Mãe admirável

O início de um novo ano sempre traz consigo incógnitas e esperanças. Sabendo disso, a Santa Igreja, através de suas festas litúrgicas, dá aos homens a clave na qual devem impostar as almas para transpor os dias vindouros. Solenemente, na aurora do novo ano, recorda a Maternidade Divina de Maria, lembrando aos fiéis que o amor materno da Santíssima Virgem e sua poderosa intercessão jamais faltarão àqueles que a Ela recorrem. Poucos dias depois, a Liturgia contempla a figura dos Magos que, vindos do Oriente, adoram ao Menino como verdadeiro Deus.

Infindas lições espirituais poderíamos tirar destas duas grandes solenidades, entre elas a importância e a beleza da virtude da admiração, comentada por Dr. Plinio na presente edição(1).

O que é admiração? — perguntava, certa vez, Dr. Plinio.

“Mirare ad”: olhar para. É olhar para algo com entusiasmo, compreendendo sua grandeza e, por causa disso, amá-lo.

A admiração é a porta de toda a grandeza e é impossível eu admirar algo sem que a grandeza daquilo que admirei, de algum modo, penetre em mim. Por isso, a grandeza é dada aos que admiram e se dedicam ao objeto de sua admiração. Aqueles que são grandes, esses devem ser dedicados.

Neste sentido poder-se-ia interpretar o versículo do Magnificat que diz “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1, 52) como um convite feito aos poderosos para descerem de sua sede e servirem os pequenos; e a estes a se elevarem pela admiração e se encherem da grandeza dos Anjos. Temos, assim, a admirável harmonia do universo, onde grandes e pequenos coexistem uns para os outros, segundo a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo(2).

Não há maravilha mais autêntica do que a alma verdadeiramente maravilhável. Essa tem o amor de Deus, pois a perfeita Caridade consiste em maravilhar-se humilde e desinteressadamente com as coisas divinas. Não só com as invisíveis conhecidas pela Fé, mas também com as visíveis que Deus colocou ao nosso alcance.

Eis a virtude, tão fundamental para a alma contrarrevolucionária e para o espírito católico, que devemos procurar e pedir a Nossa Senhora que, como ninguém, foi a mais maravilhável das almas.

Se Deus concedeu a Maria Santíssima o Menino Jesus para encerrar-Se no seu claustro virginal, passar sua infância ao lado d’Ela, viver trinta anos maravilhando-A, é porque Ela possuía uma potência de maravilhar-Se que estava na proporção dessa maravilha. Compreende-se, assim, qual era a capacidade de maravilhar-Se de Nossa Senhora.

Resultado: tornou-Se maravilhosa. Por isso todas as gerações a chamarão Bem-aventurada (Cf. Lc 1, 48). Pelo desinteresse com que Maria amou, pela humildade com que Ela admirou, tornou-Se admirável(3).

 

1) Ver “Admiração: doutrina e exemplos”, p. 18 e “Admiração e afeto da Virgem-Mãe”, p. 12.
2) Conferência de 3/2/1973.
3) Conferência de 19/6/1971.

A Paz de Cristo no Reino de Maria

Na Sagrada Família, o menor de todos era o chefe: São José. Em seguida, vinha a Mãe, enormemente superior ao esposo; e depois o Filho, infinitamente maior do que os dois.

Em torno dessa Família se reúnem, desde os primeiros dias, os grandes e os pequenos da Terra: expressão significativa de que Cristo Nosso Senhor veio trazer a paz como característica das relações entre as classes sociais.

São José, nobre como um príncipe e humilde como um carpinteiro; os Magos, dignos como reis e súplices como mendigos; o jovem pastor, um casto adolescente que parece trazer no cordeiro o símbolo de sua pureza e ver no Menino-Deus a fonte de toda castidade.

Queira a Sagrada Família obter para nós, para nossas famílias, para nossa querida nação, que se afastem tantos fatores de preocupação e de tensão, por efeito da única solução que uns e outros podem ter validamente: a Paz de Cristo no Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1977 e 16/12/1991)

Auge desigual de perfeições

As almas que têm o verdadeiro senso da hierarquia amam os que lhes são superiores e têm encanto em admirar o que é inferior. Assim, na humilde casa de Nazaré, Dr. Plinio cogita o  relacionamento da Sagrada Família com base na contemplação mútua das perfeições desiguais, harmônicas e culminantes de cada um de seus membros.

Narra o Evangelho que o Menino Jesus crescia em graça e em santidade perante Deus e ante os homens (Lc 2, 52). Se é verdade que Ele crescia, de qualquer natureza que fosse esse crescimento,  era algo de uma perfeição perfeitíssima.

Ascensão contínua de graça e santidade

Ao lado do Menino Jesus, Nossa Senhora, concebida sem pecado original e confirmada em graça desde o primeiro instante de seu ser, portanto, também Ela sem defeitos — e o importante da  consideração está nisto —, Ela crescia de ponto em ponto constantemente.

Ao lado deles estava São José. É difícil fazermos um elogio de um homem, de qualquer grandeza terrena, depois de ter lembrado a grandeza de São José, o homem casto, virginal por excelência, descendente de Davi.

Diz-nos São Pedro Julião Eymard numa das suas conferências — ele não cita o documento, mas afirma — que era o chefe da Casa de Davi e o pretendente legítimo ao trono, ocupado, derrubado, com Israel dominado pelos falsos reisinhos dos reinos em que se tinha dividido e dominado pelos romanos. Mas o pretendente legítimo era ele, varão tão perfeito que o Espírito Santo modelou  para ter proporção com Nossa Senhora.

Pode-se imaginar o que isso representa? Nossa Senhora, uma mera criatura, mas que chegou na ordem do criado a uma tal altura que d’Ela só não se pode dizer que é Deus. Como é o homem  formado pelo Espírito Santo para estar na proporção de sua Esposa? A que altura, a que píncaro esse homem deve ter chegado? As palavras humanas não podem exprimir.

É verdade que também ele — eu pessoalmente não tenho dúvida nenhuma — era confirmado em graça. Então, na humilde casa de Nazaré, que depois os Anjos levaram para Loreto, na Itália, havia uma ascensão em graça e santidade das três pessoas excelsas que moravam lá. Se na quele tempo houvesse relógio capaz de fazer tique-taque, diríamos que a cada tique-taque aquelas três pessoas cresciam em graça e santidade perante Deus e perante os homens.

Perfeições que chegaram ao cume Em certo momento a Providência leva São José. É o padroeiro da boa morte porque tudo leva a crer que Nossa Senhora e Nosso Senhor assistiram à morte dele e o ajudaram a morrer. Não se pode ter ideia de uma morte melhor do que a dele, admirável, perfeita. Ao seu lado estava Nossa Senhora e Nosso Senhor ajudando- o a levar, até ao último momento, a sua alma àquela perfeição pinacular para a qual ele fora criado.  Não era a perfeição de Nossa Senhora, era uma perfeição menor. Ele, se chegasse ao extremo de sua perfeição, chegaria a uma altura menor do que a de Nossa Senhora, mas era a perfeição enorme para a qual ele fora chamado.

Nossa Senhora, a cada momento subia a uma perfeição maior. Não se sabe o que dizer, só os Anjos poderão cantar no Céu para nós apreendermos o que é essa perfeição. Por cima disso, de modo supereminente, Nosso Senhor.

São José, quando o seu olhar embaçado já ia se apagando para a vida, olhando para a sua Esposa e para Aquele que juridicamente era seu Filho — porque ele tinha direito paterno sobre o fruto das entranhas de Maria —, ele, ainda nos últimos instantes, contemplava aquilo que foi o seu enlevo a vida inteira: ver aqueles dois subirem, subirem, subirem.

E vendo-Os subir, por sua vez subia também. Essa ascensão contínua foi, a meu ver, o encanto de Deus e dos homens na humilde casa de Nazaré. De tal maneira essa reflexão me encanta, que eu, que sempre tive desejo de ir à casa de Loreto, mas por essas ou aquelas razões não tive tempo nem meios de ir, formei aqui o propósito de ir à casa de Loreto, ajoelhar-me — qualquer que seja a dificuldade daí decorrente — e oscular o chão daquela casa, pensando em Jesus, em Maria e em José. Mas pensando n’Eles especialmente daquele ângulo: três perfeições que chegaram todas ao auge ao qual cada uma devia chegar.

Auges desiguais

Entretanto, esses auges não eram iguais. Eram desiguais e se amavam e se inter compreendiam intensamente, e nos quais a hierarquia que Deus quis era em ordem admiravelmente inversa: aquele que era o chefe da casa, no plano humano, era o menor na ordem sobrenatural; o Menino, que deveria obediência aos dois, era Deus. Quer dizer, era uma espécie de inversão que faz amar ainda mais as riquezas e as complexidades de toda a ordem verdadeiramente hierárquica.

Eram perfeições altíssimas, admiráveis, mas desiguais, realizando uma harmonia de desigualdades admirável como não houve no resto da Terra jamais uma coisa igual, ali dando lugar à alma fiel que quisesse fazer uma reflexão sobre esse assunto para que pudesse começar o hino de grandeza, de admiração e de fidelidade a todas as hierarquias e todas as desigualdades.

Extremos da hierarquia

Estas hierarquias Deus as quis assim. Leão XIII mostra especialmente que Deus quis outro mistério dessas complexidades nobilíssimas da ordem hierárquica: Ele quis que São José fosse o  representante da Casa mais augusta que houve na Terra. Porque nas outras Casas nasceram reis; o que dizer da casa onde nasceu um Deus? Os únicos cortesões à altura são os Anjos do Céu,  evidentemente.

Deus quis, ao mesmo tempo, que este chefe da Casa de Davi fosse trabalhador manual, carpinteiro. Quando essa circunstância é lembrada no Evangelho — “Nonne hic est fabri filius? Este aqui não é o filho do carpinteiro?” (Mt 13, 55) —, é dita como quem diz: “Homem que não vale nada, não é nada, não representa nada”. Nosso Senhor quis exatamente que as duas pontas da hierarquia  temporal se ligassem n’Aquele que é o Homem-Deus. Ele tinha a condição de príncipe pretendente da Casa de Israel. Isso talvez nos faça compreender aquela insistência dos Apóstolos de quando viria o reino d’Ele, porque Nosso Senhor tinha o direito de ser rei. Eles, aliás, pareciam desejar isso com cupidez, para ter lugares importantes.

De qualquer maneira, a coincidência dessa perfeição com a do operário no extremo oposto da classe social, em ambos os aspectos — Criador-criatura; em aspecto incomparavelmente menor, Rei-operário — reunindo os extremos para reforçar a coesão dos elementos intermediários da hierarquia.

É como quem aperta, vamos dizer um pouco prosaicamente, uma sanfona dos dois lados, comprime aquela parte intermediária e faz com que fiquem inteiramente juntos. A hierarquia nos aparece aqui não mais só como um conjunto de cimos tão altos que a nossa vista física e mental custa a alcançar tudo quanto isso representa, mas mostra-nos também um amplexo hierárquico desigual, mas afetuoso da ordem social inteira. De maneira que o que está mais alto abraça afetuosamente o que está mais baixo e diz: “Na natureza humana todos nós somos um.”

Nossa Senhora sozinha em Nazaré

Morre São José. Depois vem o momento duro da despedida de Nosso Senhor. Ele vai começar a sua vida pública, e havia vivido trinta anos com Ela.

Podemos imaginar o que é o afeto de mãe ardentíssimo d’Ela para com Ele, a adoração d’Ela para com Ele, como também a primeira noite de vazio da casa de Nazaré depois que Nosso Senhor foi embora… Sendo que Nossa Senhora sabia, pela profecia de Simeão, que um gládio havia de atravessar o Coração d’Ela. Ela entendeu bem que aquilo era uma coisa com o Filho divino d’Ela, e, portanto, lhe foi muito mais dolorido do que se Ela soubesse que era uma coisa com Ela. Nossa Senhora percebeu que Ele partiu para aquilo que nós poderíamos chamar a “tragédia” senão fosse o  épico da glorificação final. Ela ficou sozinha, São José no Limbo, Nosso Senhor entregue às feras, começando a sua vida que havia de terminar como nós sabemos. Na humilde casa de Nazaré uma janela aberta, pela janela entrando o luar, e Ela sentada, sozinha, no escuro, talvez nem sequer uma candeia acesa, rezando intensamente e lembrando-se do passado.

Para Ela, o que tinha graça a não ser lembrar o passado e pensar no futuro que era a crucifixão do Menino Jesus? Frequentemente nos presepes o Menino Jesus aparece com os braços abertos para simbolizar a cruz em que Ele haveria de ser pregado.

Ela devia ter noção exata ou quase exata disso, e pensava em tudo isso. Saber um fuxico na aldeia  de Nazaré, o que aconteceu, qual é o próximo funcionário romano que ia governar a província, a  política do lugar, talvez por condescendência, por bondade para poder atrair uma alma, Ela ouvisse com uma espécie de atenção, mas não era tema para Ela, absolutamente.

Qual era o tema que A atraía? Era aquela ascensão que Ela viu continuamente e que contemplou da seguinte maneira: Qual é o modo pelo qual cada um deles considerava a sua própria ascensão? Porque eles sabiam que estavam se santificando.

Nosso Senhor nem se fala, São José também sabia que estava se santificando, que estava subindo. E, inevitavelmente, ele pensava em tudo quanto havia de bom nele no começo, depois como  aquilo foi progredindo, em que estado ele estava e ia vendo até que ponto ia subir.

De maneira tal que provavelmente ele pressentiu a morte quando notou que não cabia mais perfeição nele.

Vamos refletir um pouco sobre São José, pensando nas formas antigas de sua perfeição, quando ele, Nossa Senhora e o Menino Jesus entraram naquela casinha, se instalaram lá, nos primeiros momentos de vida ali.

Cogitações de Nossa Senhora

Imaginemos Nossa Senhora, morto São José, ausente Nosso Senhor, refletindo em tudo isso. Relembrando aqueles graus de perfeição menor que tinham ficado para trás, e quão para trás, mas que Ela amava tanto e considerava com um sorriso.

Aquelas perfeições em que o Menino Jesus tinha crescido, mas que Ela tinha conhecido, por assim dizer — a palavra é incorreta —, “pequeninas”. Eu só digo “pequeninas” porque Ele era  pequenino, mas eram perfeições fulgurantíssimas.

Nossa Senhora talvez sorrisse comprazida relembrando tal episódio, tal circunstância. Depois a reação de São José e também ele depois como cresceu. Percorrendo várias vezes no seu espírito e no seu Coração aquela gama de perfeições a que Ela os tinha visto subir, pensando Ela mesma — é inevitável — nas várias perfeições pelas quais Ela mesma tinha subido rumo à perfeição maior.

Qual era a atitude d’Ela diante da perspectiva das perfeições que Ela tinha que adquirir até ao momento de sua morte? De sua dormição, diz numa linda expressão a linguagem dos fiéis e a  Liturgia, porque teve uma morte tão leve que foi como um sono, Ela ressuscitou logo.

Até esse momento Ela não deixou de progredir e tinha ideia de aonde ia. Estava, vamos dizer, a três quartos da escalada, tinha ainda alguma coisa a alcançar, mas atrás d’Ela a ascensão era vertiginosa.

O amor que Ela tinha ao que tinha ficado para trás era um amor menor do que o amor que A atraía para o alto, porque no alto estava Deus, e evidentemente o sentido teocêntrico de toda alma que visa a perfeição é um sentido fortíssimo, porque o centro é Deus e para o centro é que todos nós devemos caminhar.

Alegria e comprazimento

O sentimento interior das três pessoas da Sagrada Família é de uma altura que, entretanto, se sente abaixo de uma outra altura, que ama a altura que tem porque sente em si a perfeição do que tem e a do que é, que ama em si o que foi posto por Deus. Nossa Senhora tinha que amar o que Deus pôs n’Ela.

O cântico do Magnificat exprime isso bem: “Magnificat anima mea Dominum. Et exsultavit spiritus meus in Deo salvatore meo” (Lc 1, 46-47). Vemos que Ela tinha a alegria de sentir o Espírito Santo e a graça presentes n’Ela. O Magnificat desenvolve isto: aquela alegria de sentir o que é, e como aquilo que Ela é tem relação com Deus. Uma alegria de lembrar com afeto o que foi, quer  dizer, aquilo que é menos do que Ela era naquele instante, mas que é em ponto menor tão parecido, tão harmônico, tão afim com Ela — era Ela! — em estado menor. Lembrando-se e sorrindo com comprazimento, com alegria.

Isso indica uma forma de enlevo, de deleite espiritual, de amor de Deus, pelo qual Ela amava a Deus  em cada um dos graus sucessivos em que Ele A tinha feito subir. Amava a Deus daquele tipo de amor que correspondia àquele grau. Ela amava a Deus e amava o amor que Deus tinha posto n’Ela.

Esse amor, amando o amor, formava uma harmonia interior que se poderia comparar ao tecido de seda, de boa qualidade, fazendo fru-fru quando uma parte encosta na outra. Era a categoria amando a categoria nos seus vários graus, na matéria mais alta que é a espiritual, perto da qual todas as que ficam abaixo são figuras, não são nada.

Essa é a grande categoria, é o amor da santidade menor pela santidade maior, é o amor da excelência menor pela excelência maior. Há nisto uma harmonia, um deleite, uma alegria, uma forma de respeito que é o encanto de admirar, de venerar, de servir aquilo que ela vai ser. O próprio dinamismo do progresso espiritual contém isto e caminha para isto.

Há nisso um desprendimento completo. Hierarquia do puro amor Escolhi o exemplo de São José, de Nossa Senhora e de Nosso Senhor Jesus Cristo para compreenderem essa hierarquia no que ela tem de mais puro, de mais perfeito, de mais límpido, onde não entra egoísmo, não entra nada, porque entra esse puro amor de Deus gerando este amor às várias hierarquias sem a preocupação de “megalice” de ser e de fazer muita coisa, de poder muita coisa. Nada disso. É o puro amor, pelo amor do Amor, amor a Deus.

Nesta Terra as almas que têm o verdadeiro senso da hierarquia, é deste modo que elas amam os que são superiores. A palavra majestade tem para as almas retas um sentido, tem um mistério, um lumen especial que torna de tal maneira respeitáveis e veneráveis os reis e imperadores, às vezes até quando estão no estado de não merecerem por suas qualidades pessoais a homenagem que recebem por serem nobres. Mas se eles são quem são, eles têm aquilo, eles foram chamados para alguma coisa mais alta, e em relação àquilo em algo eles correspondem.

E esse algo, por pequeno que seja, é como um perfume de uma flor incomparável da qual se tira uma gota que vale mais do que um tonel de qualquer perfume do mundo. É uma coisa especial.

A sensação que se tem diante de uma majestade é uma sensação assim. Exemplo: a Rainha de Inglaterra, o Tzar da Rússia. Ele, um greco-cismático; ela, uma anglicana. Entretanto, quem de nós ousaria dar uma bofetada neles? Quem não teria sensação de praticar um sacrilégio? Apesar do horror que tenho ao cisma e à heresia, e do amor exclusivista que tenho ao Papado, a verdade é esta: neles há o aroma de uma gota espiritual, não sei de que gênero, que produz sobre o homem reto um efeito como o da santidade maior produz na santidade menor, com alguma analogia no que se passava na Sagrada Família entre as três pessoas indizivelmente excelsas — uma divina — que a compunham.

Há uma analogia que se estende depois à aristocracia como tendo esse perfume mais difuso e menos acentuado também, mas que faz lembrar o perfume da majestade. A aristocracia é um halo mais diluído da majestade real que se constitui em torno dela, como em torno de uma gota de perfume muito intensa o que se respira à distância é mais tênue, mas é uma irradiação do que na gota se encontra. Assim é a aristocracia.

Dignidade do que é modesto

Assim se dá com as outras classes sociais, mas com este traço: de que a majestade e aquilo que se irradia da majestade isto morre nos limites da aristocracia. Quando os limites da aristocracia acabam, começa outro limite de uma coisa muito elevada: é a dignidade. E a dignidade que pode ser tão digna, que diante dela não se tem o que dizer.

Ainda ontem à noite osculei uma relíquia de Beata Ana Maria Taigi. Ela era uma cozinheira do século passado, da Casa dos Príncipes de Colonna, em Roma. Ela tinha um ar tão majestoso e tão  digno que a presença da graça punha nela, que as pessoas que a encontravam na rua — apesar dos trajes humildes que ela usava — comentavam: “Parece uma rainha!” O que é isso? É a dignidade do ofício humilde, modesto, honesto de uma cozinheira, na qual vem habitar a graça de Deus, iluminar aquilo por dentro e fazer notar alguma coisa que já não é aquilo, mas é parecido com aquilo, e que perfuma de um encanto especial, de uma atração especial todo o lar digno onde se ama verdadeiramente a Deus, onde o pai é rei, a mãe é rainha e os filhos são os súditos. Havia na França do “Ancien Régime” essa expressão: “O pai é o rei dos filhos, e o rei é o pai dos pais”.

Portanto, na dignidade da casa mais modesta e mais humilde, como aquela luz irradiada da coroa, passando por camadas atmosféricas diferentes, transpondo as legítimas alterações, chega para dar toda a sua beleza, toda a sua simplicidade, todo o seu encanto à casa modesta do operário, de tal maneira que se poderia dizer que a casa de um operário onde mora um santo era a melhor expressão da casa de Nazaré.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/11/1992)

Esplendor que reparava a imerecida miséria

São Silvestre foi o Papa a quem, tendo vivido no tempo de Constantino, coube presidir a transformação importante que foi o fato de a Igreja deixar de ser perseguida para ser rainha, abandonar as catacumbas e começar a ocupar palácios.

Ele foi o Pontífice que acompanhou o surgimento da Igreja para fora das catacumbas como um Sol que nasce. Sob suas diretrizes e inspiração teve início a obra pela qual a Igreja foi sendo cercada de um luxo e esplendor, que reparava os anos de imerecida miséria passados por ela nas catacumbas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/12/1966)

Meditação sobre o Natal – II

Quais seriam nossas emoções se, logo após o nascimento de Jesus, entrássemos na gruta de Belém e contemplássemos a majestade, a acessibilidade e a misericórdia do Menino-Deus, bem como o ambiente que O cercava? Eis o tema do segundo estilo de meditação explanado por Dr. Plinio.

Passarei a fazer uma meditação inteiramente diversa da anterior(1) para, depois, efetuarmos a comparação.

Suponhamos que cada um de nós tivesse a alegria de entrar na gruta de Belém e ver Nossa Senhora com São José, o Menino Jesus, os pastores, o boi e o asno. E visse também os Reis Magos — entre os quais o Rei negro Baltazar — vindos do Oriente, se aproximando com suas caravanas, seus cortejos, a estrela; adoram o Menino-Deus e Lhe oferecem ouro, incenso e mirra.

Como imaginariam a cena? Sob que aspecto ela lhes causaria mais alegria na alma e por onde se sentiriam mais próximos do Divino Infante?

N’Ele, poderíamos considerar, entre muitos outros pontos, a infinita grandeza, a infinita acessibilidade, e também o infinito amor.

Infinita grandeza do Menino Jesus

Quanto a sua infinita grandeza, podemos imaginar uma gruta enorme, alta, quase como uma catedral, que não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas suas pedras nos fizessem pressentir vagamente as ogivas de uma catedral da futura Idade Média. O berço do Menino Jesus estaria colocado bem no ponto majestoso da encruzilhada das várias naves laterais, naturais, e uma luz celeste toda de ouro pairaria sobre Ele naquele momento.

O Divino Infante, embora deitado em seu presepe e sendo uma criança, é o Rei de toda majestade e toda glória, o Criador do Céu e da Terra, Deus encarnado e feito Homem, tendo desde o primeiro instante de seu ser — portando já no ventre de Nossa Senhora —, mais grandeza, mais manifestação de força e de poder do que todos os homens que houve na Terra, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão, Alexandre; Ele sabia todas as coisas extraordinariamente mais do que qualquer cientista moderno, e na fisionomia sempre variável do Menino Jesus, de vez em quando esta majestade feita de sabedoria, de santidade, de ciência, de poder, haveria de aparecer.

Então, imaginem que encontrassem isso misteriosamente expresso na fisionomia deste Menino. Que Ele, às vezes, se movesse e no seu movimento se percebesse um rei; abrisse os olhos e o fulgor de seu olhar tivesse uma profundidade tal que se sentisse n’Ele um grande sábio; haveria uma atmosfera circundando-O e que nimbasse de virtude todos aqueles que d’Ele se acercassem; algo puríssimo, de tal maneira que as pessoas não poderiam aproximar-se dali sem antes pedir perdão por seus pecados, mas ao mesmo tempo atraídas e incentivadas a se corrigirem de suas faltas, pela santidade que emanava daquele local.

Majestade de Nossa Senhora

E aos pés d’Ele Nossa Senhora, Ela também como uma verdadeira Rainha — a Virgem Santíssima era e é Rainha —, com uma dignidade e imponência, que não precisava de roupas nobres nem de tecidos de grande qualidade para se fazer valer.

Todos sabem que Santa Teresinha do Menino Jesus era tão imponente que seu pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro do Carmelo, no processo de canonização, contou uma vez que viu uma freira, que estava de costas, fazer tal coisa e era Santa Teresinha. Então o advogado do diabo perguntou: “Mas como o senhor sabia que esta freira, estando ela de costas, era Santa Teresinha?” A resposta foi: “Pela majestade da santa, porque ninguém possuía a majestade que ela teve”.

Podemos imaginar Nossa Senhora majestosíssima, transcendente, puríssima, rezando para o Menino Jesus, os Anjos invisivelmente cantando, em volta, canções de glorificação, e toda a atmosfera saturada de valores tais que se diria haver, naquela pobreza e miséria, um ambiente de corte.

E nós nos aproximando do presépio, sentindo a grandeza do Menino Deus e, como contrarrevolucionários que somos, amando n’Ele tudo quanto é nobre, belo, santo, intransigente e combativo; adorando aquele Menino que, ao mesmo tempo, atrai junto a Si todas as formas de grandeza que dimanam, são reflexos e uma participação na santidade d’Ele, e rechaça para longe de Si o pecado, o erro, a desordem, o caos, a Revolução, que nem sequer ousa levantar os olhos para aquela cena magnífica em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor dominam completamente.

Acessibilidade do Divino Infante

Consideremos agora outro aspecto: o Menino Jesus imensamente acessível.

Suponhamos que esse Rei tão cheio de majestade, em certo momento abrisse os olhos para nós e notássemos — mas cada um deve imaginar-se visto por Ele — que o olhar puríssimo, inteligentíssimo, lucidíssimo do Divino Infante penetra em nossos olhos profundamente, vê o mais fundo de nossos defeitos bem como o melhor de nossas qualidades; e naquele momento toca a nossa alma, como tocou, trinta e três anos depois, a São Pedro, e nos dá uma tristeza profunda de nossos pecados.

Conta o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor para São Pedro foi tal que este se retirou e chorou amargamente. Então, imaginemos o olhar d’Ele nos dando o horror de nossos defeitos e nos mostrando seu amor às nossas qualidades. E também o seu amor à nossa condição de criatura feita por Ele; apesar de nossos defeitos, fomos criados por Ele e destinados a um grau de santidade e perfeição, que o Menino Jesus conhece e ama enquanto podendo existir em nós.

De maneira que, embora pecadores, quando menos esperássemos, por um rogo amável de Nossa Senhora, Ele sorrisse para nós e, apesar de toda a sua majestade, sentíssemos as distâncias desaparecerem, o perdão que invade a nossa alma, e algo nos atraísse de tal forma que caminhássemos para junto do Menino-Deus, e Ele afetuosamente nos abraçasse e pronunciasse o nosso nome: “Fulano, Eu te quis e te quero tanto, desejo para ti tantas coisas, perdoo-te tanto, não pense mais nos teus pecados, daqui por diante pensa apenas em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida, quando tiveres alguma dúvida, lembra-te dessa condescendência, dessa amabilidade, desse beneplácito e recorre a Mim por meio de minha Mãe, e Eu te atenderei, serei o teu amparo, a tua força que há de levar-te ao Céu para ali reinares ao meu lado por toda a eternidade”.

Sua compaixão sem limites

Imaginemos a misericórdia do Menino Jesus, olhando não só para o que há de bom e mau em nós, mas também para nossa tristeza, para a condição miserável de todo homem na Terra, para o sofrimento que cada um de nós traz em si, para o sofrimento passado e o sofrimento futuro que Ele conhece. Contemplando inclusive o risco que nossa alma corre de ir para o Inferno, para os tormentos eternos; todo homem, enquanto vive nesta terra, está exposto a ir para o Inferno. E o Divino Infante olhando para o Purgatório e os tormentos que ali nos aguardam, se não formos inteiramente fiéis. Então é um olhar de compaixão, de pena, de uma participação profunda na nossa dor; e um desejo de removê-la em toda medida que for possível, de nos dar forças para suportá-la na medida em que a dor for necessária para nos santificarmos.

Então, notarmos n’Ele aquilo que consola tanto o homem, e que Jesus não teve quando chegou sua hora de sofrer. Qualquer pessoa, no momento da dor — está na natureza humana e é reto —, se consola em ter alguém que sinta pena dela, pois a compaixão divide o sofrimento. O homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre e comunica a sua alegria, esta se duplica, quando está triste e comunica a sua tristeza, esta se divide. Assim também, e a “fortiori”, passa-se conosco em relação ao Menino Jesus.

Então, em todos os sofrimentos de nossa vida, quando a taça para beber for muito amarga, repetiríamos por meio de Maria Santíssima a oração de Nosso Senhor: “Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”(2). Quer dizer, pediríamos, em todos os momentos, que a dor passasse, mas se fosse a vontade d’Ele a dor viesse sobre nós. Assim, durante nossos sofrimentos, teríamos compaixão d’Ele, como se nos dissesse: “Meu filho, Eu sofro contigo. Vamos padecer juntos porque sofri por ti, e há de chegar o momento em que tu participarás eternamente da minha alegria”. E o olhar compassível de Jesus não nos abandonará um momento em nossa existência.

Três presépios representando cada um desses aspectos

Então, ao fazermos essa meditação durante todo o tempo de Natal, ao longo das vicissitudes da existência quotidiana, devemos nos lembrar destes três pontos: a majestade infinita, a acessibilidade infinita, e a compaixão sem limites do Menino Jesus em relação a nós. E ter a recordação sensível, porque procuraríamos compor um pouco o quadro.

Alguém me diria: “Mas Dr. Plinio, o presepe não poderia ter esses três aspectos ao mesmo tempo”. Não é verdade. Em Nosso Senhor todas as perfeições, todos os estados de alma perfeitos coexistiam na sua natureza humana em graus e modos diversos, conforme as circunstâncias da vida. Portanto, Ele era cheio de majestade, de acessibilidade e de compaixão para com os homens desde o momento em que entrou na Terra. E é natural que, apesar de ser Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora uma qualidade, ora outra, aparecesse.

Seria até muito bonito que numa igreja, em vez de um presépio, houvesse em três altares diferentes três presépios, em que as figuras e toda a ambientação representassem, em cada altar, um desses aspectos para facilitar às almas a meditação sobre esses pontos como, aliás, sobre outros que também se poderiam considerar.

Como pintar o olhar do Menino-Deus?

Aqui estaria um outro tipo de meditação sobre o Santo Natal. O primeiro é um estilo de meditação que chamaríamos mais teórico, mais doutrinário; o segundo seria uma recomposição mais sensível, tocando-nos mais de perto.

Na segunda meditação, há lógica também, pois sem lógica não há meditação; mas a parte do embebimento da fantasia, da sensibilidade para preparar o jogo da lógica é muito grande. A primeira é muito mais seca. Aí está a diferença entre as duas escolas. A geração posterior à minha é muito apetente de embebimento e de preparação desta natureza, conforme a segunda meditação.

Como eu gostaria de ter em nosso Movimento pintores ou desenhistas que soubessem, por exemplo, pintar três presépios de acordo com esta concepção, ostentando toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, afabilidade, ou toda a compaixão de Nosso Senhor! Como seria bonito! Mas o difícil é que seria preciso saber pintar aquilo que é o centro do presépio: um Menino recém-nascido que, sem perder as características de menino, tivesse tudo isso e, sobretudo, um olhar onde essas perfeições se refletissem. Como pintar um olhar infantil capaz de dizer tudo isso? Antes de ser pintor, que psicólogo o artista precisa ser para imaginar este olhar! E, depois de imaginado, como pintar? Este seria o pintor que iniciaria nossa escola de pintura, porque tenho a impressão de que, no pintar expressões de olhar, nossa escola estaria largamente representada.

”Minha alma é eminentemente inaciana”

Essa meditação sobre o Santo Natal conduz à seguinte convicção: convém fazer um estilo e outro, porque há diversas vias espirituais, e não devemos nos fixar só num estilo. Vale a pena alternarmos, meditando ora de um modo, ora de outro, para atender aos anseios de todas as almas.

Se me perguntassem o que me impressiona mais, eu responderia que, embora tendo composto o segundo tipo, me impressiona mais o primeiro, talvez por ser mais próprio de minha geração ou do meu feitio de espírito. Aquilo que é inteiramente racional e que eu posso ver amarrado por um raciocínio inexorável, me enche e me basta. Compreendo que outros não sejam assim, a tal ponto que tomei o trabalho de compor, para uso de outros, uma meditação diferente, e dou o meu tempo por muito bem empregado.

Nessa opinião transparece a seguinte posição: na Igreja há várias escolas espirituais, todas aprovadas por ela. Em geral, inauguradas e seguidas por santos, essas escolas são esplêndidas, e cada um deve seguir o que sua alma lhe pede. Minha alma é eminentemente inaciana e o sistema de Santo Inácio me encanta. O raciocínio simples, claro, límpido, que conclui e que arrasta, e a respeito do qual não há tergiversação nem sofisma, me deixa entusiasmado! Sejamos cada um como Deus o fez para a glória d’Ele.

Que Nossa Senhora nos ajude para que possamos tirar proveito de qualquer dessas meditações, de maneira a compreendermos cada vez mais a Ela e ao Menino Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/12/1973)

1) Revista “Dr. Plinio”, n. 189, p. 20-25.
2) Cf. Mc 14, 36.

Majestade e sofrimento

Com a alma pervadida de enlevo, veneração e ternura, Dr. Plinio imagina como seria o convívio diário na Sagrada Família, abordando desde os assuntos mais comezinhos até os mais sublimes. E compõe uma oração própria de uma pessoa que não foi maculada pela Revolução.

Encontramos diversas estampas pitorescas, várias delas muito respeitáveis, decorosas, apropriadas e dignas, representando a santa casa onde residiu a Sagrada Família.

Simplicidade sublime

Em geral essas ilustrações se empenham em representar a casa de Nazaré com uma pureza diáfana, uma luz que não era apenas a de um dia lindamente luminoso, mas uma luminosidade persistentemente matinal, ao lado de uma grande simplicidade e uma limpeza absoluta.

O que dizer da limpeza dessa casa?

É difícil imaginar, porque talvez nem sequer os Anjos tinham o privilégio de limpá-la. Era Nossa Senhora, a Rainha dos Anjos, São José, o castíssimo esposo d’Ela, e às vezes, quando estavam cansados, o próprio Menino que, diante de todos os coros angélicos extasiados, limpava a casa para que seus pais descansassem.

Num canto, um jarro simples do qual se levanta uma açucena, muito ereta, como a virgindade, como a pureza, perpendicular, da qual brota o cálice de uma flor maravilhosa; é a única coisa que fala de arte, de gosto; o resto é muito simples.

Mas olhando para qualquer madeira tosca, para o ponto em que um pé de cadeira encosta no chão, o ponto em que uma prateleira suporta três ou quatro pequenos objetos indispensáveis para viver, fica-se extasiado, sem saber o que dizer diante dessas sublimes bagatelas, tão comuns na vida de qualquer um, mas que por estarem postas naquela luz tomam um caráter maravilhoso! 

E para muito adequadamente realçar a humildade de personagens tão puros, apresentam dentro deste décor, a Sagrada Família: São José que, sentado, está torneando algum móvel; Nossa Senhora fazendo uma costurinha; o Menino em pé, tão pequeno ainda que se apoia, não na mesa, mas em uma cadeira vazia, sobre a qual brinca com dois ou três objetos, como se aquilo fosse uma mesa.

Atentos aos gestos, à voz, ao olhar do Menino Jesus

Um silêncio no qual ninguém diz nada, mas todos se entendem superlativamente. Ao mesmo tempo, juntando a vidinha de todos os dias de uma pobre família operária e o encanto de considerações metafísicas, sobrenaturais, de Nossa Senhora e de São José que viviam inundados pela presença do Menino, com tudo quanto essa presença significava e era.

O Menino, nascido da Virgem-Mãe, da raça de Davi e, portanto, da mesma estirpe de São José — que possuía sobre Ele um autêntico direito de pai, por ser a criança o fruto das entranhas de sua esposa —, mas que era o Filho gerado pelo Espírito Santo no seio virginal de Maria.

O que dizer disso? Não há palavras que bastem!

A Santíssima Trindade, por assim dizer, “Se movia” ao menor movimento do Menino, brincando com algumas pedrinhas ou mexendo com uma coisa qualquer, enquanto sua infância ia se desenvolvendo segundo a ordenação posta por Deus na natureza humana, mesmo sendo esta tão elevada e tão distante do pecado original, como era a do Menino-Deus, Filho de Maria Virgem, concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser.

Poderíamos, assim, imaginar as cenas mais comuns na vida de uma criança, como procurar algum objeto, hesitando sobre se estaria aqui ou lá, e não encontrando onde procurou, para depois buscar no lugar certo porque Nossa Senhora ou São José tinha mudado de lugar o objeto, ou o vento soprou e tocou para longe o paninho que Ele tinha separado…

Que repercussão episódios tão simples teriam nas relações das três Pessoas da Santíssima Trindade?

Por outro lado, São José e Maria Santíssima também cuidando dos afazeres domésticos, mas, tanto quanto possível, procurando não perder um gesto, um movimento, atentos à mínima emissão de voz d’Ele como a uma música inefável. O menor olhar d’Ele era um tesouro sem conta, o menor movimento tinha uma majestade e uma graça inexprimíveis! E eles sabiam que era o Homem-Deus que estava ali, hesitava, Se movia, falava… Podemos imaginar o enlevo sem fim que os inundava!

Como seria o convívio diário na Sagrada Família?

Deveria acontecer também que, pelas contingências da vida concreta, pela necessidade de prestar atenção nos afazeres, às vezes eles desviavam a atenção do Menino. De repente, tinham uma surpresa com alguma atitude e comentavam-na entre si, cochichando baixinho.

Em outras ocasiões, um dos dois esposos tinha estado fora e, quando voltava, recebia encantado o “jornal falado”.

Outras vezes era o próprio Menino Jesus que tinha saído para brincar com outra criança no jardim, enquanto São José e Nossa Senhora ficavam dentro de casa, confabulando: “O que estará fazendo Ele?”, sabendo não se tratar apenas da satisfação de um desejo infantil de ter um companheiro, mas considerando como tudo quanto Ele fazia tinha um significado muito profundo.

Como seria o relacionamento entre os três, na casa de Nazaré? Teriam entre Si um contato, uma interlocução tal que a todo o momento fizessem referência à natureza divina de Jesus? E o Menino, à virgindade fecunda de sua Mãe e à virgindade milagrosa, florindo num casamento casto, de São José? Ou esses eram temas que eles sabiam, veneravam, mas sobre os quais falavam pouco, deixando-os implícitos e conversando sobre eles apenas nas grandes ocasiões, quando baixavam do Céu luzes extraordinárias e, contemplando o Menino, o santo casal tinha êxtases místicos?
Com exceção desses momentos, talvez o resto do tempo transcorresse em uma vida comum, com os assuntos cotidianos:

— José, meu esposo, fostes vós que abristes aquela porta? Quereis porventura sair levando um banco que acabastes de fazer, ou quereis ainda ficar aqui?

— Senhora, eu ainda preciso ficar aqui, exceto se vossa vontade for outra…

Algum tempo depois, diria São José:

— Senhora, Vós vos distraístes — ele bem sabia que Ela tinha estado conversando com os Anjos! — e o almoço já vai longe no nosso pequeno fogareiro; vede um pouco como está… Enfim, poder-se-ia imaginar tudo.

Refulgindo como no Tabor

Eu seria propenso a achar que, na maravilha desse convívio interno, as coisas mais diferentes se davam simultaneamente. Entretanto, tudo se juntava em uma fórmula maravilhosa que não sabemos qual é, mas podemos intuir.

Seria uma fórmula que comportaria momentos de uma seriedade extraordinária, de uma gravidade maravilhosa, em que a Santíssima Trindade se manifestasse ao santo casal? Ou que o Menino — que quando adulto reluziu no Tabor entre Moisés e Elias, de um modo tão esplendoroso — de repente aparecesse a eles com um brilho cada vez mais intenso, num momento inopinado em que Ele viesse pedir licença para brincar um pouco no jardim. E ambos passassem um tempo sem conseguirem responder ao Menino que, entretanto, esperava reluzente a resposta; e eles completamente transportados para outra esfera, pois estavam diante de Deus!

Poderia ser que, depois de terem visto esse esplendor, não comentassem. E Maria dissesse a José:

— Está ficando tarde, não é? Vou recolher a roupa que está lá fora.

E ele diria:

— Senhora, preciso acabar este objeto que me encomendaram para hoje à tarde.

Enquanto Ela ia pegar a roupa e ele trabalhava no objeto, este tomava rapidamente a forma que ele queria. Nossa Senhora, entrava, via o objeto pronto e dizia:

— Senhor, já está pronto o objeto? — suspeitando ter sido concluído pelos Anjos.

E ele, discreto, responderia:

— Senhora, às vezes as coisas correm depressa…

Há um matiz nesse convívio da Sagrada Família que eu não vejo reproduzido na iconografia, e compreendo, porque não é fácil reproduzir. Isso tudo estava impregnado de uma respeitabilidade, de uma majestade, de uma seriedade augusta, de uma determinação forte, para dizer tudo em uma palavra só, de uma seriedade e de uma dor desconcertantes.

Prefiguras da Agonia no Horto, do levar a Cruz ou da coroação como Rei

Em certos momentos, o santo casal deveria ver que o Menino brincava e Lhes aparecia, de repente, chagado dos pés à cabeça, esmagado de dor, e brincando com dois pauzinhos que Ele carregava às costas. E era o precônio da Cruz.

Eles ficavam com o coração partido, e viam o Menino andar de um lado para outro, determinadamente, fazendo um gesto ao Padre Eterno. E era um primeiro, um segundo, um quinto lance prefigurativos da Agonia no Horto. Que dor, que nobreza, que grandeza, que majestade!

Outros dias Ele aparecia como Rei, em comparação com o qual os Césares não eram senão moleques.

Poderíamos, assim, imaginar formas de venerabilidade as mais augustas.

Acredito que os que quisessem habitar na dor seriam pouco numerosos. Mais raros ainda seriam os que não se cansassem da majestade.

Escudo e espada para defender o Menino-Deus

Contudo, quem, considerando a grandeza dessas cenas, não tivesse nenhuma nódoa de Revolução na alma, diante dessa majestade se ajoelharia e diria:

“Ó Majestade divina, dentro desse mar imundo de vulgaridade que é hoje a Terra dominada pela Revolução, quanto Vos procurei sem saber que era a Vós que eu procurava! Quanto Vos desejei, quanto me comprouve em pegar os menores fiapos de majestade que encontrei pelo meu caminho e me deter diante deles conscientemente, pensando em Vós que eu não conhecia!

“Mas afinal, ó Majestade, eu Vos encontro! Majestade, eu Vos compreendo! Vós tendes todo o império dos Anjos, sois tudo quanto há de grande!

“Quando apareceis a mim, ó Majestade, penso no estrondo das cataratas mais caudalosas que, entretanto, são minúsculas torneiras abertas diante de Vós. O oceano parece um dedal de água em vossa presença, e todas as grandezas da Terra não são nada em comparação convosco.

“Ó Majestade, quanto eu Vos procurei, ó pátria de minha alma! Afinal Vos encontro!

“Quando eu fitava a Igreja e renovava enlevado o meu ato de Fé, não sabia que um dos nomes dela era “Majestade”. Agora compreendo. A Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, receptáculo da Majestade, vaso de honorificência!

“Se eu visse Maria, que majestade! Se eu visse José, o modesto carpinteiro, que majestade! Se eu visse o Menino, minha alma procuraria rimas para celebrar-vos, ó Majestade!

“Meus braços ansiariam por um escudo e por uma espada para Vos defender! Meu corpo inteiro se retesaria diante da possibilidade de Vos proclamar diante dos homens, ó Majestade!

“E precisamente porque Vos compreendo, ó Majestade, compreendo também que na vossa imensidade cabem todas as outras coisas: não há amor paterno nem materno, nem carinho fraterno, nem amizade, nem socorro, nem proteção, nem nada do que o coração humano possa produzir de mais suave e de mais terno, que não more em Vós, ó Majestade! Vós sois todas as grandezas, todas as magnificências, até mesmo das coisas pequenas.

“Vós sois o meu repouso quando estou cansado; a tranquilidade e a harmonia do meu sono; a alegria do meu despertar.”

Morar no santuário da majestade

Quem compreende que no santuário incomensurável da majestade há um altar, bem no centro, colocado para o sofrimento? Portanto, também para esta forma de dor de espírito, que é a ascese, por onde o homem abandona o que é frívolo, superficial, fútil, e se volta para o que é profundo, sério, para o esforço da mente na procura da verdade, para o esforço do corpo inteiro na procura do bem e do belo; holocausto mil vezes feito de todos os modos pela alma à procura da verdade, do bem, e da beleza.

Sem essa dor, para nós, concebidos no pecado original, não teria sentido o santuário infinito da majestade. Essa é a verdade.

Há a dor, há a cruz. A Cruz sacrossanta de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quem ama a dor? Quem ama a cruz? É tal a ligação entre a cruz e a majestade que, a partir de certo momento da História cristã, nenhuma coroa houve que não fosse encimada pela cruz. O píncaro da majestade, a cruz pequena sobre a coroa, como se a cruz estivesse numa altura tal que mesmo sobre a coroa ela fosse difícil de ver. Tal é a majestade da cruz!

Quem amará esses pensamentos? Quem se habituará a conviver com eles? Quem quererá morar no santuário da majestade, ajoelhado aos pés da cruz?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/1982)

A Sagrada Família

Imaginando aspectos da Santa Casa de Nazaré, Dr. Plinio comenta as sublimes realidades do dia-a-dia da Sagrada Família, bem como o enlevo e a admiração do Santo Casal por seu Filho-Deus.

É comum encontrar estampas com pitorescas representações da casa onde viveu a Sagrada Família. Muitas são respeitáveis e bastante apropriadas. Em geral, combinam uma pureza diáfana com uma luz que não era apenas a de um dia belamente luminoso — luz persistentemente matinal de um horário que já não é matinal. Em síntese, apresentam uma simplicidade absoluta junto a uma limpeza absoluta.

Isto é o que nos apresentam tais figuras, mas fica-se sem saber o que dizer a respeito do que acontecia na Casa de Nazaré. Imaginemos, então.

Imaginando aspectos da casa e do dia-a-dia

O que comentar, por exemplo, da limpeza desta casa?

Era Maria Santíssima que, diante dos coros angélicos extasiados, fazia a limpeza da Santa Casa. Às vezes era São José, seu castíssimo esposo, quem a fazia. Noutra ocasião, quando estavam cansados, era o Menino quem limpava a casa para que os pais a encontrassem em bom estado… É difícil crer, mas nem sequer os Anjos tinham o privilégio de limpá-la.

Num canto da casa, há um simples jarro, do qual se levanta uma açucena, reta como a virgindade. É a única coisa que fala de arte; o resto é tão simples…

Entretanto, olhando para qualquer madeira tosca, para o pé de uma cadeira, por exemplo, ou para uma prateleira que suporta três ou quatro pequenos objetos indispensáveis para viver, fica-se extasiado! Não se sabe o que dizer diante dessas “sublimes bagatelas”, tão comuns na vida de qualquer um, mas, que por estarem postas naquela casa, assumem um caráter todo especial.

Sublimes realidades

Imaginemos São José sentado, torneando alguma coisa, enquanto Nossa Senhora faz alguma costurinha, e o Menino que, tão pequeno ainda, brinca com duas ou três pedrinhas, em pé, apoiado numa cadeira vazia.

Não há palavras que bastem para nos explicar o que, na realidade, está se passando: este Menino — verdadeiro menino, nascido da linhagem de David — foi gerado pelo Espírito Santo nas entranhas de Nossa Senhora, a flor do gênero humano!

Enquanto o Menino Jesus brinca com suas pedrinhas, e n’Ele a natureza humana se desenvolve segundo a ordenação posta por Deus, que repercussão estará havendo nas relações das Três Pessoas da Santíssima Trindade? Entretanto, tudo tão simples, tão elementar.

Enlevo e admiração pelo Filho-Deus

Pode-se imaginar o enlevo sem fim que o casal tinha por cada olhar ou movimento do Menino. Enquanto trabalhavam em alguma coisinha, Maria e José ficavam atentos ao mínimo gesto de Jesus e procuravam não perder sequer uma emissão de voz d’Ele.

Quem não ficaria atento? Afinal, eles sabiam que era o Homem-Deus que estava assim Se movendo.

Isto representava para eles um tesouro sem conta.

O dia-a-dia da Sagrada Família

Como seria o relacionamento no seio da Sagrada Família?

Conversariam sobre a virgindade fecunda de Nossa Senhora? Teriam uma interlocução por onde, constantemente, faziam referência à natureza divina? Ou somente falavam sobre estes assuntos nas grandes ocasiões, quando, por exemplo, baixavam do Céu luzes extraordinárias, ou quando contemplando o Menino tinham êxtases místicos?

Eu sou propenso a acreditar que, na maravilha desse convívio interno, as situações mais diferentes se sucediam simultaneamente, e isto constituía uma forma de convivência celeste.

A vida comum de uma pobre família operária, e o encanto das considerações metafísicas e sobrenaturais de Nossa Senhora e de São José, que viviam inundados pela presença do Menino, uniam-se no dia-a-dia da Casa de Nazaré.

Numa ocasião comum, Nossa Senhora perguntaria:

— José, meu esposo, fostes vós que abristes aquela porta? Ireis porventura sair, levando o banco que acabastes de fazer?
— Senhora, responderia São José, preciso ainda ficar aqui por algum tempo, exceto se vossa vontade for outra.

Acrescentaria ele:

— Senhora, Vós Vos distraístes — ele bem sabia que Maria tinha estado conversando com os Anjos — e o almoço vai longe em nosso pequeno fogareiro; vede um pouco… Quem sabe ao certo como se davam estas coisas? Pode-se imaginar tudo.

Previsão do sofrimento e da glória

Noutra ocasião, o Menino — que quando adulto, no Tabor, reluziria entre Moisés e Elias de um modo tão esplendoroso —, no momento inopinado em que vinha pedir licença aos pais para brincar um pouco no jardim, apareceria diante deles com um brilho deslumbrante. Eles passavam alguns instantes sem poder responder ao Menino — o qual esperava reluzente a resposta —, completamente transportados para outra esfera: estavam diante de Deus.

Em certos momentos, Eles viam que o Menino Lhes aparecia brincando com dois pauzinhos que Ele carregava às costas: era o precônio da cruz.

Ficavam, então, com o coração partido, olhando o Menino Jesus andar determinadamente de um lado para outro na casa, fazendo um gesto ao Padre Eterno. Era um ato figurativo da Agonia no Horto.

Tudo estava impregnado por uma respeitabilidade, uma majestade, de uma seriedade augusta, de uma determinação forte, para dizer tudo em uma só palavra, de uma seriedade e de uma dor desconcertantes!

Que dor, que nobreza, que grandeza, que majestade!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/11/82)

Vagalhões da vida

Quando uma alma tem a sensação de ser amada por Deus, os piores vagalhões da vida não atingem o seu tabernáculo interior. Em meio às maiores angústias e agonias, ela permanece calma e reconfortada, convicta de que não a abandona a benevolência divina.

Essa segurança é parecida com a do rochedo batido pelo mar. Em vagas sucessivas e furiosas, as ondas se arrebentam de encontro a ele. O rochedo não se move. E quando o mar se retira, ele está ali, intacto, sabendo que foi inútil o furor de todos os vagalhões.

O olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo

Se numa noite sem luar contemplarmos com espírito de Fé o céu estrelado, ele produzirá grande efeito sobre nós. E nos fará lembrar algo infinitamente superior: o olhar do Redentor, no qual há galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre nós como uma abóbada protetora.

Quando a pessoa se porta ordenadamente face à ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso do ser procurar o maravilhoso nas coisas que constituem o universo que ela procura conhecer, tende ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais nas criaturas que a circundam.

O sentido da vida terrena

Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha, azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo, se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia. Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres excelentes — um relacionado mais diretamente ao corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso, a criança deseja o carinho da mãe.

Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material! Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação de cumpri-la.

Mas ai também dos familiares que não criam em torno de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio de alma é o fundamental da ordem do universo!

Este é um ponto muito importante, porque as criaturas de uma ordem mais elevada têm uma função normativa e orientadora em relação a todas as inferiores. E os espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhecendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor o que está abaixo.

Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso, nosso senso católico se sintam como o navio que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das tormentas, este é o sentido da vida terrena.

O ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus

A alma encontra este sentido superior da existência quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos — sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria, de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado, e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja, mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração, por um lado. Por outro lado, na sua superioridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem cordas de nossas almas que não sabíamos existirem. Assim é Ele!

Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão de que os seus divinos olhos estão pousando sobre mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado por Ele.

Mais alvos do que a neve

Tudo isso junto, formando um panorama que paira por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes, quando se olha para o céu muito estrelado não é nada em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente incomparáveis!

Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria vêm à tona.

Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor”(1); o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente, e eu ficaria mais alvo do que a neve!

Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi, sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente reprobatório, enormemente amoroso, envolvente e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte sentido: não há barreiras, venha; elogio é isto!

E tocando, não o grosso bordão dos sinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o sino leve e alegre de Nossa Senhora, a alegria do perdão. Ela põe junto dessa seriedade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo uma nota qualquer de louçania que fala em perdão, em esperança, em alegria, que a completa admiravelmente. Tudo isso está e tem fundamento n’Ele, mas Nosso Senhor é grande demais para, num olhar só, podermos abarcá-Lo. Então, olha-se para Maria Santíssima, e Ela diz: “Meu filho!” Porque ao cabo de algum tempo aquela imensidade nos faz sentir tão pequenos, tão pequenos, tão pequenos, “petit vermisseau et misérable pécheur”(2), que se tem vontade de dizer: “Senhor, não me esmagues de tanto me amar!” Mas entra Ela e dá um repouso, uma distensão, está feito tudo na perfeição.

Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita melhor.

Conhecimento por conaturalidade

Esses estados de alma constituem o afeto que devemos procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada, porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.

Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de tal quer muito bem a você porque foi educado com você desde pequeno…”, diz-me pouco, porque se nossas almas são diferentes nesse ponto, o que fazer?

Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-lo e dizer:
“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos pressentíamos!”

Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar esse céu estrelado, lembrar-me do olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando sobre mim, é algo infinitamente superior ao céu estrelado, mas que tem certa analogia, cujo analogado primário é o Céu, a partir do qual, na imensidade de suas virtudes e qualidades, Ele olha para mim. Há n’Ele galáxias de santidade, de virtudes que pousam sobre minha cabeça como uma abóbada protetora!

A partir daí vem o desejo da boa amizade segundo Deus, amar o próximo como a si mesmo por amor de Deus, podendo dar origem a um relacionamento humano que, com tal plenitude, creio eu, talvez não tenha sido tão frequente na própria Idade Média.

Suponho que se a Idade Média tivesse continuado, o Sagrado Coração de Jesus teria revelado essa devoção de qualquer forma. A grande maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa devoção.

Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente errada.

Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças, etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem tem um conhecimento por conaturalidade.

Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —, entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido pela sensibilidade para entender que nesse conjunto — razão e sensibilidade — encontra-se a cognição completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem assim, por conaturalidade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/2/1986)

1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado, lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.
2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

“Filho, eis aí tua Mãe”

Repousais, Senhor, em vosso mísero e augustíssimo presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros inauferíveis de seu respeito e de seu carinho.

Jamais uma criatura adorou com tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus. Nunca um coração materno amou mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera criatura. E nunca filho amou tão plena, inteira e super abundantemente sua mãe.

Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí o teu filho. Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26-27). E, considerando a perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta das  profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens por Ele amados”. (Lc 2, 14).

(Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1963)

Coordenação do Blog João Sérgio Guimarães