Encontro com a Princesa Isabel

Dona Lucilia formava seu filho sobretudo dando-lhe o excelente exemplo de sua própria vida. E frequentemente lhe narrava atraentes reminiscências de sua família, tais como o encontro que ela e sua mãe tiveram com a Princesa Isabel, em Paris.

 

Por vezes, minha mãe voltava a narrar certos episódios de sua vida porque, sem nunca se contradizer, sempre tinha um pormenor a acrescentar ou um comentário a fazer, até mesmo pela inflexão de voz. Assim, ela nos contou várias vezes seu encontro com a Princesa Isabel, em Paris.

Agradável encontro numa igreja de Paris

Após o golpe republicano de 15 de novembro de 1889, Dom Pedro II e a família imperial foram exilados para a França, para onde partiram num navio chamado “Alagoas” que o governo republicano pôs à disposição deles.

A Princesa Isabel morava em Paris e assistia à Missa aos domingos numa igreja próxima à sua residência, a Igreja Saint-Germain-l’Auxerrois, em honra de São Germano, um antigo Santo francês,  bispo da cidade de Auxerre.

Por coincidência, minha mãe e minha avó foram a essa igreja também num domingo. Não costumavam assistir à Missa ali, porque o hotel onde estavam hospedadas ficava em outra região, mas  nesse domingo elas para lá se dirigiram.

Quando entraram, notaram no altar-mor um lugar de honra reservado para pessoas ilustres que deveriam vir. Pouco tempo depois, elas viram entrar a Princesa Isabel – a quem elas conheciam por fotografia – e uma dama que a acompanhava, a Baronesa de Muritiba, uma senhora  do Nordeste do Brasil, extremamente fina, distinta.

Terminada a Missa, minha mãe e minha avó permaneceram ainda rezando durante algum tempo e tiveram a surpresa de ver que a Princesa Isabel e a Baronesa de Muritiba cochichavam qualquer coisa, depois do que a Baronesa saiu. Minutos depois, tendo dado a volta pela sacristia e tomado uma escada para descer até a nave central da igreja, a Baronesa apareceu junto às duas e  perguntou em português:

– As senhoras são brasileiras, não?

Responderam:
– Sim, somos brasileiras.

– A Princesa Isabel as olhou e percebeu pelo tipo físico que deviam ser brasileiras e ficou com desejo de conhecê-las. As senhoras aceitariam subir até a sacristia para cumprimentar a princesa?

As duas não queriam outra coisa, e dentro de minutos estavam lá sendo apresentadas à Princesa Isabel.

Na conversa, a Princesa perguntou a respeito da família delas e, ao receber as explicações, disse que conhecia vários membros correspondentes à geração do pai dela, Dom Pedro II, portanto, à  geração anterior à de minha mãe ou de minha avó. Falaram bastante sobre isso e se tornaram muito amigas.

Reminiscências de família

Uma das reminiscências de família narradas à Princesa era o fato de o pai de minha avó, Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, foi quem ensinou a Imperatriz Dona Teresa Cristina a dançar.

A Imperatriz era manca e naquele tempo as danças muito complicadas, não era esse pula-pula infecto de hoje, mas meio parecidas com minueto, quadrilhas, com reverências, etc., e uma pessoa  manca não podia dançar.

Ora, para Dona Teresa Cristina era uma espécie de vergonha, pois uma imperatriz que não se locomovesse bem não desempenhava adequadamente seu papel.

– Se Vossa Majestade permitir, levante-se e eu lhe indico bem exatamente como tem que colocar o pé no chão.

Ela aceitou, levantou-se e ele indicou bem direito como ela tinha que fazer, e acrescentou:

– Vossa Majestade quer experimentar um passo de dança comigo?

Dona Teresa Cristina concordou, experimentou algumas vezes e percebeu que estava conseguindo dançar. Então resolveram fazer uma surpresa para o Imperador que se encontrava no salão ao  lado, participando do baile.

Os dois entraram dançando no salão. Isso foi uma surpresa para todos que, terminada a dança, irromperam em palmas.

Certa noite, durante uma recepção no Palácio São Cristóvão, onde habitava, ela estava numa sala sozinha quando passou meu bisavô perto dela. Ele era deputado e estava convidado para o baile, e foi cumprimentar a Imperatriz. Esta lhe disse:

– Como o senhor vê, estou nesta tristeza aqui… Na sala ao lado, todo mundo dançando e eu aqui só; não tenho sequer quem converse comigo.

Equivalia a um convite para ele se sentar e conversar um pouco com ela. Ele sentou-se e começaram a conversar exatamente a respeito do defeito que ela tinha no pé, que a impedia de dançar.

Meu bisavô era muito observador, e disse a ela uma coisa arrojada:

– Eu tenho observado a dificuldade de Vossa Majestade, mas acho que existe um meio muito fácil de apoiar-se sobre seu pé que lhe permitirá dançar. Se Vossa Majestade der o passo como eu indicar, Vossa Majestade dança.

A Imperatriz ficou um tanto cética, mas ele insistiu:

– Se Vossa Majestade permitir, levante-se e eu lhe indico bem exatamente como tem que colocar o pé no chão.

Ela aceitou, levantou-se e ele indicou bem direito como ela tinha que fazer, e acrescentou:

– Vossa Majestade quer experimentar um passo de dança comigo?

Dona Teresa Cristina concordou, experimentou algumas vezes e percebeu que estava conseguindo dançar. Então resolveram fazer uma surpresa para o Imperador que se encontrava no salão ao  lado, participando do baile.

Os dois entraram dançando no salão. Isso foi uma surpresa para todos que, terminada a dança, irromperam em palmas.

A Princesa Isabel se lembrava desse fato. Então ligava com esse homem vários outros episódios de pessoas antigas da família de mamãe relacionadas com a família imperial.

Lanche na casa da Princesa em Boulogne-sur-Seine

Resultado, a Princesa Isabel convidou- as para tomarem lanche em sua residência, uma casa apalaciada num bairro muito bom de Paris, Boulogne-sur-Seine.

Estava também em Paris um irmão de minha mãe, casado e com muitos filhos. Segundo o costume do tempo, a Princesa Isabel mandou convidar a cunhada de minha mãe e todos os filhos, por amabilidade.

Houve, então, um episódio desagradável. Um dos oito filhos dessa minha tia, que não tinha estado na igreja, nascera surdo e, por isso, ficara mentalmente muito atrasado. Com esforço, ele acabou  conseguindo falar alguma coisa, mas muito mal e com uma voz muito ruim. Quando entrou a Princesa na sala, esse meu primo perguntou bem alto:

– Tia Lucilia, esta é a Princesa?

Aquela era a hora de não falar nada! A Princesa entrou.

– Fiquem quietos até que ela tenha falado com todos.

Mamãe respondeu, já com medo de sair alguma coisa:
– É, meu filho.
Ele disse:
– Que horror! Eu pensei que a Princesa fosse como se vê no baralho, com coroa na cabeça, uma flor na mão e com gesto bonito. Ela está vestida como a senhora, como vovó, como mamãe. Que horror!

A Princesa chegou perto dele e perguntou:
– O que você está dizendo, meu filho?

Ele repetiu, ela deu risada, foi muito amável.

A mãe do rapaz só faltou enterrar-se no chão de vergonha, mas não tinha remédio…

Mas tudo isto era tomado como coisa engraçada e formava uma certa relação de afeto. Então, no ano- -bom elas escreviam para a Princesa Isabel e para a Baronesa de Muritiba, e estas respondiam. Quando o correio trazia uma carta da Princesa Isabel, parava a conversa, minha avó abria o envelope e lia a carta para todos ouvirem, e isso criava um ambiente ao qual eu estava  habituado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 13/1/1989 e 4/3/1995)

GLÓRIA A DEUS NO CÉU, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE

As reflexões sobre o Natal es-critas em 1936 por Dr. Plinio parecem feitas, de algum modo, mais para os dias de hoje do que para aquela época, tanto no tocante às nuvens negras que toldam o quadro dos acontecimentos, quanto aos raios de esperança que o perpassam.

Enquanto os Anjos de nossos piedosos presépios ostentam dísticos em que se lê: “Glória a Deus nos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade”, a imprensa diária está cheia de notícias  terríveis que destoam tristemente da promessa angélica. […] Por toda parte só encontramos ódio, rancor, perseguição.

E, no entanto, cumpre que não desanimemos. Não seríamos dignos da graça inestimável do Batismo que recebemos, se permitíssemos que o pânico se apoderasse de nós. Nem na ordem natural, nem na ordem sobrenatural, há motivos que justifiquem a inércia e o pessimismo.

Cristo, como único Salvador do mundo: lição do Natal

O que a Igreja espera, hoje em dia, de seus filhos, é a realização de uma tarefa ao mesmo tempo muito grande e muito simples. Ela quer que todos os católicos (os católicos dignos deste nome, e  não a turbamulta dos pagãos que usam rótulo católico), com uma persuasão vigorosa e magnífica, se ergam no tumulto do mundo contemporâneo, proclamando o cristianismo como seu único Salvador.

Único, dissemos. E insistimos sobre esta palavra. Erraria crassamente quem supusesse que o Cristo só veio salvar a humanidade de seu tempo. Em todos os tempos, em todos os países, para todos os povos, em todos os perigos, em todas as dificuldades, apesar de todos os pecados, Cristo é o ÚNICO Salvador.

[Alguns países] pensam que podem atingir a prosperidade e a paz, por meio de pequenas receitas políticas em que misturam, em doses variáveis, a autoridade e a liberdade. Loucura e ilusão. Se  eles não aceitarem as normas sociais e morais da Igreja, se não derem ao catolicismo a influência preponderante a que tem direito, não escaparão à ruína. De reforma em reforma, rolarão para o abismo.

[Outros países] pensam que o braço vigoroso de um ditador lhes pode restituir a felicidade. Loucura, ainda, e ilusão. Porque o maior homem do mundo, dotado da mais lúcida inteligência, da mais alta moralidade, da mais vigorosa energia, do mais formidável poder, não conseguiria organizar convenientemente um povo que vivesse entregue à anarquia intelectual e efetiva que, fora da Igreja, é inevitável. Um povo é um conjunto de homens. Um povo disciplinado não pode ser composto de homens anarquizados no mais íntimo do seu ser, como um copo de água pura não pode constar de um conjunto de gotas de água impuras.

Cristo como base da civilização, e as formas do governo como aspectos secundários e acidentais da vida de um povo, eis aí uma das grandes lições do Natal.

Trabalhar, lutar, sofrer e rezar pela Igreja

Mas, dirá alguém, Cristo é um Salvador ausente. Eternamente mudo, atrás da cortina de nuvens que o escondem no Céu. Ele não se mostra à humanidade aflita. E esta então corre à busca de outros pastores.

É horrível dizê-lo, mas há entre católicos quem fale assim. Há ainda quem não ouse falar, mas pense assim. E há quem não ouse pensar, mas sinta assim! Daí o existirem católicos que têm mais  esperança na ação da política do que na ação do Cristo.

Ah! São esses os corações que recebem a visita eucarística do Cristo, mas não recebem o seu Espírito: “in propria venit, et sui eum non receperunt” (veio para que era seu, e os seus não o receberam).

Ah! São esses os corações que ouvem a palavra do Cristo, vinda do Vaticano, e não conhecem na voz do Papa o timbre da voz de Deus. A palavra do Papa ecoa no mundo, e o mundo não a conhece:  “lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non conprehenderunt” (a luz brilha nas trevas, e as trevas não a envolveram).

Cristo, para o bom católico, não está ausente. Na Eucaristia, Ele está tão realmente quanto esteve na Judeia. E do Vaticano fala tão verdadeiramente quanto falou ao povo de Israel. A Igreja é tão  seguramente guiada por Cristo em 1936, quanto o eram os Apóstolos, antes da Ascensão.

O que Cristo quer fazer, fá-lo por meio da Igreja. O que Cristo quer dizer, di-lo por meio do Papa. Logo, a Igreja em certo sentido é onipotente e onisciente porque é instrumento da onipotência e porta-voz da onisciência de Deus.

Se Cristo é o Salvador único, a Salvação virá da Igreja. Trabalhar, lutar, sofrer, rezar, imolar-se ou sacrificar-se alegremente pela Igreja, deve ser o fruto desta meditação de Natal. Porque todas as  causas e todos os ideais devem vir depois da suprema Causa e do supremo ideal da Igreja.

GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS, E PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos, com ligeiras adaptações, de artigo do Legionário nº 224, de 27/12/1936. Subtítulos nossos.) 
Revista Dr Plinio 57 – Dezembro de 2002

 

Mais belos que as estrelas

De súbito o manto negro da abóbada celeste se vê coberto por uma feería de luzes, de corpos fulgurantes que, lançados do solo, abrem-se lá no alto em corolas policromadas, desfazem-se em miríades de gotas esplendentes, como se nuvem fabulosa destilasse sobre a terra uma cintilante chuva de topázios, esmeraldas, safiras e rubis…

Junto ao majestoso palácio ou sobre as plácidas águas do grande lago, envolvendo praças, silhuetas de imagens ou lindos chafarizes, a noite está em festa, regozija-se, enquanto magníficos fogos de artifício cruzam os ares, iluminando e engalanando o céu, conforme os mais audaciosos desejos do homem.

Será difícil negar que esse firmamento assim enfeitado pela esplendorosa ordenação artística e visual que o fogo de artifício nele traça efemeramente, representa para a nossa concepção algo mais belo do que o céu pontilhado de estrelas, arquitetado pela onipotência divina.

Haverá, então, um choque entre a obra de Deus e a do homem? Claro que não. Quando o Criador espargiu a mancheias pelas vastidões do espaço os astros siderais como se fossem grãos de brilhantes, guardava em seus maravilhosos desígnios o proporcionar ao homem a delicada oportunidade de superar em alguma medida o que Ele próprio realizou. Sem dúvida, Deus poderia ter feito fogos de artifício incomparáveis, perto dos quais os nossos mais belos seriam ofuscados. Porém, Ele agiu de maneira diversa. E ao criar as estrelas, provavelmente já tinha por intenção sugerir ao homem a ideia do fogo de artifício, dando-lhe assim a possibilidade de traçar nos céus uma ordem — sob o ponto de vista estético — superior em beleza àquela estabelecida por Ele.

No fundo dessa disposição divina há, na verdade, um requinte de delicadeza e de misericórdia paterna, por onde o Senhor, na autêntica infinitude de seu poder, infundiu no homem uma alma capaz de levar à perfeição o “esboço” que Ele delineou. Trata-se, portanto, da ternura do Pai que nos diz: “meu filho, complete o desenho”; e, ao mesmo tempo, da grandeza fabulosa do Onipotente que nos faz compreender tudo o que Ele nos concedeu: “Meu filho, você é pensante e capaz de acrescentar uma nota de harmonia a tudo quanto Eu criei, porque foi feito à minha imagem e  semelhança.

Eu o amei superlativamente quando o criei, quando me encarnei na sua natureza humana e a elevei, unindo-a à minha natureza divina numa só Pessoa. Todas as coisas que você pode  fazer mais belas do que as realizadas por mim, nada valem em confronto com as maravilhas intelectuais, espirituais, morais e sobrenaturais para as quais você foi criado. Quando, um dia, você passear por  essas vastidões, mais pequenino que um micróbio, sentir-se-á entretanto um perfeito rei, porque entenderá que em ter existido, pensado e amado conforme Eu, seu Deus — você se tornou dono de tudo isso e incomparavelmente mais belo do que isso!”

E antes do que para qualquer homem, Ele poderia se voltar para Nossa Senhora e dizer: “Vós sois minha Mãe, o centro e o ápice dessas maravilhas. Em Vós há mais beleza do que em todo o resto,  e quem contempla o vosso olhar, admira o universo inteiro, todas as estrelas do céu, todos os fogos de artifício da Terra, num grau de formosura e perfeição como não se é capaz de imaginar!”

E Maria Santíssima, por sua vez, no alto do Céu, adorando seu Divino Filho, agrada-se mais em considerar o movimento da graça nas almas dos homens pelos quais Ela intercede, do que em  contemplar todas as outras grandezas da criação. Cada um de nós, porque católico, vale aos olhos d’Ela insondavelmente mais do que a imensidão do universo que nos deslumbra, do que os astros reluzindo no firmamento, do que a feería dos fogos multicoloridos que enfeitam e rejubilam as nossas noites de festa…

Plinio Corrêa de Oliveira

A conversa perfeita

Dr. Plinio reitera a seguir sua visão sobre a arte da conversa como excelente meio de apostolado e amor ao próximo, por amor a Deus; além de constituir um ato que, conforme a promessa de Nosso Senhor, assegura a presença d’Ele entre nós, quando realizado em seu nome. Para ilustrar tal pensamento, Dr. Plinio nos descreve uma das mais célebres conversas da História, ocorrida há dois mil anos no caminho de Emaús…

 

Sobre a arte da conversa há um ponto a respeito do qual nunca será demasiado insistir. Quando tratamos, com espírito de Fé, acerca de assuntos da Igreja ou da civilização cristã, através de nossos lábios toma lugar no diálogo um interlocutor infinito: Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois esta foi a sua promessa formal: “Quando dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles” (cf. Mt 18, 20).

A presença divina sentida pela ação da graça

Devemos notar que o Redentor não disse: “Estarei a maior parte das vezes”, mas sim: “Estarei no meio deles”. Quer dizer, o principal atrativo da conversa entre católicos, versando a respeito de um tema não necessariamente religioso, mas visto sob o ângulo da doutrina da Igreja, consiste em que o grande interlocutor é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Essa presença se realiza através da ação da graça, que Ele nos obteve derramando seu sangue infinitamente precioso no alto do Calvário. O Salvador no-la concedeu, a rogos de Maria Santíssima, quando fomos batizados, e ela se desenvolve e floresce enquanto conversamos. Sua atuação é tal que posso conhecer, além da graça dada a mim, a recebida pelo outro. E este, conversando comigo, conhece o dom celestial que me foi outorgado.

Por exemplo, nessa exposição, devido a uma particular atração exercida pelo tema, há consonância, consolação, estímulo, verifica-se um entusiasmo e uma comunicação de alma, tendo Nosso Senhor disposto que a graça seja uma em mim e outra em cada um de meus ouvintes. Em todos, ela é uma participação da vida divina, com fervores peculiares.

Imaginemos duzentas lamparinas acesas. Cada chama tem movimentos diferentes, mas é o mesmo fogo brincando com duzentos pavios. Assim é a ação da graça em nós, da qual nos damos conta apenas de modo confuso, e nem seria normal que o sentíssemos plenamente. Porém, o sabemos pelos ensinamentos e doutrina da Igreja.

Um agir deleitável e envolvente

 Às vezes a conversa aumenta de dimensão e não nos lembramos de que Nosso Senhor está falando mais ricamente no fundo das almas. Porém, se ela se interrompe de modo brusco, temos a impressão de haver cessado algo que não deveria parar. Por exemplo, se me chamassem agora para atender um telefonema urgente, obrigando a me ausentar sem maiores palavras, não ficariam os meus ouvintes com uma sensação de inacabado, de quem descia para um terra-a-terra do qual havia saído sem perceber, mas ao qual voltaria sem estranheza?

Tal é o modo de agir da graça. Ela nos vai falando aos poucos, deleitavelmente, não a percebemos e nos habituamos com ela. Quando emudece, dizemos: “Mas que vazio! Como aconteceu isso?!”

Emaús: a conversa perfeita

Normalmente a graça atua com linda sutileza. Os discípulos de Emaús somente reconheceram Nosso Senhor na hora da comunhão, quando partiu o pão e o distribuiu. Com sua linguagem poética e rica em pormenores, o Evangelho descreve o episódio e o colóquio que então se estabeleceu.

Os dois discípulos caminhavam na estrada, rumo ao lugarejo chamado Emaús, comentando os fatos recentes ocorridos em Jerusalém, a perseguição e a morte do Salvador. Enquanto andavam e conversavam, Jesus se aproximou e começou a tomar parte na conversa, sem que eles O reconhecessem de imediato.

Nosso Senhor lhes pergunta sobre o tema que os trazia tão absortos. Assim faz o bom conversador: não muda de assunto conforme o que está na cabeça dele, mas entra na matéria tratada pelos outros.

Eles se espantam, e dizem: “Mas, como?! Tu és o único forasteiro em Jerusalém, e ignoras os fatos que nela aconteceram nestes dias?” (Lc 24, 18)

Jesus se mostra interessado, continua a lhes fazer perguntas e os ouve narrar os principais acontecimentos de sua Paixão e Ressurreição. À medida que conversavam, o ardor dos dois discípulos aumentava, pois o Redentor lhes concedia uma graça especial que preparava a alma deles para ouvi-Lo. Assim, formavam o trio perfeito.

 Quando chegaram em Emaús, percebe-se, pela descrição, que eles estavam embevecidíssimos. Contudo, apenas no instante em que Nosso Senhor partiu o pão — Ele celebrou uma Missa; portanto, realizou a consagração — os discípulos O reconheceram: “Ah! O Mestre está aqui!”

Isso é propriamente a perfeição da conversa: uma revelação progressiva e, no auge, o interlocutor se mostra de corpo inteiro.

Interessante notar que, momentos antes, Nosso Senhor fizera menção de seguir adiante no caminho, separando-se deles. Então os dois discípulos, enlevados, pedem que Ele permaneça, porém não ousando dizer: “Está tão agradável a vossa companhia! Ficai junto a nós”. Não. Eles buscam um pretexto: “Senhor, permanecei conosco porque já é tarde e anoitece”. Cada um procura solucionar uma dificuldade como pode. Ora, Jesus Cristo é Deus. Que diferença representa para Ele a claridade do dia ou as penumbras do anoitecer?

Na realidade, os dois queriam Lhe dizer coisa diversa: “Vede, Senhor, não desejamos nos separar de Vós, porque nenhuma presença é igual à vossa. E vos apresentamos um pretexto, pois somos tão toscos que não sabemos sequer formular o verdadeiro motivo. Aceitai isso, mais como um gemido do que um argumento. Diante de vossa sabedoria, o que é um raciocínio? E face à vossa misericórdia, o que será esse pretexto?”

Contudo, Nosso Senhor desapareceu. Imaginemos a surpresa deles… O Salvador lhes havia dado o necessário para aquela fase da vida espiritual de ambos. Cumpria doravante se lembrarem sempre desse fato.

Os discípulos de Emaús foram logo procurar os Apóstolos em Jerusalém, para contar o ocorrido. Sem querer, transformaram-se em conversadores. Começaram a narrar o colóquio mantido com Nosso Senhor. Em linguagem caseira, diríamos que foi um atraente “jornal-falado”: “Nós O encontramos, e Ele nos disse tais e tais coisas!”

 Pensemos nos ensinamentos que Jesus lhes transmitiu ao longo da estrada! Provavelmente, a propósito de um bicho que atravessou o caminho, de uma ave que esvoaçou perto deles, de um lago junto ao qual passaram, etc., o Divino Mestre fazia comentários, a par das maravilhosas digressões sobre as Escrituras e profecias que d’Ele falavam.

Foi o modelo da conversa, porque embebida pelo amor de Deus, sendo um dos interlocutores o mesmo Jesus. Percebe-se como Deus, amando a si próprio, acendia nos discípulos o amor que os homens devem ter para com Ele. É o circuito perfeito.

Sob a luz do Espírito Santo

É o que a graça realiza entre nós, católicos. Em certos momentos ela age de tal maneira — é Nosso Senhor que atua, porque autor da graça — causando-nos a impressão de que um terceiro está presente, invisível e infinitamente superior a todas as coisas.

Tal sucede nesta exposição. Imaginemos que amanhã sobreviesse um acontecimento em virtude do qual fôssemos obrigados a nos separar e viver isolados nas mais variadas re­giões do mundo. Em determinado momento, um que se acha no Alasca entra em contato telefônico com outro no Pólo Norte, e lhe diz: “Recorda-se da última reunião de nosso movimento? Dos comentários sobre os discípulos de Emaús? Acabo de reler o texto daquela palestra de Dr. Plinio, e me lembrei que você estava ao meu lado…”

E os dois terão o mesmo pensamento: “Ah! O auditório São Miguel1! Ah, aquela convivência! O que é o viver católico! Naqueles sábados à noite, enquanto tantos jovens e adolescentes procuravam outras diversões, nós estávamos reunidos com Dr. Plinio e nos sentindo muito mais felizes do que aqueles. Estávamos sob as vistas de Nossa Senhora, num ambiente sacral, movidos pela Fé católica apostólica romana. Por isso, a graça de Deus chamejava entre nós. Era um só fogo aceso em muitos pavios. E todos nós nos alegrávamos!”

E assim chegamos ao fim dessa explanação, compreendendo não apenas a teoria da conversa, mas também a do convívio: quando conversamos animados pelo amor de Deus e do próximo, o convívio é agradável. Do contrário, o trato será detestável, sem afabilidade, marcado por um cunho revolucionário. Pois imaginemos uma conversa com determinada pessoa em estado habitual de violar, ao mesmo tempo, todos os Mandamentos. Ela mata, rouba, calunia, etc. O estar com essa pessoa se torna insuportável, um pesadelo. Não há o que conversar com ela.

Por outro lado, suponhamos um colóquio entre duas pessoas que se esforçam por cumprir de modo exímio os dez Mandamentos. É um céu. Sublime exemplo foi o célebre diálogo de Santo Agostinho com Santa Mônica, na hospedaria de Óstia2.

Em suma, a ótima conversa é aquela iluminada pelo Divino Espírito Santo, realizada aos pés da Santíssima Virgem, em cujo Coração vive Nosso Senhor Jesus Cristo.

O resto, no fundo, é fraude, vaidade e aflição de espírito…

 

1) Nome dado por Dr. Plinio ao antigo local onde realizava suas exposições plenárias. Situado na Rua Dr. Martinico Prado, 246, em São Paulo.

2) Cf. na “Dr. Plinio” número 34, uma exposição sobre esse tema.

Precursor na luta contra a heresia

São João Evangelista foi um dos primeiros lutadores contra a heresia, que nascia em seu tempo, a respeito das relações entre as naturezas humana e divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Então, o Apóstolo virgem, o Apóstolo do Coração de Jesus, o Apóstolo que recebeu Nossa Senhora como Mãe, foi também o precursor de todos os lutadores da Fé até o fim do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/12/1964)

São João Evangelista

Era uma alma eminentemente virgem, chegada de modo extremo a Nosso Senhor, devotíssima do seu Coração Sagrado.

São João Evangelista, mais que Apóstolo, foi verdadeiro amigo do HomemDeus. Por isso, Nosso Senhor, antes de expirar no madeiro, deixou ao seu discípulo predileto um tesouro inapreciável: Maria Santíssima.

Receber Nossa Senhora, é receber  tudo o que Deus depois de dar-se a Si mesmo pode conceder ao homem. Maria, Virgem, foi dada pelo virginal Filho ao virginal amigo que era São João. Nessa  entrega vemos uma manifestação extraordinária do amor de Deus às almas virgens. E vemos, também, um dos rutilantes traços da grandeza do Apóstolo Evangelista.

Plinio Corrêa de Oliveira

São João Evangelista

Como diz muito bem o Abade Dom Guéranger, “São João Evangelista era parente de Nosso Senhor segundo a carne, e enquanto outros foram Apóstolos e discípulos, ele foi amigo do Filho de Deus”, a quem Jesus tributava um sentimento mais próximo e íntimo que aos demais.

Na última Ceia, São João reclinou-se sobre o peito do Mestre e ouviu as pulsações do Sagrado Coração: naquele instante, pulsações de amor, mas também de dor e angústia, diante dos abismos de sofrimentos que d’Ele se acercavam.

Alma eminentemente virgem e unida a Nosso Senhor, predileta e devota do Sagrado Coração de Jesus, São João mereceu como recompensa um tesouro sem preço: aos pés da Cruz, recebeu por Mãe a própria Mãe do Redentor, Maria Santíssima. Mais do que isto, abaixo d’Ele, Deus não lhe poderia dar…

São João Evangelista

São João Evangelista, discípulo amado do Divino Mestre, devemos pedir que nos alcance uma piedade semelhante à dele, toda imbuída de confiança e de intimidade em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora; que nos obtenha, portanto, uma devoção à Santíssima Virgem e um amor a Deus como ele os manifestou, marcados ao mesmo tempo por suprema veneração e por filial ternura.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 27/12/1966)

O olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo

Se numa noite sem luar contemplarmos com espírito de Fé o céu estrelado, ele produzirá grande efeito sobre nós. E nos fará lembrar algo infinitamente superior: o olhar do Redentor, no qual há galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre nós como uma abóbada protetora.

 

Quando a pessoa se porta ordenadamente face à ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso do ser procurar o maravilhoso nas coisas que constituem o universo que ela procura conhecer, tende ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais nas criaturas que a circundam.

O sentido da vida terrena

Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha, azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo, se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia. Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres excelentes — um relacionado mais diretamente ao corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso, a criança deseja o carinho da mãe.

Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material! Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação de cumpri-la.

Mas ai também dos familiares que não criam em torno de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio de alma é o fundamental da ordem do universo!

Este é um ponto muito importante, porque as criaturas de uma ordem mais elevada têm uma função normativa e orientadora em relação a todas as inferiores. E os espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhecendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor o que está abaixo.

Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso, nosso senso católico se sintam como o navio que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das tormentas, este é o sentido da vida terrena.

O ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus

A alma encontra este sentido superior da existência quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos — sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria, de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado, e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja, mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração, por um lado. Por outro lado, na sua superioridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem cordas de nossas almas que não sabíamos existirem. Assim é Ele!

Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão de que os seus divinos olhos estão pousando sobre mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado por Ele.

Mais alvos do que a neve

Tudo isso junto, formando um panorama que paira por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes, quando se olha para o céu muito estrelado não é nada em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente incomparáveis!

Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria vêm à tona.

Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor”1; o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente, e eu ficaria mais alvo do que a neve!

Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi, sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente reprobatório, enormemente amoroso, envolvente e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte sentido: não há barreiras, venha; elogio é isto!

E tocando, não o grosso bordão dos sinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o sino leve e alegre de Nossa Senhora, a alegria do perdão. Ela põe junto dessa seriedade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo uma nota qualquer de louçania que fala em perdão, em esperança, em alegria, que a completa admiravelmente. Tudo isso está e tem fundamento n’Ele, mas Nosso Senhor é grande demais para, num olhar só, podermos abarcá-Lo. Então, olha-se para Maria Santíssima, e Ela diz: “Meu filho!” Porque ao cabo de algum tempo aquela imensidade nos faz sentir tão pequenos, tão pequenos, tão pequenos, “petit vermisseau et misérable pécheur”2, que se tem vontade de dizer: “Senhor, não me esmagues de tanto me amar!” Mas entra Ela e dá um repouso, uma distensão, está feito tudo na perfeição.

Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita melhor.

Conhecimento por conaturalidade

Esses estados de alma constituem o afeto que devemos procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada, porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.

Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de tal quer muito bem a você porque foi educado com você desde pequeno…”, diz-me pouco, porque se nossas almas são diferentes nesse ponto, o que fazer?

Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-lo e dizer:

“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos pressentíamos!”

Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar esse céu estrelado, lembrar-me do olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando sobre mim, é algo infinitamente superior ao céu estrelado, mas que tem certa analogia, cujo analogado primário é o Céu, a partir do qual, na imensidade de suas virtudes e qualidades, Ele olha para mim. Há n’Ele galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre minha cabeça como uma abóbada protetora!

A partir daí vem o desejo da boa amizade segundo Deus, amar o próximo como a si mesmo por amor de Deus, podendo dar origem a um relacionamento humano que, com tal plenitude, creio eu, talvez não tenha sido tão frequente na própria Idade Média.

Suponho que se a Idade Média tivesse continuado, o Sagrado Coração de Jesus teria revelado essa devoção de qualquer forma. A grande maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa devoção.

Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente errada.

Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças, etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem tem um conhecimento por conaturalidade.

Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —, entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido pela sensibilidade para entender que nesse conjunto — razão e sensibilidade — encontra-se a cognição completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem assim, por conaturalidade. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1986)

Revista Dr Plinio 213 (Dezembro de 2015)

 

1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado, lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.

2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

A hierarquia na criação

Desde um grão de poeira até o mais elevado dos anjos, toda a criação saiu das mãos do Onipotente numa esplêndida harmonia que rege o relacionamento entre as criaturas. Separado desse  conjunto hierárquico, nada é perfeito no universo. Dr. Plinio nos comenta um belo texto de São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico.

 

Em anterior exposição tratamos da errônea concepção de um universo como algo fechado, do qual estariam ausentes a intervenção divina e a assistência dos anjos.

Ora, São Tomás condena essa visão, que muitos têm de modo subconsciente, ao discorrer sobre o papel dos espíritos angélicos nos planos de Deus. Pergunta ele se os anjos foram criados antes do  mundo corpóreo, e responde com argumentos tais que deles se espargem centelhas de luz.

O anjo mais elevado se relaciona com a menor coisa na Terra

Assim, afirma: Sobre o assunto, dupla é a opinião dos santos doutores, sendo mais provável a que ensina terem sido os anjos criados simultaneamente com a natureza corpórea. Não  simultaneamente com o homem, porque este foi criado depois da natureza corpórea. A razão:

Pois os anjos fazem parte do universo. Quer dizer, há um só universo e não dois, que nunca se tocam e são alheios um ao outro, como o ensino corrente insinua.

Não constituindo um por si, mas concorrendo, com a criatura corpórea, para a composição do mesmo universo. Portanto, a coisa mais simples na Terra — uma bandeja, por exemplo, como a que  se acha ao meu lado durante esta exposição — constitui um só universo com o mais alto dos anjos que está diante de Deus e O contempla face a face.

Que significa “constituir um só universo”? Os seres existem em cadeia, em inter-relação constante e formam uma única e bela ordem. Por mais admirável que seja o Serafim, a beleza da ordem que há nele é realçada, por exemplo, pela existência da bandeja. Ainda que esta fosse feia, o realce se daria por contraste. Vemos, então, como a idéia da separação dos dois mundos é falsa.

Separado do todo, nada é perfeito no universo

Prossegue São Tomás: O que bem se verá, considerando a ordem de uma criatura em relação à outra, pois a ordem das coisas entre si é o bem do  universo. Portanto, toda criatura se relaciona com outra, e essa correlação entre todas constitui a beleza e o bem do universo. Ora, a bandeja e o anjo são criaturas; logo, a maior beleza não está  nem somente neste, nem apenas naquela, mas na relação anjo-bandeja, que talvez não seja facilmente compreensível por nós, porém o é por Deus, e essa formosura O encanta.

Ora — diz São Tomás — nenhuma parte do universo é perfeita separada do todo.

Há pessoas que consideram o Apolo do Belvedere ou a Vênus de Milo, por exemplo, como tendo rostos perfeitos. Imaginemos o nariz de Apolo ou o de Vênus, esculpido numa parede… Um nariz  absoluto é um monstro absoluto. Ele será bonito por causa de sua harmonia com o conjunto da face. Ninguém dirá de um nariz cortado e lançado no chão: “Que lindo nariz!”, nem de um olho que   foi arrancado de um semblante: “Que linda cor tinha esse olho!”. Isolados, nariz e olho causam horror, enquanto que podem causar admiração quando vistos no todo de uma face.

O pensamento de São Tomás assim se explica: se todas as coisas estão agora nessa relação, o perfeito é que sempre tenham estado, porque a obra de Deus é perfeita.

Logo, Ele criou o mundo angélico e o corpóreo ao mesmo tempo.

A necessária desigualdade entre os seres

Outros argumentos há pelos quais essa sentença se demonstra.

Segundo a opinião de São Tomás de Aquino, a direção dos astros, por exemplo, corresponde aos anjos. E tal fato ocorre por uma necessidade que está na ordem das coisas estabelecida por Deus. Noutra parte, São Tomás explica ser próprio daquele que é mais governar quem é menos. E quando o superior não tem junto de si o inferior, essa ausência lhe é de algum modo prejudicial. Consideremos alguns exemplos.

É próprio de um professor ensinar. Aposentando-se bruscamente, ele sofre por falta de alunos. Não só o mestre é necessário ao discípulo, mas este é necessário àquele. Um músico se apresenta em  oncertos, não apenas por interesse financeiro, pois se fosse rico, ficaria em casa, tocando para si mesmo. Ora, é próprio do homem que sente algo, precisar de alguém a quem comunique seu sentimento. E quem sente mais coisas excelentes, deseja transmiti-las aos que sentem menos e de modo menos perfeito. Essa é a ordem adequada das coisas.

Suponhamos que esse músico fosse o único homem a ouvir, numa humanidade que ficou surda. Só ele apreciaria suas melodias. Resultado: o artista começaria a fenecer e morreria vinte anos mais cedo que o normal, porque ninguém compartilharia com ele os sentimentos e os enlevos pelas suas composições.

Ora, diz São Tomás, os anjos inferiores são espíritos excelentes feitos para mandar nos homens. E o universo angélico seria mal construído se não houvesse pessoas sob a direção dele. Portanto, devemos compreender, com alegria, que somos necessários para nossos anjos da guarda, assim como estes o são para nós. Essa relação se repete entre os seres animados. Os homens precisam dos  animais e dos vegetais para exercer seu mando. E faz parte da natureza animal a necessidade — material, instintiva e não espiritual — de vegetais para se alimentar. Os vegetais, por sua vez,  precisam dos minerais; e estes não necessitam de outros seres para existirem, pois constituem o andar térreo onde o universo se fecha.

Em tudo isso vemos a sabedoria de Deus, cuja obra criadora pode ser comparada a um belíssimo colar: cada um de nós, sendo fiel à graça, é uma pedra preciosa intermediária nessa jóia.

Sentindo a ordem do universo no ato de pisar

Falamos em pedra, e nosso pensamento, por uma natural associação de imagens, evoca a ação do homem de pisar no solo. Recordo-me de que, certa feita, ao visitar a capela de uma fazenda, senti  particular comprazimento em tocar a terra e a vegetação rasteira do campo, o que há tempos não me era possível fazer devido ao desastre de automóvel que me tolheu alguns movimentos.

Naquela  ora, porém, senti esse gosto em pisar no chão, dizendo para mim mesmo: “Como é razoável e de acordo com a ordem do universo esse prazer meio indefinido que sinto”. Eu caminhava  em espírito de meditação, e cada passo que dava me fazia sentir essa ordem, incutindo maior alegria em minha alma ao entrar na capela.

Um hino à boa ordem

Nessa linha, lembro-me ainda de outro fato. Em uma de minhas viagens à Espanha pude acompanhar uma apresentação de sapateado, e admirei de modo especial um artista que dançava e pisava  firme no chão. Pensei: “Curioso, mas esse espanhol faz do solo um instrumento de percussão. Assemelha-se a um passarinho saltitando sobre a membrana de um tambor. O chão é o tambor dos  sapateadores espanhóis.”

A própria castanhola que ele tocava dava a impressão de ser o barulho do piso multiplicado com as mãos. Era um homem magro e de peito largo, e seu estilo de dançar era muito atraente. 

Continuei a elucubrar: “Gosto do sapateado desse artista; ele toca música com os pés. Sinto em mim uma consonância agradável como esse talento. Como pode o contato dos pés com o chão  produzir essa impressão musical, essa coisa borbulhante, cheia de vida?”

Saí do espetáculo levando em minha mente esse problema. Mais tarde, cogitando sobre o assunto, percebi que o ritmo com o qual ele dançava era agradável de se ouvir, e os instrumentos eram os  pés batendo no chão. Se fosse sobre um tambor, não haveria graça. O imprevisto do saltitar era o que conferia aquela sensação de leve, de infatigável, de desafiante: o artista pisa, repisa, salta, com a noção subconsciente de que todas as coisas devem ser ordenadas. Aquela dança, no fundo, é um hino à boa ordem.

Em última análise, como acima consideramos, isso tem uma explicação tomista. Sendo o chão o mais elementar na criação, foi feito para ser calcado. E ao pisá-lo, o homem exerce sua vontade de  governar, próprio de todo ser superior em relação ao inferior, por amor à boa ordem.

A alegria de todo ser está em cumprir seu fim último

Para concluir essas reflexões, voltemos nossa atenção para um outro ponto.

Quando eu estudava no Colégio São Luís, um professor jesuíta levantou a seguinte questão, relacionada com o tema aqui abordado. Dizia ele: “Todo mundo tem alegria em realizar sua própria  finalidade. Ora, a finalidade de certos animais é servir de alimento para o homem ou para outros animais. Pergunta-se: se uma galinha raciocinasse, na hora de ser morta e deglutida, ela se sentiria  eliz?”

Reconheçamos que esse professor apresentava questões sutis… Ele não respondeu, o que, aliás, no bom sentido da palavra, acho muito jesuítico. Parece-me que, às vezes, pode ser pedagógico  fazer perguntas que despertem curiosidade no aluno, com nobre apetite de conhecer a solução, dizendo-Lhe: “Leve essa questão para casa e venha me falar disso daqui a um mês, se quiser.” Seja  como for, o assunto da galinha ficou-me na cabeça e resolvi não perguntar ao padre, mas tentar encontrar a resposta. Cheguei à conclusão de que ele havia construído uma hipótese absurda, porque um ser intelectual não pode querer ser comido. E senti que essa resposta causava bem-estar à minha alma.

Segundo o raciocínio normal, haveria duas soluções: ou a ave teria horror ou gostaria de ser tomada como alimento. À primeira, poder-se-ia objetar: ela não está realizando seu fim? E à segunda: então a galinha está radiante de contentamento…? Percebe-se que qualquer dessas soluções, especialmente a segunda, causa mal-estar. Porém, a partir do absurdo do ente intelectivo ser comido,  compreende-se que, sob certo aspecto, ele poderia gostar.

Por exemplo, o homem não gosta de morrer, porque a morte é um castigo, mas pode falecer contente pela certeza de obter o Céu. Assim, também o chão, se fosse capaz de pensar, ficaria feliz de  ser calcado pelos pés do sapateador espanhol, pois realizaria sua finalidade de ser pisado.

Perguntar-se-ia: o ser intelectivo gosta de ser pisado? Ele foi feito para ser guiado, e isso lhe agrada, não porém para ser pisado, pois seria um domínio com brutalidade, contrário à sua nobreza.  Daí se compreende nossa alegria de termos a Igreja que manda em nós, nossa felicidade por existir uma hierarquia que nos governa.

Consideramos, assim, um importante aspecto da ordem do universo, abordando o papel dos anjos como guias dos homens e de outros seres corpóreos. E quero crer que um conhecimento de  ciências naturais seria incompleto, nem atingira toda sua beleza e pulcritude, se não chegasse ao ponto em que, de algum modo, se percebesse o “sinal digital” do anjo sobre a matéria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1979)

Revista Dr Plinio 117 (Dezembro de 2007)