Sacralidade, renúncia e força de impacto

O cavaleiro medieval era fundamentalmente religioso, persuadido de sua Fé e da legitimidade, e até da obrigação, de usar o máximo de força a serviço da verdadeira Religião. Imbuído da liceidade dos meios que empregava, ele se deu por inteiro à Causa católica, estando disposto a ir até o fim e a morrer por ela.

 

Vamos fazer algumas considerações em torno de uma estátua que representa um guerreiro medieval, ostentando uma faixa com a palavra “Credo”.

Diálogo de increpação com quem se encontra diante dele

É uma peça típica do século XIX. Em geral, as figuras da Idade Média nada têm de teatral. Por exemplo, as esculturas que ornamentam as catedrais, postas em nichos, estão para ser vistas, mas o artista teve a preocupação de esculpi-las como se ignorassem os espectadores. De maneira que não têm nada de teatral.

O século XIX foi o século do teatro, como o XX foi o do cinema. Porque a arte teatral teve uma expansão no século XIX fabulosa, como quantidade e importância na vida concreta, em comparação com o século posterior.

Esse caráter teatral é o lado fraco não só da arte, mas da mentalidade de todo o mundo no século XIX, inclusive dos contrarrevolucionários.

Assim, esse guerreiro foi representado de maneira a estar tomando posição perante outrem, num diálogo de increpação com quem se encontra diante dele.

Por outro lado, o autor representou bem um lado admirável da alma do cavaleiro medieval: enquanto guerreiro, de tal maneira fundamentalmente religioso que, visto de um aspecto, ele não é senão religioso e só se ocupa com a Religião.

Ademais, está por inteiro persuadido de sua Fé e da legitimidade, e até obrigação, de usar o máximo de força, dentro das regras moralmente nobres da Cavalaria, a serviço da verdadeira Religião. Ele está altamente imbuído da legitimidade dos meios que emprega e se deu por inteiro a essa Causa, disposto a ir até o fim e a morrer por ela. Há, portanto, a meu ver, uma ideia de sacralidade, de renúncia, de determinação e de força de impacto extraordinária nesse guerreiro.

Se o comparamos com um guerreiro do século XV, notamos como são profundamente diferentes. Entretanto, o cavaleiro do panache(1) acrescenta algo que faltava ao medieval, embora tenha havido uma defasagem em pontos fundamentais.

Avançando nos séculos, poderíamos confrontar o cavaleiro medieval com um guerreiro de Napoleão, e encontraríamos diferenças ainda mais marcantes, por onde se vê que a coragem não é apenas a determinação de enfrentar o fogo e a morte, mas uma deliberação da pessoa inteira de empreender qualquer coisa em qualquer campo.

Um guerreiro de Napoleão fora da guerra poderia ser mentiroso, ladrão, acovardado. Ney(2), por exemplo, não era obrigado a ser bravo e ter as virtudes militares na vida civil, bastava possuí-las na vida militar. O medieval não era assim. Esse modo como ele está aqui representado é o mesmo pelo qual enfrenta qualquer outro perigo, adversário ou dever. A guerra para ele é um estilo de vida; para Ney é um estilo de luta. Na hora do combate, o soldado napoleônico é o bravo, mas na vida civil é um sujeito qualquer.

Sacral como uma torre de catedral

Um aspecto que me agrada especialmente nessa figura de cavaleiro medieval é a suprema sacralidade. Ele é sacral como uma torre de catedral, de uma sacralidade que leva às mais altas considerações do espírito, misturadas com muito bom senso. Não vejo esse predicado nos guerreiros que vieram depois. No extremo oposto disso estaria Dom Quixote, por exemplo. O medieval não vai por cima de um moinho de vento, não tem perigo. Entretanto, Dom Quixote manifesta qualquer coisa que o medieval possui, mas não desdobrou. Por exemplo, nesse cavaleiro da Idade Média o gosto da aventura não se encontra. Está o senso do dever aceito por inteiro, com uma determinação de alma completa, até admirável, mas não se pode dizer que está alegre de ser guerreiro. Não há aquela alegria específica da proeza, com a qual a pessoa pega a espada, a lança e diz: “Afinal!”

Alguns tinham isso; a maioria, porém, ia para a guerra porque era preciso, mas não se tinha chegado a destilar aquilo que se destilou depois, isto é, o gosto da proeza pela proeza. Contudo – aqui está o mal – deveriam apreciar a proeza por ser ela um reflexo de Deus, mas eles gostavam da proeza pela proeza por uma vaidade, um esporte, e isto é errado. Não obstante, há um gosto metafísico da proeza que eu encontro nos heróis da Reconquista espanhola, mas vejo menos nas Ordens de Cavalaria.

A proeza enquanto tal é uma linda posição da alma, que atinge essa beleza para se parecer com Deus, seu Criador. Os pregadores, quando viram despontar o amor da proeza, deveriam ter dito isto para canalizar esse amor. Este cavaleiro, representado nesta estátua, leu no compêndio que se deve morrer pela Fé e resolveu cumprir seu dever de modo fabuloso; pode ser um santo, mas não tem aquele “élan” que corresponde à alegria de realizar essa proeza por ser boa em si, porque reflete a Deus.

Nostalgia da proeza

Nessa outra representação o gosto da proeza está expresso de modo bem mais explícito, porque se nota nesse guerreiro montado a cavalo uma leveza que procede de uma alegria interior, simbolizada até no modo de a auriflama tremular ao vento, e na posição da lança; tudo isso representa a alegria de atacar com todas as forças, expondo-se ao risco. Os ornamentos do cavalo e do cavaleiro têm por objetivo nobilitar o estado de proeza em que esse homem se encontra. A viseira erguida indica o desafio ao risco.

A iconografia do século XIX representou muito mais o cavaleiro na guerra do que os próprios medievais representaram. É mais uma prova de que eles não tinham sabido ainda explicitar toda a beleza da proeza que possuíam. Os heróis que realizaram as proezas não tiveram tanto a ideia do “pulchrum” da proeza quanto o século da burguesia com saudades da proeza, e que soube cantar o que os outros possuíam.

A partir desse fenômeno poder-se-ia afirmar um princípio: o século que perdeu uma determinada qualidade e a considera com nostalgia, embora já não possua esse predicado, tem dele uma noção mais definida do que aquele que o possuiu. Essa nostalgia não é um elemento de fantasia, mas de definição.

Então, há uma pós-Idade Média baseada na História, mas vista por nós de um modo que não estava inteiramente na consciência dos medievais. Seria um erro afirmar que eles não possuíam esse espírito e essas qualidades. Tinham, mas os homens de séculos posteriores souberam exprimir melhor do que eles, por causa da nostalgia e do contraste produzidos pela falta que sentiam dessas riquezas.

Isso aponta para um aspecto da tradição até agora não considerado. Talvez a alma da tradição seja essa lembrança sublimada, com lucidez, que é o melhor legado que uma geração confere a outra.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/5/1974)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

 

1) Do francês, em sentido figurado: galhardia, brio.

2) Michel Ney (*1769 – †1815). Comandante francês nas guerras revolucionárias francesas e nas guerras napoleônicas, e um dos dezoito Marechais da França instituídos por Napoleão Bonaparte.

Um papa que expulsou os hereges de dentro da Igreja

São Leão II, referindo-se às faltas de seu predecessor, Honório I, declarou que este, “em vez de purificar esta Igreja Apostólica, permitiu que a Imaculada fosse maculada por uma traição profana”. Canonizando Leão II, a Esposa de Cristo quis mostrar que a plenitude e a vivacidade da Fé são opostas à tolerância, composição e inércia em relação à heresia, tão frequentes em nossos dias.

 

Tenho a comentar duas notas a respeito de dois Santos que viveram a uma grande distância no tempo.

São Leão II, Papa, que aprovou as Atas do VI Concílio Ecumênico para condenar a falta daquele que, no dizer do Santo, “em vez de purificar esta Igreja Apostólica, permitiu que a Imaculada fosse maculada por uma traição profana”. Século VII.

Santo Irineu, Bispo. Deus deu-lhe a graça de destruir as heresias pela verdade da doutrina. Lutou contra os gnósticos. Século II.

Tudo o que é vivaz tem horror ao que lhe é contrário

Quando ouvimos falar em séculos II e VII, temos a impressão de que foram muito próximos um do outro, pois se perdem no nosso olhar e no rumo do tempo, formando uma coisa só. Entretanto, a distância cronológica que havia entre esses dois Santos é mais ou menos a que separa o Brasil do tempo de seu descobrimento e o de hoje. Então, compreende-se como esses Santos viveram distantes um do outro.

Ora, apesar dessa distância, ambos possuem um traço comum, consignado nessas pequenas notas: combateram a heresia, expulsaram os hereges de dentro da Igreja e vingaram a honra da Esposa de Cristo. Porque o herege dentro da Igreja maculava-a por sua presença. Por causa disso, a honra da Igreja exigia essa expulsão, impunha que o herege fosse posto fora, porque não pode haver coexistência pacífica, coabitação normal entre o bem e o mal, a verdade e o erro. Não pode haver em nenhum lugar, mas sobretudo dentro da Igreja Católica que é, por excelência, a montanha sagrada da verdade e do bem, que repele de si, horrorizada, aquele que dentro dela toma a defesa do erro e do mal.

Alguém poderia objetar: “Mas, afinal de contas, qual é o papel da misericórdia dentro disso?”

A Igreja tem muita misericórdia e não expulsa de si aquele que reconhece que anda mal, bate no peito e pede perdão por andar mal. Mas quem dentro da Igreja afirma que o bem é o mal e o mal é o bem, luta para disseminar o erro, a este ela expulsa horrorizada.

Isso por duas razões: primeiro, porque o herege perde as almas que estão dentro da Igreja. Em segundo lugar, por uma razão mais alta de heterogeneidade fundamental: a Santa Igreja é heterogênea com quem dissemina a heresia, e não pode suportar junto a si quem faz isso.

Em última análise, essa incompatibilidade está na própria natureza do princípio de contradição. Tudo aquilo que é vivaz, pelo próprio fato de ser vivaz, tem um horror àquilo que lhe é contrário e o repele com toda força e vivacidade.

Isso ocorre até no mundo animal. Um bicho que está na força de sua idade, ao se deparar com um fator contrário, reage violentamente. Por exemplo, um gato. Se uma mosca pousa em um gato cheio de vitalidade, ele espanta o inseto com violência. Mas se se trata de um gato velho, a mosca pousa nele, o incomoda, mas ele faz um gesto com negligência e com um mínimo esforço. Porque na medida em que o ser possui vivacidade tem horror àquilo que lhe é oposto.

Devemos representar a intransigência da Fé dentro da Igreja

Assim, a Igreja, cuja vida é eterna, perene, sobrenatural, tem o horror normal e contínuo àquilo que lhe é contrário. Por isso, está na índole dela ejetar para fora de si o herege, o foco de mau espírito. E o fato de ela se manifestar indolente, preguiçosa, pouco apressada na repressão do mal, indica que aqueles de seus representantes ou filhos que são assim possuem a Fé num estado de declínio, de ocaso.

Quando a Fé se encontra no estado de aurora ou no meio-dia, ela é intransigente. Quando a Fé definha, começa a envelhecer, a murchar, então surgem os conchavos, pois ela já não sente aquela fundamental incompatibilidade com aquilo que lhe é hostil.

Então compreendemos a razão pela qual a Liturgia, quando canta louvores a um Santo, insiste como título de glória desse Santo o fato de que ele ejetou para fora da Igreja os maus. A Igreja quer mostrar como a plenitude e a vivacidade da Fé e da virtude são opostas a essa composição, a esse transigir que hoje tão frequentemente se vê, e que exatamente deve ser considerado com um dos sintomas mais alarmantes existentes dentro da Igreja atualmente, ou seja, o senso da tolerância, da composição, da inércia em relação à heresia.

Temos, assim, mais um ângulo para considerarmos nosso apostolado: devemos representar na Igreja a intransigência, pois dessa maneira representamos a Fé viva, porque só aquilo que é muito vivo não transige. É, portanto, a vivacidade, a intransigência da Fé que nos compete representar dentro da Igreja. É para isso que nossa vocação nos chama. E devemos reconhecer humildemente que este dom desce do Céu e pousa sobre nós como um favor obtido pelas orações de Nossa Senhora, nos vem de fora, e a ele simplesmente nos cabe corresponder e pedir sempre à Santíssima Virgem que nos dê um acréscimo deste dom.

As circunstâncias dentro das quais nós vivemos são muito difíceis e se prendem à vida de São Leão II. A ficha a seu respeito afirma que ele aprovou as atas do VI Concílio Ecumênico, o qual condenara a falta daquele que, no dizer do Papa São Leão II, “em vez de purificar esta Igreja Apostólica, permitiu que a Imaculada fosse maculada por uma traição profana”. Aquele cujo nome não está dito era o Papa Honório I.

O Papa São Leão II disse isto de seu predecessor, ele passou por essa dificuldade tremenda de ter vivido no tempo em que se podia afirmar isso de um papa, em relação ao qual o Concílio tomou uma atitude de condenação.

Se alguém viver em dias assim, estude a situação e peça a São Leão II que lhe dê toda aquela medida de superior fidelidade à Igreja e ao Papado que fez com que ele, Santo e Papa, entretanto se julgasse no direito e no dever de usar uma frase como essa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1965)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

Na encruzilhada entre a cordialidade e a combatividade

Em sua primeiríssima infância, Dr. Plinio tinha a alma em extremo delicada, afetiva e amiga da paz. Em certo momento, pôs-se diante dele uma alternativa: ou sua delicadeza se completava com uma grande combatividade, ou não defenderia aquilo que o entusiasmava. Seria ele capaz de sacrificar suas primaveris afetividades?

 

O  ponto de partida do assunto a ser tratado é o seguinte: deve-se ter fortaleza ou bondade com as pessoas, e a que regras da Moral isto se relaciona? A Moral indica as circunstâncias, as situações em que ora a fortaleza, ora a bondade é necessária e se impõe como imperativo moral.

Se todos recorressem ao Espírito Santo, o pecado de Revolução pesaria muito menos sobre as pessoas

Essas regras são universais, não variam. Mas há outro conjunto de circunstâncias que pesam muito na fixação da conduta e se ligam ao modo de a Providência querer tocar as almas. Há almas às quais a Providência, por um desígnio misterioso especial, quer fazer o bem por meio da bondade, e outras sendo exigente para com elas. Devemos ter o discernimento necessário para perceber quando é o caso para uma coisa ou para outra.

No mundo contemporâneo, os espíritos são movidos pelo princípio de que toda desigualdade é uma injustiça e corresponde a um trato de uma certa crueldade, dureza de alma, porque a desigualdade faz sofrer quem é inferior. Ora, fazer sofrer é uma falta de clemência, de bondade; portanto deve-se ser a favor da igualdade porque é a ordem de coisas em que ninguém sofre os pesares da desigualdade. Por causa disso, metafisicamente falando, a igualdade é um bem e a desigualdade um mal.

Há muita gente que tem disso uma noção confusa e não é capaz de formular este erro como estou dizendo, pois a ideia não está explícita, a pessoa nunca conseguiu ou não quis exprimir em palavras, mas tem isso na cabeça. Entretanto quem pensa assim é levado a tomar uma posição igualitária diante das coisas, e entra na caudal da Revolução.

Se essas pessoas tivessem visto claramente isso, elas teriam resistido à Revolução? Seriam contrarrevolucionárias? Neste caso, não se poderia dizer que a graça não as ajudou e elas caíram no poço da Revolução sem a ajuda do Espírito Santo e, portanto, sem culpa? É uma pergunta odiosa, mas que pode surgir.

A resposta só pode ser negativa. O Espírito Santo ajuda todos que a Ele recorrem, esta é uma promessa de Nosso Senhor. Logo, essa quantidade enorme de pessoas não chegou a ver bem porque não quis, não se aplicou, não deu importância ao problema, teve vontade de ceder à opinião dos outros, pois, do contrário, teriam visto. Por esse motivo o pecado de Revolução pesa muito fortemente sobre um número colossal de pessoas.

Ora, como se explica que se aproxima de nós um rapaz, às vezes muito novo, dizemos-lhe essas verdades e ele aceita de boa vontade, contente? E o mais curioso é que antes de tomar contato conosco ele não aceitaria. Mais ainda, ele adere tanto que, praticamente, acaba dedicando toda a sua vida para a defesa desses princípios. O que aconteceu para que tão poucos pensassem assim e tantos outros não?

Uma graça especial, à medida da correspondência

Devemos, pois, concluir que nós, pensando assim, recebemos uma graça especial, à qual, em alguma medida, correspondemos, e que nos leva a fazer um ato de Fé, de coragem e uma renúncia muito grande que a Providência nos pede. Por causa disso Ela quer também tratar nossas almas de modo especial.

Então, para pessoas que lutam tanto contra o espírito revolucionário e, portanto, aguentam um fardo muito grande, é compreensível que seja reservada uma bondade igualmente grande, toda especial.

Entretanto, os que se colocam como inimigos da Igreja e da Civilização Cristã estão na posição oposta. São almas endurecidas que não têm nenhuma reverência, são capazes de todos os desaforos e de toda indecência. São pessoas que devem ser tratadas do modo oposto. Portanto, enquanto devemos fazer o possível para ser pai e mãe para uns, temos que ser leões em relação aos outros. É natural.

Se estou tratando com uma pessoa que me considera como um pai, devo tratá-lo como um filho. Mas se alguém está procurando qualquer ocasião para me ridicularizar e, na minha pessoa, zombar da Fé, da Doutrina Católica, da Igreja, perseguir Nosso Senhor Jesus Cristo, eu tenho a obrigação de mostrar a esse indivíduo e a terceiros qual é a força de alma que a Fé pode dar. Donde o princípio adotado por nós: devemos ser cordeiros para os de dentro e leões para os de fora.

A força simbolizada pelo leão é majestosa e provém da grandeza.  Com efeito, da grandeza, enquanto se mostrando na sua superioridade, emana uma certa força inerente à majestade e que esmaga, derruba, contunde o adversário, o que nosso leão exprime muito bem na dignidade daquele gesto de garra magnífico.

O primeiro estandarte da TFP

Aliás, cabe aqui um parêntese para contar a origem desse leão e desse estandarte. Na Vila Formosa, bairro da Zona Leste de São Paulo, havia um convento de dominicanas que eram muito amigas nossas. Às vezes íamos lá, aos domingos. Havia uma madre que era francófona – não me lembro se francesa, canadense ou belga, mas falava francês – e tinha muita habilidade para desenhar.

Nessa época, éramos seis ou sete pessoas remanescentes do Grupo do Legionário. Mas, tendo a convicção de que nosso grupo um dia cresceria e precisaria de um símbolo, pensei: “Vou cuidar do emblema enquanto o Grupo é pequeno, porque quando for grande já não terei tempo para isso.” Então consultei os demais, eles concordaram, e fomos pedir a essa madre que desenhasse um leão com as características que indicássemos. Ela desenhou, eu gostei bastante porque a madre apanhou muito bem o movimento de patas do leão. Dissemos, então, que mandaríamos bordar. Ela mesma bordou o nosso primeiro estandarte.

Com o tempo, fui indicando mudanças com vistas a tornar nosso leão elancé(1), de maneira a conferir-lhe esse aspecto de força majestosa que faltava no original.

Notem como ele está bem firme sobre suas patas traseiras, numa atitude ereta, a cabeça alta, olhando de frente como quem não teme o olhar de ninguém. Esse leão dá a entender que sua força não é a de um aventureiro, de um brutamontes, mas a de quem tem o direito de mandar.

No fundo da ideia de majestade está o direito e a superioridade intrínseca que confere certa força própria a quem sente que tem razão. A noção do bem encontra-se muito marcada nisso.

Táticas para todas as circunstâncias

Consideremos outro animal também muito forte, o qual, entretanto, não dá a impressão de ter o direito de mandar: o tigre. Ele tem o “direito” de ser admirado – há tigres lindos –, mas não possui o direito de ser obedecido. Se alguém afirmasse que o tigre é o rei das selvas, não diria a verdade. Porque ele não é, por sua natureza, um dominador. Ele capta as situações e dá um pulo quando a oportunidade se apresenta. É, portanto, um explorador de oportunidades, um aventureiro que sabe aproveitar a ocasião, não um governador. E como tem força se impõe, mas não com a força do direito e sim a do músculo.

O tigre é um “grand seigneur” que impõe admiração e medo, não obediência. A agilidade do tigre está, antes de tudo, na percepção. Ele tem notícia dos perigos e dos movimentos da presa. É a agilidade da surpresa. Com efeito, uma das mais altas formas de agilidade é saber pregar surpresa.

Assim, a Providência deu a cada animal o seu processo de defesa e de ataque especial. Vejam como os bichinhos muito pequenininhos têm facilidade de fugir. A desproporção de forças entre o tigre e o homem é muito menor do que a existente entre o homem e a mosca. Mas a mosca foge. Para o homem pegar uma mosca, que trabalho!

Há animais pequenos que encontram na sua própria pequenez a defesa. Uma pulga é tão pequenina que dificilmente a vemos. De repente ela pula, mas não sabemos onde ela caiu. São as defesas dos pequeninos.

A cobra, por exemplo, arrasta-se pelo solo e, como ninguém olha com atenção para o chão, ela tem mais condições de nos pegar de surpresa, ainda mais quando se oculta no meio das ervas e passa um homem. Ela é uma das rainhas da agilidade, mas se erra o bote está liquidada.

Há, portanto, nos animais uma espécie de equilíbrio que a Providência pôs entre a capacidade de atacar e de defender, que é colossal. A seu modo, eles não erram, seus instintos se desenvolvem corretamente e sempre agem de acordo com a lei inerente à natureza deles, embora não sejam dotados de inteligência.

Quem erra somos nós. De maneira que de um general ou de um advogado pode-se dizer que adotou uma tática errada. Já não se pode afirmar o mesmo de um leão, de um tigre, nem de uma pulga. É aquela mesma tática que serve para todas as circunstâncias.

O poder limitado do ser humano

Isso porque fomos concebidos no pecado original e eles não. O resultado é que em nós existe o erro. Para nós é uma lição e uma humilhação tremendas. Por exemplo, só de pensar na dificuldade de capturar uma pulga… Conforme o lugar onde ela se esconda, não há inseticida que a alcance. Quer dizer, ficamos pequenos em comparação com a pulga.

Mas também se passa com certas belezas da natureza. Como temos vontade de pegar uma borboleta azul e prateada, que voa perto de nós! Entretanto ela vai embora, não temos domínio sobre ela.

Para mim, as mais belas aves são a arara e o pavão. Por vezes acontece que estamos admirando o pavão, e ele fecha a cauda; não podemos mandar-lhe que a abra porque estamos com vontade de vê-la. A arara, por sua vez, é de uma beleza maravilhosa, uma joia. Suas penas são sempre lindíssimas. Mas é o único bicho que conheço o qual tem o corpo lindo e a cara nojenta, com a carne de que é composta e aquela espécie de olheiras medonhas com uns olhos imbecis dentro; um bico bonito feito para agredir, mas pendendo de uma cabeça mole sobre um pescoço incapaz de agressão. No Paraíso, se araras havia, tenho a impressão de que não eram assim, mas se assemelhavam a mini-águias, voando esplendidamente.

Tudo isso nos leva a considerar o que perdemos com o pecado original, e como o nosso poder é limitado. Entretanto convida-nos a nos voltarmos amorosamente a Nossa Senhora com esperança do Céu, porque no Paraíso Celeste nossa situação será muito melhor do que a de Adão no Paraíso Terrestre.

Nesta Terra é muito difícil haver criaturas que conjuguem capacidades aparentemente opostas. Por exemplo, para que um ser majestoso possa ser ágil, é fácil que perca algo de sua majestade; como também um ente ágil facilmente perderia alguma coisa de sua agilidade ao tentar ser majestoso. Não são qualidades contraditórias, mas com facilidade se chocam entre si.

Houve Quem tivesse todas as qualidades no mais alto grau e na mais perfeita harmonia: Nosso Senhor Jesus Cristo; e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora. Porém a Providência tem um modo peculiar de tocar cada alma com vistas a realizar sua missão.

Num pequeno hotel de São Vicente

Na minha primeiríssima infância, eu tinha a alma em extremo delicada, afetiva e, portanto, em sumo grau amiga da paz, da ordem, das coisas que andam bem e não se chocam entre si. As brigas me causavam verdadeiro horror, como episódios que não deveriam ocorrer.

Eu me lembro de que minha mãe me contava um caso ocorrido numa ocasião em que ela foi passar uma temporada em São Vicente conosco, e se hospedou numa pensão de um alemão chamado Herr Kinker. Era um estabelecimento muito bom, bem mantido, perto do mar, para que minha irmã e eu respirássemos o ar marítimo muito saudável. Mas o Herr Kinker, dotado de uma porção de qualidades de hoteleiro, não tinha a virtude da temperança, especialmente quando estava em presença de uma garrafa; e, de vez em quando, entregava-se a bebedeiras ferozes.

Meu pai estava em São Paulo, as ligações interurbanas eram muito difíceis naquele tempo, tudo muito mais atrasado do que hoje, e não podendo voltar para São Paulo a fim de fugirmos do bêbado, minha mãe ficava sumamente preocupada, esperando que meu pai chegasse em breve para resolver o que fazer. Um dia caiu uma chuva medonha e ela me perdeu um pouco de vista. Em certo momento, começou a me procurar na casa inteira e não encontrava. Naturalmente sua aflição aumentou muito e ela, ao deparar-se com o Herr Kinker, perguntou-lhe onde eu estava, mas ele deu uma resposta pastosa, ambígua. Então Dona Lucilia foi ao terraço em frente da casa e me viu embaixo, sentado bem no meio de um canteiro, com a chuva caindo às torrentes sobre mim, e dizendo:

— Isso é uma injustiça, eu não merecia isso.

Eu tinha uns dois anos, mais ou menos, e repetia em voz alta essa frase, sem ninguém me ouvir.

Evidentemente ela foi correndo, pegou-me e me levou para dentro de casa, cumulando-me de carinhos. Até o fim da vida ela contava emocionada esse contraste entre minha inocência e o castigo imerecido que eu tinha sofrido.

Havia uma predisposição minha para manter as coisas como me parece que devem ser, mas com muita paz. Não fiz nenhum desaforo contra o Kinker, eu não estava irritado, protestava em paz. Porém se é injusto, é injusto.

Destinado pela Providência a sofrer os choques mais duros

Em certo sentido, essas são matrizes que Nossa Senhora pôs em minha alma. Em outros Ela colocará matrizes diversas. Depende de como Ela queira orientar e formar cada alma.

Essa minha disposição de alma estava, entretanto, destinada pela Providência a sofrer os choques mais duros no que eu tinha de bom. Em meus oitenta anos de vida, a Revolução não fez outra coisa senão chocar os meus lados bons o tempo inteiro.

Como não podia deixar de ser, pôs-se diante de mim uma alternativa: “Ou essa sua delicadeza se completa com uma grande combatividade, ou você será rejeitado, liquidado, porque não soube lutar contra os inimigos de Deus. Se não soube lutar contra os inimigos de Deus, todo o maravilhoso, todo o grandioso que você ama, toda a hierarquia que o entusiasma tiveram em você um mau defensor, um admirador vazio e sem valor, digno de ser rejeitado, porque não foi capaz de se sacrificar. Agora vamos ver, sacrifique-se!” Não era um sacrifício qualquer, mas um holocausto, uma vida feita de dor. “Você aguenta ou não aguenta essa vida feita de dor? Agora toque para a frente!”

Notem, portanto, que não é uma contradição, mas uma antítese, duas posições em extremo contrárias. Lembro-me de que, vendo-me na contingência de ser tão combativo, eu me perguntava o que faria das minhas primeiras cordialidades, das minhas primaveris afetividades. Aquilo tudo estaria liquidado? Minha resposta para comigo mesmo foi: “Não! Não renuncie a isso. Conserve no fundo de sua alma para quando algum dia acontecer de você tratar com gente que mereça isso. Mas por ora, se você vive no meio dos jaguares, saiba ser jaguar com os jaguares, saiba lutar! E, portanto, força!”

Mais tarde, compreendi que a hora da bondade tinha chegado quando comecei a perceber as novas gerações que se aproximavam de mim. Ao passar-lhes uns pitos, como eu fazia ao pessoal de minha idade, ao invés de tentar se revoltar – para o que eu já estava armado –, choravam. Então levei uma surpresa: “Que negócio é esse?! Bem, então começou outra canção…”            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/9/1988)
Revista Dr Plinio  268 (Julho de 2020)

 

1) Do francês: esbelto, esguio.

 

Elegância, distinção, leveza e superioridade

Maria Antonieta, Rainha da França, surgiu como uma estrela da manhã que, em plena noite, cintila e vai enchendo de vida, esplendor e alegria todos os ambientes. Era tão delicada, fina, formosa, que sua presença comunicava beleza à corte. Ela realizou de um modo deslumbrante o papel social da rainha.

 

Vamos comentar um trecho do historiador inglês Edmund Burke(1), que considero como um dos textos mais impressionantes escritos sobre Maria Antonieta, e não só sobre ela, mas a respeito da situação geral da Europa no tempo da Revolução Francesa.

Ela desponta no horizonte como uma estrela

Fazem já dezesseis ou dezessete anos que vi a Rainha de França, em Versailles, quando era ainda Delfina. Sem dúvida, nunca tinha descido a este mundo – que ela mal parecia tocar – uma visão mais deleitável.

A primeira nota que ela dava era a delicadeza. Em termos diferentes, Burke diz que ela parecia um ente sobre-humano, insinuando ser mais angélico do que qualquer outra coisa, quando afirma que ela parecia uma pessoa como igual nunca tinha descido a este mundo.

Notem como na descrição o autor completa a ideia da delicadeza com a de leveza, ao dizer que ela mal parecia tocar na terra. Quer dizer, ela parecia mais voar, como se tivesse asas invisíveis, do que tocar com os pés. Essa ideia de delicadeza extrema ele apresenta como sendo realmente deleitável.

Vi-a precisamente despontar no horizonte, adornando e animando a elevada esfera na qual começava a mover-se, cintilando como a estrela matutina, cheia de vida, esplendor e alegria.

Ele descreve muito bem a missão de uma rainha que deseja desempenhar o seu papel na sociedade dando da realeza, na sua versão feminina, a visão que se deve ter. Então, ela desponta no horizonte como uma estrela, não aparece como o comum das pessoas que entram, mas é tão luminosa, graciosa, elevada que, ao ingressar, tinha-se a impressão de que era um astro que entrava.

Nessa ocasião, Maria Antonieta não era rainha ainda. Casada com o príncipe herdeiro do trono francês e recém-chegada da Áustria, sua terra natal, estava começando a viver na França. Pois bem, com esse noviciado tão mínimo de contato com a França, eis que ela realiza de um modo deslumbrante o papel social da rainha.

Os verbos adornar e animar, utilizados pelo autor, não foram postos a esmo, sem refletir. Adornar significa aumentar a beleza do ambiente em que está. Portanto, a presença dela tornava mais bela a mais alta sociedade francesa. A sociedade que, exatamente, destacava-se de todas as cortes da Europa por sua beleza era adornada pela jovem princesa austríaca. Maria Antonieta era tão delicada, tão fina, tão formosa, que sua presença comunicava beleza à corte francesa.

Papel do rei e da rainha

Vem a propósito fazer aqui uma consideração muito interessante a respeito do papel do verdadeiro rei. É próprio ao rei mandar. E também à rainha? Sim, em termos. O rei dever ser o mais sério e o mais vigoroso ornato de seu reino. Ele precisa saber ornar, como o faz o homem, pela manifestação da elevação de seu espírito, por suas qualidades morais e intelectuais, pela firmeza de seu braço na direção do timão do país, pela sua estatura avantajada e forte que faz ver nele o varão disposto a todos os heroísmos, amoroso da paz justa, mas também da guerra justa.

À rainha esses atributos cabem, entretanto mais delicadamente, na sua versão feminina. O adorno que a mulher deve trazer é de outra natureza. Estamos vendo bem o adorno que Maria Antonieta portava consigo.

Animar é comunicar vida, despertar os espíritos, entusiasmá-los, levá-los a admirar. Então, provocar admiração, entusiasmo é um dom que a rainha deve proporcionar aos seus súditos. Quando se faz admirar, ela está se dando aos seus súditos e, ao mesmo tempo, concedendo-lhes a ocasião de praticarem esse ato de virtude específico e magnífico que é a admiração.

Admiração traz animação. Num ambiente onde todos admiram, há vontade de comentar:

— Que beleza!

— Que magnífica!

— Que delicada!

— Mas, que nobre!

— Que majestosa!

— Que imponente!

Esses e outros comentários que esvoaçam pelo ar dão animação ao ambiente.

Segundo esta concepção monárquica, o papel do rei e da rainha, quando eles se elevam muito, é de doação. Os revolucionários, pelo contrário, querem ver no rei que está muito elevado um orgulhoso.

Ora, a ideia antiga era de que o rei e a rainha devem saber fazer-se admirar, ter qualidades que possam mostrar para que sejam analisadas. O povo francês analisava intensamente a rainha, mas as suas qualidades eram autênticas e por isso ela resistia ao exame.

Vida, esplendor e alegria

Houve um escritor francês que fez a seguinte comparação entre Luís XIV, o Rei Sol, e Napoleão, o intruso, o ladrão de tronos: Luís XIV sabia discernir, reunir e inspirar todos os homens de gênio – com genialidade, de grande capacidade intelectual, talentos artísticos, etc. – que ele encontrava em torno de si. De maneira que ao redor dele tudo floresceu. Napoleão, pelo contrário, tinha um modo de ser que levava os homens todos a se curvarem diante dele, e diante dessa multidão curvada ele dizia: “Só eu que valho”.

O rei autêntico é aquele que se dá de maneira a todos serem algo e tudo cresça em torno dele. O tirano não, ele faz com que todos se abaixem diante dele, ninguém se sobressaia a não ser ele.

Maria Antonieta conseguia isso fazendo o mesmo papel que a “stella matutina”, quando aparece ainda em plena noite. Quer dizer, sem essa estrela tudo seria muito mais apagado. Mas com ela cintilando, tudo se enche de vida, esplendor e alegria.

Esplendor é a fulguração da luz. Diz-se que uma luz fulgura quando ela tem uma forma especial e mais fascinante de brilho. E, nota final, “cheia de alegria”. Entretanto que alegria séria dentro de tanta elegância, distinção, leveza e superioridade! Como era preciso uma pessoa estar se dominando, ser senhora de si e saber o que realizava, para quem e como olhava, como saudava, o que fazia das mãos, dos pés, do tronco, como inclinava a cabeça na hora de cumprimentar alguém ou de responder a um cumprimento! Tudo isso constitui uma espécie de ascese contínua contra a qual luta a preguiça humana. A vontade de não prestar atenção, de ir fazendo de qualquer jeito, ao invés de entrar na sala quase em passo de minueto e percorrer o recinto com todo o esplendor, como uma estrela cruza o horizonte, e não com a vulgaridade com que passa pela rua um banal holofote de automóvel.

Entre hienas e serpentes, ela caminhava com confiança na Providência

Oh, que revolução! E que coração precisaria ter eu para contemplar sem emoção tal ascensão e tal queda!

Então, essa figura tão radiosa passar daquele extremo de elevação à posição de uma mulher, vestida como uma qualquer e sentada num banquinho de um carro sem encosto, com as mãos atadas atrás, um boné feio, todo amarfanhado, já usado por outras pessoas, e deixando aparecer os restos do cabelo que tinha sido cortado para não embaraçar a guilhotina!

Na véspera da execução de Maria Antonieta, esteve na sua enxovia, no seu cárcere, um cabeleireiro que cortou o cabelo dela a fim de abrir caminho para a guilhotina. Podemos imaginar o que significou para ela, que morreria no dia seguinte, sentir o frio do aço da tesoura deslizar sobre a sua nuca, traçando mais ou menos o itinerário da lâmina da guilhotina, sendo quase uma espécie de pequena guilhotinação antes da verdadeira execução. Uma coisa terrível!

Sobre essa Rainha pousavam séculos de glória, ligada à Casa mais nobre que pudesse casar-se com a Casa dela, que era a dos Bourbons. Rainha da França, portanto da nação primogênita da Igreja, caminhando entre feras, hienas e serpentes para ser morta, e caminhando com confiança na Providência. Deus, permitindo que nem isto lhe fosse poupado, pediu-lhe este ato de Fé, de confiança. E Maria Antonieta teve que confiar em que Deus tinha os olhos postos sobre ela, a amava e a guiava até o lugar da extrema imolação.

Olhar para Deus, que permitira que um tal peso caísse sobre ela, com tanta confiança e continuar o itinerário para a morte, era a seu modo, a meu ver, uma forma de martírio.

Não é uma forma vergonhosa. É compreensível que ela tenha sentido isto como uma vergonha. Mas se ela olhou para Deus no mais alto da glória d’Ele e pensou no que disse Nosso Senhor: não cai um fio de cabelo de nossa cabeça e nem um passarinho de uma árvore sem que Deus saiba, era impossível que isso acontecesse com a Rainha da França sem que o Criador tomasse conhecimento. Deus conhece tudo.

Podemos imaginar a placidez da Rainha e o ato de confiança que ela deve ter feito n’Ele nesse momento: “Meu Deus, tudo está me acontecendo. Vós permitis contra mim tudo, mas eu confio em Vós!” Como isso deve ter cintilado no Céu, mais do que resplandecia ela quando entrava na sala de bailes de Versailles!

A era da Cavalaria tinha passado

Não podia sequer sonhar – quando ela inspirava não só a veneração, mas também um amor entusiástico, distante e cheio de respeito – que alguma vez ela se veria obrigada a levar, escondido no seu seio, o pungente antídoto contra o opróbrio.

Vemos como o autor fala mais uma vez de como o povo recebia essa distribuição de beleza, de dignidade dadas com efusão. Era a generosidade dela que distribuía a todos a ocasião de conhecê-la e de louvarem a Deus por haver criado uma tal obra-prima, exaltavam a Civilização Cristã por ter modelado, através da corte da Áustria e da educação de Maria Teresa, aquele primor, louvavam a França por ter levado essa excelência a esse paroxismo difícil de imaginar. Vê-se como ela desenvolvia exuberantemente a tarefa de rainha.

Não podia imaginar que viveria para ver semelhantes desgraças abaterem-se sobre ela numa nação de homens galhardos, numa nação de homens honrados e de cavaleiros.

Supus que dez mil espadas teriam saltado para fora das suas bainhas a fim de vingar tão somente um olhar que a ameaçasse de um insulto.

Então se alguém pousasse sobre ela um olhar que apenas a ameaçasse de um insulto – não é, portanto, lançar um insulto –, dez mil espadas se teriam desembainhado para liquidar esse miserável. Entretanto, as circunstâncias estavam mudadas e a estrela da manhã se tinha transformado no símbolo da dor.

Porém a era da Cavalaria passou.

O entibiamento já começara a transformar todos os homens em vis ganhadores de dinheiro, preocupados apenas em comer, beber, ter casarões confortáveis onde se refocilarem, gastar muito em prazeres imorais. A era da Cavalaria tinha passado. Assim, porque a Idade Média acabava de morrer, essa infâmia se realizava.

Sucedeu-a a dos sofistas, economistas e calculistas; e a glória da Europa está extinta para sempre.

Embora com muito talento e tintas de conservador, Burke era um protestante e não possuía a visão católica das coisas. Se ele tivesse essa visão, conservaria no fundo da alma uma esperança, uma determinação: “Se eu falecer, estarei pedindo a Deus que faça morrer a Revolução e vencer a Contra-Revolução.”

Se a Contra-Revolução vencer, a glória da Europa não estará extinta, mas renascida com esplendor ainda maior, como aconteceu provavelmente com Lázaro. Se a Revolução vencesse e a Contra-Revolução não a esmagasse, estaríamos rolando para o fim do mundo mais ignominioso; neste caso, sim, ter-se-ia extinguido a glória da Europa. Mas no dia em que a Europa não tiver mais glória, no dia em que, sobretudo, a Santa Igreja Católica tenha deixado de fazer luzir a sua glória, ainda merecerá o mundo existir? A Santa Igreja não pode morrer. Antes que ela morra, Deus matará o mundo.

Nada se compara com a glória do Batismo

Nunca, nunca mais contemplaremos aquela generosa lealdade para com a categoria do sexo frágil…

Vejam a ênfase dele: “Nunca, nunca mais…” É um protestante sem nossas esperanças. Ele não seria capaz de crer na promessa de Nossa Senhora de Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”, pela simples razão de que, sendo protestante, a crença que ele tem não lhe comunicaria bastante força para o ato de Fé.

Burke se refere neste trecho à “generosa lealdade para com a categoria – quer dizer, a respeitabilidade, a distinção – do sexo frágil”. Hoje, com esta mania maldita de nada discriminar – o que equivale a dizer tudo igualar, nivelar, confundir, pôr na desordem e no caos –, o sexo frágil não podia estar reduzido a menos do que está. Com a permissão de, ao lado de um homem, representar o papel de esposa outro homem, o sexo feminino ficou reduzido a não sei o quê…

…aquela ufana submissão…

É uma linda ideia: uma submissão cheia de ufania! É assim a submissão que nós, católicos, temos à infalibilidade papal. Não é possível levar mais longe o senso da obediência do que nos submetermos à infalibilidade papal. Mas isso, que é um ato de obediência, é nossa honra.

Tomem o rei mais glorioso e poderoso do mundo, imaginem Maria Antonieta no auge de sua glória, isso é nada em comparação com a glória do Batismo, pelo qual nos tornamos filhos de Deus, da Santa Igreja e templos do Divino Espírito Santo.

…aquela obediência dignificada, aquela subordinação do coração, que mantinha vivo, até na própria servidão, o espírito de uma liberdade enaltecida.

A própria servidão – não creio que ele aluda à escravidão, mas se refira à submissão que os plebeus prestavam aos nobres e estes ao rei – tinha o sentido de uma liberdade enaltecida, e não de uma liberdade surpresa por ferros de humilhação e de prisão. Essa é a ideia que se tinha no Ancien Régime(2), por tradição medieval remontando à Santa Igreja, do senso de obediência e de disciplina.

“Eu apelo a todas as mães de França”

Concluo estes comentários contando um episódio, que é outro aspecto da tortura sofrida por Maria Antonieta.

Luís XVI teve de Maria Antonieta dois filhos: um menino, que deveria ser o futuro herdeiro do trono, e uma menina. Esse filho e essa filha foram transportados pela multidão revolucionária de Versailles para Paris, e encarcerados com o Rei, a Rainha e uma irmã do Rei, a Princesa Elisabeth, na Torre do Templo.

Certa noite apareceram alguns revolucionários, dizendo terem ordem de levar embora o filho de Maria Antonieta. O menino dormia. Ela se opôs entrando em luta contra eles, que eram homens fortíssimos. Imaginem essa princesa delicada lutando com aqueles chacais… Naturalmente ela não conseguiu vencê-los, imobilizaram-na e levaram embora o menino, em meio aos prantos da pobre mãe.

O príncipe foi conduzido para um outro recinto da Torre do Templo, e Maria Antonieta queria saber notícias dele – sendo mãe, era mais do que explicável –, como ia sua saúde, se ele estava se alimentando bem, e eles não davam resposta. O sentimento de compaixão mais elementar levaria a responder. Se ele não estivesse bem, poderia haver a tentação de contar uma mentira e dizer que se encontrava bem, para aquietar aquele coração materno.

Ela não viu mais o filho e, morto o Rei, foi feito um processo contra Maria Antonieta, que acabou sendo condenada à morte também.

Ao longo desse processo fizeram contra ela as piores acusações. Durante um julgamento iníquo, trouxeram o príncipe, a quem tinham embriagado, e induziram-no a testemunhar contra a própria mãe, acusando-a de ter praticado com ele uma torpeza.

Maria Antonieta teve este gesto sublime. Levantou-se e disse: “Eu apelo a todas as mães de França para que digam aqui se acreditam nesse depoimento.”

A sala estava cheia de mulheres, todas elas se levantaram e aplaudiram a Rainha até ao delírio. O presidente do tribunal – para chamar de tribunal essa conjuração de celerados – tocava a sineta para obrigar as mulheres a ficarem quietas, mas elas batiam palmas com mais entusiasmo, o que era um modo de protestarem contra aquilo tudo.

Ele ficou indignado e mandou expulsar à ponta de espada todas as mulheres de dentro do auditório, porque percebeu que a partir daquele momento as mulheres ali presentes aplaudiriam tudo o que Maria Antonieta dissesse, desmentindo a tese de que era o povo quem tinha feito a Revolução.

Maria Antonieta voltou para o seu lugar de ré, e dali a pouco o presidente do tribunal encerrou o debate e disse: “Agora os senhores juízes vão emitir a sentença sobre esta ré.” Maria Antonieta, quieta, ouvia cada um pronunciar a sentença. Ela foi condenada à morte por unanimidade de votos.

Todos foram saindo da sala, bem entendido, sem olhar para ela. O que teria pensado ela nesses momentos? Ninguém sabe. Algum tempo depois, a sentença foi executada.   v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/8/1994)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

 

1) BURKE, Edmund. Reflections on the Revolution in France, in Two Classics of the French Revolution. Nova Iorque: Anchor Books-Doubleday. 1989, p. 89.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII, extinto em 1789, com a Revolução Francesa.

O homem-saúva

O homúnculo luta contra todas as formas de luta. Ele trava uma batalha cedendo, fugindo, capitulando, deixando-se esmagar. A esta família de almas pertencem os incondicionais do ecumenismo. Temendo as disputas entre as religiões, querem fundir todas numa só pan-religião. Quanto mais igualdade melhor, para lá vão seus anelos pacifistas, rumo ao comunismo ou ao anarquismo.

 

Conheço o caso de um antigo fazendeiro paulista, senhor de vastos cafezais e de uma espaçosa mansão: quadrilátero com dois andares, porta ao centro e janelas de guilhotina iguais ao longo de toda a fachada. Ornamento externo nenhum. O fazendeiro, segundo o estilo tradicional, era também advogado e político.

Ruína de um laborioso fazendeiro

Família unida, títulos de propriedade seguros, terra roxa, casa firme, colonos submissos, vizinhos pacíficos, nada faltava ao sossego daquele laborioso fazendeiro. Mas um adversário inopinado atacou, no cerne, o feudo tão sólido. No cerne, digo, pois irrompeu inopinadamente dentro da própria casa. E, mais surpreendente ainda, esse adversário vinha de baixo para cima.

Um só adversário? Mais exatamente milhares, talvez milhões. Pequenos, conquistando terreno aos milímetros, no silêncio, despercebidos, dominaram o subsolo, enquanto em cima, na casa, o fazendeiro e sua família trabalhavam, comiam, bebiam, dormiam e se divertiam.

Um belo dia, uns poucos irromperam na copa. O fazendeiro os matou e ordenou uma investigação. E percebeu que já eram numerosos a ponto de ser inútil qualquer resistência. As saúvas – pois eram elas – haviam construído por todo o subsolo um labirinto tão vasto que inútil seria destruí-lo.

Para resumir a história, o fazendeiro mudou-se, a casa ficou abandonada, o cafezal começou a ser invadido. Esse fazendeiro, que julgava nada ter a temer de qualquer potentado, foi arruinado por essas miríades de adversários pequenos, escuros e silenciosos.

Os vastos e obscuros porões da mediocridade

Lembrei-me disto quando comecei a escrever o presente artigo. Pois o tema sobre o qual queria escrever era o triunfo dos homúnculos na sociedade moderna. Por homúnculos entendo aqui os homens de espírito pequeno, que cabem, cada qual por inteiro, em um dos mil alvéolos da vida cotidiana, os que querem uma vida feita pela banalidade de cada dia, para os quais ontem foi incolor, inodoro e insípido, como hoje e como amanhã. O oxigênio que respiram é a banalidade, e o prazer das coisas está essencialmente na repetição.

Para homúnculos assim, incômodo é tudo quanto é grande, venerável pela antiguidade ou magnífico pelo futuro que abre; tudo, enfim, que sai das dimensões cotidianas: holocausto, valentia, genialidade, delicadeza, excelência, infortúnios trágicos, e tantas outras coisas. É preciso acabar com tudo isto, com todos os que são assim, ou que algo disso refletem em seu espírito, em suas maneiras, sua linguagem, seu modo de ser ou sua conduta.

As incontáveis mudanças ocorridas em nosso século, em quase todos os domínios da vida, constituem vitórias dos homúnculos, pois elas sempre diminuem algo ou alguém. A sociedade humana se vai afeiçoando cada vez mais ao gosto das almas-saúva. O que tem como consequência que as almas grandes se sentem, neste mundo minado em torno delas, como o meu fazendeiro. Quem hoje aspira a qualquer forma de grandeza, máxime a da virtude, ou se disfarça ou sobre ele se precipitam imediatamente as saúvas saídas dos vastos e obscuros porões da mediocridade. E o expulsam para as regiões da incompreensão, da indiferença e do isolamento, nas quais a mediocridade reduz a viver quantos não cabem nos padrões dela.

Os incondicionais do ecumenismo

Vejo neste gigantesco fenômeno sociopatológico, nessa insurreição universal dos homúnculos contra os que os sobrepujam, uma das causas do entreguismo do Ocidente. O homúnculo, o homem-saúva, detesta a luta mais do que tudo. Esta acarreta grandes esforços, só entusiasma as grandes almas, ocasiona a fulguração de grandes infortúnios. O homem-saúva luta, por isso, contra todas as formas de luta. Singular batalha que ele trava cedendo, fugindo – para baixo, bem entendido –, capitulando, deixando-se esmagar até, se não houver outra solução.

A esta família de almas pertencem os incondicionais do ecumenismo. Temendo o aceso das disputas entre as religiões, o homem-saúva quer fundir todas numa só pan-religião, aliás mais ou menos ateia. Para o homem-saúva, todas as crenças e todas as descrenças devem confundir-se no mesmo ralo do ecumenismo.

Pela mesma razão, o homem-saúva está pronto a dar de barato sua pátria, como faz com suas crenças. O inimigo, ele prefere não o ver. Se é obrigado a vê-lo, imagina-o em vias de conversão, “desestalinizado”1, de face humana, transformado em pacato – e ambíguo… – socialismo.

Se o inimigo penetra nos setores políticos do país, ele lhe sorri e o rotula de “pra-frente” e “no vento”. Se se infiltra nos meios católicos, qualifica-o analogamente de “progressista”. Quando o inimigo cresce tanto que se torna ameaçador, o homem-saúva proclama irreversível o perigo, e tenta, como meio-termo, uma estratégia de “convergência”, inspirada no lema “vão-se os anéis e fiquem os dedos”. E, por fim, se o inimigo, depois de tomados os anéis, exige os dedos, o homem-saúva sussurra “vão-se os dedos e fique a vida”.

Mas todas essas concessões, o homem-saúva só as faz à esquerda. Toda a sua ação silenciosa e inexorável, de infiltração, de corrosão, de erosão, ele a faz na direita e no centro, onde costuma instalar-se. E então não cede, não foge, não converge, ele mina.

Por quê? Detestando tudo quanto é elevado, nobre e harmoniosamente desigual, para o homem-saúva, quanto mais igualdade melhor. E para uma igualdade totalmente rasa, totalmente plana, para lá vão seus anelos pacifistas. Rumo ao comunismo ou ao anarquismo.

Vivemos numa época de revolução. É banal dizer-se. Sim, da revolução dos homens-saúva contra tudo quanto tenha qualquer grandeza…      v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito de A Folha de São Paulo, 11/7/1981)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

 

1) Sem os excessos de Stalin.

 

Equilíbrio por excelência

Comentando, a pedido de seus jovens discípulos, uma das últimas fotografias de Dona Lucilia, Dr. Plinio analisa um marcante e fundamental traço da personalidade de sua extremosa mãe: o equilíbrio.

 

O misto de seriedade, de gravidade, de bondade e até de meiguice que se exprimem na fisionomia dela são qualidades que existem nela de um modo tão excelente, e que se combinam para formar um todo tão agradável de ver no seu conjunto, que se fica com a vontade de olhar indefinidamente.

Profunda diferença entre Dona Lucília…

Combinam-se aí algumas qualidades que são difíceis de combinar porque têm qualquer coisa de antitético. Não é de contraditório, mas que poderia parecer à primeira vista. Qualquer coisa que, por outro lado, o espírito moderno recusa profundamente, mas que por causa disso mesmo agrada nossos espíritos também profundamente. Nós vemos nela uma espécie de corretivo para o espírito moderno; há qualquer coisa de equilibrado, de tal maneira que não se saberia dizer que pudesse ser maior nela.

Essa fisionomia é a do equilíbrio por excelência. Não há – pela graça de Deus, porque essas não são qualidades meramente humanas – nenhum perigo de sair, diante de um fato que a choque muito, uma palavra desequilibrada.

Digamos, por exemplo, uma coisa que a qualquer mãe chocaria no auge: imaginem que, estando ela numa sala de sua casa, entrasse uma pessoa e lhe dissesse:

— Dona Lucília, o Dr. Plinio acaba de ser assassinado aqui na sala ao lado.

Seria um choque imenso, ela era capaz de morrer. E o indivíduo acrescentasse:

— Quem o matou fui eu.

Ela poderia ter qualquer reação, menos a de insultar o assassino.

Qual seria a reação dela? Ela poderia ficar algum tempo desmaiada, chorar com um pranto muito longo e dolorido e até gemer alto:

— Ai, meu filho!

Poderia dizer ao homem:

— Mas, por que o senhor fez isso com o meu filho?

E como as mães são todas tendentes a se iludir com o filho, ela poderia acrescentar para ele:

— Ele era tão bom. Por que o senhor o matou?

…e muitas mães imbuídas da mentalidade moderna

Entretanto dizer a ele: “Cachorro! Bandido! Ponha-se fora daqui!”, não saía. Pegar um objeto e atirar nele, não tinha possibilidade; a reação seria equilibrada.

Mas digamos que o assassino quisesse, numa dessas atitudes desequilibradas de facínora, chegar perto dela para agradá-la e consolá-la. Ela tiraria o corpo, profundamente desagradada e afirmaria:

— Não toque em mim!

Infelizmente há muitas mães, imbuídas da mentalidade moderna, que agiriam com desequilíbrio nessa ocasião. Uma primeira atitude desequilibrada poderia ser de sentir pouco a morte do filho.

— Mataram? Mas o corpo dele onde está? Precisa avisar à polícia. Vamos arranjar, então precisa vestir o cadáver…

E a coisa iria por aí.

Poderia ocorrer – se fosse uma senhora com um feitio mais tradicional, mas dentro do desequilíbrio moderno – que ela pegasse um objeto e jogasse em cima do sujeito. Infelizmente, não estaria excluída a hipótese de ela falar um palavrão.

Dona Lucília poderia dizer ao indivíduo:

— Saia de minha casa já! Não a polua com a sua presença. Eu me arranjo na pior dor da minha vida. Saia!

Porém se o assassino dissesse, contrito:

— Minha senhora, eu não sou digno de estar na sua casa, mas lembre-se de que tive uma mãe que me quis bem como a senhora amou seu filho, e tenha pena de mim.

Ela era capaz de não chamar a polícia. Se alguém quisesse fazê-lo, ela não se oporia, mas ela poderia não chamar.

Ao cabo de um ano, digamos, depois desse episódio, mamãe estaria ainda “sangrando” pelo que acontecera nesse dia. Mas ao contar o fato e se referir ao assassino, poderia dizer “infeliz” ou “miserável”. Mas chamá-lo de cachorro, monstro, etc., não faria. Havia um equilíbrio, um limite para cada coisa.

Perda do patrimônio devido à omissão de um parente

De outro lado nota-se nela um fundo de tristeza. Mas não é uma tristeza que arranque dela expressões de revolta, nem de inconformidade com os causadores dessa tristeza. Ela está olhando para o passado, medindo mais uma vez o que foi feito e que não deveria ter sido realizado, e está chorando no interior de sua alma. Mas, no fundo, ela possui a calma de uma pessoa que almoçou e está descansando um pouco, depois da refeição. É o equilíbrio! O equilíbrio no bem, na verdade, no dever, mas sempre o equilíbrio. Este era o traçado contínuo da vida de Dona Lucília: em tudo e por tudo, em todos os aspectos da sua vida, acontecesse o que acontecesse, a atitude dela era de equilíbrio.

Passou-se com minha mãe o seguinte fato: Durante uma viagem que meu pai teve que fazer a Pernambuco, ele a aconselhou, e ela aceitou: dar uma procuração a um parente dela, para que este tomasse conta dos seus bens. Esse parente, entre outras “maravilhas”, fez a seguinte: ele devia renovar o seguro do edifício contra incêndio, mas deixou esgotar o prazo e o resultado foi que, no dia seguinte ao vencimento do seguro, o prédio pegou fogo e ela perdeu o patrimônio.

É ou não é verdade que os senhores conhecem senhoras que teriam atitude de desequilíbrio nesse caso? A começar por um conselho para o parente: “Não apareça tão cedo aqui!” E podia ser em termos muito mais quentes do que esses…

Dona Lucilia, na noite do próprio dia em que aconteceu isso, quando ela ainda estava “digerindo” a péssima notícia, ele aparece e a cumprimenta. Ela disse boa-noite para ele, com calma, com normalidade, fê-lo sentar e pediu:

— Fulano, explique-me um pouco como foi isso, porque eu não entendi bem.

Ele deu a explicação, e ela depois me contou:

— Coitado desse nosso parente, passou por um grande desgosto.

Uma outra pessoa diria:

— Que me importa o desgosto dele? Foi um relaxado. Se há uma coisa que um homem que tem uma procuração não pode fazer é deixar passar o prazo de vigência de um seguro contra incêndio. Ele está gravemente responsabilizado por isso, e agora deve entrar com o dinheiro dele para ressarcir o mal que me causou.

Mas a resposta de mamãe seria:

— Oh! coitado, ele tem muitos filhos. Nós podemos viver menos bem sem isso. Não vamos escangalhar a vida dele.

Sofrer na Terra para chegar ao Céu

É um equilíbrio com bondade, onde entra muito o coração, não um equilíbrio metálico; mas que não leva a bondade a dominar a justiça. Se esse procurador tivesse lesado terceiros em benefício dela, ela teria exigido que esse homem restituísse para a pessoa lesada tostão por tostão, inclusive com os juros devidos. Sem nenhuma dúvida.

Assim eu poderia contar cem episódios, se houvesse tempo e se não tratasse de pessoas às quais alguém que tome conhecimento desses fatos possa vir a identificar, pois não quero estar difamando ninguém. Tenho certeza de que no Céu, onde ela se encontra, mamãe está aprovando a minha conduta.

Vê-se, nesta fotografia, que é uma senhora que atingiu uma idade extrema. Ela estava com noventa e dois anos nessa ocasião, idade em que falecem os que morrem tarde. Foi uma pessoa que não exerceu nenhuma profissão. Entretanto percebe-se que ela carrega consigo um grande cansaço. Cansaço do quê? Em parte é o que nós poderíamos chamar o cansaço do equilíbrio.

Cansa estar procurando o equilíbrio em tudo, e cumprindo a justiça em tudo. Levar uma vida inteiramente dentro dos Mandamentos é preparar-se para o Céu, mas ainda não é o Céu. Pelo contrário, é o sofrer na Terra para chegar até lá.

Vemos aí o extremo cansaço de inúmeras dores, de incontáveis deveres cumpridos, de situações difíceis enfrentadas e vencidas sem a menor pretensão. Ninguém, olhando para ela, diria o seguinte: “Essa senhora se considera um colosso.” Nada, nem um pouco, nem passa pela cabeça dela isso. Por quê? Equilíbrio.        v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/1/1994)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

Admiração desinteressada e inocente

Precisamos admirar o que é superior a nós para sermos contrarrevolucionários. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, do fundo de nossas almas seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Ver alguém ser contrário a isso nos afeta mais do que se nos tivesse dito um desaforo. O suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

 

Se prestarmos atenção no mundo de hoje, veremos o quanto ele é feito quase exclusivamente de interesse individual. Quando se trata de ser elogiada, a pessoa gosta; mas já não lhe agrada ouvir elogios dirigidos a outro. O mesmo se aplica a ganhar dinheiro, ter saúde, conforto, enfim qualquer vantagem: o indivíduo fica muito contente desde que seja ele o beneficiado.

A inversão de valores no mundo atual

Ora, por vezes, quando nos reunimos, embora sejamos de nações, formação cultural e educação tão diversas, vibramos de alegria ao celebrarmos as glórias alheias, considerando a vida e os feitos de diversos personagens históricos. Qual a razão dessa alegria?

O ser humano foi feito para crescer, tanto na alma quanto no corpo. De maneira tal que do próprio Menino Jesus diz o Evangelho que Ele “crescia e Se fortalecia, enchia-Se de sabedoria” (Lc 2, 40). Ao ler isto, tem-se a impressão do Divino Infante crescendo, florescendo, da infância delicada e sacrossanta do presépio para a adolescência e a força da idade madura, em que Ele iria carregar o lenho.

Essa transformação gradual, dia a dia, em que Ele cada vez mais se transformava de flor em cruz, de encanto em esplendor de sacrifício, era uma coisa que aumentava a formosura varonil d’Ele cada vez mais; dava-Lhe aquela forma superior de beleza que é o charme, mas o charme do varão forte, varonil, empreendedor, sério, seguro, porém tão delicado, meigo, paterno, de tanta ternura, que quase não se sabia como conciliar uma qualidade com outra. Isso era no Corpo, mas sobretudo na Alma.

A maior parte das pessoas pensa que a alma é uma espécie de radar feito para captar as necessidades do corpo e atendê-las, que ela existe para o corpo. Segundo esta concepção, o homem vive para fazer negócios bons a fim de comer. Então, a inteligência tem como função encontrar comida.

Ora, esse faro até cachorro ou um bicho pastando tem também. Para isso não é preciso possuir alma. Entretanto, a grande maioria das pessoas concebe as coisas assim. Formou-se e vai seguir tal carreira para quê? Ganhar dinheiro para poder comer, beber e dormir.

Então o homem não é senão um bicho mais complicado do que os demais e, enquanto tal, inferior aos outros animais. Porque se um boi, sem diplomas, encontra comida, o homem é apenas um bicho mais complicado do que o boi.

Nós vemos, então, como é absurdo admitir que o animal é mais do que o homem e a vida do animal mais perfeita do que a humana. O intelecto não pode ter como finalidade principal a manutenção do corpo. Contudo, se analisarmos o papel dado à alma no mundo contemporâneo, qual o interesse da maioria das pessoas pelos bens do espírito e pelas solicitações do corpo, notaremos uma desproporção arrasadora, simplesmente. As pessoas cuidam do corpo e a alma fica completamente de lado. É uma inversão de valores, por onde aquele que deveria ser rei é o servo.

Alegria do relacionamento entre almas com qualidades diversas

Pois bem, há um instinto na alma humana profundo, chamado instinto de sociabilidade, que faz com que os semelhantes se procurem. Este instinto também leva o homem a alegrar-se e a relacionar-se quando nota em alguém qualidades aparentemente opostas às dele, mas que o completam harmonicamente.

Imaginem Carlos Magno preparando os planos para uma invasão em terras de infiéis.

Sozinho na sua sala, caminhando de um lado para outro com passos firmes e cadenciados, sobre um chão de mármore ou de granito polido, está o Monarca de barba florida. O recinto, ainda com influência românica, possui arcadas que dão para um pátio interno onde há um pequeno chafariz sobre o qual pousa um pássaro que começa a saltitar. O Imperador interrompe seu caminhar, olha o passarinho e sorri amavelmente.

O passarinho é tão diferente dele! Entretanto Carlos Magno não olhou apenas para a ave, mas sentiu suas próprias vastidões interiores e compreendeu melhor a si mesmo.

O Imperador senta-se, manda vir um pouquinho de vinho e diz:

— Chame Alcuíno, meu ministro e conselheiro. Quero expor-lhe os planos de uma universidade e de uma batalha, porque as duas coisas eu resolvi agora.

O homem se completou.

Entra Alcuíno, monge famoso que organizou a renovação da cultura católica ocidental como ela se desenvolveu na Idade Média; foi o Carlos Magno da cultura. Podemos imaginá-lo como um homem venerável, de rosto comprido, fino, olhar que fita do fundo de arcadas oculares onde olhos pequenos e pretos dardejam, ou olhos azuis e inocentes sonham.

Alcuíno se inclina ante Carlos Magno, que faz um gesto e diz:

— Sentai-vos!

O sábio Monge pede licença para ficar ajoelhado, ao que o Monarca responde:

— Sois clérigo. Não é bom que um clérigo se ajoelhe diante de um leigo. Sentai-vos!

Alcuíno afirma:

— Por vossa ordem e em obediência a Deus, que deseja que o clero seja reverenciado, senhor, eu me sento.

Começa a conversa durante a qual Carlos Magno apresenta as metas gerais para uma universidade. Alcuíno ouve embevecido e pensa: “Que largueza de pensamento, que homem! Vejo todo um continente formando-se atrás da fronte desse Imperador. Que felicidade ter conhecido Carlos Magno!”

Dali a pouco o Monarca vai falando menos e o Monge toma a palavra. Enquanto a voz de Calos Magno lembra espadas e escudos que se entrechocam, a de Alcuíno remonta a sinos que tocam. Diz o douto conselheiro:

— Senhor, para realizar as vossas imperiais e cristianíssimas intenções, que julgo ter bem apreendido, tenho o intuito de vos propor tais matérias, e tal outra tem tal riqueza…

De repente é Carlos Magno quem está entrando pelo mundo da cultura e do saber, e pergunta algo a respeito de Aristóteles, Santo Agostinho, São Jerônimo. Depois quer saber alguma coisa sobre o Concilio de Niceia, tal pormenor concernente à virgindade da Mãe de Deus, e tal outro detalhe a propósito da união hipostática. Nesse momento, Carlos Magno está longe… Não pensa mais no passarinho, nem na batalha contra os germanos ou os árabes. Ele tem apenas diante de si o mundo da cultura e a alma de Alcuíno que se desdobra imensa diante dele, sabendo tudo, explicando tudo. Carlos Magno virou passarinho e saltita na cultura de Alcuíno, encantado!

É natural que isso tenha acontecido desse modo, porque assim é a alma humana. Carlos está diante de quem tem mais cultura do que ele. O passarinho o encantava por ser pequenino, e despertava na alma dele todas as afinidades harmonicamente opostas que o grande tem com o pequeno. Agora é o grande que tem alegria de sentir-se pequeno ao considerar alguém maior do que ele, não absolutamente falando, mas num ponto.

O grande Monarca tem a alegria de admirar e de crescer à medida que admira, saindo dessa conversa mais elevado de espírito e pensando: “Agora sei tal coisa e tal outra. Hoje não conquistei nenhuma província, mas fiquei conhecendo Santo Agostinho. Quando morrer não conduzirei comigo uma província, mas levarei para o Céu o que eu soube e admirei da ‘Águia de Hipona’. Que grande dia este em que conversei com o Monge Alcuíno!”

Ao admirar os que lhe são iguais o homem tende à sua plenitude

Imaginemos agora outra cena que historicamente não se deu, mas poderia ter-se dado: o encontro dos dois imperadores, do Oriente e do Ocidente, em Constantinopla.

Vendo a cidade maravilhosa na praia do Bósforo, parado num cais o Imperador do Oriente espera a chegada de Carlos Magno.

Chega a hora em que desce do navio uma passarela com um tapete sobre o qual Carlos Magno caminha. Ambos de coroa na cabeça se cumprimentam, com ar de um rei que saúda outro rei. Nesse aperto de mão de dois monarcas cristãos, Oriente e Ocidente, eles sentem a presença de Jesus Cristo e estreitam a amizade. Carlos Magno vê seu igual como seu irmão. Sua alma cresceu numa outra dimensão. De igual a igual, cada um deles é mais ele mesmo.

Houve interesse nisso? Não, mas houve vantagem. Essa alma tinha necessidade disso para crescer inteiramente. Todo ser vivo tende à sua plenitude, e Carlos Magno ganhou plenitude no que ele tinha de mais essencial nesses três episódios de sua vida. Ele ficou mais pleno, mais ele mesmo.

Voltando de Constantinopla, algum escudeiro do grande Carlos poderia dizer a alguém que não viu a cena: “Vós não sabeis o que é glória! Vós conheceis um imperador só – Carlos, o Grande – tratando com os que são inferiores a ele. Mas não vistes a glória de nosso Imperador quando ele tratou com um igual. Tinha-se a impressão de um arco-íris que ia de um ponto a outro! Aquilo é glória, quando se viu a soma dessas duas majestades altivas e cordiais entre si. Como é grande isso!”

Sem dúvida, houve vantagem para quem presenciou isso porque cresceu. Mas é preciso ter um espírito tal que se queira isso ainda que não houvesse vantagem; pela homenagem desinteressada e encantada em relação àquilo que é maior, igual ou menor em relação a nós.

Quando admiramos algo superior a nós, prestamos um ato de culto a Deus

Para o mundo contemporâneo esta posição é uma aberração, pois o princípio no qual se baseiam os pressupostos de quase todo mundo hoje em dia é: o que não diz respeito a mim, não me move.

Ora, o princípio que apresento é o contrário: movo-me para conhecer e admirar algo que não sou eu, mas um outro em relação ao qual me coloco numa posição de alegria porque ele é quem é, independente de pensar em mim.

Se isso parece absurdo para a mentalidade hodierna, existiu um ser mais inteligente do que todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo, que também pensou do mesmo modo que a maioria das pessoas de hoje: Lúcifer.

Com efeito, é próprio à criatura, por não ser ela a fonte de seu próprio ser, viver para quem a fez. Logo, o centro de nosso ser está fora de nós, é o nosso Criador.

Imaginem que um escultor esculpisse uma estátua e, miraculosamente, desse-lhe a vida. E tão logo ela acabasse de ser esculpida, dissesse ao seu autor:

— Até logo, vou embora.

O escultor lhe passava um laço e diria:

— Sem-vergonha! Eu te fiz, tudo o que há em ti foi dado por mim, e vais embora? Vou te liquidar, não existirás mais.

Sendo o autor da estátua, o artista tem o direito de servir-se dela. Pois bem, se isso é assim do escultor com a estátua, quanto mais de Deus para conosco. Eu nada era quando Deus resolveu que existisse um Plinio. Ele criou a minha alma; devo, portanto, submeter-me a Ele.

De fato, quando admiramos algo superior a nós, estamos, no fundo, prestando um ato de culto a Deus. Admirar é a postura normal de nossa alma.

Os contrarrevolucionários vivem da admiração

Quando o homem está na postura normal ele sente bem-estar. Mas o bem-estar é um reflexo muito apreciável, porém colateral da ordem que está nele. Por exemplo, um auditório precisa ter cadeiras confortáveis para que os ouvintes se esqueçam do corpo e possam prestar atenção na conferência. Os acolchoados, os braços da cadeira postos a uma altura adequada, o apoio e a distensão que o corpo recebe evidentemente produzem um certo bem-estar. Entretanto, ninguém diria: “Eu vou agora ao auditório para sentar numa cadeira.” A pessoa vai para participar de uma reunião. A posição adequada produz, colateralmente, um bem-estar.

Assim também a própria felicidade que o entusiasmo produz é, ainda ela, secundária em relação a essa admiração desinteressada e cheia de amor que devemos ter para com Deus.

Santa Teresa de Jesus exprimiu isso de um modo magnífico, quando disse que queria amar a Deus de tal maneira que “ainda que não houvesse Céu, eu Vos amaria, e ainda que não houvesse Inferno, eu Vos temeria”. Quer dizer, “independente de tudo, por serdes Quem sois, eu Vos amo quanto posso e lamento não ter capacidade de adorar ainda mais.”

No “Gloria in excelsis Deo”, que se reza na Missa, há um momento em que se diz “Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam”: nós vos damos graças, ó Deus, por vossa grande glória. Não é minha glória, mas a d’Ele.

Consequentemente, quando vemos que alguém não dá a Deus a glória devida, não apenas porque não O admira, mas inclusive blasfema contra Ele, nossa alma é atingida no seu cerne. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, é do próprio fundo de nossa alma que seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Por isso, ver alguém ser contrário a isso é mais do que se nos tivesse dito um desaforo, roubado de nós um objeto ou lançado contra nós uma calúnia. O que foi atingido vale, para nós, muito mais. Não por ser interesse nosso, mas porque o suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

Há, pois, um entrechoque de revolucionários que se negam a admirar e contrarrevolucionários que vivem da admiração. Entretanto por detrás dessa luta há outra que se trava no interior de cada um de nós entre Deus e o demônio, entre a Virgem e a serpente, de maneira que somos um campo de batalha.

Para atuarmos nesses combates, tanto o externo quanto o interno, a Divina Providência nos concede auxílios maravilhosos. Um deles é a graça, participação que o homem tem na própria vida de Deus. A graça é uma criatura, mas ela nos faz participar da vida do Criador e confere à alma forças que estão na linha da sabedoria, da energia, da sagacidade e de todo o esplendor divinos. E isso nós aplicamos na luta também. Não é, portanto, apenas a força natural.

Dentro de nosso campo de batalha interior os Anjos da Guarda são o auxílio poderoso

Outro auxílio poderoso são os nossos Anjos da Guarda. Embora sejam tão superiores a nós que constituam os nossos arquétipos, nessas batalhas eles estão para nós como os escudeiros em relação aos cavaleiros.

Por vezes, os Anjos da Guarda são representados naqueles quadrinhos encantadores, onde aparece um Anjo ajudando uma criança a não cair da bicicleta, por exemplo. É verdade, respeito enormemente, mas não é a função primordial do Anjo da Guarda. Sua principal missão é ajudar-nos a vencer a Revolução dentro e fora de nós, e sermos inteiramente contrarrevolucionários. Somos os combatentes, e ele nos dá conselhos e forças enquanto lutamos.

Quando somos fiéis à graça e à ação angélica, no meio dessa batalha há algo em nossa alma que entra como um coro, uma orquestra de guerra. Por outro lado, se pecamos começa a coaxar um sapo ou grunhir um porco. É o demônio que faz a sua casa naquele que caiu no pecado. E nós, só pelo fato de estarmos em pecado, já passamos a lutar em favor do demônio. Embora nada façamos, o nosso existir em estado de pecado nos inscreve no lado do adversário. Donde a necessidade de, o mais cedo possível, sair dessa situação e voltar ao estado magnífico e diáfano da graça, onde nos transpomos de um exército para outro, e de anjos malditos passamos a ser novamente Anjos benditos.

Quiçá algumas pessoas colocadas diante das verdades acima expostas terão suas almas divididas em duas zonas opostas. Uma, luminosa, clara, alegre, porque ouvir alguém falar daquilo que merece todo o entusiasmo, ou seja, de Deus, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica torna a alma límpida, leve, satisfeita.

A outra zona é obscurecida por interesses mesquinhos: vontade de fazer carreira, de ganhar dinheiro, de aparecer, de ser importante. Isso deixa a alma escura, pesada, abatida, arfando e pensando: “Quando me virão o dinheiro e o prazer que eu quero?” Se vierem, essas pessoas farão o mesmo que realizam todos aqueles que possuem essas coisas: quando a mão está bem cheia, deixam cair no chão porque de nada servia aquilo tudo. Essa é a realidade.

Peçamos a Nossa Senhora a admiração desinteressada e inocente, ponto de partida invencível de todo o ódio necessariamente fulminante, esmagador e vitorioso contra a Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1979)
Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

 

Flor e glória da Cristandade – I

Todo o brilho que circunda a palavra “cavaleiro” se refere a uma das noções fundamentais da Civilização Cristã. Embora pareça existir uma incompatibilidade completa entre o católico e a guerra, o exemplo dos Anjos nos ensina que a força exercida por amor a Deus torna-se sagrada.

 

Não há uma data específica para indicar o fim da Cavalaria, de maneira a se poder dizer: “Ela terminou em tal ocasião”, mas é certo que, assim como os grandes crepúsculos não têm momento adequado para se afirmar que se fez noite, também o “pôr do sol” da Cavalaria não se sabe bem quando se consumou.

Palavra que dignifica o homem a quem se refere

Entretanto, lá pelo século XVII já não se podia propriamente falar nesta instituição. Havia Ordens que já não tinham quase nada da Cavalaria antiga. Possuíam meras recordações, era um título, mas a Cavalaria propriamente dita tinha desaparecido.

Mais de trezentos anos depois, eu encontro jovens que, ao serem chamados de “cavaleiros”, sentem-se dignificados, mesmo sem conhecer tudo quanto a palavra “cavaleiro” significa.

Quando se quer elogiar alguém que teve um procedimento bonito, nobre, abnegado, corajoso, diz-se: “Tu procedeste como um cavalheiro!” Havendo entre dois homens educados uma altercação que se encerra de um modo distinto e elegante, afirma-se: “Terminou como uma contenda de cavalheiros!” Por outro lado, ao queixar-se contra quem lhe faltou com o respeito, uma senhora poderá usar esta fórmula: “O senhor não foi um cavalheiro!”

Cavaleiro – de onde deriva o termo “cavalheiro” – é, portanto, uma palavra que circula por toda parte, mas cujo sentido quase ninguém sabe definir com exatidão. O termo sugere a ideia de alguém que monta a cavalo. Entretanto, quando vemos, por exemplo, alguns soldados da Polícia Militar a cavalo fazendo a ronda do bairro, embora seja uma tarefa digna, honesta, própria a despertar a simpatia, podemos dizer que são cavaleiros? Eles poderão fazer parte de uma força de cavalaria da Polícia Militar, mas a Cavalaria é uma outra coisa.

O que vem a ser o cavaleiro? O que ficou colado nesta palavra de modo que, mesmo sem saber defini-la, todos reconhecem nela um certo brilho, uma certa luz que dignifica o homem a quem se refere? Vale a pena examinarmos isto para compreendermos uma das noções fundamentais da Civilização Cristã, mais ou menos tão perdida na mente do homem contemporâneo como desaparecida está a própria ideia de Civilização Cristã.

Há restos, aromas da Civilização Cristã no mundo de hoje, como num jarro de onde foi retirada uma rosa que ali esteve durante algum tempo: tira-se a flor, fica o perfume. Assim também, da Civilização Cristã no mundo de hoje há um resto de perfume, mas a rosa não está mais presente.

O tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado

Ora, uma das palavras nas quais se sente o perfume da Civilização Cristã é “cavaleiro”. Ele é uma flor e uma glória da Cristandade. A tal ponto que o termo “cavaleiro” tem um nexo histórico e doutrinário muito merecido com a ideia de Cruzada. Quando se diz “fulano é um cruzado de tal ideal, ou de tal causa”, dá-se a entender que é um homem abnegado, heroico, corajoso, dedicado, que não conhece obstáculo, enfim, um grande homem.

Os cruzados não só são cavaleiros, mas o tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado. Que aroma misterioso e delicioso impregna essas palavras de maneira a resistir até à poluição deste fim de era histórica em que estamos vivendo!

Devemos considerar que, ao falar de cavaleiro, referimo-nos a alguém que realizou a mais alta perfeição de um certo tipo de qualidades humanas. Um santo não é necessariamente um cavaleiro, mas um cavaleiro que leve as suas qualidades até o extremo torna-se santo. Mais ainda: um santo, colocado nas condições em que lutaram os cavaleiros, também ficaria um cavaleiro.

O santo é o homem que atingiu a sua perfeição, que foi chamado por Deus a um alto grau de virtude e correspondeu inteiramente, ou de modo exímio, a esse chamado.

O cavaleiro, por sua vez, corresponde a uma forma de perfeição de que deve ser capaz todo homem colocado nas condições de lutar. O verdadeiro católico, impelido pelas circunstâncias a combater, torna-se cavaleiro.

Logo, o cavaleiro é o católico em luta. É uma forma de excelência e de perfeição que se nota no católico quando as condições da vida, do embate entre o bem e o mal, o colocam no caso de batalhar. Aí estará o católico emitindo um particular brilho de sua alma. Esse brilho é o espírito da Cavalaria.

Entre os anjos reinava uma harmonia perfeitíssima

Para termos uma ideia exata da Cavalaria, reportemo-nos ao que poderíamos chamar a primeira manhã da Criação. Deus criou os anjos, puros espíritos; os homens, compostos de espírito e matéria, tendo um corpo perecível no qual estão presentes as naturezas animal, vegetal e mineral; os animais, os vegetais e os minerais. Esse é o quadro geral da Criação que, tomada no seu todo, teve a sua primeira manhã no momento em que Deus criou os anjos.

Podemos imaginar a criação dos anjos simultânea, de maneira a todos, desde o primeiro instante de existência, começarem a brilhar, conhecer, adorar a Deus e a cantar as glórias d’Ele.

Também imediatamente passam a se conhecerem uns aos outros e se relacionarem de um modo harmônico, em coros que cantam a glória de seu Criador. Entre eles reina uma harmonia perfeitíssima porque estão todos voltados para Deus.

Essa harmonia tem o esplendor da paz, que Santo Agostinho definiu tão magnificamente como sendo a tranquilidade da ordem. Portanto, não é a qualquer tranquilidade que se pode chamar de paz, mas àquela que resulta da ordem.

Há formas de desordem que dão a impressão de paz. Num charco, por exemplo, com água estagnada, no qual nada acontece, nada se move, há uma tranquilidade, mas não oriunda da ordem. Há qualquer coisa de propício à podridão, à degenerescência, à degradação, que prenuncia a desordem. Isso não é paz.

Entre os anjos, pelo contrário, por estarem todos ordenados em função da vontade e da glória divinas, havia a permuta harmoniosa de bons ofícios para juntos adorarem a Deus.

Quem introduzisse no Céu qualquer semente de desordem, um espírito mau que tentasse provocar uma intriga entre dois anjos, instigando o amor-próprio de um contra outro para produzir uma encrenca ali dentro, nós o chamaríamos de bandido! Porque ia perturbar a tranquilidade da ordem, o esplendor do Reino de Deus sobre todas aquelas criaturas.

Com maior razão ainda, se um puro espírito sacasse uma espada – para usar uma linguagem metafórica, pois um anjo não tem corpo – e começasse a agredir o outro, nós o consideraríamos demônio. Por que ele vai atingir e ferir o outro, pô-lo em desordem e provocar efervescência de ódio? Colocar o tumulto, as incertezas e as angústias das guerras onde deveria haver apenas a segurança esplêndida e diáfana de um futuro que nada perturbaria?

Quem fizesse isso praticaria uma ação muito má. Nela nós podemos ver o que há de substancialmente mau na violência, a qual, de si, considerada sem as circunstâncias que a expliquem, é um ato feio que macula com a sua própria feiura quem o pratica. O violento fica hediondo. Não há pior ultraje contra alguém do que dizer: “Tem cara de assassino.” É uma coisa horrorosa…

Dir-se-ia, pois, existir uma incompatibilidade completa entre o católico e a guerra, porque ele é membro do Corpo Místico de Cristo; nele está presente, pela graça, a própria vida de Deus, é um templo do Espírito Santo, foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo por Co-Redentora Nossa Senhora, com suas lágrimas indizivelmente preciosas. O católico é um filho da ordem, da tranquilidade, é a sede da paz!

Como podemos imaginar um homem nessas condições que prepara para si uma arma com a intenção de verter o sangue alheio e, quando a arma está pronta, procura a quem matar? Ele deseja tanto matar que até expõe a sua vida para esse efeito, porque tem ódio, quer ver sangue derramado e gente morta pela destra dele. Esse é um católico, um templo do Espírito Santo, um membro d’Aquele que diz: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração…”?! O contraste não é o mais abrupto possível?

Um prélio magno travou-se nos Céus

Entretanto, quando Lúcifer se levantou contra Deus e arrastou com sua revolta uma terça parte dos espíritos celestes, provocando uma Revolução no Céu contra o Criador, houve um Anjo que soube se erguer e bradar: “Quis ut Deus? – Quem como Deus?” Foi São Miguel Arcanjo que, com esse brado, conclamou à luta dois terços dos espíritos celestes, realizando o que diz a Escritura: “Prœlium magnum factum est in cœlis.” Na mansão da paz e da tranquilidade se fez uma grande guerra, um prélio magno travou-se nos Céus e São Miguel com os seus Anjos jogaram no Inferno a Lúcifer e seus sequazes. Portanto, o resultado dessa batalha foi lançar os vencidos na mansão da desgraça incessante, total e inexpiável, sabendo que eles iriam ter esses tormentos por toda a eternidade. Os anjos de paz, que antes se amaram, cindiram-se e os dois terços capitaneados por São Miguel – eles, os pacíficos, os filhos da Luz – quiseram arrojar na mansão eterna das trevas e da morte satanás e seus anjos.

Usando sempre uma linguagem metafórica, imaginemos a cena. São Miguel se levanta indignado, esplendoroso, e brada com uma voz de trombeta que cobre, de ponta a ponta, as vastidões celestes: “Quis ut Deus?” De um lado, muitos Anjos se entusiasmam e aderem a ele, constituindo as gloriosas hostes celestes. Mas, do outro lado – onde talvez houvesse antes um esplendor maior, pois os partidários eram capitaneados pelo mais perfeito dos entes angélicos, aquele que trazia consigo a luz, outrora a alegria do reino celeste, espelhando a Deus para os outros anjos – encontra-se Lúcifer, medonho, rubro de ódio e de cólera. Todas as paixões indignas se manifestam nele; está cheio de inveja e de todos os outros pecados capitais, na medida em que esses podem estar em um anjo. O espírito revoltado encontra-se agora borbulhando de ódio contra aquele Deus a Quem ele olhava com amor.

A luz das hostes de São Miguel avança e a batalha começa! Como terá sido esse embate? Como podem puros espíritos, que não têm corpo, combater entre si?

O fato concreto é que houve três transformações a partir da revolta de Lúcifer. Primeira: ele e seus sequazes se tornaram execráveis e hediondos. Segunda: aqueles anjos que eram de paz, de cordura, se transmudaram nos maiores guerreiros que se possa imaginar. Terceira: a mansão da paz se transformou num terrível campo de batalha.

A força exercida contra os maus por amor a Deus se torna sagrada

A partir desse momento, a violência nos aparece sob outra cor. Se é verdade que, considerada na simplicidade de sua figura primeira, ela é hedionda, quando a vemos ter origem na oposição a um anjo que se tornou péssimo ao se revoltar, tentando ele mesmo a violência contra o Criador, declarando “non serviam – não servirei a Deus”, então o uso da violência passa a ter uma beleza especial.

Deus é supremo e absoluto, todos os direitos valem na medida em que O servem. A partir do momento em que esses anjos se revoltaram contra Ele, opondo-se a todo o direito, toda a ordem e toda a lei, perderam o direito de estar no Céu, e o único lugar proporcionado para eles era o Inferno. Resultado: tornava-se necessário enxotá-los para lá. A guerra surge, assim, como um santo e glorioso dever.

O emprego da força, que pareceria tão contrário à convivência entre os espíritos celestes, passa a ter um esplendor peculiar: é o amor a Deus enquanto recusando o mal e derrubando no Inferno quem é contra Ele.

Como nada pode tornar o espírito humano tão apreciável e venerável quanto o amor de Deus, assim também a força exercida por amor a Ele, chegando inclusive à agressão, quando esta é destinada à defesa da glória divina, se torna sagrada e resplandece com um brilho especial.

Daí vem a noção do homem completo. Se lhe foi dada a ocasião de atacar o mal e não o fez, ele pode não ter desenvolvido a sua força de alma como era necessário. Assim, entre dois homens muito virtuosos, um dos quais pouco lutou na vida, enquanto o outro, de ponta a ponta de sua existência, foi um guerreiro, qual aquele cuja personalidade podemos apreciar melhor? Evidentemente a daquele que, além de ter sido tudo o que o outro foi, ainda combateu.           v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/5/1984)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

Tocha ardente de amor a Deus

Não podemos nos salvar se não tivermos amor sobrenatural a Deus, e é Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, que nos obtém esse amor. Ela ama o Criador mais do que todos os Anjos e homens juntos, e, à maneira de uma tocha a qual se acende no Sol, transmite esse fogo às outras criaturas.

 

Pediram-me para tratar a respeito da invocação de Nossa Senhora do Divino Amor, cuja festa se comemora no sábado anterior ao domingo de Pentecostes. Qual é o sentido profundo dessa devoção?

Só obteremos o amor de Deus por meio de Nossa Senhora

A coisa mais preciosa que o homem pode ter nesta Terra e lhe granjeia o Céu é o amor de Deus. Este é o primeiro dos Mandamentos o qual dá valor a todos os outros. Se uma pessoa cumprisse os nove Mandamentos, por outras razões que não o amor de Deus, aos olhos d’Ele não teria valor, porque é preciso que tudo seja feito por amor do Criador para ter valor. Portanto, a virtude cúpula, a virtude áurea, de acordo com a Doutrina Católica é o amor de Deus.

Por outro lado, é este amor que nos abre a porta do Céu, onde nós estaremos praticando um eterno ato de amor de Deus. De maneira que essa invocação se refere a Nossa Senhora enquanto nos obtendo e comunicando a mais alta virtude e o mais elevado dom que Ela teve e que pode ser obtido para uma criatura.

Isto posto, precisamos nos perguntar qual é o papel de Maria Santíssima na obtenção e na difusão do amor de Deus.

A questão se põe de um modo muito simples. É uma verdade de Fé, a qual ninguém pode negar sob pena de pecado mortal, que Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças, ou seja, todas as súplicas dirigidas a Deus passam por Ela, de tal maneira que os pedidos de todos os Santos do Céu, feitos em união com Maria, são atendidos, mas se Ela não pedisse com eles não seriam ouvidos. Entretanto Ela pedindo sozinha é atendida. Assim, todas as graças concedidas por Deus nos chegam por meio d’Ela. Por vontade divina, a Santíssima Virgem é o canal por onde todas as preces sobem a Deus e todas as graças descem para os homens. Logo, o amor de Deus é Ela que nos obtém.

O amor natural e o sobrenatural a Deus

Em princípio, poderíamos considerar o amor a Deus em duas linhas: o natural e o sobrenatural. O amor natural a Deus seria o praticado por alguém que não conhecesse senão a religião natural. Há certas verdades a respeito de Deus que os homens conhecem simplesmente pela razão, não porque estejam na Escritura e, portanto, tenham sido reveladas, nem por constarem da Tradição, mas por serem dedutíveis pela razão humana. Por exemplo: há um só Deus supremo, criador de todas as coisas, infinitamente perfeito, misericordioso, justo, que ama os homens e os chama para uma vida eterna depois desta existência. Essas verdades o homem conhece simplesmente por sua razão e, de si, justificam o amor a Deus.

Mas para nós, que fomos batizados e temos a Fé e toda a vida da graça a qual a Igreja oferece, não há apenas esse amor natural a Deus. Existe também o amor sobrenatural, fruto específico de um conhecimento sobrenatural de Deus. Quer dizer, o que nós conhecemos de Deus pela Revelação e pela graça é incomparavelmente mais do que a nossa simples razão poderia alcançar. A Santíssima Trindade, por exemplo, nós não conhecemos pela nossa razão, mas por nos ter sido revelada. E assim uma caudal enorme de verdades de Fé fundamentais que nós só conhecemos porque Deus revelou.

Ensina-nos a Igreja que esse ato pelo qual a razão humana adere ao que foi revelado é um ato sobrenatural, ou seja, sem uma graça concedida por Deus para isso, o homem é incapaz de crer. Embora o ato de Fé seja conforme à razão e justificado por ela, o simples raciocínio não basta para que o homem o pratique. Ele precisa de um auxílio especial o qual já é, nesta Terra, o começo da visão beatífica, uma semente do que faremos quando, no Céu, contemplarmos Deus face a face.

Este ato de conhecimento sobrenatural traz como consequência o amor de Deus, que é sobrenatural também. Um amor que só pode ser obtido, portanto, por meio de uma graça. E este amor que vem, portanto, de Deus para nós a fim de O amarmos, é preciso que antes Ele nos tenha amado e nos tenha dado a graça de amá-Lo. O primeiro passo é d’Ele para conosco e não nosso para com Ele. E este amor sobrenatural nos vem da graça; sem a graça nós absolutamente não o obteríamos.

É Nossa Senhora que pede para nós a Fé e a graça do amor. E sem a graça nós não teríamos nem a Fé, nem o amor sobrenatural.

Ela é a Medianeira que nos obtém do Criador este amor sobrenatural a Ele. O católico não pode salvar-se sem um amor sobrenatural de Deus.

Verdadeira alma do apostolado

Não basta dizer que Maria Santíssima, por sua intercessão, nos obtém este amor. Ela é um reservatório, uma tocha ardente deste amor e o comunica aos outros. Ela, que ama mais a Deus do que todas as criaturas juntas O amam, transmite o amor para as criaturas. Mais ou menos como uma tocha a qual se acende no Sol, que é Deus, e depois passa o fogo a todas as outras criaturas. Ela é um reservatório, um mar, um oceano imenso de amor e o transmite aos outros.

Assim, em última análise, para todos os problemas de nossa vida interior temos que pedir, antes de tudo, o amor de Deus. Precisamos agradecer o amor de Deus que nós recebemos e pedir mais. E não podemos fazer a Nossa Senhora uma súplica mais agradável do que pedir-Lhe isso. Se o tivermos praticaremos todas as outras virtudes. Se não o possuirmos não praticaremos nenhuma virtude.

A repercussão disso no apostolado é enorme. Porque o apostolado é um ato pelo qual uma pessoa comunica a outra o conhecimento de Deus, através da Fé, e o amor de Deus, por meio do bom conselho.

Meu ato de apostolado só pode ser fecundo se uma ação sobrenatural da graça ajudá-lo. Senão, é inteiramente incapaz de fazer qualquer coisa boa. Recordem-se da comparação: a graça seria algo de mais ou menos parecido com a energia elétrica que passa pelo tungstênio.

Então, Nossa Senhora é a verdadeira alma de meu apostolado. Porque é por meio d’Ela que obtenho as graças para ele frutificar.

O princípio fundamental do livro de Dom Chautard, Alma de todo apostolado, está representado nesta invocação: “Nossa Senhora do Amor Divino”. Quer dizer, a Santíssima Virgem enquanto dando ao apóstolo o amor de Deus e o ajudando a transmiti-lo para as outras pessoas. Nossa Senhora é a condição fundamental de minha vida espiritual e da fecundidade de meu apostolado.

Aquela famosa figura oriental de Maria Santíssima, que está rezando e tem dentro de Si o Menino Jesus com um pergaminho, ensinando, poderia se chamar perfeitamente Nossa Senhora do Amor de Deus. Enquanto Ela reza, na pessoa d’Ela o Divino Infante ensina. Então, também é Ela enquanto ora que obtém para todo mundo o amor de Deus, ou seja, o Menino Jesus fala a todas as almas, em Nossa Senhora, dando-nos o amor de Deus. Portanto, para quem quer cultivar a fecundidade no apostolado – o apostolado individual, por exemplo – é absolutamente fundamental uma compenetração da importância de Nossa Senhora neste sentido.

O Reino de Maria será o Reino do Espírito Santo

Na capela do Santíssimo Sacramento da Igreja da Consolação, em São Paulo, sobre uma coluna à direita de quem olha para o altar, há uma imagem de Nossa Senhora do Divino Amor, lavrada em madeira, em cujo Coração está a figura do Espírito Santo.

Certa ocasião, rezando diante dessa imagem, vinha-me ao espírito esta consideração: Como seria a alma de Nossa Senhora enquanto inundada pelo Divino Paráclito? Se eu pudesse penetrar na santíssima alma d’Ela, como se entra numa catedral, o que veria?

É próprio do Espírito Santo comunicar a graça divina, um dom criado de caráter espiritual e, ao mesmo tempo, uma participação na vida de Deus; a graça nos transmite a própria vida divina. Compreende-se, assim, a relação possante existente entre a graça e o Espírito Santo.

Maria Santíssima é nossa Mãe, mas também a Esposa do Divino Espírito Santo, que n’Ela gerou misteriosamente o Menino Jesus, tornando-Se, por esta razão, medianeira universal e omnipotente junto a Ele. Assim, sendo a Mãe da Divina Graça e Esposa do Divino Espírito Santo, Ela pede por nós as graças e é atendida. De maneira que Ela é o canal do Divino Espírito Santo junto a nós.

Por ser cheia de graça, Ela transborda das graças do Espírito Santo, e nunca ninguém teve a graça que Ela possui. E é da exuberância de suas graças que Ela nos comunica a graça. Então, tudo quanto Dom Chautard afirma a respeito do apóstolo, que deve ser um reservatório de graças de cuja exuberância todos se abeberam, diz-se de Nossa Senhora de um modo superexcelente, maravilhoso.

Por causa disso também, o Reino de Maria será o Reino do Divino Espírito Santo. São Luís Grignion de Montfort deixou isso claro no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: houve o Reino de Deus Padre e o de Deus Filho, depois virá o Reino do Divino Espírito Santo, que terminará num dilúvio de fogo de amor e de justiça. Esses três reinos sucessivamente devem marcar as três grandes eras da História. Portanto, assim como acreditamos que vem o Reino de Maria, devemos crer na vinda do Reino do Divino Espírito Santo.

Simetricamente com isso, Nossa Senhora obterá – é uma conjectura minha – que o Divino Espírito Santo instaure um foco pujantíssimo d’Ele, que floresça com todos os seus dons na Terra, então desinfestada e purificada da presença imunda dos demônios.

Vamos ficar pasmos com duas coisas que são novas para nós: a fraqueza do mal e a força do bem. Hoje em dia nós vivemos consternados com a fraqueza do bem e a força do mal. Porém, virada essa página da História, teremos o gáudio de constatar a força do bem e a fraqueza do mal. Isso levará nossas almas a não sei que estado de alegria. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 25/10/1971 e 26/11/1985)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

A Virgem que traz consigo a Santíssima Trindade

Maria Santíssima é o templo da Santíssima Trindade: traz consigo o Divino Paráclito; como Mãe do Verbo encarnado, porta consigo Nosso Senhor Jesus Cristo; Filha do Pai Eterno, tem consigo a Deus Pai.

Peçamos, pois, a Nossa Senhora que faça germinar em nós o amor à Santíssima Trindade. E que Ela, a Virgem das virgens, inocentíssima, mas pela qual passaram todas as graças de arrependimento que encheram e encherão até o fim do mundo a face da Terra, nos conceda um perfeito espírito de contrição.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1968)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)