uma nota constante e uniforme, que atraía o desejo dos reis, príncipes, burgueses e plebeus, para uma ordem de coisas que mais abertamente lisonjeasse seu amor-próprio e suas vantagens indivi­duais. O mesmo surto de egoísmo que levava os soberanos a favorecer os propugnadores da monarquia absoluta, levava os burgueses a investir contra as desigualdades que beneficiavam a aristocracia, e a baixa plebe a se revoltar contra a diferença de fortunas.

À ordem política e social da Idade Média, caracterizada pela distribuição equitativa dos deve­res e direitos entre as várias ordens e classes do corpo social, sucedia uma ruptura profunda, em que cada classe ou indivíduo optava pela doutrina unilateral que mais abertamente ­favorecesse seus interesses. No mais profundo do homem, a causa das desordens se estabelecera. O mesmo non serviam orgulhoso, que explodira nas fileiras angélicas, se manifestava agora na Terra. A crise da pseudo-Reforma e da Renascença não foi meramente especulativa. Os debates a que ela assistiu não foram simples entrechoques de idéias. Havia na Renascença uma crise de mentalidade, e não só na inteligência, mas também na vontade o veneno penetrara.

O modo de agir da Contra-Reforma

Evidentemente, a Contra-Reforma deveria solucionar esta crise de duas maneiras: em primeiro lugar, tonificando e restaurando o vigor das convicções católicas, nos países atingidos pela influência paganizante e naturalista da Renascença; além disso, coordenando os recursos de todas essas nações para conter as investidas da heresia, e, quiçá, eliminá-la inteiramente.

A terrível parábola do Evangelho do sal insípido que não tem outra serventia, senão o ser atirado pela janela e calcado aos pés pelos transeuntes [Mt 5, 13], não se aplica exclusivamente ao cumprimento dos deveres do clero. Quando em um país as convicções, os sentimentos, o teor de vida, as camadas mais profundas da personalidade como da vida social, estão impregnadas de Catolicismo autêntico e sem restrições, não há heresia que prevaleça nem erro que logre infiltrar-se. Pelo contrário, se a debilidade das convicções, a superficialidade dos sentimentos, a incoerência da vida social com a doutrina da Igreja, fazem de um país outrora católico uma coletividade apenas relativamente católica, não há perigo que não se possa recear para ele no dia de amanhã.

O trabalho de tonificação, radicalização, restauração, revigoramento do espírito da Igreja nos países católicos se impunha, portanto, para Inácio e todos os paladinos da Contra-Reforma, como a grande condição essencial de qualquer triunfo sobre a heresia.

Com isto, o espírito da Companhia de Jesus estava definido. Na Santa Igreja de Deus, naquela época como hoje, não faltavam instituições admiráveis que, produzindo os mais autênticos frutos de contemplação e apostolado, constituíam a alegria das almas santas e o terror dos homens pérfidos. A Companhia não vinha, própria e essencialmente, fazer uma obra diferente. Estudos, colégios, congregações, missões, tudo isto não é exatamente a finalidade da obra de Santo Inácio, mas apenas seus principais e mais constantes meios de ação, quites para ela se valer também de quaisquer outros recursos lícitos, desde que úteis à maior glória de Deus. O programa próprio da Companhia de Jesus, sua finalidade suprema que, insistimos, não é exclusivamente dela, consiste essencialmente nesse empenho pela autenticidade da vida católica nos países e nos ambientes católicos, não só pelo bem que daí decorre, como ainda para a dilatação generosa e invencível desse sadio, autêntico e sólido catolicismo, nas regiões assoladas pela heresia ou pelo paganismo.

Esposo místico da dama Ortodoxia

A Companhia teria falhado em sua missão se tivesse apenas promovido obras geralmente compreendidas e aplaudidas, afirmado as verdades por todos aceitas e apregoadas, ou recomendado os preceitos comumente observados e cumpridos. Por isso ela se esmerou sobretudo em promover, diretamente ou através de terceiros, as obras que o espírito do mundo não pode nem compreender nem aplaudir; defender, com amor particularmente ardente e insistência especialmente apostólica, as verdades que o orgulho humano mais facilmente nega ou deturpa; inculcar o cumprimento dos deveres mais freqüentemente sujeitos à revolta da carne ou da cobiça. Na Cidade de Deus, não veio a Companhia para ser somente um novo palácio, e sim ocupar lugar entre as obras de vanguarda, sendo mais um vigoroso bastião na muralha fortíssima, contra a qual se devem quebrar todas as investidas da cidade do demônio. São Francisco de Assis, sem ter nem pretender o monopólio — aliás, austero — da renúncia às riquezas, foi o trovador e o esposo místico da dama Pobreza. Santo Inácio de Loyola, sem ter nem pretender o monopólio da verdade, foi o esposo místico da dama Ortodoxia.

Grande sentinela dos perigos que ameaçam a Igreja

Evidentemente, não quer isto dizer que a Companhia de Jesus tenha exclusividade em tão alta e nobre tarefa. O jesuíta não possui o privilégio da ortodoxia, como o franciscano não tem o da pobreza, o beneditino o da piedade, o trapista o do recolhimento, ou o dominicano o da ciência. Assim como cada uma dessas Ordens tem sua missão própria, sua faceta mais saliente, sua espiritualidade peculiar, e serve de meio providencial para a manifestação de especiais grandezas e bondades de Deus, a Companhia de Jesus é destinada a ser a grande sentinela dos perigos, mormente daqueles que ninguém ainda vê; o grande remédio dos males, especialmente daqueles que ainda ninguém discerne; o martelo das heresias, sobretudo daquelas cujo murmúrio incipiente ou cuja germinação imperceptível, escapa aos olhos da maior parte dos observadores. Contra a malícia humana e o espírito das trevas, que procuram desnaturar ou falsear nos homens os conceitos das verdades que ainda não conseguiram arrancar, a Companhia de Jesus é o vigia avançado, a muralha resistente, a torre elevada, que permite discernir de longe o inimigo, e quebrar o ímpeto de suas primeiras e mais fortes investidas.

Sendo essa a missão do jesuíta, tal deverá ser sua mentalidade.

(Continua em próximo artigo.)

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio (Março de 2007)

(Extraído dos “Anais do IV centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)