A beleza e a harmonia

A majestade real resplandeceu num dos atos mais belos da história da Inglaterra quando o Rei Santo Eduardo, cumprindo o desejo do Papa, conduziu em seus ombros um mendigo ao qual curou e uma terrível doença.  Analisando o fato, Dr. Plinio nos aponta, com profundidade, a beleza do princípio de ordem e harmonia que nele está refletido.

Num trecho do livro “La Baja Edad Media”(1), de autoria de Cristopher Bruck, Professor de História Medieval da Universidade de Liverpool, está descrito o seguinte fato da vida de Santo Eduardo, a respeito do qual eu gostaria de fazer algumas considerações.

A imagem medieval da pobreza, a realeza e a vontade divina se ilustram na vida do Rei Eduardo, o Confessor, do século XII.

Essa história narra que Gila Michael, um irlandês, foi a Roma em busca de remédio, mas São Pedro lhe disse que sanaria o mal se o Rei Eduardo da Inglaterra o levasse sobre os ombros desde a Westminster Hall até a Abadia de Westminster.

São Pedro, neste contexto, quer dizer o Papa.

O virtuoso monarca consentiu. Pelo caminho, o intumescido irlandês sentiu que se afrouxavam os seus nervos e suas pernas se distendiam.

O sangue de suas chagas corria pelos trajes reais, mas o Rei o levou até o altar da Abadia. Ali chegando, o pobre doente ficou curado; começou a andar e pendurou as muletas na Abadia, como sinal do milagre.

“Basta o Rei carregar-te aos ombros”

Como lemos acima, um homem vítima de grave e dolorosa enfermidade, a qual fazia com que seus nervos se contraíssem, produzindo, com isso, feridas que dificultavam extremamente seus movimentos. Certo dia, esse homem conseguiu que o levassem até o Papa para que lhe pedisse a cura. Este respondeu ao enfermo que ele seria curado, mas para isso era necessário que o Rei da Inglaterra o pusesse sobre os ombros e o levasse da grande sala de Westminster até a Abadia, onde por fim encontraria a cura do mal que o atormentava.

Voltando à Inglaterra, o pobre homem teve certamente de percorrer longos trajetos, por estradas onde a todo momento estava em risco de cair em mãos de salteadores. Por outro lado, quanto bom trato e hospitalidade não terá o viajante recebido nos conventos pelos quais passava. Talvez as pessoas generosas lhe ofertassem esmolas para assim poder prosseguir a aventura que consistia tal viagem.

A majestade e a repugnância se encontram

Tendo chegado, por fim, à Inglaterra, o doente dirigi-se ao palácio real. Alegando trazer uma mensagem pontifícia, ele conseguiu comparecer à presença do soberano. Imagine-se como terá sido a cena daquele homem chegando diante do Rei, o qual provavelmente se encontrava em seu trono, cingindo o diadema e as vestes reais, resplandecente de majestade, mas ao mesmo tempo de bondade e afabilidade.

— O que quer? Interroga-lhe o Rei.
— Senhor, eu venho da parte do Papa.
— Então, diga-me do que se trata.
— Ele pede que vós me cureis.
— Mas como poderei fazer isso?
— É ordem do Papa…

Quanto contraste nesta cena! De um lado, o pobre homem, provavelmente um mendigo, coberto de chagas sangrentas e repugnantes; do outro lado, o Rei, saudável, presumivelmente jovem e cheio de majestade.

O recado que é transmitido consiste na manifestação do desejo do Papa de que esse grande monarca, glorioso chefe da nação, carregue ao pescoço aquele mendigo chagado e purulento, apresentando-se nessa postura humilhante pelas ruas, ao longo de todo o percurso.

O santo soberano atende o pedido. E, na pequena Londres de então, o Rei sai de seu palácio, enquanto as sentinelas se perfilam e um arauto toca trombeta avisando que Sua Majestade vai passar. Provavelmente, nas ruazinhas estreitas da cidade de Londres, o povo se espanta com a saída do Rei, sobretudo porque ele não está, como de costume, montado em seu magnífico corcel, nem tampouco numa carruagem, mas está a pé, sozinho, sem guardas nem tropas e fazendo-se montar por aquele indivíduo.

Dos mais belos fatos da monarquia inglesa

Naquela cidade pequena, onde todo mundo se conhece, certamente o povo deve ter comentado: Logo Gila Michael, esse mendigo miserável, carregado assim pelo Rei! Nosso augusto Rei, Santo Eduardo, símbolo da Inglaterra e da virtude da Igreja Católica, ele tão majestoso, digno e altivo como um lírio, trazendo um mendigo montado sobre si! Que coisa extravagante!”

Enquanto isso, tanto o mendigo quanto o Rei vão rezando, e pedindo a Nossa Senhora a esperada cura.

Atrás do Rei o povo atônito forma um cortejo que caminha rumo à Abadia de Westminster, a fim de ver qual será o desfecho daquela curiosa cena.

No caminho, porém, as vestes reais vão se enchendo de pus e sangue que começam a verter das chagas daquele homem, o qual ao mesmo tempo começa a sentir que algo nele está se dando. Ao entrar na Abadia, em meio à expectativa geral, talvez devido ao fato de o povo pressentir que uma das mais belas cenas da história daquele recinto estava prestes a acontecer, o monarca dirige-se para junto do altar, lá tira o precioso fardo de seus ombros e o põe no chão. Então, o homem, que montando no Rei, vinha trazendo nas mãos suas muletas, larga-as e começa a andar, pois suas chagas estavam inteiramente secas e ele miraculosamente curado.

Por outro lado, o Rei está com seus trajes gloriosamente cobertos de sangue e pus. Enquanto se operou por seu intermédio um grande milagre através do qual a majestade real resplandeceu esplendorosamente num dos atos mais belos de toda a história da monarquia inglesa.

Belo como fato ou como lenda

Alguém poderia levantar dúvida sobre a historicidade desse fato. A meu ver, isto não tem grande importância, pois ainda que venha a ser um mito ou uma lenda, o importante é ter havido numa determinada época multidões desejosas de que as coisas tivessem se passado deste modo; caso contrário, nem mesmo seriam capazes de inventar algo assim.

Pode tratar-se de uma lenda baseada num fato verídico, o qual foi glosado e embelezado para atender mais plenamente a apetência das pessoas, porém, o que importa é ter existido um povo que tivesse o estado de espírito tendente a se entusiasmar com a possibilidade das coisas se passarem desta forma.

Como vibram de entusiasmo por realidades diferentes as pobres multidões hodiernas, infelizmente tão massificadas, materializadas e quase aniquiladas!

Este episódio é indiscutivelmente belo, porém é necessário fazermos uma análise a fim de que a beleza que nele se encontra não permaneça apenas como convicção, mas seja fundada no raciocínio, para desta forma podermos compreender mais profundamente o esplendor da Igreja Católica, sem a qual tais fatos seriam impossíveis, seriam impensáveis.

A espera só aos fortes é pedida

O primeiro aspecto encontra-se na Fé daquele homem, que não hesita em ir candidamente pedir ao Papa um milagre. Por outro lado, também, quanto prestígio gozava o Papado naquele tempo! Pois, o enfermo foi até ele com certeza de que seria curado.

Como a Providência tratou a Fé desse homem?

Poderia tê-lo curado logo, mas não o fez. Pelo contrário, inspirou ao Sumo Pontífice de enviá-lo de volta à Inglaterra para lá ser miraculado. Tal ato de confiança Nossa Senhora pede aos fortes. Enquanto aos débeis na Fé, a maior parte das vezes Ela atende imediatamente.

Outro aspecto de beleza é a certeza do pobre homem de que o Rei Eduardo o iria curar. Caso fosse rabugento poderia pensar: “Por que fui até Roma se eu tinha tão perto de mim quem me podia curar?” Mas, não possuindo esse defeito, ele aceitou que Nossa Senhora dispusesse dele como quisesse, indo ter com o Rei cheio de tranquilidade e uma Fé que move montanhas.

Um rei “cavalgado” por um mendigo

Chegando à Inglaterra, o mendigo pede a cura apresentando ao Rei a condição do Papa para alcançar o milagre. Era de que ele “cavalgasse” o Rei.

A condição não poderia parecer mais extravagante, pois o Rei podia curar o mendigo ali na mesma hora. Então, por que deixar-se cavalgar por um doente como aquele? Por outro lado, tratando-se de irem até a Abadia de Westminster, não podiam os dois para lá se dirigir sentados numa carruagem?

Aquele pedido do Papa, o qual no fundo manifestava o desejo da Providência, parece ser a inversão de toda a ordem, pois Deus criou os reis para governar e não para serem montados por mendigos. Isso é uma desordem?

Não, a ordem encontra-se profundamente presente nesse fato. Por quê?

A grandeza de se fazer pequeno

Trata-se do seguinte: É lindo o fato de o poder público dominar, é verdadeiramente maravilhoso e nobre que os inferiores prestem aos detentores deste poder o respeito que lhes é devido. Sobretudo quando se trata de alguém que reconhece a origem divina de seu poder.

Mas, é também esplendoroso que, em certas ocasiões, o maior, às vezes heroicamente, seja pai, amparo e auxílio do menor. Por isso, é bonito que um rei, homem posto no mais alto píncaro da hierarquia social, se lembre de que ele é homem como o outro, pois de certa forma todos são iguais. São desiguais apenas em seus acidentes, os quais por vezes são de uma importância muito grande, mas, em sua essência, o rei é homem como o outro.

Por causa disso, o maior deve ser capaz de servir o menor, respeitando assim a qualidade de homem que ambos têm em comum.

Estes são os dois aspectos lindíssimos desse fato: um pobre resignado, mas que com essa naturalidade e Fé pede ao Rei para que o leve sobre os ombros; um Rei que reconhece a altura de sua realeza, mas é capaz de dizer: “Meu filho, pois não. Suba e vamos juntos pedir o milagre que você necessita”.

A maravilhosa harmonia das desigualdades

Há neste episódio uma harmonia que corresponde à lei profunda das harmonias, a qual admite que os extremos se toquem: é belo ver a realeza tocar na mendicância e, assim, ambas se unirem harmoniosamente.

É belo, portanto, ver ambas se aproximarem do altar junto ao qual está Deus que se encanta ao ver o esplendor daquela obra da qual Ele próprio é Autor. Ele criou o mendigo e também o rei. Ele quis que no mundo houvesse realeza, mas também pobreza, sofrimento, dor, doença, mendicância. E em tudo isso Ele pôs uma harmonia perfeita.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/6/1974)

 

1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor, Barcelona, 1968, p. 32.

Santa Margarida Maria

Algumas pinturas retratam as aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque: Ele se dirige à vidente numa expressão de bondade, comprazimento e misericórdia insondáveis. Ela, por sua vez, naturalmente nimbada de enlevo e adoração.

Ah! Se pudéssemos ouvi-Lo manifestando aos homens o infinito amor de seu Coração Sagrado por nós! Se nos fosse dado conhecer o timbre de sua voz, ensinando como Divino Mestre: repassado de clareza, sabedoria, profundidade e horizontes extraordinários, ao lado de uma simplicidade desconcertante! Como gostaríamos de ali estar, ao lado de Santa Margarida Maria, adorando-O com todas as veras de nossa alma!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Castelo de La Brède, beleza e encanto

Força e placidez, longe de se excluírem, harmonizam-se perfeitamente nesta construção iniciada no século XIV, a respeito da qual Dr. Plinio tece interessantes comentários.

 

Vamos fazer uma exposição de alguma coisa da Europa, que desperte o senso do maravilhoso, do admirável, do estupendo, do esplêndido, porque a apetência das coisas maravilhosas é um elemento fundamental para o desenvolvimento de uma verdadeira civilização, desde que esse maravilhoso seja reto e bom.

Pequena fortaleza maravilhosa

Temos aqui uma espécie de micro-maravilhoso, cuja maravilha consiste precisamente em ser micro. Trata-se de um pequeno castelo francês, não de grande luxo. É uma habitação comum, mas que possui as proporções de um castelo. E tem uma certa importância histórica porque é o chamado Castelo de La Brède, aonde morou  o malfazejo e célebre Montesquieu(1). Está situado na Gironde, nas proximidades de Bordeaux.

Para compreendermos a arquitetura um pouco singular do castelo, nota-se que ele se compõe de um corpo grande e, junto dele, outras construções menores.

O castelo possui um sistema de defesa na hipótese de um ataque. Pelo traçado do lago, percebe-se que ele é artificial, ou natural, mas que foi muito retificado em seus contornos, para que pudesse ser utilizado de fosso para o castelo. Todas as janelas do castelo ficam a uma considerável altura da superfície das águas. De maneira que ao se encostar um barco com homens armados, estes facilmente podem ser atingidos pelos defensores postados nas janelas mais altas. E o ataque direto ao castelo, para quem queira atingi-lo por água, fica difícil.

Então o recurso é atacá-lo por terra, tentando entrar pela porta, mas encontrarão várias dificuldades, pois é uma verdadeira fortaleza. Suspendendo-se a ponte levadiça, a porta é quase inacessível.

Uma moldura de irrealidade

Pode-se dizer que é um castelo estritamente funcional, porque todas as suas partes foram calculadas para uma determinada função militar muito definida. Apesar de ele ser estritamente funcional, não lhe faltam uma grande beleza e um grande encanto. E isso não obstante o fato de se tratar de uma construção pobre.

De onde vem essa beleza e esse encanto? Qual é o valor artístico desse castelo, construído manifestamente com a preocupação principal de ser uma fortaleza e não um bonito edifício?

Tenho a impressão de que o primeiro elemento de beleza é dado pelas águas. Tudo o que fica à beira da água sobe de valor. Se imaginássemos esse castelo colocado no meio do campo, ele perderia enormemente. Mas a água lhe dá uma moldura de irrealidade. O céu e diversos aspectos do castelo nela se refletem, e com esta proximidade da água toda a arquitetura se nobilita. Há um modo digno e plácido do castelo dominar a água que lhe dá uma espécie de distinção aristocrática tranquila. E por esta forma o castelo sai da linha do vulgar.

De outro lado, o que é bonito nele é o contorno da ilha. Se bem que não seja um contorno regular, há uma espécie de suavidade, de inopinado, de doçura nessa forma. E o que o telhado tem de um pouco achatado é vantajosamente compensado pelas torres que de um lado e de outro se levantam.

A principal das torres parece dominar todo o castelo com a sua massa; depois há outras menores que fazem cortejo a ela e um telhado que dá a impressão de ser da capela do castelo, encastoada no corpo da construção.

Fica-se agradavelmente surpreendido por essas formas tão diferentes. Há uma torre que tem um quê de indefinivelmente digno e plácido, apesar de seu ar de fortificação. Essa torre é flanqueada por duas outras torres menores, que lhe dão como que um apoio, e se perde nas águas distanciadas do resto. E muito inopinadamente existe um quadrilátero, realçado por uma espécie de arbusto no centro de um grande gramado verde, com a beleza dos gramados europeus.

Harmonia entre nobreza e povo

O conjunto dá um ar simultâneo de calma, dignidade, altaneria, distinção, harmonia, mas ao mesmo tempo de fantasia com esses corpos de edifício que distraem a vista e agradavelmente fixam o olhar sobre a massa do edifício e o lago. É o charme, o encanto do pequeno castelo e da vida da pequena nobreza já mais próxima ao povo. Nobreza que existe na familiaridade dos homens do trabalho manual, e que constitui o ponto de apoio da verdadeira aristocracia na massa da nação. Nobreza que conseguiu, em algumas regiões da França, levantar os camponeses contra a Revolução Francesa e produzir a “chouannerie”(2). E esse tipo de castelo exprime isso.

De que gênero era a vida que aqui se levava?

Em geral, as famílias desse tipo eram numerosas. O filho mais velho ficava habitando no castelo e exercia ao mesmo tempo alguns poderes governativos sobre seus súditos, e como o castelo era a sede de uma propriedade rural grande, ele se dedicava à exploração da agricultura e da criação. Isso é um resto de feudalismo, que é o regime político, social e econômico no qual esse tipo de construção foi concebido.

Um nobre dessa categoria, de vez em quando, frequentava a corte real, aonde, conforme o protocolo, ele tinha um lugar, embora modesto, mas definido em razão de sua posição e de seu nascimento. Em geral, a sua vida era pacífica. Quando moço, ele servia no exército e, tornando-se um pouco mais maduro, se retirava para as suas terras e entregava-se no resto de sua vida à agricultura, à criação, a esse pequeno governo local, à educação de seus filhos, ao convívio com sua esposa e, de vez em quando, ia ver o rei em Paris. Era essa a vida calma e operosa de um castelão desses tempos.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 4/9/1967)

 

1) Charles de Montesquieu (1689-1755), um dos principais teóricos do liberalismo político; cujas ideias influenciaram diversos líderes da Revolução Francesa.

2) Movimento armado, de Jean Chouan e seus seguidores camponeses, que se opôs heroicamente à Revolução Francesa.

Hífen gaudioso

Sempre se concebeu a ponte como algo de nobre e belo, digno de possuir fisionomia e características próprias. Ela é uma obra da inteligência e da habilidade humanas, construída para vencer as  dificuldades e os entraves da natureza, impondo assim a vitória do rei da criação sobre aquilo que o desafia.

A ponte é um hífen entre as duas partes de um caminho interrompido pelo precipício, pelo vale, por um rio… Traço de união, ufana-se de não pertencer a nenhum dos lados que ela aproxima, ciosa de sua individualidade e de sua nobreza. Seja a mais elementar, estendida numa trilha de roça, seja a mais monumental, projetando-se acima de águas famosas, ela possui peculiaridades que a diferenciam do restante do percurso.

Pensemos na célebre ponte da Torre de Londres, sobre o Tamisa. Em determinados momentos, seu leito se divide e se ergue para dar passagem aos navios que, numerosos, sulcam o rio a serviço  de um intenso comércio. Em seguida, ela se fecha, permitindo a fluência do trânsito da grande capital inglesa. Quer na sua posição horizontal, que nos transmite a ideia de firmeza, de solidez e  força; quer quando suas partes se levantam lenta e solenemente, como se ignorassem a vida ao seu redor, e o rio começa a ser navegado diante da majestosa indiferença (ligeiramente indignada e  sentida) dos batentes que se abrem — a ponte mantém aquele semblante próprio, fotografado e filmado de todos os modos possíveis por turistas do mundo inteiro.

Há pontes lindas em outro gênero. Uma delas, a que transpõe o Rio Tibre, em Roma, e conduz ao Castelo de Sant’Ângelo. Esta antiga construção abrigava outrora os restos mortais do Imperador Adriano. Os despojos do  César se desfizeram, e no período medieval essa mole se transformou no castelo fortificado onde as tropas dos Pontífices se acantonavam para a defesa da Cidade  Eterna.

A ponte, monumental, muito à maneira italiana é adornada com imagens de Santos e de Anjos, e no passado era favorecida por indulgências: o fiel que a atravessasse  recitando determinadas orações junto a cada imagem, beneficiava-se de tais e tais privilégios concedidos pelos Papas. Assim, sobre as águas do velho Tibre romano que os imperadores contemplaram, os Anjos lançam  uma fabulosa ponte espiritual, significando que a intercessão deles ajuda nossas almas a vencerem as distâncias entre a Terra e o Céu…

Há, também, pontes de uma simplicidade maravilhosa. Não a singeleza fria, mal-humorada e tola, mas aquela feita de equilíbrio, distinção, e de beleza presentes apenas na forma dos seus arcos. Entretanto, parecem nos dizer coisas inenarráveis. Exemplo frisante, o Pont-Neuf, sobre o Rio Sena, em Paris. Construído por Henrique IV, não é mais que um conjunto de arcos lembrando um pouco ogivas, mas tão calculados, tão medidos na sua simplicidade que, tempo eu tivesse, passaria uma tarde inteira contemplando a sua beleza se refletindo nas prestigiosas águas do Sena.

Lembra-me, ainda, a Ponte dos Suspiros, em Veneza. Não reúne dois pedaços de estrada, mas dois corredores de palácios. Tão simples! Tão pequena! Quase irrisória em comparação com os gigantescos viadutos modernos. Porém, ao contrário destes, ela é um capítulo da história da alma humana. Nem precisaria ser autêntico o fato de que passavam por ela os condenados à morte na Sereníssima República. Pois só a ideia de se chamar Ponte dos Suspiros a reveste de uma beleza ímpar. Como é nobre suspirar numa ponte, olhando para a água! Como é lindo! Que melhor lugar para um derradeiro gemido, um último murmúrio ouvido pelas águas que pranteiam a desdita de quem caminha para o suplício?

A relação ponte-água nos faz pensar… A ponte se espelha no rio que passa sob ela. Pode-se dizer que a alegria deste é fluir por debaixo da ponte, recolher a imagem dela e levá-la muito além. É a realização dele: passou pela ponte tal.

Mas, como é verdade o contrário! Imagine-se uma ponte a cujos pés as águas tenham deixado de correr, desviadas que foram para alguma represa. Desolada, envolta por uma triste solidão, a ponte vê seus fundamentos secos, percebe o vazio junto a ela: sua imagem já não se reflete em nada, não tem mais brilho, ela está seca, esturricada no ar. De súbito, abrem-se as comportas, a água  começa a circular novamente… E da ponte, revigorada, rejuvenescida, parte uma exclamação de gáudio!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Decisão, perseverança e reflexão

Em Santa Teresa de Jesus vemos qualidades suavemente justapostas, com algo de harmonicamente dissonante entre a ação e a contemplação, altivez e misericórdia, determinação e bondade, que denotam e constituem uma imensa personalidade. Realmente, ela foi uma das maiores figuras femininas de toda a História. Tão extraordinária que mereceu ser proclamada Doutora da Igreja.

Seu olhar e seu semblante parecem dizer: “Eu só tenho Aquele a Quem admiro, e não temo absolutamente ninguém ou nada que me possa acontecer, porque Ele é tudo e vence tudo”. É a própria expressão da decisão, perseverança e reflexão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22/7/1975 e 6/6/1980)

Cidade florida, alegre e risonha – I

Na época medieval, a plebe levava uma vida serena, aconchegante e jubilosa, buscando o belo até nas pequenas coisas, como demonstram as construções existentes na cidade alemã de Rothenburg.

 

A cidade de Rothenburg foi construída na Idade Média e reflete inteiramente o espírito daquela época, cuja sociedade se dividia em três classes.

A mais alta era o clero, composta por homens consagrados a Deus e integra a estrutura de pessoas da Igreja Católica, Apostólica e Romana.

A segunda classe era a nobreza, a dos guerreiros, dos governadores de terras agrícolas no interior do país que, em caso de guerra, tinham a obrigação de combater. Serviço militar obrigatório só para os nobres, para os plebeus era muito restrito.

Depois, a plebe, cuja tarefa consistia em fazer a produção econômica do país.

Pequena burguesia e trabalhadores manuais

Habitualmente, quando ouvimos falar em Idade Média, pensamos em catedrais suntuosas, castelos magníficos, e temos razão, porque ela viu a construção e o acabamento de catedrais e de castelos incomparáveis. Mas nos perguntamos como seria a vida do pequeno burguês e do trabalhador manual. E a cidade de Rothenburg ob der Tauber nos dá uma resposta palpável a essa questão.

Tauber é o nome de um riozinho que banha essa cidade, a qual era fortificada porque poderia haver incursões de inimigos que quisessem tomá-la. E neste caso, os burgueses e os plebeus, morando na cidade, precisavam defendê-la. Então, eles tinham uma muralha que cercava a cidade, absolutamente fortificada como uma fortaleza medieval.

Mas dentro, pelo contrário, é uma cidade de trabalho, onde percebemos a vida da pequena burguesia ou do trabalhador manual. Naturalmente, as construções mais bonitas eram da pequena burguesia. Grande burguesia, como que não havia lá.

Preocupação de bom gosto e de arte em todas as coisas

Cada uma dessas casas não era residência de uma única família, mas constituíam os prédios de apartamento daquele tempo. Nos dois andares inferiores moravam pessoas mais abastadas, pois, como não havia elevador naquele tempo, para se chegar ao andar superior era necessário subir uma grande escadaria; e o aluguel ali era mais barato.

O prédio que vemos numa das fotografias é indiscutivelmente bonito. Não tem a beleza de um castelo, mas é digno, inteiramente diferente do que se poderia imaginar de uma favela ou um bairro operário de qualquer cidade moderna.

Há uma ideia de solidez, e percebe-se o aconchego que se tem em seu interior, o prazer de estar em uma casa como essa. Tem-se a impressão de que ali se come e se descansa bem, nos dias de feriado dormita-se bem… E na Idade Média o número de feriados era colossal!

Por exemplo, todas ou quase todas as festividades dos Apóstolos eram dias santos, e inúmeros outros, como festas de Nossa Senhora e de diversos santos da Igreja, os padroeiros de cada lugar, os Santos Anjos; em todas essas comemorações era decretado o feriado. Em dias de trabalho, trabalhava-se muito, nos dias de descanso descansava-se muito, e os havia em grande quantidade.

Nota-se nessas casas uma coloração discreta, porém não triste nem lúgubre, é uma cor agradável. Há uma preocupação de bom gosto e de arte em tudo.

As torres, o relógio, a muralha e a porta da cidade

Mais difícil de compreender para a ótica de hoje em dia talvez sejam essas duas torres. Não são torres de igreja, pois não se trata de construções religiosas, mas sim civis. Qual a razão de ser dessas torres?

Em geral é uma razão militar. A torre é construída de maneira que, dos mais altos andares, os guardas possam ver toda a circunvizinhança. Porque se algum exército está se aproximando, eles mandam tocar os sinos de todas as igrejas para acordar os cidadãos, que devem ir correndo até a muralha a fim de defender a cidade.

Com o tempo, isso foi se tornando mais raro e, no fim da Idade Média, constituiu-se o hábito de não mais fechar a porta da muralha à noite, e de construir as cidades sem muralhas, porque as condições da guerra mudaram e os combates entre cidades também foram desaparecendo.

Mas na Idade Média havia a preocupação de poupar espaço porque, como a cidade tinha que ficar dentro da muralha, com o passar do tempo iam se acumulando as construções umas em cima das outras. É a razão pela qual começaram a edificar prédios altos. E as torres eram construídas de maneira a deixar passar o pessoal em baixo, para ganhar espaço.

O relógio da torre é ornado, está colocado numa altura conveniente, e seu desenho é bonito. Naquele tempo não se usava ainda relógio-pulseira, nem de bolso. Portanto, era muito útil e prático haver vários relógios como esse na cidade para os cidadãos saberem as horas.

Na entrada da cidade, o aspecto fortaleza está mais acentuado. A porta deveria ter batentes de madeira grandes e fortes. E, para maior garantia, havia mais adiante uma segunda porta. De maneira que, se o inimigo conseguisse arrombar a primeira, ele atravessava um espaço pequeno e teria que recomeçar a batalha na segunda.

Os dois torreões no alto e o espaço coberto entre as duas torres têm um sentido muito prático. Por ali os defensores da cidade jogavam flechas, pedras, tachos com água ou óleo fervente para queimar os invasores.

Agora, deixemos de lado o aspecto prático e consideremos o estético. Essas torres e muralhas eram feitas com as pedras encontradas nas pedreiras da região. Como essas pedras colocadas ali dão um aspecto bonito! E como a linha geral dessa construção e da porta é bela!

Os dois torreões fazem uma harmonia; projetados para a frente eles ficam bonitinhos, leves, engraçadinhos, e dão um aspecto de simetria e de solidez à linda porta arqueada que forma um arco equilibrado e forte, cheio de reflexão. Mas atrás dele se levanta, como um braço, uma torre tão grande e tão majestosa que dá a impressão, diante do adversário, de um soldado de infantaria, de joelhos, esperando na estacada o ataque, enquanto o senhor feudal está em pé, armado de corpo inteiro para lutar.

Com o desaparecimento das guerras feudais, a vida se tornou mais amena. Então, foram-se abrindo portas menores para, tendo de passar alguma senhora idosa com roupa para lavar no rio da cidade, não serem obrigados a abrir portas pesadíssimas. Contudo, essas portinholas eram ainda muito fortificadas.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/11/1986)

 

Por que cultuamos as relíquias?

Reproduzimos a seguir uma valiosa exposição de Dr. Plinio sobre a tradição de prestar culto às relíquias dos santos, prática que ele prezava sobremodo e cumpria diariamente.

 

A palavra relíquia vem do latim “reliquus” (restante) ou “relinquere” (deixar). Relíquias são, pois, as coisas que restaram ou foram deixadas. Nesse sentido, a relíquia de um santo é aquilo que dele restou ou o que ele deixou.

Como se sabe, a Igreja distingue entre duas espécies de relíquias: as diretas e as indiretas.

A relíquia direta provém do corpo, dos ossos ou das cinzas de um santo. A relíquia indireta é algo que nele foi tocado. Da relíquia indireta temos ainda duas espécies: ou são os objetos com os quais o santo teve contato em vida, ou são coisas que se tocam nos corpos de santos depois de mortos.

Acontece às vezes ouvirmos falar de uma quantidade imensa de relíquias indiretas, e alguns objetam dizendo que os santos não poderiam ter tocado em tantas coisas. Na realidade, eles não o fizeram, mas certas coisas foram encostadas nos ossos deles ou em suas relíquias diretas, para serem distribuídas.

Fundamentação do culto às relíquias

O fundamento do culto às relíquias indiretas é algo um tanto difícil de exprimir, mas cujo valor é intuitivo e vem do seguinte: quando uma pessoa toca em alguma coisa, algo dessa pessoa passa para aquilo que foi tocado. Por exemplo, uma cadeira na qual Napoleão se sentou quando esteve em determinado lugar. Algo da dignidade, da importância e mesmo dos defeitos de Napoleão passa para a cadeira.

Teríamos uma ideia ainda melhor disso, se nos oferecessem de presente a corda com que Judas se enforcou. Em si, é uma corda como qualquer outra. Dir-se-ia apenas estar muito velha, com cerca de dois mil anos. Se estivesse em razoável estado de conservação, daria até para amarrar um cachorro. Contudo, nem quereríamos tocar nela. Como que um pouco da infâmia de Judas passou para a corda.

Então, há esse fato de que algo “impregna” aquilo que foi tocado.

Encontramos, aliás, na Sagrada Escritura um episódio curioso nessa linha. Quando o Evangelho relata a cura de uma mulher que tocou na túnica de Nosso Senhor, acrescenta que o Divino Mestre perguntou quem a tinha tocado, porque sentiu que uma virtude curativa saíra d’Ele.

A túnica tinha servido de elemento de transmissão de uma força terapêutica proveniente de um corpo Sagrado, o qual como que enobreceu e dignificou a vestimenta.

Por causa disso, no tesouro da Igreja encontramos algumas relíquias indiretas de uma importância tão grande que elas, por assim dizer, valem mais do que as relíquias diretas.

Por exemplo, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma relíquia indireta; o Santo Sepulcro é uma relíquia indireta, assim como o são também os fragmentos que restam da manjedoura onde Jesus nasceu.

Como são sagrados esses objetos que, afinal de contas, são relíquias indiretas, mas que veneramos quase como se fossem relíquias diretas!

Inestimável valor das relíquias diretas

Devemos considerar igualmente as relíquias em que a pessoa não só tocou, mas se serviu delas como instrumento para a realização de uma ação insigne. O fato de se ter prestado um gesto eminente, aumenta muito o valor da relíquia.

Considere-se, por exemplo, um pedaço do pano com que Verônica enxugou o rosto de Nosso Senhor. Ainda que não tivesse sido estampada ali a verdadeira face dele, pela razão de ter servido para consolar a Nosso Senhor numa situação muito difícil, por ter sido instrumento de uma ação nobre, de um ato de generosidade e de coragem, aquela relíquia vale muito, pois adquiriu algo da dignidade da ação da qual participou.

Vimos, então, que relíquias indiretas são as coisas tocadas por alguém, ou aquelas que lhe serviram como meio de ação. Num sentido muito mais amplo, já não no religioso, mas analógico da palavra, podemos também considerar relíquias as obras que alguém deixou, os livros que escreveu, os pensamentos que transmitiu.

Outrossim, como relíquia poderíamos considerar os filhos de uma pessoa, a prole deixada por ela e que, de algum modo, no-la recorda. Tome-se toda essa doutrina das relíquias, ampliada como a estou dando, e teremos o fundamento da Tradição.

Esta é, exatamente, a continuidade de algo, é a transmissão de notícias, memórias, hábitos, costumes, de uma geração à outra através do exemplo, ou mediante informações, testemunhos, ensinamentos orais ou escritos. Vemos como isso tem analogia com o culto católico das relíquias, e, portanto, como o fundo do nosso pensamento, enquanto defendendo a tradição, toca no mais recôndito do pensamento católico.

Agora, se, como observamos, as relíquias indiretas têm tanto valor e são tão sagradas, o que dizer das relíquias diretas?

Um pedaço de carne ou um fragmento de osso de um santo é uma parte, um elemento constitutivo da própria pessoa do santo. E está em união — que não é viva, mas entretanto profunda, de caráter metafísico — com a alma do santo no Céu. Aquela relíquia é, pois parte de uma pessoa que se encontra no Céu.

De tal maneira que quando o santo ressuscitar, aquele fragmento vai ser incorporado ao corpo dele e passará para o estado glorioso. Aquele pedaço de carne e aqueles ossos que se acham em nossos relicários irão se reunir novamente no corpo ressurrecto do santo, e vão dar glória a Deus durante toda a eternidade no Paraíso!

Compreende-se, portanto, como tais fragmentos são mais do que qualquer outra relíquia indireta, posto serem, em certo sentido, a presença física do próprio santo entre nós.

É claro que, se de uma túnica de Nosso Senhor saíam graças, estas também sairão dos santos de Deus. Destes o Divino Mestre declarou que eram mais unidos a Ele do que sua Mãe e seus irmãos. Podemos por aí imaginar o quanto os bem-aventurados estão ligados a Ele, muito mais do que uma túnica!

A garantia de se “arrancar” as graças de um Santo

Então, compreendamos quanto essa presença das relíquias constitui uma graça para aqueles que as levam.

Para melhor frisá-lo, reporto-me mais uma vez às palavras que Santa Marta disse a Nosso Senhor. Ela havia mandado chamar Jesus para atender a Lázaro, que estava muito mal. Nosso Senhor não veio, e Lázaro morreu. Ela então disse esta frase curiosa: “Mestre, se tivésseis estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

Ou seja, ela tinha certeza de que a presença física de Nosso Senhor determinaria uma atitude d’Ele, que era a de curar o irmão. Portanto, quando se tem a presença física de Jesus, a graça se torna quase irrecusável.

Ora, pode-se dizer mais ou menos o mesmo da relíquia de um santo: guardadas as devidas proporções, tem um valor semelhante ao da presença física de Nosso Senhor.

Quer dizer, é uma garantia de que o santo de algum modo está fisicamente presente onde se encontra a relíquia, e que quase podemos arrancar as graças dele, por atenção às relíquias que são parte dele.

Compreende-se então que, nesse sentido, as relíquias têm um grande significado e são fontes colossais de graças, devendo ser tratadas com muito respeito.

Sendo, em última análise, fragmentos de santos, e nada havendo de mais respeitável, abaixo de Deus, no Céu e na Terra, do que esses heróis da Fé, claro está que devemos ter suma veneração para com tais fragmentos. Uma relíquia direta é algo de imensamente mais respeitável do que qualquer dignidade régia, e por isso os antigos construíam catedrais para abrigá-las.

Por exemplo, a Sainte Chapelle, com toda a sua magnificência, foi edificada para custodiar uma das mais preciosas relíquias indiretas de Nosso Senhor: um dos espinhos da coroa sagrada.

Cuidados que devemos ter no cultuar as relíquias

Cumpre termos sempre em mente tudo o que acaba de ser dito, para entendermos o tesouro que é uma relíquia.

Cabe aqui fazer uma aplicação concreta acerca do modo de guardá-las e de venerá-las.

Não é correto conservar as relíquias jogadas em gavetas, no meio de outros objetos: repelentes contra mosquitos, remédios, “band-aid”, etc., e, chocando-se com eles, relíquias de três ou quatro santos. Essa é uma forma muito incorreta de tratá-las.

Se não se dispõe de recursos, é preciso ter uma pequena caixa, mesmo de papelão, mas inteiramente separada, colocada de preferência num lugar onde não haja outros elementos, para nela guardar todas as relíquias juntas, em vez de mantê-las separadas nos locais mais díspares.

Portanto, todas devem estar reunidas e ser objeto de nosso culto.

E como prestar essa veneração a elas?

Pelo menos da seguinte forma: todos os dias, de manhã e à noite, oscularmos as relíquias que temos, para pedir a intercessão daqueles santos em nosso favor. Devemos procurar conhecer a biografia deles, a fim nos darmos bem conta de quem está ali presente, e por essa forma lhes render o merecido culto através de suas relíquias.

Resumindo, portanto:

guardá-las condignamente — não quero dizer luxuosamente;

prestar-lhes culto. E para fazê-lo bem, sugiro que este se transforme numa rotina, que consista, por exemplo, em oscular todos os dias as relíquias, de manhã e à noite. É triste termos uma relíquia jogada em casa, desprovida de culto ou devoção. Seria o caso de dá-la a outra pessoa que a honre, pois não se compreende que o santo esteja ali presente, com um elemento constitutivo de sua pessoa, e não seja objeto de nossa veneração!

Há ainda um último ponto a considerar: pode-se carregar as relíquias consigo?

Sim, desde que se tenha o necessário cuidado para não perdê-las. Por exemplo, conservando-as sempre no mesmo bolso. Certos militares levavam uma relíquia incrustada na própria espada. Eu compreenderia que, com a necessária prudência, houvesse uma relíquia num boa caneta ou num digno instrumento de trabalho. Mas, sempre com o necessário  cuidado.

Perfume supremamente puro

Ó minha Senhora e minha Mãe, vede-me a vossos pés, tentado pelo pecado que mais imediatamente contrasta com vossa excelsa pureza.

Vós que amastes tanto a virgindade que, por amor a ela, chegastes a alegá-la ao celeste Arcanjo que vos anunciava a honra inefável da maternidade divina; Vós cuja virgindade foi tão amada por Deus, que o Espírito Santo praticou o milagre indizivelmente sublime de a preservar; Vós cuja virgindade é o perfume sacral que tem inspirado todas as almas castas ao longo dos séculos, e as inspirará até o fim dos tempos; tende maternal compaixão deste filho e escravo que se debate nas seduções horrendas da impureza.

Dai-me uma repulsa enérgica contra a tentação. Afastai de mim o demônio e as más ocasiões. Enchei minha alma de um intenso e intransigente amor à pureza; tornai-a repleta do perfume supremamente puro de vossa castidade.

Imaculado e Sapiencial Coração de Maria, compadecei-vos e rogai por mim!

Plinio Corrêa de Oliveira

Santa Teresa de Ávila, uma alma universal

Possuidora de uma alma verdadeiramente católica, ante as devastações do protestantismo Santa Teresa se re-afervorou e reformou o Carmelo, constituindo um dos principais elementos da Contra-Reforma.

Santa Teresa de Jesus viveu na época em que o protestantismo deixara de ser uma centelha que começava a incendiar apenas uma parte da Alemanha para tornar-se um fogo invadindo o mundo inteiro. Na França — de onde vinham para a Espanha notícias muito mais frescas, por estar mais próxima da Alemanha —, o incêndio religioso era tremendo.

Sobre este aspecto de sua vida, Rohrbacher faz as seguintes considerações:

No primeiro capítulo de sua obra, “O Caminho da Perfeição”, Teresa explica os motivos que a levaram a estabelecer uma observância tão rigorosa no mosteiro carmelita de São José de Ávila.

Diz ela: “Tendo conhecimento dos desastres, em França, da devastação que aí faziam os heréticos, e como essa infeliz seita aí se fortificava dia a dia, fui por isso tão vivamente tocada que, como se eu pudesse alguma coisa, ou fosse alguma coisa, chorava em presença de Deus e implorava que remediasse tão grande mal.

“Parecia-me que eu teria dado mil vidas para salvar uma só alma, do grande número delas que se perdiam nesse reino. Mas, vendo que era somente uma mulher, e ainda tão má e totalmente incapaz de prestar a Deus o serviço que eu desejava, acreditei, como acredito ainda, que, como há tantos inimigos e tão poucos amigos, eu devia trabalhar o quanto pudesse para fazer com que esses últimos fossem bons.

“Assim, tomei a resolução de fazer o que dependia de mim para praticar os conselhos evangélicos com a maior perfeição que pudesse, e procurar levar esse pequeno número de religiosas que estão aqui, a fazer a mesma coisa. Nesse sentido, confiei-me à bondade de Deus, que não deixa jamais de assistir aqueles que a tudo renunciam por seu amor. Esperei que com essas boas moças, sendo como meu desejo as figurava, meus defeitos seriam cobertos por suas virtudes e poderíamos contentar a Deus em alguma coisa, ocupando-nos todas em rezar pelos pregadores, pelos defensores da Igreja e pelos homens sábios que sustentam discussões. Pois assim faríamos o que estava em nosso alcance para socorrer nosso Mestre, que esses traidores, que Lhe devem tantos benefícios, tratam com tanta indignidade, que parecem querer crucificá-Lo ainda e não deixar lugar algum onde Ele pudesse repousar a cabeça.”

Ante o avanço do protestantismo, Santa Teresa se reafervora e reforma o Carmelo

A reflexão de Santa Teresa é lindíssima. Simples religiosa de um convento carmelita, não propriamente corrupto, mas relaxado, ela mesma passou muito tempo na tibieza e na mediocridade quanto ao amor de Deus. Ela ouviu falar das devastações — naquele tempo muito grandes — que o protestantismo estava fazendo na França.

Os protestantes tinham conquistado completamente um pequeno reino que havia no Sul desse país: Navarra. Além disso, tinham eles se espalhado por toda a França, e um terço da nação havia se tornado protestante. Faziam toda espécie de blasfêmias, de agressões às igrejas; era um verdadeiro incêndio religioso na França.

As notícias desses fatos chegam à Espanha e ao conhecimento dessa freira. A graça de Deus toca a alma dessa religiosa e ela compreende o imenso desastre que isso representava. Em vez de ficar com ideias nacionalistas idiotas, pensando: “Aquilo é na França; estou na Espanha e não tenho nada a ver com o que se passa naquele país”, mas convicta da universalidade da Religião Católica, da Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela entendeu também que isso era um verdadeiro desastre para o mundo católico. Então, ela se pôs a chorar copiosamente, e daí veio a ideia de sua conversão.

Alma verdadeiramente católica!

Por outro lado, ela sabia naturalmente que a nação espanhola era muito mais fiel à Fé católica do que a nação francesa; portanto, para o país dela, naquelas circunstâncias, ao menos para prazo breve, o perigo não era grande. Tinha ela a felicidade de viver sob um grande rei católico, Felipe II, adversário acérrimo do protestantismo.

Santa Teresa possuía uma alma verdadeiramente católica, quer dizer, universal, capaz de considerar não só os perigos nos quais se encontrava e os problemas da Igreja que tocavam a sua pessoa, mas também a causa da Igreja Católica como um todo, e de se interessar por essa causa, ainda que seu próprio país não estivesse atingido. Ou seja, ela amava a Igreja sem nacionalismo estreito, sem egoísmo, sem personalismos. Vemos aqui um grande exemplo de espírito sobrenatural que ela dava.

Há muitas pessoas que começam a considerar apenas o que lhes é mais próximo; depois, por ampliações sucessivas, chegam até a uma visão geral das coisas. É um feitio de espírito, um modo de caminhar.

Porém, é muito frequente encontrar pessoas que, fazendo-se católicas, se interessam apenas por sua paróquia, ou então pela sua diocese ou pelo seu país. Negócios católicos de outras nações são mais ou menos como o mundo da Lua; a ideia de uma Causa católica como um todo, elas não chegam a compreender. Ora, uma alma bem formada, que ama a Deus, precisa amá-Lo não somente na sua paróquia, mas no mundo inteiro.

E, fundamentalmente falando, deve alegrar-se com os triunfos da Causa católica, desolar-se com suas derrotas, quer sejam no âmbito de sua vida ou fora dele, no próprio país ou no exterior. Esta é uma alma verdadeiramente católica, universal.

Santa Teresa de Jesus possuía uma alma de fogo, com uma viva noção da Causa católica. Embora naquela época as comunicações entre a França e a Espanha fossem muito lentas, sendo preciso atravessar os Pirineus, com estradas muito ruins, o que tornava difícil a semeadura das doutrinas más das heresias, ela se entregou por inteiro à tarefa de reformar a Ordem do Carmo.

Ideia de conversão

De onde lhe veio a ideia da conversão? Ela expõe esse assunto apenas de passagem aqui, mas em outros trechos isso fica mais claro. Santa Teresa fez o seguinte raciocínio: “Sou uma simples religiosa e, como mulher, nada posso fazer. A não ser o seguinte: os amigos de Deus são poucos e tíbios, enquanto que seus inimigos são muitos e ardorosos. Devo, portanto, rezar, imolar-me, renunciar a tudo para que os amigos de Deus se tornem mais fortes e sejam capazes de fazer face aos seus inimigos”.

Então, afervorar, “catolicizar” os católicos era o meio de levar o inimigo à derrota. Assim, tornava-se necessário que algumas freiras, as quais estavam ao seu alcance, se imolassem, rezassem, e ela mesma passasse da mediocridade para o fervor, a fim de conseguir que os pregadores, os doutores católicos, os batalhadores pelas armas católicas se tornassem capazes de derrotar os protestantes.

Dessa ideia surgiu a reforma do Carmelo. E, naturalmente, graças incontáveis se derramaram sobre a França, em consequência das orações das carmelitas.

Vemos que tudo isso foi inspirado por ideias altamente teológicas e sapienciais: a comunhão dos santos; o valor preponderante da oração e do sacrifício para a Igreja vencer suas grandes batalhas; “catolicizar” os católicos, como meio de vencer os não católicos e deter o furor destes últimos. É uma concatenação de ideias esplêndidas, que se ligam umas às outras, e têm, como desfecho, a reforma da Ordem do Carmo.

A reforma do Carmelo: um dos principais episódios da Contra-Reforma

Santa Teresa de Jesus apenas estabeleceu a reforma das Carmelitas Descalças. Humanamente falando, não é uma obra tão extraordinária. O que representa, sob o aspecto humano, multiplicar o número de conventos de religiosas trancadas no seu convento? Ou, digamos, de mosteiros de padres fervorosos?

Entretanto, não há História da Igreja, um pouco cuidadosa, que não mencione entre os principais fatos da Contra-Reforma, a reforma teresiana do Carmelo. Porque essa reforma teve um efeito extraordinário nos imponderáveis de toda a Cristandade. Em torno das carmelitas desencadeou-se um movimento de afervoramento, que foi um dos motores mais vigorosos da Contra-Reforma.

Os padres carmelitas também atuaram da mesma maneira. Quer dizer, desenvolveram uma ação maior do que os meios humanos nela empregados, uma espécie de expansão de um espírito, de uma mentalidade, de uma atitude de alma, a qual teve como consequência um afervoramento geral dos católicos.

A prioridade da vida interior

Isso se explica muito mais pelo lado sobrenatural do que pelo natural. E nos mostra quanta razão temos em algumas impostações nossas: prioridade da vida interior sobre a vida ativa; preocupar-se mais em “catolicizar” os católicos do que conquistar não católicos para a Igreja Católica; a ideia de que a oração e o sofrimento valem mais, na luta contra os adversários, do que a ação; o desejo, entretanto, ardente da ação levada até suas últimas audácias, que caracterizavam o espírito de Santa Teresa de Jesus.

Tudo isso faz com que percebamos, pela grande autoridade de Santa Teresa de Jesus, quantas concepções nossas são verdadeiras e, portanto, como a elas devemos ser fiéis.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 14/10/1966 e 29/11/1969)

Stella Matutina

A estrela da manhã aparece no período incerto, entre a noite ainda existente e o dia que timidamente vai nascendo. Simboliza a época em que vivemos, onde imperam as trevas da Revolução, porém já se pressente o triunfo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, prometido por Nossa Senhora em Fátima.

Portanto, a Maria enquanto “Stella matutina”, a Estrela que nos anuncia como iminente a aurora de seu reino, devemos recorrer nas dificuldades referentes à causa contra-revolucionária, em nosso apostolado e em todas as ocasiões nas quais a piedade nos sugira essa invocação.

Ó Estrela da manhã, Vós fostes durante a noite da espera a nossa luz e a promessa do alvorecer; fazei com que desponte quanto antes o dia de vosso Reino!

(Extraído de conferências de 29/11/1991 e 1/12/1991)