Maria Antonieta, Rainha da França, surgiu como uma estrela da manhã que, em plena noite, cintila e vai enchendo de vida, esplendor e alegria todos os ambientes. Era tão delicada, fina, formosa, que sua presença comunicava beleza à corte. Ela realizou de um modo deslumbrante o papel social da rainha.
Vamos comentar um trecho do historiador inglês Edmund Burke(1), que considero como um dos textos mais impressionantes escritos sobre Maria Antonieta, e não só sobre ela, mas a respeito da situação geral da Europa no tempo da Revolução Francesa.
Ela desponta no horizonte como uma estrela
Fazem já dezesseis ou dezessete anos que vi a Rainha de França, em Versailles, quando era ainda Delfina. Sem dúvida, nunca tinha descido a este mundo – que ela mal parecia tocar – uma visão mais deleitável.
A primeira nota que ela dava era a delicadeza. Em termos diferentes, Burke diz que ela parecia um ente sobre-humano, insinuando ser mais angélico do que qualquer outra coisa, quando afirma que ela parecia uma pessoa como igual nunca tinha descido a este mundo.
Notem como na descrição o autor completa a ideia da delicadeza com a de leveza, ao dizer que ela mal parecia tocar na terra. Quer dizer, ela parecia mais voar, como se tivesse asas invisíveis, do que tocar com os pés. Essa ideia de delicadeza extrema ele apresenta como sendo realmente deleitável.
Vi-a precisamente despontar no horizonte, adornando e animando a elevada esfera na qual começava a mover-se, cintilando como a estrela matutina, cheia de vida, esplendor e alegria.
Ele descreve muito bem a missão de uma rainha que deseja desempenhar o seu papel na sociedade dando da realeza, na sua versão feminina, a visão que se deve ter. Então, ela desponta no horizonte como uma estrela, não aparece como o comum das pessoas que entram, mas é tão luminosa, graciosa, elevada que, ao ingressar, tinha-se a impressão de que era um astro que entrava.
Nessa ocasião, Maria Antonieta não era rainha ainda. Casada com o príncipe herdeiro do trono francês e recém-chegada da Áustria, sua terra natal, estava começando a viver na França. Pois bem, com esse noviciado tão mínimo de contato com a França, eis que ela realiza de um modo deslumbrante o papel social da rainha.
Os verbos adornar e animar, utilizados pelo autor, não foram postos a esmo, sem refletir. Adornar significa aumentar a beleza do ambiente em que está. Portanto, a presença dela tornava mais bela a mais alta sociedade francesa. A sociedade que, exatamente, destacava-se de todas as cortes da Europa por sua beleza era adornada pela jovem princesa austríaca. Maria Antonieta era tão delicada, tão fina, tão formosa, que sua presença comunicava beleza à corte francesa.
Papel do rei e da rainha
Vem a propósito fazer aqui uma consideração muito interessante a respeito do papel do verdadeiro rei. É próprio ao rei mandar. E também à rainha? Sim, em termos. O rei dever ser o mais sério e o mais vigoroso ornato de seu reino. Ele precisa saber ornar, como o faz o homem, pela manifestação da elevação de seu espírito, por suas qualidades morais e intelectuais, pela firmeza de seu braço na direção do timão do país, pela sua estatura avantajada e forte que faz ver nele o varão disposto a todos os heroísmos, amoroso da paz justa, mas também da guerra justa.
À rainha esses atributos cabem, entretanto mais delicadamente, na sua versão feminina. O adorno que a mulher deve trazer é de outra natureza. Estamos vendo bem o adorno que Maria Antonieta portava consigo.
Animar é comunicar vida, despertar os espíritos, entusiasmá-los, levá-los a admirar. Então, provocar admiração, entusiasmo é um dom que a rainha deve proporcionar aos seus súditos. Quando se faz admirar, ela está se dando aos seus súditos e, ao mesmo tempo, concedendo-lhes a ocasião de praticarem esse ato de virtude específico e magnífico que é a admiração.
Admiração traz animação. Num ambiente onde todos admiram, há vontade de comentar:
— Que beleza!
— Que magnífica!
— Que delicada!
— Mas, que nobre!
— Que majestosa!
— Que imponente!
Esses e outros comentários que esvoaçam pelo ar dão animação ao ambiente.
Segundo esta concepção monárquica, o papel do rei e da rainha, quando eles se elevam muito, é de doação. Os revolucionários, pelo contrário, querem ver no rei que está muito elevado um orgulhoso.
Ora, a ideia antiga era de que o rei e a rainha devem saber fazer-se admirar, ter qualidades que possam mostrar para que sejam analisadas. O povo francês analisava intensamente a rainha, mas as suas qualidades eram autênticas e por isso ela resistia ao exame.
Vida, esplendor e alegria
Houve um escritor francês que fez a seguinte comparação entre Luís XIV, o Rei Sol, e Napoleão, o intruso, o ladrão de tronos: Luís XIV sabia discernir, reunir e inspirar todos os homens de gênio – com genialidade, de grande capacidade intelectual, talentos artísticos, etc. – que ele encontrava em torno de si. De maneira que ao redor dele tudo floresceu. Napoleão, pelo contrário, tinha um modo de ser que levava os homens todos a se curvarem diante dele, e diante dessa multidão curvada ele dizia: “Só eu que valho”.
O rei autêntico é aquele que se dá de maneira a todos serem algo e tudo cresça em torno dele. O tirano não, ele faz com que todos se abaixem diante dele, ninguém se sobressaia a não ser ele.
Maria Antonieta conseguia isso fazendo o mesmo papel que a “stella matutina”, quando aparece ainda em plena noite. Quer dizer, sem essa estrela tudo seria muito mais apagado. Mas com ela cintilando, tudo se enche de vida, esplendor e alegria.
Esplendor é a fulguração da luz. Diz-se que uma luz fulgura quando ela tem uma forma especial e mais fascinante de brilho. E, nota final, “cheia de alegria”. Entretanto que alegria séria dentro de tanta elegância, distinção, leveza e superioridade! Como era preciso uma pessoa estar se dominando, ser senhora de si e saber o que realizava, para quem e como olhava, como saudava, o que fazia das mãos, dos pés, do tronco, como inclinava a cabeça na hora de cumprimentar alguém ou de responder a um cumprimento! Tudo isso constitui uma espécie de ascese contínua contra a qual luta a preguiça humana. A vontade de não prestar atenção, de ir fazendo de qualquer jeito, ao invés de entrar na sala quase em passo de minueto e percorrer o recinto com todo o esplendor, como uma estrela cruza o horizonte, e não com a vulgaridade com que passa pela rua um banal holofote de automóvel.
Entre hienas e serpentes, ela caminhava com confiança na Providência
Oh, que revolução! E que coração precisaria ter eu para contemplar sem emoção tal ascensão e tal queda!
Então, essa figura tão radiosa passar daquele extremo de elevação à posição de uma mulher, vestida como uma qualquer e sentada num banquinho de um carro sem encosto, com as mãos atadas atrás, um boné feio, todo amarfanhado, já usado por outras pessoas, e deixando aparecer os restos do cabelo que tinha sido cortado para não embaraçar a guilhotina!
Na véspera da execução de Maria Antonieta, esteve na sua enxovia, no seu cárcere, um cabeleireiro que cortou o cabelo dela a fim de abrir caminho para a guilhotina. Podemos imaginar o que significou para ela, que morreria no dia seguinte, sentir o frio do aço da tesoura deslizar sobre a sua nuca, traçando mais ou menos o itinerário da lâmina da guilhotina, sendo quase uma espécie de pequena guilhotinação antes da verdadeira execução. Uma coisa terrível!
Sobre essa Rainha pousavam séculos de glória, ligada à Casa mais nobre que pudesse casar-se com a Casa dela, que era a dos Bourbons. Rainha da França, portanto da nação primogênita da Igreja, caminhando entre feras, hienas e serpentes para ser morta, e caminhando com confiança na Providência. Deus, permitindo que nem isto lhe fosse poupado, pediu-lhe este ato de Fé, de confiança. E Maria Antonieta teve que confiar em que Deus tinha os olhos postos sobre ela, a amava e a guiava até o lugar da extrema imolação.
Olhar para Deus, que permitira que um tal peso caísse sobre ela, com tanta confiança e continuar o itinerário para a morte, era a seu modo, a meu ver, uma forma de martírio.
Não é uma forma vergonhosa. É compreensível que ela tenha sentido isto como uma vergonha. Mas se ela olhou para Deus no mais alto da glória d’Ele e pensou no que disse Nosso Senhor: não cai um fio de cabelo de nossa cabeça e nem um passarinho de uma árvore sem que Deus saiba, era impossível que isso acontecesse com a Rainha da França sem que o Criador tomasse conhecimento. Deus conhece tudo.
Podemos imaginar a placidez da Rainha e o ato de confiança que ela deve ter feito n’Ele nesse momento: “Meu Deus, tudo está me acontecendo. Vós permitis contra mim tudo, mas eu confio em Vós!” Como isso deve ter cintilado no Céu, mais do que resplandecia ela quando entrava na sala de bailes de Versailles!
A era da Cavalaria tinha passado
Não podia sequer sonhar – quando ela inspirava não só a veneração, mas também um amor entusiástico, distante e cheio de respeito – que alguma vez ela se veria obrigada a levar, escondido no seu seio, o pungente antídoto contra o opróbrio.
Vemos como o autor fala mais uma vez de como o povo recebia essa distribuição de beleza, de dignidade dadas com efusão. Era a generosidade dela que distribuía a todos a ocasião de conhecê-la e de louvarem a Deus por haver criado uma tal obra-prima, exaltavam a Civilização Cristã por ter modelado, através da corte da Áustria e da educação de Maria Teresa, aquele primor, louvavam a França por ter levado essa excelência a esse paroxismo difícil de imaginar. Vê-se como ela desenvolvia exuberantemente a tarefa de rainha.
Não podia imaginar que viveria para ver semelhantes desgraças abaterem-se sobre ela numa nação de homens galhardos, numa nação de homens honrados e de cavaleiros.
Supus que dez mil espadas teriam saltado para fora das suas bainhas a fim de vingar tão somente um olhar que a ameaçasse de um insulto.
Então se alguém pousasse sobre ela um olhar que apenas a ameaçasse de um insulto – não é, portanto, lançar um insulto –, dez mil espadas se teriam desembainhado para liquidar esse miserável. Entretanto, as circunstâncias estavam mudadas e a estrela da manhã se tinha transformado no símbolo da dor.
Porém a era da Cavalaria passou.
O entibiamento já começara a transformar todos os homens em vis ganhadores de dinheiro, preocupados apenas em comer, beber, ter casarões confortáveis onde se refocilarem, gastar muito em prazeres imorais. A era da Cavalaria tinha passado. Assim, porque a Idade Média acabava de morrer, essa infâmia se realizava.
Sucedeu-a a dos sofistas, economistas e calculistas; e a glória da Europa está extinta para sempre.
Embora com muito talento e tintas de conservador, Burke era um protestante e não possuía a visão católica das coisas. Se ele tivesse essa visão, conservaria no fundo da alma uma esperança, uma determinação: “Se eu falecer, estarei pedindo a Deus que faça morrer a Revolução e vencer a Contra-Revolução.”
Se a Contra-Revolução vencer, a glória da Europa não estará extinta, mas renascida com esplendor ainda maior, como aconteceu provavelmente com Lázaro. Se a Revolução vencesse e a Contra-Revolução não a esmagasse, estaríamos rolando para o fim do mundo mais ignominioso; neste caso, sim, ter-se-ia extinguido a glória da Europa. Mas no dia em que a Europa não tiver mais glória, no dia em que, sobretudo, a Santa Igreja Católica tenha deixado de fazer luzir a sua glória, ainda merecerá o mundo existir? A Santa Igreja não pode morrer. Antes que ela morra, Deus matará o mundo.
Nada se compara com a glória do Batismo
Nunca, nunca mais contemplaremos aquela generosa lealdade para com a categoria do sexo frágil…
Vejam a ênfase dele: “Nunca, nunca mais…” É um protestante sem nossas esperanças. Ele não seria capaz de crer na promessa de Nossa Senhora de Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”, pela simples razão de que, sendo protestante, a crença que ele tem não lhe comunicaria bastante força para o ato de Fé.
Burke se refere neste trecho à “generosa lealdade para com a categoria – quer dizer, a respeitabilidade, a distinção – do sexo frágil”. Hoje, com esta mania maldita de nada discriminar – o que equivale a dizer tudo igualar, nivelar, confundir, pôr na desordem e no caos –, o sexo frágil não podia estar reduzido a menos do que está. Com a permissão de, ao lado de um homem, representar o papel de esposa outro homem, o sexo feminino ficou reduzido a não sei o quê…
…aquela ufana submissão…
É uma linda ideia: uma submissão cheia de ufania! É assim a submissão que nós, católicos, temos à infalibilidade papal. Não é possível levar mais longe o senso da obediência do que nos submetermos à infalibilidade papal. Mas isso, que é um ato de obediência, é nossa honra.
Tomem o rei mais glorioso e poderoso do mundo, imaginem Maria Antonieta no auge de sua glória, isso é nada em comparação com a glória do Batismo, pelo qual nos tornamos filhos de Deus, da Santa Igreja e templos do Divino Espírito Santo.
…aquela obediência dignificada, aquela subordinação do coração, que mantinha vivo, até na própria servidão, o espírito de uma liberdade enaltecida.
A própria servidão – não creio que ele aluda à escravidão, mas se refira à submissão que os plebeus prestavam aos nobres e estes ao rei – tinha o sentido de uma liberdade enaltecida, e não de uma liberdade surpresa por ferros de humilhação e de prisão. Essa é a ideia que se tinha no Ancien Régime(2), por tradição medieval remontando à Santa Igreja, do senso de obediência e de disciplina.
“Eu apelo a todas as mães de França”
Concluo estes comentários contando um episódio, que é outro aspecto da tortura sofrida por Maria Antonieta.
Luís XVI teve de Maria Antonieta dois filhos: um menino, que deveria ser o futuro herdeiro do trono, e uma menina. Esse filho e essa filha foram transportados pela multidão revolucionária de Versailles para Paris, e encarcerados com o Rei, a Rainha e uma irmã do Rei, a Princesa Elisabeth, na Torre do Templo.
Certa noite apareceram alguns revolucionários, dizendo terem ordem de levar embora o filho de Maria Antonieta. O menino dormia. Ela se opôs entrando em luta contra eles, que eram homens fortíssimos. Imaginem essa princesa delicada lutando com aqueles chacais… Naturalmente ela não conseguiu vencê-los, imobilizaram-na e levaram embora o menino, em meio aos prantos da pobre mãe.
O príncipe foi conduzido para um outro recinto da Torre do Templo, e Maria Antonieta queria saber notícias dele – sendo mãe, era mais do que explicável –, como ia sua saúde, se ele estava se alimentando bem, e eles não davam resposta. O sentimento de compaixão mais elementar levaria a responder. Se ele não estivesse bem, poderia haver a tentação de contar uma mentira e dizer que se encontrava bem, para aquietar aquele coração materno.
Ela não viu mais o filho e, morto o Rei, foi feito um processo contra Maria Antonieta, que acabou sendo condenada à morte também.
Ao longo desse processo fizeram contra ela as piores acusações. Durante um julgamento iníquo, trouxeram o príncipe, a quem tinham embriagado, e induziram-no a testemunhar contra a própria mãe, acusando-a de ter praticado com ele uma torpeza.
Maria Antonieta teve este gesto sublime. Levantou-se e disse: “Eu apelo a todas as mães de França para que digam aqui se acreditam nesse depoimento.”
A sala estava cheia de mulheres, todas elas se levantaram e aplaudiram a Rainha até ao delírio. O presidente do tribunal – para chamar de tribunal essa conjuração de celerados – tocava a sineta para obrigar as mulheres a ficarem quietas, mas elas batiam palmas com mais entusiasmo, o que era um modo de protestarem contra aquilo tudo.
Ele ficou indignado e mandou expulsar à ponta de espada todas as mulheres de dentro do auditório, porque percebeu que a partir daquele momento as mulheres ali presentes aplaudiriam tudo o que Maria Antonieta dissesse, desmentindo a tese de que era o povo quem tinha feito a Revolução.
Maria Antonieta voltou para o seu lugar de ré, e dali a pouco o presidente do tribunal encerrou o debate e disse: “Agora os senhores juízes vão emitir a sentença sobre esta ré.” Maria Antonieta, quieta, ouvia cada um pronunciar a sentença. Ela foi condenada à morte por unanimidade de votos.
Todos foram saindo da sala, bem entendido, sem olhar para ela. O que teria pensado ela nesses momentos? Ninguém sabe. Algum tempo depois, a sentença foi executada. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/8/1994)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)
1) BURKE, Edmund. Reflections on the Revolution in France, in Two Classics of the French Revolution. Nova Iorque: Anchor Books-Doubleday. 1989, p. 89.
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII, extinto em 1789, com a Revolução Francesa.