Admiração: nossa estrela de Belém

O substrato mais profundo da retidão de alma é o gosto de admirar.

O homem que passa a vida procurando admirar, amar e servir a virtude e a santidade encontra nisto o seu prazer e a sua alegria. Assim, ele sente mais deleite em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que em habitar num lugar esplendoroso, em meio aos pecadores.

A admiração nos guia e faz intuir o nosso caminho, dando-nos a capacidade de esperar, com calma, diante das desventuras mais pasmosas, porque a admiração é a nossa estrela de Belém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 18/6/1986 e 10/7/1994)

Onde há lugar para todos…

Quis a Providência que o Menino Jesus recebesse a visita de três sábios — que, segundo uma venerável tradição, eram também reis — e alguns pastores. Dois extremos da escala humana de valores. A graça divina, que chamou para junto da Sagrada Família os Reis Magos, do fundo de seus longínquos países, chamou também os pastores, do fundo de sua ignorância.

E como se apresentaram eles? Bem caracteristicamente como eram: os pastores lá foram levando seu gado, sem disfarçar sua condição humilde; os Magos se apresentaram com seus tesouros, ouro, incenso e mirra, sem procurar ocultar sua grandeza. A piedade cristã, expressa numa abundante iconografia, entendeu durante séculos, que os Reis Magos se dirigiram a Belém com todas as suas insígnias.

Quer isto dizer que ao pé do Menino-Deus cada qual se deve apresentar tal como é, sem disfarces nem atenuações, pois há lugar para todos: grandes e pequenos, fortes e fracos, sábios e ignorantes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1955)

Nunca abandonar a oração!

Deus não ouve a prece do pecador” — é a desalentadora justificativa que uma pessoa provada poderia alegar para não seguir a máxima de Santo Afonso de Ligório, segundo a qual jamais devemos deixar de rezar. Em outro destacado trecho de seus comentários ao livro “A oração, grande meio da salvação”, Dr. Plinio nos ensina como vencer esse perigoso escolho na vida espiritual.

No espírito de muitos católicos se encontra subjacente uma séria objeção quanto à eficácia da oração do pecador. Não há mistério no fato de Deus atender as súplicas de uma alma reta, posto estar Ele em boas relações com os justos. Compreende-se que uma pessoa poderosa, mantendo bom  relacionamento com outra que lhe é inferior, seja propensa a satisfazer os pedidos dessa última.

O mistério, porém, começa a aparecer quando se trata das preces do pecador, pois este simplesmente não merece ser atendido: seja por se achar em estado de pecado mortal, ou porque, inconstante na vida espiritual, várias vezes se mostra infiel e não costuma corresponder bem à graça. Então, por que Deus há de atender às orações dele?

Dúvida corroborada pela Sagrada Escritura?

Claro, o problema se põe de forma mais aguda se considerarmos a fealdade do pecado mortal, o horror que Deus tem a essa falta grave e a quem a comete, impondo-se a pergunta: como alguém nesse estado esperará a benevolência divina em seu favor? Pode-se compreender facilmente que Deus, por um ato de sua vontade, queira acolher os rogos do pecador.

Mais difícil é, porém, compreender que o pecador possa ter a certeza de que o Senhor queira ouvir sua oração.

A posição razoável de um pecador diante de Deus pareceria ser esta: “Eu O ofendi, e não sei o que Ele fará, já que de vez em quando Ele atende alguns pecadores. Então, vou jogar também a minha ficha na roleta e tentar a sorte rezando alguma coisa. Deus me será propício, conforme esteja ou não de boas. Cabe a mim reconhecer a prerrogativa d’Ele de não me atender, pois eu pequei. O contrário seria afirmar que o pecador tem o direito de ser escutado por Deus, e não sei em que se basearia esse direito numa pessoa em estado de pecado mortal”. Para corroborar essa incerteza,  lemos frases terríveis da Escritura, mencionadas por Santo Afonso de Ligório.

Primeiro, uma do Evangelho de São João: “Deus não ouve o pecador” (Jo 9,31). Outra, mais séria, em Isaías: “Quando estenderdes as vossas mãos, apartarei de vós os meus olhos; e quando   multiplicardes as vossas orações, Eu não as atenderei” (Is 1,15). E do livro dos Macabeus: “Este celerado orava ao Senhor do qual não há de alcançar misericórdia” (Mac 9,13).

Ora, ao ler essas frases, a conclusão parece ser a seguinte: “Se estou em estado de pecado mortal, sou um celerado que reza para Deus e não alcançará misericórdia”. A muitas almas o problema se põe nestes termos pavorosos, e é assim que o devemos tratar nessa exposição.

Deus não desampara o que deseja se salvar

Com base em São Tomás e em outros Doutores, Santo Afonso de Ligório — ele mesmo um Doutor de grande autoridade — interpreta as frases da Escritura acima citadas. É verdade, diz ele, que Deus não ouve o pecador, porém quando se trata do faltoso que pede algo necessário para a realização do seu pecado. A situação é diferente se imaginarmos um pecador que deseje se emendar, mas tem apenas uma veleidade de se salvar… A partir desse ponto inicial, ele fará umas orações para mudar de vida, marcadas por veleidades.

Apesar de todos os pecados, infidelidades, ingratidões e imperfeições, se no ponto inicial ele tiver esse anseio orientado para a salvação, ainda que débil, a oração será atendida porque agrada a Deus.

É preciso analisar bem qual é o alvo da oração, para poder classificá-la. Aprofundando sua explicação, Santo Afonso de Ligório continua: quem está rezando para se salvar, ainda que faça uma oração tíbia, pode estar certo de que Deus não o abandonou, pois sua súplica só pode ter sido inspirada por Ele. Por pior que seja a pessoa, se ela faz um pedido tão meritório é porque em alguma fímbria de sua alma existe esse anelo de ser boa. Se está desejando, é porque em certo sentido vê a Deus e, portanto, Ele não a abandonou.

Com muito acerto, salienta Santo Afonso que Deus não nos dá desejos inúteis. Sabemos pela Fé ser impossível alguém pedir a própria salvação e santificação sem uma inspiração divina. Ora, seria burlesco da parte de Deus inspirar tal pedido, se de antemão Ele resolveu não atender nem santificar aquele que o faz. É impossível, Deus não age assim.

Basta, portanto, ao pecador ter um remoto, longínquo vislumbre de vontade de se santificar e rezar nessa intenção, para estar seguro de que Deus o atenderá. Quanto mais rezar, mais dons do Céu obterá. Havendo uma longa perseverança, ele acabará recebendo de Deus graças extraordinárias e se salvará.

A questão é não deixar de rezar. Santo Afonso de Ligório emprega uma imagem que eu gostaria de transformar em quadro, se soubesse pintar: um abismo sobre o mar, com todos os horrores imagináveis e uma pessoa suspensa por um fio, acima do precipício. Esse fio é a oração. Enquanto ele permanece ligado, há esperanças; caso contrário, a pessoa pode ter certeza de estar se  isolando e se distanciando de Deus.

Nessa ordem de idéias, há outra consideração mais profunda. Até mesmo quem pára de rezar é comparável ao arbusto partido e à mecha que ainda fumega. Assim, enquanto a pessoa viver, Deus lhe concede a graça de querer rezar. Se ela corresponder, o resto vem por si, pois a Providência a auxilia.

Na verdade, tudo se cifra em nunca parar de pedir a própria salvação e santificação.

E fazê-lo com importunidade. Como já vimos em anterior exposição, Santo Afonso de Ligório insiste nesse ponto: Deus quer ser importunado pelas nossas preces, que Lhe serão tanto mais agradáveis quanto mais persistentes. O homem que reza dessa forma pode esperar muito de Nosso Senhor.

Aquele que, por desconfiança da bondade divina ou por qualquer outra razão (como negligência ou preguiça) não puxa a corda da importunidade, pode não ser atendido conforme deseja.

O regime da misericórdia e o da justiça

Desenvolvendo agora mais um aspecto da nossa pergunta inicial, importa saber porque Deus age razoavelmente  atendendo à oração do pecador.

A resposta se filia a outra questão muito simples: por que Deus, depois do primeiro pecado mortal, não tira a vida do pecador, mas permite-lhe passar por um período de provas? Para determinar a solução do problema, devemos recorrer a uma ordem de considerações que diz respeito à diferença entre o ato de vontade do anjo e o do homem.

São Tomás de Aquino explica que a vontade angélica, por natureza, adere ao objeto apetecido, de maneira inamovível, ao passo que a humana o faz de modo movível. Assim, uma vez tendo se decidido por algo, o anjo não volta atrás. Donde, cometido o primeiro pecado, é natural que o anjo fosse precipitado no inferno.

Com o homem, porém, em virtude da natureza variável de seu ato de vontade, não se dá o mesmo. Deus benignamente contemporiza com ele, proporcionando-lhe outras oportunidades, porque conserva em relação ao homem uma solicitude e um amor — por assim dizer — suspensos pelo pecado, mas não destruídos na sua raiz.

Agindo dessa sorte, Deus é como um pai que não se decide a expulsar de casa o filho que lhe dá muitos dissabores. Poderá até castigar o rebento ruim, mas se não o rechaça, é porque conserva intactos uma certa raiz de boa vontade para com ele, e um certo lado por onde ele ama o filho, pois há uma probabilidade de este se converter.

Sim, Nosso Senhor mantém de pé esse ato de amor em relação a todos  os homens vivos neste mundo, e está disposto, a todo momento, a torná-lo efetivo, por pouco que nos voltemos para Ele.

Entretanto, esse regime cessa no momento da morte: a misericórdia termina e começa a hora da justiça. Enquanto isto não acontece, estamos no regime e na era da clemência. Deus Nosso Senhor ampara o homem, e é razoável que o faça.

Então, não será árduo entender que, na economia normal da Providência, toda pessoa possui razões para ter confiança, estando viva. A ideia do indivíduo abandonado, que nem sequer rezando obtém o que pede, é de fundo calvinista. A noção de um destino que se realiza independentemente da vontade humana, não é católica e deve ser banida do nosso subconsciente.

Se estamos vivos corporalmente, temos a possibilidade de readquirir a vida da alma. Em conseqüência, sempre vemos aberta diante de nós a porta da esperança. E ainda que pecador, o homem pode confiar na sua conversão e emenda, com a alegria de se saber vivendo no regime de um Deus bom, que o ouvirá tão logo se volte para Ele.

A confiança, condição para vencer o desespero Essa disposição de alma se faz mais necessária nesta época em que a vida espiritual está mudando sob o signo do desespero. À medida que a existência moderna, com seus horrores, torna-se mais difícil para todo o mundo, as pessoas vão tendo cada vez mais atitudes próximas ao desespero, e vai se multiplicando o número de homens com uma espécie de tendência natural malévola de desconfiança em relação a Deus. Não querem contas com Ele: “Deus é um e eu sou outro. Eu me arranjo por mim, não tenho pacto de amor nem de amizade com Deus. Ponha-se Ele do seu lado como entender; eu vou me arranjar por mim”.

Almas assim têm quase uma espécie de raiva da misericórdia de Deus, a ponto de, às vezes, até não gostarem que outros rezem por elas, pois  não desejam sequer se servir de um guincho para sair de seus problemas espirituais.

Quantos desses espíritos rebarbativos ainda acreditarão na misericórdia, quando chegar o momento de a justiça divina se manifestar? E quantos terão confiança na bondade de Deus, de modo a suportar todos os sofrimentos com a convicção de que, no fim, tudo acabará dando certo? Tenho a impressão de que só os confiantes poderão atravessar essa época de caos e desespero. Quem não confiar, enfrentará muita dificuldade, devido a esse pessimismo espiritual decorrente de um pessimismo em relação à vida temporal.

Nesse sentido, recordo-me de um fato que se deu comigo há certo tempo, e que me causou não pequena impressão. Ao sair da faculdade em que dera aula, tomei um táxi de volta para casa e disse ao chauffeur (pessoa, aliás, inteligente): “Vamos para a Rua Alagoas, 350”. Ele respondeu: “Já sei”. Quando indiquei o melhor caminho a tomar, ele me atalhou: “Já seeei, já seeei…”

Fiquei quieto. Ele continuou: “Eu não prestei atenção em quem entrou no automóvel, mas o reconheci pela voz, porque eu fui pegar o senhor em tal noite de Natal, na Rua Alagoas, 350. Levei-o para assistir à Missa do Galo nas Perdizes. Além disso, o senhor vai muito a uma casa da Rua Martim Francisco, de onde, às vezes, eu o conduzo para a sua residência. Era um chauffeur de um ponto das vizinhanças. Para ser amável, fingi que também o reconhecia, e lhe perguntei-lhe:

— Como é que você vai?
— Eu vou mal! Sou diabético. Era tratado por um ótimo médico, mas ele morreu e não me cuidei mais. Agora como de tudo, sem me preocupar com regimes.— Não faça isso, é um absurdo!
— O que vai acontecer?
— Você vai morrer!
— Esta vida é tão horrível… Deixa eu morrer de uma vez. Eu como à vontade.

Com essas palavras ele queria dizer: “A vida é tão horrorosa, que o único prazer que tenho é a gastronomia. Então é melhor aproveitar este deleitezinho e depois morrer, do que continuar vivendo”.

Para assustá-lo, disse-lhe que isso era contra a caridade que se deve ter para consigo mesmo. Não adiantou.

— Você ficará cego! — insisti. Conheço casos de diabéticos que acabaram perdendo a visão.

Ele aí se assustou e resolveu consultar outro bom especialista.

Premunir-se contra o pessimismo por meio da oração

O estado de espírito desse chauffeur é bem característico e freqüente nessa época contemporânea: “Vivo para gozar. Enquanto houver um pouquinho de prazer na vida, quero devorá-lo. Suprimido esse pouquinho, já não me interessa viver. Contudo, se há possibilidade de eu ficar cego e a minha existência piorar, então to tomo providências, porque senão seria uma tragédia.” Ora, hoje em dia as almas precisam se premunir muito contra esse pessimismo, compreendendo bem que, apesar de todas as aparências em contrário e dos horrores em que  estamos, Deus é bom, e a vida  terrena pode dar certo, pelo menos na perspectiva do Céu. E se ela tem  sentido em ordem à bem-aventurança eterna, não é preciso mais nada, pois o Céu explica tudo.

Assim, devemos viver com alegria e coragem. Mas, essas disposições não se alcançam sem a oração. Se  não houver a prece perseverante, insistente, confiante, dando-nos sempre esperança,  ficamos entregues às catástrofes interiores, crises nervosas, pavores, psicoses… Este é, realmente, um dos pontos mais importantes a serem meditados no ensinamento de Santo Afonso de Ligório.

Contemplativo e guerreiro

São Bento Biscop fundou as manifestações artísticas do ambiente religioso na Inglaterra, mandando vir artistas com verdadeira inspiração católica e estabelecendo uma ordem nas festas litúrgicas.
Com isso, introduziu elementos de beleza dentro da vida religiosa que depois se difundiriam para a vida civil. Por esse meio ele foi o decorador da Inglaterra de seu tempo. Seus adornos não eram emolientes, tolos ou fúteis, mas tinham dois grandes elementos de inspiração: a profundidade de um contemplativo e as reminiscências do antigo guerreiro.
Os santos que meditam, contemplam profundamente e sabem ser guerreiros, esses estão na origem de todo surto artístico verdadeiro, presidem a aurora e a ascensão da arte.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1966)

O obelisco do Vaticano

Sobre diversos monumentos da Cristandade, o dedo de Deus como que pousou e os revestiu de charme. Diversas vezes, o charme que neles notamos não é senão a própria manifestação da graça divina. Isso transparece de modo mais admirável, a meu ver, no obelisco da Praça de São Pedro. Posto na areia do deserto ou perto de uma pirâmide, na entrada de um templo ou ao lado da esfinge de Gizeh, ele não causaria a impressão que nos causa junto à Basílica do Vaticano. Perto daquele obelisco, minha alma sente uma reverência à pessoa do Papa, ao trono do Príncipe dos Apóstolos.

O Vigário de Cristo é o obelisco da Igreja Católica. O lema dos cartuxos “stat Crux dum volvitur orbis” (“a Cruz permanece firme enquanto o mundo gira”) bem poderia estar inscrito na base do obelisco, porque é a sensação que ele transmite: a de um centro em torno do qual a Terra gira, mas que fica imóvel. É a Igreja infalível, eterna, representada pelo Sumo Pontífice. Está tudo dito.

Plinio Corrêa de Oliveira

Misericordiosos olhos que nos converte

 Quando menino, aos doze anos de idade, diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada na Igreja  do Sagrado Coração de Jesus, Dr. Plinio foi “contemplado” pelo misericordioso e compassivo olhar de Maria Santíssima. A graça recebida nessa ocasião marcou profundamente sua vida.

Procurando fazer melhor explicitação a respeito de Nossa Senhora, recentemente encontrei uma figura que, embora muito simples, exprime bem meu pensamento. Não sei se ela, em Geometria, é inteiramente exata, pois, como todos sabem, meus conhecimentos nessa matéria são os mais sumários e desinteressados possíveis.

Imaginemos um poliedro, um corpo com várias faces — esta é a ideia muito primitiva que tenho de um poliedro —, bem construído. Se suas faces são triangulares, olhando-se para uma delas, se vê de certo modo as outras, pois todas têm a forma de um triângulo.

Assim é a Mãe de Deus, cuja perfeição é supereminente, e a Quem a Igreja vota o culto de hiperdulia. Considerando-se uma de suas altíssimas qualidades, percebe-se que Ela tem igualmente todas as outras virtudes de que uma criatura humana seja capaz. Conhecida, por exemplo, sua fé, se entende sua esperança e sua caridade. Vendo-se um lado do poliedro, se intui como são todos os outros, com suas dimensões. Se, conforme a Geometria, o poliedro não é exatamente assim, essa figura serve ao menos como metáfora.

Compaixão de Nossa Senhora

O que mais me tocou, primeiramente, em Nossa Senhora não foi tanto sua santidade virginal e régia, mas a compaixão com que Ela olha para quem não é santo, atendendo com pena e solícita em dar, em suma, uma misericórdia que tem as mesmas dimensões das outras qualidades. Quer dizer, inesgotável, clementíssima, pacientíssima, pronta a ajudar a qualquer momento, de modo inimaginável, sem nunca ter um suspiro de cansaço, de extenuação, de impaciência, mas sempre disposta não só a repetir sua bondade, mas a superar-se a Si própria. De maneira que feita tal misericórdia, embora mal correspondida, vem outra maior. Por assim dizer, nossos abismos vão atraindo sua luz. E quanto mais fugimos d’Ela, mais as graças por Ela obtidas se prolongam e se iluminam em nossa direção.

“Um olhar que me deixou calmo para a vida inteira”

Comparemos o miosótis com o sol. Entre nós e a Santíssima Virgem a diferença transcende ainda mais. Embora seja Ela mera criatura, sua ação poderia ser comparada com o efeito do olhar de Nosso Senhor para São Pedro, que O renegou durante a Paixão e o galo cantou. Quando o Redentor o fitou, ele se sentiu tomado por inteiro. O Apóstolo havia sido testemunha direta ou tivera repercussão imediata de tudo quanto os Evangelhos narram, e conhecia Nosso Senhor perfeitamente. Naquele olhar ele recebeu uma comunicação de tudo quanto sabia, mas com tal acento e esplendor, que derrubou sua ingratidão: “Et flevit amare — E chorou amargamente” (Lc 22, 62). A grande contrição de Pedro é um dos fatos mais bonitos da história dos santos.

Quando menino, tendo ido à Igreja do Coração de Jesus e, pela primeira vez, atinado com a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, não tive nenhuma visão, êxtase ou revelação. Mas me senti como se a imagem me olhasse, e tive conhecimento como que pessoal dessa bondade insondável que me envolvia totalmente. Ainda que eu quisesse fugir ou renegar, Ela me pegaria afetuosamente e diria: “Meu filho, volte de novo, aqui estou Eu!”, fazendo-me entender a profundidade dessa misericórdia.

Em primeiro lugar, fiquei calmo para a vida inteira. De fato, por maiores que sejam as dificuldades, se estamos envolvidos por essa misericórdia, podemos descansar; porque no fundo, para quem não é brutalmente insensível, mas se volta à Virgem Maria, Ela acaba arranjando todas as coisas. E, notem bem, uma das coisas que — dentro da indefinição de minha mentalidade de menino, entretanto eu tinha bem claro mais me enlevaram, foi que isso não era um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens.

Nossa Senhora poderia condescender em querer tratar-me como um privilegiado; porém, tive cognição do contrário: Para todas as pessoas que existiram e existem, todos os pecadores que estão nas ruas, nas casas, nos bondes, nos automóveis, etc., Ela é exatamente assim. Porém, muitos A rejeitam.

Tenho muita pena quando vejo alguém — um “enjolras”(1), por exemplo — nervoso e com problemas; penso: “Por que não posso comunicar-lhe um olhar como o que recebi de Nossa Senhora? Ele ficaria calmo para a vida inteira”.

Não consigo exprimir completamente como foi essa graça. Quando rezo o trecho do Magnificat “et misericórdia eius a progenie in progenies timentibus eum”, quer dizer, a misericórdia de Deus vai de geração em geração a todos os que O temem, sempre pensei: “É bem verdade, e por meio de Maria Santíssima. Ela é a misericórdia insaciável, que não acaba, mas se multiplica solícita, bondosa, tomando nossa dimensão e, por compaixão, faz-se até menor do que nós para nos acolher.”

Muitos pensam que eu sou uma fera, não tenho pena dos outros. Eles não têm ideia do que é essa cognição da misericórdia de Nossa Senhora, a qual penetrou em minha alma.

Misericórdia, pureza, fortaleza e sabedoria de Nossa Senhora

Considerando essa misericórdia, vem-nos à ideia a virginalidade de Maria Santíssima, porque essas noções, por assim dizer, se contêm umas nas outras. Ela é pura, com um grau de pureza indizível. Conhecida a misericórdia se conhece a pureza; é novamente a figura do poliedro. Qualquer castidade que se possa conceber não se compara à pureza d’Ela, toda feita não só de ausência de qualquer pendor para o mal, mas de um jorro de alma direta e exclusivamente para Deus, sem compromisso com mais nada e ninguém, um élan inteiro, de uma força, integridade, um desejo de Absoluto, que não se pode medir.

A pureza de Nossa Senhora, comparada à de outras pessoas, é como a alvura da neve em relação ao carvão.

E, na perspectiva em que me coloco, a pureza traz consigo a ideia da fortaleza, a qual não significa que nada quebra. É algo diferente: ante o que a Mãe de Deus, na sua pureza, decidiu, o resto do mundo se flecte pela força da vontade d’Ela; é um ímpeto, uma resolução, uma ausência de possibilidade de resistência de qualquer pessoa ou coisa que seja, uma soberania, um domínio numa tal dimensão que não há palavras humanas para exprimi-la.

Hoje se fala de obuses e outras armas. Na realidade, são simples caranguejolas inofensivas e ridículas em comparação com um ato de vontade, uma preferência da Santíssima Virgem.

Por sua vez, essa fortaleza, misericórdia e pureza trazem uma ideia de sua sabedoria lúcida, adamantina, dispositiva de todas as coisas, nunca tendo qualquer dúvida, mas somente certezas. Quer dizer, Ela conhece todas as coisas, suas inter-relações, e penetra até as entranhas de todo ser. O universo é tão grande! Pelo fato de Nossa Senhora compreender a ordem do universo e o seu ponto ápice, mais uma vez vislumbramos qual é a imensidade de sua pureza, fortaleza e misericórdia.

Essas são as virtudes que, de momento, mais me chamam a atenção quando me lembro do olhar de Nossa Senhora Auxiliadora na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

“Meu filho, Eu te quero”— “Minha Mãe, eu sou vosso”

Poder-se-ia perguntar-me: “O senhor recebeu esse olhar quando menino, com onze, doze anos; e nunca mais houve algo semelhante?”

Essa graça me foi dada de tal maneira que ficou como um sol para a vida inteira. O fato parece ter ocorrido ontem. A Santíssima Virgem como que me disse: “Meu filho, Eu te quero.” E eu declarei: “Minha Mãe, eu sou vosso.”

Alguém indagaria: “Mas nessas considerações onde o senhor coloca a Nosso Senhor Jesus Cristo?” Respondo: “Em tudo!” É a ideia que São Luís Grignion desenvolve muito: Nossa Senhora é o claustro, o oratório, o tabernáculo sagrado onde está o Redentor, e quanto mais estivermos próximos d’Ela, tanto mais estaremos próximos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Imaginem Nossa Senhora no período em que, no seu corpo virginal, estava se formando o Menino Jesus, por ação do Espírito Santo, e que alguém quisesse adorar ao Messias, abstraindo d’Ela.

Seria uma estupidez, não teria sentido!

Sei que estarei mais unido a Nosso Senhor quanto mais estiver unido a Maria Santíssima.

Naturalmente, daí decorre que minha devoção a Ele passa por Ela. Creio que mesmo nas ocasiões de maior cansaço — espero, pelo menos —, quando faço referência à adoração devida a Nosso Senhor, logo depois falo de sua Mãe Virginal. É sistemático.

Dir-se-á: “Mas muitas vezes o senhor fala sobre Ela sem se referir a Ele.” Sim, porque Ele é infinitamente maior do que Ela. Assim, falando d’Ela, Ele está implicitamente contido. Mas, tratando a respeito d’Ele, Ela não está implicitamente contida. Por isso, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, se Nossa Senhora me ajudar, farei isto até morrer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)
Revista Dr Plinio 142 – Janeiro de 2010

1) Palavra afetuosa utilizada por Dr. Plinio para designar seus jovens discípulos, surgidos aproximadamente a partir de 1970. Havia neles acentuado grau de debilidade, se comparados com aqueles que os antecederam, os da “geração nova” (cf. “Dr. Plinio” número 81, p. 17).

Como nas Bodas de Caná

Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, se considero minhas insuficiências e infidelidades, tenho todos os motivos para estremecer.

Mas me refugio na vossa misericórdia como a criança faltosa nos braços de sua mãe.

Eu me ofereço todo a Vós para que leveis a cabo em mim a obra que eu mesmo jamais conseguiria executar. Fazei de mim um perfeito escravo vosso.

Aceitai, ó Mãe dulcíssima, minhas fraquezas e até as minhas faltas, e obtende que umas e outras se transmudem em virtudes como obtivestes que a água se mudasse em vinho nas Bodas de Caná.

Oh, minha Mãe, aqui está um filho pecador, infiel e ingrato. Mas dizei uma só palavra e se operará a mudança fundamental que fará de mim um verdadeiro filho vosso. Assim seja.

(Composta em 14/1/1968)

Plinio Corrêa de Oliveira

Batismo de Nosso Senhor

Um dos belos afrescos de Giotto na Capella degli Scrovegni, em Pádua, retrata a cena do Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Neófito, o Catecúmeno a ser banhado nas águas pela figura grandiosa de São João Batista, é apresentado em toda a sua majestade divina. Resplandecem n’Ele uma seriedade e uma tranqüilidade extraordinárias, que Lhe realçam ainda mais a condição de Rei e Senhor do Universo.

Embora apareça com o tronco desnudo, sem nenhum atributo dessa realeza, Ele desperta profundo respeito e veneração, expressos na atitude inclinada do Batista. Enquanto isso, no céu chamejam raios e a glória de Deus transparece. É o momento em que uma voz ecoa da eternidade, exaltando o Messias: “Tu és o meu Filho amado; em ti eu pus as minhas complacências…”

Plinio Corrêa de Oliveira

São Lourenço Justiniano: força e astúcia

Devido a uma deformação da piedade católica, o demônio é sempre representado como sendo forte e astuto, e o Anjo da Guarda sorridente, amável, bonachão. Daí decorre a ideia errônea de que a pessoa boa é como o Anjo bom, sem força nem sagacidade, e a má, como o anjo mau, forte e astuto. Com base num trecho de São Lourenço, Dr. Plinio desfaz esse falseamento da realidade.

Dom Guéranger, em sua obra “L’Année Liturgique”, apresenta os seguintes traços biográficos de São Lourenço Justiniano(1):

Considerado o segundo Fundador de sua Ordem religiosa

Lourenço nasceu em Veneza, em 1380, da família dos Giustiniani. Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que surpreendia e impunha aos seus próximos respeito e admiração. Aos dezenove anos ele teve uma visão da Sabedoria Eterna, que o convidava a entregar-se inteiramente a Ela.

Persuadido de que a vida religiosa lhe permitiria responder plenamente ao chamado divino, ele entrou na Ordem dos Cônegos Regulares de São Jorge, na ilha de Alga, perto de Veneza. Lá ele se distinguiu por seu amor das austeridades e das humilhações; gostava de ir pedir esmolas na cidade e de encontrar, à guisa de esmola, os sarcasmos e o desprezo dos outros.

Pouco depois de sua ordenação sacerdotal, foi eleito Geral de sua Ordem. Aplicou-se tão bem a reformar a Ordem que ele é considerado, a justo título, como seu segundo Fundador.

Em 1433, nomeado Bispo de Veneza, tentou afastar de si esta dignidade. Mas o Papa Eugênio IV foi inflexível. Lourenço nada quis modificar no seu modo de viver, nas suas austeridades e na extensão de suas orações. Aplicou-se em pacificar as dissensões intestinas que agitavam o Estado, fundou quinze mosteiros, erigiu dez novas paróquias em sua cidade episcopal e velou pelo esplendor do culto divino.

Em 1450, teve que aceitar a dignidade de Patriarca, mas não viu nisto senão uma indicação para seguir mais de perto os traços de Jesus, em sua pobreza e em seu zelo pela salvação das almas. Por isso mesmo ele é considerado justamente como o precursor da reforma eclesiástica que mais tarde São Carlos Borromeu empreenderá em Milão, depois do Concílio de Trento.

Seus sermões, como seus livros de perfeição, respiram uma terna devoção para com os mistérios do Senhor, especialmente sua sagrada Paixão.

Morreu no dia 9 de Janeiro de 1455; foi beatificado em 1524, por Clemente VII, e canonizado em 1690, por Alexandre VIII.

Sua piedade impunha respeito e admiração

Notem esta formulação apresentada a respeito da piedade do santo:

Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que causava surpresa e impunha aos seus próximos respeito e admiração.

Em nossos dias se diria que o efeito psicológico produzido por um jovem muito piedoso é: “Eu fiquei tão comovido vendo esse moço tão piedoso…” Ou então: “Esse rapaz é tão piedoso! Ah, como ele deve ser misericordioso e amável!” E outras reações desse gênero. Por quê? Porque só se concebe a piedade enquanto causando ternura. Não nego que a piedade também possa causar ternura, mas colocar este sentimento como nota preponderante, parece-me um absurdo.

Segundo Dom Guéranger, a piedade de São Lourenço incutia admiração e respeito. Este é um fruto essencial da verdadeira piedade. Ela pode inspirar aos outros a ternura, o embevecimento, o enlevo, mas nada vale e não será verdadeira piedade se não causar estes dois sentimentos, estas duas impressões de alma, que tudo quanto vem de Deus deve produzir: admiração e respeito.

Quer dizer, incutir veneração, comunicar admiração são elementos indispensáveis à verdadeira vida espiritual. Porque Deus, sendo infinitamente santo, poderoso, grande, incute respeito e admiração.

A unilateralidade com que são escritas algumas vidas dos santos deforma as almas. Imaginem uma pintura representando um santo jovem da nobreza de Veneza, rezando. Apresenta-se este jovem numa atitude capaz de incutir admiração e respeito. Para ele temos vontade de rezar.

Entretanto, pinta-se um jovem com fisionomia de bobo, que não incute admiração nem respeito. Como se pode ter entusiasmo por ele? Não é possível, porque representa a imagem da falsa piedade. A verdadeira piedade incute muitos sentimentos, mas entre eles estão, necessariamente, a admiração e o respeito. Eis um ponto do qual não podemos abrir mão, nas nossas considerações hagiográficas.

Reforma sua Ordem e se torna Arcebispo e Patriarca de Veneza

Sem dúvida, São Lourenço Justiniano é um homem completamente entregue à vida religiosa, e ao serviço da Igreja nas instituições eclesiásticas. Sua vida é bastante rica porque, muito moço, entra para uma Ordem decadente, da qual é eleito Geral, e a reforma, a ponto de ser considerado seu segundo Fundador.

Essa Ordem estava tão decadente que precisou de uma reforma geral, e reconhece, de si mesma, ter renascido das mãos de um santo. Mas a decadência dessa Ordem não era tal que impedisse eleger um santo para seu Geral, e deixar-se reformar por ele.

Aqui vemos a diferença dos tempos: Qual é o santo que hoje conseguiria fazer-se admitir em certas Ordens religiosas decadentes? E que, admitido, conseguiria ficar? E, permanecendo, far-se-ia eleger como Geral? E, eleito Geral, lograria reformar os outros?

Chegamos a 1433. Faltam menos de cem anos para a grande explosão do protestantismo. Portanto, a Revolução, de modo tendencioso, já está lavrando na Cristandade o orgulho e a sensualidade. Isto faz com que, como uma vaga imensa, o Humanismo esteja começando a invadir até os ambientes eclesiásticos. Contudo, esse homem reforma sua Ordem e, em vez de tornar-se execrado, é nomeado Arcebispo de Veneza. Ele vai, intervém em tudo, reconcilia facções, combate a imoralidade. Quando se poderia esperar que fosse expulso, é elevado a Patriarca. Eram outros tempos…
O repouso enfraquece as virtudes e a luta as fortifica.

Passemos agora à leitura de uma ficha tirada dos escritos de São Lourenço Justiniano(2).

É próprio às grandes almas e aos generosos combatentes de Jesus Cristo desejar o tempo da guerra mais que o da paz, e os trabalhos mais penosos a uma perigosa ociosidade.

Eles aprenderam, com efeito, que o repouso enfraquece muito as virtudes, e que a guerra as fortifica. Eles consideram também vergonhoso retirar-se quando o combate se apresenta; fugir ao choque dos atacantes, enquanto os outros enfrentam o inimigo; deixar-se vencer por uma vergonhosa pusilanimidade.

Eis porque, cheios de magnanimidade, cobertos com suas armas poderosas, eles se lançam, os primeiros, ante o inimigo, e o obrigam a combater, estimando mais morrer com glória e honra do que fugir covardemente.

E entre esses que combatem no estádio temporal, uns procuram vencer o inimigo pela força, outros pela astúcia. Seria enganar-se muito na arte da guerra, usar somente um desses meios. E eu penso que essa regra do combate temporal deve ser aplicada ao combate espiritual. Aquele que quer combater e destruir os inimigos de sua salvação deve ter força e fineza de espírito. Se lhe faltar uma ou outra, será facilmente vencido, porque os inimigos contra os quais lutamos possuem as duas.

O Leão de Judá venceu o leão do Inferno

Sobre a força do demônio diz o livro de Jó que “nada há sobre a Terra que se lhe possa comparar, porque ele foi feito para nada temer”. Por isso São Pedro o compara a um leão. Sobre sua esperteza, diz o Gênesis que a serpente era o mais astuto dos animais, e que seduziu Eva por sua fineza e artifício.

Vejam, então, como a coragem é necessária e como a força é indispensável. Se quiserdes combater somente com a força, sem a prudência, vosso adversário vos enganará por seus artifícios. Se empregardes só a astúcia, a força do leão vos esmagará. Buscai, pois, uma e outra. Sede fortes contra os rugidos do leão, sede sutis e prudentes contra a malícia oculta da serpente. Quem não temerá sua força, se foi capaz de arrancar do Céu a terceira parte das estrelas? Quem não terá cuidado com sua esperteza, que expulsou nossos pais do Paraíso? Confiai, então, em pedir o socorro desse Leão saído da tribo de Judá, segundo a carne, e que venceu o leão do Inferno com sua morte e d’Ele triunfou com sua ressurreição. É Ele somente que dará a graça da força e a sagacidade da serpente, dando aos combatentes a ciência para que obtenham a vitória.

O combate físico e o espiritual

Esta ficha evoca vários pensamentos que se cruzam e se multiplicam. São Lourenço fala, exatamente, do perigo de que a pessoa se deixe relaxar, distender pelo repouso, e pelas glórias dentro da tranquilidade sucessiva ao combate. E dá algumas regras para o combatente nesta vida.

Ele se refere a duas espécies de combate: em primeiro lugar, ao combate físico — aludindo aos antigos gladiadores que desciam à arena para lutar ––, e às regras que o presidem; depois, por analogia, o santo deduz normas que dirigem o combate espiritual, aquele que o homem deve travar contra os seus inimigos internos, ou seja, suas paixões desordenadas e a ação do demônio dentro de sua própria alma.

Assim como na pugna física é necessário que o guerreiro, ora pela astúcia, ora pela força, saiba vencer as batalhas, também no terreno espiritual devemos ser astutos e fortes contra nossos adversários. E se nos faltar qualquer uma dessas duas qualidades — fortaleza ou astúcia—, perdemos nossa batalha na vida espiritual.

Por outro lado, São Lourenço explica como o demônio foi altamente forte quando, com sua cauda, levou uma terça parte das estrelas do céu para o abismo, isto é, promoveu uma revolta possante na qual arrastou muitos atrás de si.

Entretanto, com Adão e Eva o demônio não manifestou força, mas astúcia, arquitetando uma tentação toda cheia de lábia, de artimanhas para induzir os nossos primeiros pais ao pecado.

Falseamento da espiritualidade católica

Eu gostaria de fazer uma reflexão para compreendermos o rumo que certas coisas tomaram dentro do falseamento da espiritualidade católica. O demônio é forte e astuto, não por ser ruim, mas por aquilo que ele tinha de bom, por sua natureza. Portanto, antes de cair ele já possuía essa força e essa astúcia.

É claro que essa astúcia adquiriu um caráter pecaminoso, mau. O demônio passou a recorrer à falsidade, tornou-se o pai da mentira. Mas sua capacidade de agir astuciosamente não aumentou com o pecado; ela lhe vem de sua natureza angélica e foi conservada, mesmo após sua queda. Contudo, ele começou a lançar mão de meios ilegítimos, os quais não teria usado se tivesse continuado um Anjo na graça de Deus.

Mas daí também se tira a conclusão de que os Anjos bons, que estão na graça de Deus no Céu, também são fortes e astuciosos.

Ora, as coisas tomaram um tal rumo que todas as pinturas do demônio apresentam-no como astucioso e forte. Habitualmente as representações dos Anjos não dão a ideia nem de astuciosos nem de fortes, mas apenas sorridentes, amáveis, bonachões. Dão, portanto, uma ideia deformada, porque unilateral, da natureza do Anjo.

A bondade e a afabilidade são sumamente convenientes à representação de um Anjo. Naturalmente, o Anjo é assim, por exemplo, o Anjo da Guarda, que protege. O Anjo é o veículo do amor de Deus para com os homens; ele os assiste, dirige-os. Mas não é só isso. Ele é forte também. Há um coro de Anjos, chamado Potestades, que, segundo São Tomás de Aquino, têm a missão especial de derrubar todos os obstáculos que se erguem contra a vontade de Deus no universo. E não são os Anjos mais fortes nem os mais altamente colocados.

O Anjo, por outro lado, é sumamente sagaz. E o nosso próprio Anjo da Guarda é sumamente diplomático. Quantas e quantas vezes ele nos dá bons conselhos, bons impulsos de alma ajustados exatamente ao nosso estado de espírito, com toda a inteligência e a diplomacia que se pode imaginar num espírito de uma capacidade imensamente superior à nossa!

Ora, essas representações poucas vezes aparecem. De onde decorre a ideia de que a pessoa boa é como o Anjo bom, e a má, como o anjo mau. Então, se se fala num homem forte ou sagaz já se pensa num homem ruim. Quando se fala num homem bom, se pensa num homem sem força nem sagacidade.

Houve tempo em que era uma ideia comum que o homem deve ser sagaz e forte. Para evitar o abuso dessa ideia, insistiu-se no outro lado: ele deve ser também bom, afável, cândido, muito leal, etc. E para fazer um contrapeso, começaram a apresentar os Anjos assim. Depois os homens começaram a amolecer e a representação dos Anjos não tomou o contrapeso dos homens.

Saltar em cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário

Outra ordem de ideias para a qual esse texto convida, e eu gostaria que tivéssemos a atenção voltada, é a seguinte:
Quem verdadeiramente é lutador não espera que o inimigo venha a si. Ele se lança contra o adversário, empreende a ofensiva para derrubá-lo. É por essa forma que a força se manifesta; isso é a luta propriamente dita. Há um ditado comum, em linguagem corriqueira, mas que diz uma grande verdade: “A melhor forma de defesa é o ataque”. Quando pegamos o inimigo desprevenido, no momento em que ele não desenvolveu ainda todas as suas forças, nós podemos vencê-lo, achatá-lo. Isso é verdade não só para a luta física, mas para os esforços que o homem tem que realizar sobre si mesmo.

Por exemplo, um trabalho. O melhor jeito de o realizarmos bem é não o adiar. Quando vemos que um trabalho é inevitável, devemos pular em cima dele e fazê-lo logo. Por quê? Porque não há coisa pior do que passar um dia inteiro arrastando a perspectiva de um trabalho que deve ser realizado. Não é muito melhor fazê-lo de manhã, e passar o restante do dia livre daquela assombração do trabalho?

Arrastar o trabalho com preguiça, deixá-lo para amanhã, para depois de amanhã, não significa uma fraqueza de alma que vai, após cada adiamento, tornando aquele trabalho mais difícil?

Quer dizer, diante das coisas difíceis dessa vida, nós quase que deveríamos fazer um calendário assim: fazer primeiro as mais desagradáveis e mais difíceis e depois as mais leves e menos desagradáveis. E deixar o prazer para o fim. Porque nada é mais agradável do que o deleite depois do dever cumprido. Nada é mais desagradável, nada inutiliza mais o prazer, do que a ideia de que, terminado aquele prazer, temos um dever árduo para cumprir.

De maneira que, por assim dizer, devemos saltar em cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário. Ninguém é bobo de fazer trabalho desagradável e inútil. Antes de fazer algo desagradável, devemos perguntar se é mesmo necessário. Mas se for, então devemos saltar em cima e executá-lo o mais cedo e o mais depressa possível, contanto que saia bem feito.

O nível da conversa está na razão inversa da vagabundagem

Entre nós, às vezes, surgem queixas a respeito de conversas vulgares. Prestem atenção: gente que tem conversação vulgar é gente preguiçosa; e o que abaixa o nível da conversa é a preguiça, a perspectiva do não cumprimento do dever, que dá o horror a qualquer conversação séria. Pelo contrário, considerem um homem varonil, sobrenatural, que acaba de fazer um trabalho cumprindo o seu dever; apresenta-se uma conversa de nível alto, ele tem vontade de participar. Porque, como ele fez uma coisa mais difícil, está pronto para a menos difícil.

Mas se um indivíduo está na babugem, na hora de conversar só quererá tratar de besteiras. O nível da conversa está na razão inversa da vagabundagem. Quem é aplicado e trabalha nas obras de apostolado, conversa bem, tem apetência de coisas sérias. Por isso também é bom ouvinte de reunião quem, durante o dia, trabalhou e rezou pela salvação das almas.

Eis a norma que São Lourenço Justiniano nos apresenta. Assim se edifica a cidade de Nossa Senhora, onde tudo se move por amor a Ela, e todo mundo é sequioso de sacrifício, da cruz, da luta. Então, aqui está o meu conselho: façam o melhor e o mais rapidamente possível as tarefas desagradáveis e inevitáveis, saltem em cima delas, deem graças a Nossa Senhora na hora que lhes pede sacrifícios, roguem o auxílio a Ela para realizarem esses sacrifícios, e toquem a vida para diante. É por essa forma que serão, ao mesmo tempo, fortes e astutos.

(Extraído de conferências de 5/9/1966 e 13/9/1969)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.
2) Cf. L’Arbre de vie ou les douze fruits de la foi. Paris: Ambroise Bray, Libraire-éditeur, 1858. p. 310 ss.

São Raimundo de Peñafort, símbolo de uma época…

Embora a ideia de uma civilização cristã, constituída por almas em estado de graça, possa parecer utopia para a mentalidade hodierna, Dr. Plinio demonstra, com base na biografia de São Raimundo de Peñafort, que uma época na qual a graça de Deus habite as almas é inteiramente realizável.

É possível ter passado pela cabeça de qualquer pessoa o seguinte problema: é muito difícil permanecer em estado de graça, e não se pode esperar que uma população inteira faça coisas muito difíceis. Então, a civilização católica é praticamente impossível, pois ela só pode ser concebida com pessoas na graça de Deus.

A refutação desse raciocínio suporia uma grande tese, mas através da vida de São Raimundo de Peñafort se pode chegar a uma convicção a esse respeito.

A civilização cristã é possível

Como se pode saber se numa civilização, um país ou uma cidade tem a maior parte de seus habitantes em estado de graça, o qual é um estado interno da alma? Vendo uma cidade, pode-se afirmar: a maior parte dos seus habitantes está em estado de graça? Existe para isso um teste?

Essas são dificuldades que parecem rochedos sem solução. Entretanto, elas se resolvem facilmente.

Quando os habitantes de uma cidade não estão em estado de graça, eles formam uma espécie de cone virado para baixo. Há alguns que são ruins porque não estão em estado de graça; abaixo dos que estão em estado de pecado mortal simplesmente, há alguns que têm grande apego ao pecado mortal no qual se encontram. Depois, mais embaixo, há alguns que antipatizam com os que estão em estado de graça. E, no fundo do cone, há os que têm ódio dos que permanecem em estado de graça.

Mas há uma coisa curiosa: todos os que são ruins têm uma espécie de conaturalidade, de afinidade entre si, de maneira que constituem facilmente uma frente contra os bons. E o resultado é que, na cidade em que muitos não estão em estado de graça, os bons são impopulares.

Pelo contrário, numa cidade onde muita gente está em estado de graça, os bons são populares. Nas épocas em que os santos são objeto de entusiasmo geral, pode-se dizer que a maioria da população vive na graça de Deus. E se os santos não são objeto de simpatia geral, é prova de que a maior parte do povo vive fora da graça divina. Portanto, o modo pelo qual uma época trata um santo, mostra como ela trata Deus, ou seja, como está a maioria dos habitantes em face do Criador.

Para resumir, o santo é uma imagem de Deus; quem o odeia, odeia também a Deus.

Então, quando estudamos a vida dos santos, que formam um longo cortejo de luz, de sangue e de lágrimas dentro da História, podemos ir vendo como foram tratados nas épocas em que viveram. Se uma época os tratou bem, nesta a maior parte dos homens estava em estado de graça; se os tratou mal, não estavam em estado de graça.

Assim, através da vida de São Raimundo de Peñafort podemos fazer o balanço de uma época e constatar como é possível uma civilização católica, em que milhões de pessoas vivam em estado de graça.

Nesse espírito analisemos a biografia.

Aos vinte anos de idade, professor de Filosofia

Terceiro Geral de sua Ordem — Ordem de São Domingos —, São Raimundo de Peñafort nasceu na Catalunha, no castelo de Peñafort, de pais ricos e nobres, descendentes da família real de Aragão — portanto, era de uma alta nobreza. Quando jovem, percorreu com tão grande brilho o curso de seus primeiros estudos, que com vinte anos foi encarregado de ensinar Filosofia em sua cidade natal.

Era um sucesso extraordinário, pois naquela época, século XIII, os estudos eram muito apertados; e Filosofia era uma matéria que despertava enorme atenção, apaixonava, porque as pessoas tinham elevação de alma, espírito metafísico. Aos vinte anos, lecionar Filosofia representava o auge do prestígio intelectual.

A formação de sua mentalidade o preocupava muito mais do que a de sua mera inteligência. Daí o zelo que tinha em inspirar uma sólida piedade a todos os seus discípulos.

Pode‑se então imaginar o quadro: a universidade, com o misto de vivacidade um tanto turbulenta e de solenidade das universidades medievais, uma alta cátedra, um jovem, ainda não religioso, não seminarista, mas leigo, que leciona Filosofia, causando admiração nos alunos, às vezes, mais velhos do que ele. Mas, ao mesmo tempo em que lecionava Filosofia, ele estava mais preocupado em que seus alunos tivessem uma mentalidade certa, portanto, uma verdadeira formação espiritual, do que fossem bons filósofos.

Hoje em dia isso causaria raiva, inveja e protesto. Naquele tempo dava o resultado que estamos vendo.

Apaziguar as discórdias

O tempo que ele podia subtrair às suas ocupações, o santo empregava em socorrer os infelizes e eliminar as discórdias na cidade.

Em si, apaziguar as discórdias é uma das obras da Igreja, e na Idade Média especialmente necessária. Porque nessa época os homens descendiam proximamente dos bárbaros, e a agressividade de uns contra os outros era muito grande. Tornava-se necessário estar continuamente tentando reconciliar uns com os outros, para ir aos poucos pacificando o temperamento daquela gente exageradamente agressiva. Isso tinha um enorme alcance, pois, ao mesmo tempo em que lutavam entre si, os homens tendiam a combater os inimigos da Igreja. Esses últimos tiravam proveito dessa divisão. Então, reconciliar os católicos entre si era fazer uma frente única contra o adversário.

A compaixão para com os pobres é inviscerada na alma do católico. Mas naquele tempo era muito mais necessária. Porque não havia grandes hospitais como atualmente; obras assim estavam apenas começando a se formar; eram muito menos numerosas do que hoje. Então, atender os pobres em casa era uma coisa necessária para a sobrevivência deles.

Podemos imaginar a alegria de um pobre velho chagado, estendido num catre, quando vê entrar em sua casa, para conversar com ele, um rapaz na flor de sua idade, o qual é um dos jovens mais célebres da cidade, e que se senta à beira do leito, conversa consigo, dá-lhe um bom conselho e deixa um auxílio. É uma esmola mais para a alma do que para o corpo. Podemos imaginar a edificação que isso trazia.

A virtude e o talento conduziam à glória

Resolvido a fazer um curso de Direito Civil e Canônico, aos trinta anos deixou sua pátria e foi para Bolonha, na Itália, para as famosas lições dos célebres professores daquela cidade. Em muito pouco tempo ele se tornou doutor.

Notem que se tornou doutor em Direito, e já era professor de Filosofia. Matérias diversas; ele voava de matéria em matéria.

Para se tornar doutor, era necessário defender uma tese com todos os catedráticos e alunos presentes, trajando roupa de gala; o indivíduo ficava no centro da sala e era interrogado. Essa defesa de tese se fazia depois do curso de pós-graduação.

E a primeira cátedra de Direito Canônico lhe foi atribuída com aclamação de toda a Universidade.

Naquele tempo o Direito Canônico, que são as leis internas da Igreja, gozava de mais prestígio do que o Direito Civil, porque tudo quanto dizia respeito à Esposa de Cristo era considerado mais importante do que os temas relacionados à vida temporal.

O Senado de Bolonha, com a intenção de reter na cidade um jovem tão eminente, desejou dar-lhe retribuição, com o dinheiro público. Mas, de nada adiantou. Ele foi chamado para a Espanha, por ordem do Papa Honório III, para ser professor do jovem Rei Tiago I de Aragão.

É um jovem que voa de honra em honra, porque alia grande inteligência a uma Fé profunda.

Vemos que naquele tempo a virtude e o talento conduziam à glória, ao contrário de outros períodos, onde o vício é premiado.

As épocas muito ruins perdem os seus chefes naturais, pois os desviam, os adulam, os subornam e os levam para o mal, como condição para uma brilhante carreira. No século XIII vemos o contrário: a ambição e a virtude, como que, andavam juntas. Como era mais fácil o caminho do Céu!

Autor de livros sobre casos de consciência

Tendo recebido um canonicato e logo depois o título de arcediago, na igreja de Barcelona, tornou‑se o modelo dos sacerdotes do Senhor. A festa da Anunciação era então muito negligenciada nas igrejas da Espanha. Com piedosa insistência, conseguiu do Bispo de Barcelona que se celebrasse essa grande festa com Ofício Solene, e uma parte do dinheiro que ganhou destinava exatamente para isso.

São Raimundo de Peñafort conheceu São Domingos de Gusmão e se tornou testemunha de suas grandes virtudes. De tal maneira ele admirava a vida angélica dos primeiros dominicanos, que pediu o hábito e o recebeu, em abril de 1222. Seu exemplo atraiu para a Ordem muitos grandes personagens.

Bastou São Raimundo entrar na Ordem dominicana para pessoas importantes quererem abandonar tudo a fim de se tornar simples frades. Isso só é possível numa boa época.

Tendo pedido uma severa penitência a fim de expiar as vãs complacências que, segundo ele, tivera quando ensinava, ordenaram-lhe que compusesse um conjunto de livros sobre os casos de consciência mais difíceis, que costumavam aparecer para os confessores na Espanha.

Quer dizer, ele alegava que tinha tido alguma vaidade quando lecionava, e pediu para ser tratado com rijeza.

Essa obra foi elogiada pelo Papa Clemente VIII, como sendo igualmente útil aos penitentes e confessores; foi o primeiro trabalho no gênero existente na Igreja Católica.

Harmonia entre variadas virtudes

Em 1229, o Papa São Gregório IX enviou para a Espanha o Cardeal Sabino, a fim de exortar os príncipes da região a continuar valentemente a luta contra os mouros.

Era a guerra da Reconquista, para a expulsão dos mouros da Península Ibérica.

O Cardeal, que já conhecia São Raimundo, o tomou para seu primeiro-assistente. Iniciou-se, então, a pregação de São Raimundo para a Cruzada.

Notem o bonito contraste: é um santo de uma bondade angélica, que se senta junto ao catre de um doente e cuida dele com suma suavidade. Entretanto, convocado para defender a Fé católica, torna-se uma tocha ardente, estimulando todo mundo a lutar.

Um ato de virtude pode ser muito diferente de outro ato de virtude, mas não o contrário, pois as virtudes não são contrárias entre si.

Assim, um homem de ação por amor a Deus pode ser um guarda-doentes extraordinário; e um homem verdadeiramente caridoso pode tornar-se um guerreiro insigne.

Quando ouvimos falar que um santo era muito bom para com os enfermos, queria os pequeninos, devemos pensar: Que grande guerreiro! E de um santo que lutou contra hereges, numa guerra de religião, pensemos: Que esplêndido enfermeiro deveria dar! Assim é que se entende a verdadeira harmonia da alma católica, que é feita dessas riquezas, dessa fabulosa diversidade de todas as virtudes. Então, vemos São Raimundo, homem de inteligência, de estudo, e ao mesmo tempo de ação, que passa a ser homem de luta.

Para dar aos homens a vontade de lutar, a técnica de São Raimundo de Peñafort consistia em incutir-lhes o desejo de se sacrificarem, porque a luta séria é um sacrifício. Para dar a vontade de sacrificar‑se era preciso provar que ele se sacrificava. E ele caminhava de um lugar para outro, percorrendo distâncias enormes, o tempo inteiro a pé, com um bordão e descalço.

O santo entrava nas cidades e anunciava que o Cardeal chegaria um ou dois dias depois, a fim de conceder a indulgência da Cruzada.

Era uma indulgência especial que a Santa Sé dava para os que lutavam contra os mouros.

Depois, ele ouvia as confissões e assim dispunha as almas para a chegada do Cardeal, que encontrava os espíritos dóceis aos mínimos desejos do Vigário de Jesus Cristo.

Ao regressar a Roma, o Legado não deixou de falar ao Papa a respeito dos méritos de São Raimundo de Peñafort. Impressionado com o relato, o Soberano Pontífice mandou que o santo viesse a Roma, e lhe pediu para ser seu capelão, penitenciário e confessor.

O homem de Deus impunha como penitência ao Papa despachar, com caridade e imediatamente, a causa dos pobres que não tinham protetor. O Sumo Pontífice pediu, então, ao santo que o ajudasse a despachar.

Roma era muito pequenina, e as viagens muito difíceis. O número de peregrinos que iam a Roma e, sobretudo, as complicações diplomáticas, eram muito menores do que em nossos dias. Um Papa tinha bastante tempo livre e o que ele podia fazer de melhor era dar a todo mundo o exemplo das virtudes. Daí o fato de São Raimundo ter dito ao Soberano Pontífice: “Dou a Vossa Santidade a penitência de não atender só aos poderosos, mas também aos humildes”; assim, o Papa passou a trabalhar intensamente.

Tratado a respeito da prática do comércio

O Arcebispado de Tarragona veio a vagar pela morte do Arcebispo Metropolitano da Coroa de Aragão.

Era a principal diocese da Coroa de Aragão.

O Papa conferiu tal Arcebispado a São Raimundo de Peñafort, ordenando que o aceitasse, embora este não o quisesse. Mas Raimundo ficou gravemente doente e Gregório IX, temendo que este morresse, dispensou-o do Arcebispado.

Extenuado por tanto trabalho, São Raimundo caiu novamente doente, num estado que inspirou sérias preocupações. Os médicos o aconselharam a voltar para a Espanha. Tendo regressado ao seu convento de Barcelona, ele observava todos os pontos da regra. A pedido de vários Bispos, São Raimundo redigiu um tratado a respeito da conduta que deveriam ter os comerciantes para não roubarem o público, e especificando os casos em que os comerciantes tinham que fazer restituição.

Aqui está o ponto dolorido em matéria de furto de dinheiro. Quem comete um pecado e pede perdão fica absolvido. Mas quem se apropria do dinheiro de outro, só será absolvido sob a condição de restituir o que roubou. E um comerciante que roubou, cobrou demais, não tem a consciência tranquila; não poderá receber a absolvição se ele não fizer a restituição. Então, esse é um ponto duríssimo, porque se trata de abandonar as riquezas. São Raimundo de Peñafort colocou esse ponto delicado em toda a evidência. Isso seria próprio para que ele fosse odiado. Pelo contrário, era cada vez mais estimado. Vemos assim a boa intenção com que aquele comércio era praticado.

Ordem religiosa para a redenção dos cativos

Todos os dias, salvo aos domingos, ele não tomava senão uma ligeira refeição. Nosso Senhor lhe tinha dado, como familiar, um de seus anjos, que conversava com ele.

O que comentar sobre uma coisa dessas?

Um pouco antes do sino do convento tocar para as Matinas, o anjo o acordava e o convidava para fazer oração.

Um dos mais brilhantes raios de sua glória foi ter tomado parte na instituição da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, para a redenção dos cativos, fundada pelo Rei Tiago I de Aragão, graças a uma revelação do alto; tal revelação foi feita simultaneamente, numa mesma noite, a esse monarca, a São Raimundo de Peñafort e a São Pedro Nolasco, um gentil-homem francês, que também fora preceptor do Rei.

Esse ponto merece uma explicação.

Uma das muito grandes dificuldades para um homem ser cruzado era exatamente a questão dos cativos. Nas batalhas, os mouros frequentemente aprisionavam muitos católicos, que eram transformados em escravos e iam viver para sempre em lugares onde não havia padres. Nessa circunstância, caso um deles cometesse um pecado, não havendo sacerdote para os absolver, corriam o risco de morrer fora do estado de graça.

De onde as pessoas mais católicas, ao mesmo tempo, queriam ser cruzadas, mas temiam perder suas almas. Assim, para que os melhores católicos fossem cruzados, era preciso resgatar os cativos; para isso tornava-se necessário arranjar dinheiro a fim de comprar dos mouros os que estes haviam escravizado nas batalhas. E muitas vezes os padres ficavam escravos para poder dar a absolvição aos outros homens. E resgatavam prisioneiros, que voltavam para o meio dos católicos. Eram, portanto, atos heroicos que esses sacerdotes faziam.

Então, Tiago I, São Raimundo de Peñafort e São Pedro Nolasco tiveram um sonho numa mesma noite, e logo depois foi fundada uma Ordem religiosa para tratar da redenção dos cativos, evitando em primeiro lugar que muitas almas se perdessem e também estimulando muitas Cruzadas.

O Rei, acompanhado de toda a corte e dos magistrados, foi para a igreja catedral, chamada da Santa Cruz de Jerusalém. O Bispo Berenger oficiou pontificalmente. São Raimundo subiu à cátedra e professou, diante de todo o povo, que tinha sido milagrosamente revelado a ele, ao Rei e a São Pedro Nolasco, a vontade de Deus sobre a Ordem. Por ocasião do Ofertório, o Rei e São Raimundo apresentaram São Pedro Nolasco ao Bispo, que o revestiu do hábito da Ordem. Terminada a Missa, o monarca conduziu São Pedro Nolasco e seus frades para seu próprio palácio, numa parte que ele tinha reservado para ser mosteiro.

Que coisa linda! Como se amava a virtude! Nada disso seria possível sem que muitíssima gente se encontrasse em estado de graça. Acrescenta a ficha que treze jovens fidalgos, ou seja, moços dos mais importantes da cidade, seguiram São Pedro Nolasco, isto é, deixaram tudo para se tornarem escravos.

Isso sim é verdadeiramente dedicação! Que heroísmo é maior: combater os mouros de espada na mão, ou ser mercedário, pertencer à Ordem das Mercês?

São Raimundo empregou, então, o resto de sua vida a propagar e favorecer a Ordem religiosa de São Pedro Nolasco.

Maravilhosa viagem marítima: o manto como vela e o bordão como mastro

A ficha descreve os benefícios que a Ordem das Mercês proporcionou: milhares de cativos soltos, inúmeros atos de heroísmo e abnegação; e narra o fato talvez o mais bonito da vida de São Raimundo de Peñafort.

Esses homens eram bons, mas no meio deles de vez em quando estalava o pecado, porque eram homens. Depois vinham as penitências. O número e os tipos de penitências que os padres impunham, durante a Idade Média, eram extraordinários. Por exemplo, a um homem que morava em Estocolmo ir a pé até Compostela.

Veremos agora um fato lamentável e o que se lhe seguiu.

Numa viagem à ilha de Maiorca, uma das Baleares, Tiago I fez-se acompanhar pelo bem-aventurado e, esquecendo o respeito que tinha para com o santo, embarcou clandestinamente uma mulher pública no mesmo navio.

Na ilha de Maiorca, São Raimundo, avisado do fato, fez pressão junto ao soberano para mandar embora essa mulher. O Rei prometeu, mas não cumpriu a promessa. O santo, descontente, pediu para voltar a Barcelona. O Rei lhe negou a licença e proibiu secretamente, sob pena de morte, a todos os marinheiros que permitissem que o santo saísse do porto da ilha de Maiorca.

São Raimundo não queria fazer parte de uma viagem onde estava uma mulher de má vida; mas estava preso numa ilha. Como poderia ele fugir? E quem lhe desse embarque seria morto, por ordem do Rei. O que fez ele? Saiu-se como um homem que conversava continuamente com um anjo.

O santo se apoderou do manto de um companheiro, chegou até a ponta de um pequeno promontório deserto e disse: “O Rei da Terra nos impede a passagem, o Rei do Céu suprirá.” Pronunciando essas palavras, estendeu o manto sobre as ondas, tomou seu bordão, fez o sinal da cruz e pisou solidamente sobre o manto. Pediu a seu companheiro que o seguisse, fazendo a mesma coisa. Mas esse não teve coragem, e ficou.

São os pequenos homens…

O santo suspendeu a metade do manto para servir de vela e prendeu-a no bordão, como mastro. Um vento favorável o levou em pleno mar, enquanto os marinheiros que estavam por ali se entreolhavam pasmados. Seis horas depois ele chegava a Barcelona, tendo percorrido 53 léguas marítimas.

Quer dizer, uma velocidade extraordinária. Eu acho esse quadro encantador; foi a mais maravilhosa viagem que se fez, depois daquela realizada por Nosso Senhor no lago de Tiberíades. Não pode haver coisa mais bonita do que, num mar agitado e convulso, aquele “barquinho” deslizando. Na história náutica não se realizou uma coisa tão bela! Era o prêmio da intransigência de São Raimundo de Peñafort: “Deus fará um milagre para mim, mas numa ilha onde há uma mulher de má vida não fico. Vou embora”.

Os homens de verdadeira Fé movem até montanhas. Imaginem a linda cena: na solidão do mar, os anjos contemplando São Raimundo de Peñafort singrando. Se eu fosse pintor, faria esse quadro. Ele desembarcou no porto, revestiu-se do seu manto, o qual estava seco, e tomando seu bordão dirigiu-se imediatamente para o convento. As portas do convento estavam fechadas, mas ele as atravessou e apareceu de repente no meio de seus irmãos e ajoelhou-se aos pés do Prior, para pedir-lhe a bênção. O Rei, informado do que se tinha passado, caiu em si mesmo e daí por diante seguiu mais fielmente as diretrizes de São Raimundo.

O fim da vida de um grande santo

São Raimundo chegou à extrema velhice, sem nenhuma outra doença a não ser a muita idade. Ele dormiu suavemente nos braços do Senhor no dia 6 de janeiro — festa da Epifania — de 1275. Nesse lindo dia, em que Deus foi revelado a todos os povos, inclusive pagãos, morreu São Raimundo de Peñafort, que tanto havia trabalhado pela conversão dos pagãos.

Nos seus últimos momentos, os Reis de Castela e Aragão o visitaram com suas cortes, e tiveram a alegria de receber a sua última bênção.

Aí temos um quadro bem medieval: dois Reis, com diadema de ouro na cabeça, cetro na mão, grande manto, outros emblemas da realeza, sendo conduzidos por lacaios, acompanhados por toda a corte, ajoelhados junto ao catre de um pobre frade — que nada possuía, dependia da vontade de um outro, e estava moribundo — para receberem sua última bênção. Era a última viagem de São Raimundo de Peñafort. Estava encerrada a vida de um grande santo e um grande homem.

O Reino de Maria não é uma quimera, mas uma promessa de Nossa Senhora de Fátima

Vemos que essa foi uma época na qual o estado de graça era geral. Constatamos, portanto, como a civilização cristã é realizável. Assim, nós, trabalhando pelo Reino de Maria, não vamos atrás de uma quimera nem de uma fantasia, mas de uma promessa. Qual é essa promessa?

É a de Nossa Senhora de Fátima, que disse: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará.” O que é o Coração de Maria? É um órgão do seu corpo imaculado, mas que simboliza a mentalidade de Nossa Senhora. Essa é a doutrina católica. E quando Ela afirma que seu Coração triunfará, quer dizer que sua mentalidade triunfará.

O triunfo da mentalidade da Mãe de Deus significa que virá uma época, na qual, muito mais do que na nossa, os santos vão dirigir a humanidade. Nossa Senhora a governará através de seus santos; porque eles vão influenciar os Reis, os Papas, os grandes e pequenos desta Terra, e levar a todos para Deus. Será o Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/10/1974)