A beleza ungida pela graça

Nas belas obras de arte produzidas na Idade Média, observa Dr. Plinio, deve-se considerar, acima da excelência do talento medieval, a riqueza da graça de Deus que inspirou os autores dessas maravilhas. A mesma graça que, para o espírito de um observador atento, parece ecoar ainda hoje nos ambientes outrora iluminados por sua presença.

 

Quando fazemos uma viagem durante a qual nosso espírito recolhe uma série de impressões, é normal que as reflexões e os pensamentos a propósito de tudo que se viu não aflorem imediatamente. Deixa-se repousar as impressões e as análises e, mais tarde, as conclusões se evolam de tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram a exalar todo o seu perfume. Assim se dá com as recordações de viagem: há várias exalações consecutivas de diversos significados, de bons aromas que se apresentam e se formulam à medida que o tempo passa.

Daí vem o fato de que, somente alguns meses depois de minha última visita à Europa, eu tenha conseguido explicitar o pensamento que procurarei explanar aqui, oriundo da comparação entre esta e as anteriores viagens que fiz ao Velho Continente.

A ação da graça favorece uma obra católica

Imaginemos, por exemplo, um escritor como São Bernardo de Claraval. Ele redige seus sermões sobre Nossa Senhora e, por se tratar de uma obra feita com espírito católico e com a intenção de servir a Santa Igreja e a Civilização Cristã, supõe-se que a graça incide sobre esse ato, favorecendo-o de modo especial. Por isso, quando lemos um sermão de São Bernardo, temos duas impressões.

Uma, natural e humana: o autor é um escritor exímio, de grandes vôos literários.

 Mas, como tudo foi escrito com amor de Deus e movido pela intenção de despertar pensamentos sobrenaturais, inspirados pela Fé e tendentes à glória divina, têm-se a segunda impressão: a graça presidindo àquela obra, pois ninguém, nem São Bernardo, é capaz de pensar algo com base na Doutrina Católica, nem de querer um benefício para a Igreja ou para a glória de Deus, sem ser inspirado e auxiliado pela graça. Sem o socorro desta, o homem é incapaz de proceder a essas operações intelectuais e volitivas.

Há, portanto, uma operação de origem sobrenatural que se soma à operação natural da inteligência, vontade e sensibilidade, pela qual ao lermos aquele sermão, percebemos belezas novas, de caráter absolutamente superior e extraordinário.

Valores sobrenaturais simbolizados nos monumentos europeus

Ora, isto que se pode dizer de um texto, aplica-se também a monumentos, edifícios, catedrais, imagens, obras de arte. Por exemplo, pode-se dizê-lo das estalas superiormente bem esculpidas de um convento, de um vitral, de peças elaboradas com espírito sobrenatural, para o serviço de Deus, e também para uma finalidade natural. Quem vê aquilo é visitado por uma graça que lhe faz compreender as analogias que o objeto tem com valores sobrenaturais. Donde o grande apreço que o homem nutre por aquilo que ele contempla.

Por exemplo, um castelo com suas torres, ameias e barbacãs, pode nos transmitir uma impressão sobrenatural, proporcionada pela graça, resultante do fato de que sua arquitetura simboliza a virtude da fortaleza enquanto praticada por amor a Deus. Nisto se encerra a beleza superior do castelo, como de outros monumentos europeus, muitos deles construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média, ou em épocas posteriores ou mesmo anteriores, quando o estilo românico já continha algo do sorriso cheio de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia do gótico.

Mais ainda: a graça pode, inclusive, conceder ao observador um especial discernimento do espírito com que determinado monumento foi construído. Por exemplo, diante da praça do Paço Municipal de Siena, pode-se compreender o espírito dos senenses daquele tempo, e como a graça atuava em suas almas para engendrarem aquelas belezas.

O passado revive em locais visitados pela graça

Essas considerações me levam a crer que os lugares onde se passaram os grandes acontecimentos, os grandes atos de coragem, de virtude, de renúncia, de amplitude de horizonte sobrenatural, da história da Cristandade, tornam-se locais particularmente dignos de reverência. Tem-se a impressão de que as cenas neles ocorridas, como que ainda estão se passando ali. Portanto, aquele passado todo revive, e para quem visita aquele lugar, sente um prolongamento, uma continuidade misteriosa que o emociona.

Naturalmente, digo que é uma impressão, pois não corresponde à realidade do momento. Trata-se de outra realidade: onde fatos dessa magnitude se deram, foram acompanhados de graças também insignes. E assim como a graça visita a alma de quem lê, com oitocentos anos de diferença, um livro de São Bernardo de Claraval, ela visita a alma de quem, com cinco séculos de diferença, contempla um lugar de grande importância histórica.

Tem-se, pois, uma degustação da graça atinente àquela atmosfera do local que ela ungiu primeiro, e nos permite, hoje, como que entrar numa misteriosa intimidade com os fatos ali passados. Essa impressão me parece ser altamente benfazeja para o espírito, e enriquece o sentir, o saborear do homem que contempla esse ou aquele monumento.

A Catedral de São Marcos

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos, em Veneza. Diante dela, discernimos o desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplar a catedral, alguém poderia exclamar: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Agora, dentro dessa catedral se passaram fatos históricos da maior importância, que determinaram rotações na história das nações ribeirinhas do Mar Adriático, na história de Veneza, da Itália e na história da Cristandade. Então, pelo auxílio da graça, ao analisarmos a Catedral de São Marcos, não temos apenas uma percepção do espírito de Fé que a edificou, mas temos também uma idéia dos mil episódios que ali ocorreram.

A última visita do Patriarca Sarto à sua Catedral

Um desses fatos, por exemplo, deu-se no começo deste século [XX].

O futuro Papa São Pio X era Cardeal e Patriarca de Veneza, quando faleceu o Pontífice Leão XIII e, como de costume, foi convocado o Conclave para eleger seu sucessor. Conta-se que o Patriarca Sarto comprou passagem de trem, de ida e volta para Roma, pois não considerava a hipótese de que pudesse ser o escolhido.

Seja como for, podemos imaginar a última visita do Patriarca à Catedral de São Marcos, pouco antes de tomar a gôndola que o levaria à estação ferroviária, de onde partiria para o conclave. Com sua figura esguia, revestido de trajes vermelhos de Cardeal, o cabelo já branco, e ele alvíssimo — uma pincelada branca no meio das púrpuras que o rodeavam —, seguido e acompanhado de seus secretários, de monsenhores, de prelados, atravessando o corredor e indo se ajoelhar no presbitério, para rezar.

Essa seria a cena de Veneza despedindo-se do mais recente dos Papas canonizados. Quem passeia sob as colunas do átrio de São Marcos, ou transpõe suas portas, pensando nesse acontecimento histórico, não tem a impressão de que São Pio X está ali, rezando junto ao altar? Não revive um pouco daquele episódio?

De fato ele não está. O que ainda se acha presente, como acima dissemos, é um eco daquela graça que iluminou e ungiu com sua ação o acontecimento histórico, e que torna especialmente sagrado, especialmente belo e digno de reverência, o lugar onde ele se passou. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 11/1/89)

 

Insondável solicitude

De uma perfeição, santidade e formosura incomparáveis, Nossa Senhora considera a cada um de nós, seus filhos, como enfermos de uma doença chamada pecado original, e tem para conosco solicitudes insondavelmente maiores do que manifesta uma mãe terrena por seu filho doente.

Ela se compadece de nossos defeitos, e nos obtém as graças necessárias para vencê-los, para nos curar.

A voz nos some na laringe, e nossos olhos perdem todas as outras coisas de vista, ao pensarmos n’Aquela que é nossa vida, doçura e esperança…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/7/1994)

Circuncisão

Sobre a Circuncisão há uma coisa que maravilha todos os teólogos e que nos deixa ver um pouco os hábitos de Deus, ou o que se poderia chamar a psicologia de Deus: o Sangue vertido na Circuncisão teria sido suficiente para resgatar todo o gênero humano.

Uma simples gota do Sangue preciosíssimo de Jesus Cristo tem valor infinito. Ora, Deus, por um desígnio misterioso e a respeito do qual os teólogos não chegam a ver o fundo, Ele não quis que a Redenção se desse nesse momento; Ele quis que o mérito desse Sangue como que ficasse suspenso, e que a Redenção só se operasse efetivamente depois do “dilúvio” de sangue vertido por Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/1/1966)

Oração para combater as afeições meramente terrenas

Minha Mãe e Senhora minha, quão grande foi o elogio que de Vós fez o Evangelho ao afirmar que — depois das inefáveis emoções da Anunciação, da Natividade, da Visita dos Reis Magos e da Apresentação no Templo — consideráveis todos estes fatos meditando-os em vosso Coração. Assim, nas emoções mais intensas que podíeis ter, Vós meditáveis.

Eram emoções indizivelmente ordenadas, e por isto em nada empanaram, antes favoreceram o exercício incomparavelmente lúcido de vossa meditação. Ordenadas, não apenas porque vossa natureza sem mancha não tinha a menor desordem, mas também porque vossas emoções resultavam da Fé e eram todas embebidas de Esperança e Caridade.

Olhai, suplico-Vos, para este filho tão diferente de Vós. Concebido com as desordens do pecado, agravado por toda espécie de infidelidades, ele nem de longe é tão sobrenatural quanto quisera, e por isso encontra-se tiranizado pelas impressões, sensações e tentações.

Fazei com que uma graça, vinda do mais íntimo de vosso Imaculado Coração, toque a alma deste vosso filho, separando-a dos aspectos terrenos, orientando-a exclusivamente para Vós e extinguindo, assim, os ardores das paixões que tanto a nublam, perturbam e tiranizam. Amém.

(Composta por Dr. Plinio em outubro de 1966)

Mares do Brasil

Através da contemplação de um dos elementos mais belos da natureza, o mar, Dr. Plinio nos convida a saber analisar o que se passa interiormente em algo muito mais vasto que os panoramas marítimos.

 

Como há mar e mar! Não há nada mais parecido com o mar do que outro mar. Não há nada mais diferente de um mar do que outro mar.

Viajando, simplesmente, pelo litoral brasileiro, nota-se como os mares são diferentes. Por exemplo, o mar de Cabo Frio é diferente do mar de Santos; e o mar do Rio é diferente do mar de Guarujá. Mas como todos esses são diferentes do mar da Bahia ou do mar de Fortaleza! Todos são diferentes, e que efeitos diferentes causam!

José Menino e Guarujá

Para mim, é sempre um privilégio contemplar um panorama marítimo.

As minhas circunstâncias de vida não me dão tempo de olhar o mar, mas eu o contemplei muito e o carrego dentro da alma.

Penso nele e o tenho em mente. Analisei detidamente, em várias situações e em vários aspectos, o mar da minha — quase diria — nativa praia do José Menino, em Santos.

Quem foi esse José Menino? Não sei. No recôncavo, as ondas entram ordenadas e fazem dentro do seu curso, em ponto pequeno, uma “bataille rangée”, e também um pouco de “bataille mêllée”(1) sobre si mesmas para se divertirem. Elas espumam um pouco, vão para frente, para trás, quando chegam à praia ficam enormes e se estendem sobre a areia; depois começa o refluxo e elas voltam para recomeçar; tudo feito numa serenidade, numa dignidade encantadora.

Na praia de Guarujá, em que o mar é mais claro, tem-se a impressão de que a luz do Sol é mais reluzente também; a água é glauca, entre azul e verde, e aquilo já é dado para mar alto. As ondas sobem e espumam! São eloquentes, fazem oratórias! Agitam cabeças, meneiam braços, assinalam distâncias por rumores. A onda quebra longe, provoca aquele rumor, o qual vai se aproximando.

Copacabana, Cabo Frio e Fortaleza

E a sensação magnífica de quem está em alto mar em Copacabana, no Rio de Janeiro! Colosso! Vastidão de mar, em que cada gota é uma pedra preciosa, formam-se espumas com as ondas que se quebram. E nunca raivoso nem indignado! Sempre com aquele bom humor, próprio ao Rio de Janeiro. Mas dentro desse bom humor amável há uma variedade, uma força que dá um encanto próprio a cada movimento das águas.

Não posso me esquecer das águas de Fortaleza, no Ceará, muito parecidas com as de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro. Não sei se no litoral brasileiro há águas mais bonitas. São propriamente águas-marinhas colossais que se movem sem forma definida. Olhando o mar, vê-se o fundo. Claro! Magnífico! Tem-se a impressão de que é uma água-marinha em lente de aumento. Estupenda!

O mar interno de nossa alma e o mar externo

Quando vemos esses vários movimentos da natureza marítima, nós nos regalamos e entretemos. Mas uma coisa é o entusiasmo; outra é a mania, que pode dar em qualquer desequilíbrio, pequeno ou grande. Na posição adequada do espírito, a pessoa vê, gosta e em certo momento, como que empurrando as sensações com a mão, diz: “Sensações, calai-vos! Eu quero que vós não entreis. As que entraram não sairão, as que estão fora não entrarão. Sensações que entrastes, desfilai! Essa, aquela, aquela outra, como é cada uma? Que relações elas têm entre si?” E faz a grande pergunta: “O que significam? O que em mim vibra vendo aquilo? Qual é a verdade, a retidão, a virtude que consona com aquilo? Qual é, por outro lado, o defeito que tende a aborrecer-se com aquilo? Pelo desígnio de Deus, aquilo significa o que há de reto, de bom, de semelhante a Ele. Plinio, analisa-te! Em função de outro mar, que é o vai-e-vem de tua alma, tu conferirás mar com mar, julgarás o teu mar interno à vista do mar externo, e julgarás o mar externo à vista do teu mar interno.”  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/11/1980 e 2/2/1983)

 

1) Bataille rangée, batalha em fileiras; bataille mêllée, batalha sem qualquer ordenação.

A grandeza da ordem do universo

Exemplificando com obras de arte de Velásquez e Van Dyck, e, no campo da História, com um detalhe de um fato ocorrido logo após a queda da Bastilha, Dr. Plinio mostra que, de um pormenor, pode-se tirar conclusões que levam às mais altas cogitações  a respeito da ordem do universo.

 

O universo é incomensurável! Como abarcá-lo? A ordem dele é ainda mais incomensurável do que ele. Porque se é verdade que o universo ocupa tão grande espaço, em cada ponto incidem nele e entram em harmonia milhares de elementos de ordem.

Pormenores de alguns quadros artísticos…

A ordem não é senão a disposição das coisas para o seu fim e de acordo com a natureza que têm. Mas para essa disposição entram em cada coisa tantos elementos, e todos eles precisando entrar em ordem, que se poderia dizer facilmente que há milhões de ordens para uma só ordem do universo. Nesse sentido poder-se-ia afirmar que há milhões de ordenações para um só ser.

Por exemplo, considerem a mão humana: quanto se pode dizer a respeito da ordenação dos vários dedos com a mão, dos dedos entre si!

Eu vi uma vez um álbum de pintura que reproduzia um quadro de Velásquez, de uma das Infantas, e retratava a princesa com uma saia-balão e todos os demais adornos. Mas o álbum estampava ao lado a fotografia só da parte do quadro, que representava a mão. E era uma mão alva, muito fina, que simplesmente fazia uma coisa: carregava um lenço, um longo lenço, espantosamente longo para os nossos hábitos de hoje, feito de uma espécie de tule de seda ligeiramente rosado. A mão da princesa se apoiava sobre a armação de sua própria saia-balão, e ali segurava o lenço que pendia como que ao acaso. Velásquez, grandíssimo pintor, fez de um pormenor de sua obra um quadro.

Portanto, interessei-me em ir decompondo assim vários quadros, analisando tal pormenor e tal outro. Se se emoldurasse só aquilo, que expressão daria?

Vê-se que todo grande pintor em cada pormenor de suas pinturas faz um quadro. E que verdadeiramente um quadro de boa categoria é um mosaico de quadros.

Uma das obras de arte que mais expressam isso é a gravura que representa o Rei Carlos I da Inglaterra, de Van Dyck. A posição de sua mão, apoiando-se ligeiramente sobre um castão, e o cotovelo do braço esquerdo… Eu já disse que é um arquicotovelo. Não conheço um cotovelo mais nobremente pontudo, mais altaneiro e mais leve do que aquele. É uma coisa maravilhosa!

Um pintor soube tirar isto de um cotovelo a respeito do qual um médico, um anatomista, um fisiologista diria cem outras coisas. Por quê? Porque num elemento só do corpo de um homem — o qual é um elemento da humanidade, o qual é um elemento rex, o elemento rei de toda a ordem do universo —, só a respeito disso se poderia escrever uma biblioteca.

…e também da História

Têm-se também uma noção disso quando se analisam os pormenores da História. Estudamos a História nas suas linhas gerais e o significado dos fatos apresentados. Mas depois, quando começamos a analisar os grandes povos, os grandes acontecimentos históricos, percebemos que os pormenores interessam muito; cada um deles acaba constituindo como que uma história especial.

Certas ondas, ao arrebentarem na praia, como que se voltam para trás e caem. Assim também são os acontecimentos históricos. Eles parecem nascer de quem os produziu, mas, aprofundando em seu estudo, vemos que foram causados por aqueles que eles vitimaram.

De um pequeno pormenor, podem-se tirar conclusões que levam às mais altas cogitações da História, e que esclarecem mais um aspecto num universo de fatos como a queda da Bastilha, a qual é um ponto do universo de acontecimentos que é a Revolução Francesa; a qual, por sua vez, é um ponto desse universo de catástrofes que são as Três Revoluções(1); e delas pode-se subir até à Redenção do gênero humano, à obra da Salvação.

Vê-se como a partir de um pequeno ponto as correlações se multiplicam e se avolumam. Às vezes, são detalhes ainda menores do que este que passo a narrar. 

Reação de Luís XVI face à notícia de que a Bastilha fora tomada

Li em certa ocasião que, no dia da queda da Bastilha, o Palácio de Versailles passou as horas em completa tranquilidade. Ninguém mandou avisar o que estava acontecendo em Paris. Nota-se o relaxamento, o abandono do senso de conservação, do senso da autoridade. O Rei Luís XVI foi dormir na hora costumeira e, mais ou menos à meia-noite, chegaram os mensageiros a Versailles, procedentes de Paris, trazendo as notícias do que tinha sucedido durante o dia.

Só então perceberam a gravidade do ocorrido, e os Ministros se perguntaram se era o caso de acordar o Rei. E esbarraram diante de um problema de protocolo, de etiqueta. Não havia precedentes de alguém acordar o monarca durante a noite. Afinal, o Duque de La Rochefoucauld entrou no quarto do Rei. Tudo isso eu já conhecia, mas existe um pormenor que até então me havia passado despercebido.

Naquele tempo, determinadas pessoas dormiam em camas de aparato, as quais tinham quatro colunas e se corria uma cortina, que formava um pequeno quarto dentro do quarto de dormir.

Ele abriu toda a cortina, acordou o Rei e comunicou:

— Sire, estamos recebendo notícias de Paris, houve tal coisa assim etc.

E Luís XVI, estremunhando de sono, disse:

— “C’est donc une révolte”?

— “Non Sire, c’est une révolution”(2).

Mas há um pormenor que eu ignorava dentro disso — porque a cena é conhecidíssima. O Duque abriu inteiramente as cortinas da cama do Rei, querendo dizer: “Eu espero que vós vos levanteis e tomeis uma atitude!” E esta esperança manifestada por La Rochefoucauld exprime bem o ambiente, a carga psicológica de como foi dada a notícia, e também o grau de modorra de Luís XVI. E o característico da cena ganha com um pequeno pormenor.

O homem vale mais que o universo material

Sendo assim a História, com uma maior ou menor abertura de cortina, imagine-se como é todo o universo!

Um grão de areia examinado no microscópio é um pequeno cosmo. E sobre ele se poderia fazer uma enciclopédia. Quanto mais o universo, o qual, entretanto, na presença de Deus não é senão um grão de areia!

Observemos outro aspecto. A Terra é como um grão de areia em relação ao universo, e este também o seria para os espaços incriados que o devem cercar. Entretanto, neste grão de areia, ou seja, a Terra, Deus fez o trono do rei de tudo, que é o homem. Pôs aqui o Paraíso e começou a conviver com o homem amorosamente.

Percebe-se, portanto, a reversibilidade tremenda. Como o universo é pequeno! Como a Terra é pequena! Como o homem é pequeno! Este é um pouco de lama que o Criador modelou e depois nele soprou o espírito. Mas como aquela lama é uma grande coisa para que Deus tenha Se servido dela para criar o homem. Ó lama histórica, bem-aventurada e feliz para que nela o Altíssimo se dignasse soprar incutindo o espírito! Como nesse instante essa lama ficou valendo mais do que o universo inteiro!

Primeiro, porque este boneco foi modelado por Deus. Em segundo lugar, porque neste molde Ele insuflou um espírito. A lama que se faz carne e começa a andar; o homem que recebe um espírito e inicia a pensar!

Eu me comprazo, às vezes, em pensar qual foi o primeiro instante de Adão. Deus manifestou-Se a ele no primeiro momento, ou só o fez mais tarde? Quando contemplou a Criação, que noção teve ele do Criador?

Somos tão egoístas que, quando imaginamos Adão começando a viver, pensamos que ele, tendo conhecimento de si e do que o cercava, se perguntava se era gostoso, agradável. Infelizmente, é o nosso primeiro movimento.

Mas esses são os pensamentos do homem moderno. A verdadeira pergunta é esta: “Que reflexo de Deus ele captou no primeiro momento?” Mas… aconteceu tudo o que sabemos.

Deus elevou tanto o homem, que o Verbo se encarnou e habitou entre nós

No novo Paraíso de Deus, que é Nossa Senhora, o Divino Espírito Santo, da carne imaculada da Virgem, fez formar-se a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo. E no momento em que foi concebido, Ele começou a pensar.

Qual foi o primeiro momento da humanidade santíssima de Jesus com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, unidas hipostaticamente? Como foram estas relações? Como foi a primeira adoração, o primeiro ato de amor? Como foi esta hora em que o Espírito Santo tornou-Se Esposo de Nossa Senhora e fez nascer Nosso Senhor Jesus Cristo? Quem pode cogitar essas coisas, tudo o que se passou nesse grão de poeira que é a Terra?

E o que se poderia perguntar quanto ao universo, se num grão de poeira cabe toda esta ordenação?

Certa vez assisti a uma palestra — não sei se o que se afirmava é inteiramente verdade — durante a qual o palestrante dizia que qualquer parcela de matéria é como um planeta em torno do qual gravitam — separados por distâncias que não percebemos, mas que a Ciência pode calcular — moléculas que são como planetas e representam pequenos universos. “Si non è vero, è bene trovato”(3). Estaria na verossimilhança das coisas que elas fossem assim.

Então, qual é esta ordem do universo, a inter-relação de todas as coisas? Consideremos que, na infinita sabedoria de Deus, cada grão de areia se identifica; Ele conhece a fundo o mundo, infinitamente mais do que nós podemos conhecer uns aos outros. De tal maneira que tudo está presente no Criador.  Ele fez tudo, conhece tudo e governa tudo. Ora, esta ordem assim é Deus que conhece.

O que se pode dizer a respeito disso? Vejamos algo que está nas excelências da obra feita por Deus. Ele eleva tanto esse grão de poeira, que o Verbo se encarnou e habitou entre nós, sofreu, morreu e salvou o gênero humano. 

Silêncio, murmúrio e exclamação

Se se pudesse dizer — a expressão não é corrente —: na História de Deus, que acontecimento extraordinário passa-se na Terra, a qual é então nobilitada ao máximo, ela que, entretanto, não é senão um grão de poeira! E parece ver-se a soberana sabedoria do Criador, olhando para isso, Ele mesmo encantado e exclamando: “De um lado tão pequeno e de outro tão grande. Que obra Eu faço!”

Esta diferença abismática, desconcertante, nós a encontramos em quase tudo o que marca a ordem do universo. Enormemente grande e enormemente pequeno; enormemente bondoso, enormemente justiceiro; enormemente autoritário, como um rei; mas de outro lado dando aos homens uma completa liberdade.

E assim são os contrastes da História. E nos extremos de todas as considerações encontramos o imenso. Na ponta de todas as “avenidas” está algo que, em linguagem humana, chamaríamos o monumental, mas que excede de fato imensamente o grandioso, o majestoso, o dominador, o ordenado e paira sobre tudo isso.

Mas nossa alma talvez pudesse ver como um pouco esmagadoras as perspectivas dessas avenidas, que são todas elas monumentais. Deus semeou essas simetrias com imprevistos. E há tanta fantasia, tanto inesperado no meio da ordem da Criação, que nos perguntamos: “Mas como isto é assim?” E no entrelaçar ordenadíssimo — se bem que muitas vezes fortuito dela — aparecem coisas que não entendemos. Quanta variedade, mas que monumental unidade!

Dir-se-ia que Deus quis ordenar as coisas de tal maneira que o homem, no último ponto de seu olhar, sempre divisa o grandioso. E se pelo sorriso do imprevisto, do leve, do gracioso, Deus o ajuda a andar rumo ao grandioso, Ele o convida, de surpresa em surpresa, a encontrar aquilo que deveria ter previsto, ou seja, o monumental, que arranca da alma humana exclamações.

Diante deste final, o homem tem três atitudes possíveis: o silêncio, o murmúrio e depois a exclamação, que correspondem a três formas de magnificência, de esplendor, a respeito de cada uma das quais eu poderia depois falar indefinidamente, de tal maneira tudo é grande, vasto, imenso; tudo nos fala da grandeza de Deus.

Se contemplarmos tudo isto com cuidado, encontraremos a ordem do universo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/9/1981)

 

 

1) O termo “Três Revoluções” é aqui empregado no sentido que lhe dá Dr. Plinio em sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, escrita em abril de 1959.

2) – Isso é uma revolta?

– Não Majestade, é uma revolução!

3) Do italiano: Se não é verdade, é bem achado.

Oração: “Mandai-me um raio de vossa luz”

Agradeço-Vos, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, por terdes me chamado para a excelsa condição de escravo vosso.

Entretanto, movido pelo desejo de levar até a sua mais alta plenitude essa condição, sinto os obstáculos que as infidelidades anteriores à minha vocação deixaram nesta minha alma tão misericordiosamente amada por Vós.

Entre esses está, sobretudo, o mau hábito de me voltar continuamente para assuntos banais e triviais, neles perdendo a atenção e o tempo concedidos por Vós para me enlevar com o que é nobre, digno e sublime, conforme a Vós, ó minha Mãe, que sois mais elevada do que os céus e mais sublime do que todos os coros de Anjos e Santos.

Sempre que suceder sentir-me atraído para as coisas banais e triviais, mandai-me um raio de vossa luz que reacenda em mim o desejo das coisas elevadas e celestes.

Ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, fazei-me humilde, submisso, forte, nobre e  invencível, para que eu seja um perfeito escravo vosso, um enlevado e imbatível Apóstolo dos Últimos Tempos. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Oração composta em 1967)

MODELOS DE HONRA, SÍMBOLOS DA FÉ

Entre as diversas e esplêndidas características da arte medieval, que nunca me sacio de elogiar, há uma espécie de deformação que se reveste de uma seriedade, uma catadura, uma força e uma  presença heráldica verdadeiramente magníficas.

Ora, algo parecido podemos encontrar nos profetas do Aleijadinho.

Em geral, homens feios. Porém, nada existe de mais belo, no Brasil, do que as célebres esculturas desse artista mineiro. São a sua obra-prima, considerada por todos os críticos modernos como filhas de inspiração medieval, embora a Idade Média há tempos já tivesse passado. São peças góticas, estupendas, que poderiam figurar sem demérito ao lado das imagens seculares que ornam as galerias e os nichos das maravilhosas catedrais europeias.

Nesses personagens talhados em pedra-sabão, o Aleijadinho soube exprimir de maneira esplêndida o que deve ser um profeta. E a deformidade deles, como nas melhores produções medievais, não faz senão acentuar a expressão simbólica que o gênio artístico desejou imprimir na sua obra.

Caixas toráxicas largas, pescoços taurinos, pernas um tanto curtas, musculosas e atarracadas, os braços compridos. As cabeças grandes em relação ao corpo, as orelhas avantajadas. Os olhos, igualmente exagerados para o contorno das faces, denotam a magnitude da alma. Porque tê-los desproporcionais para o rosto, assim como a cabeça o é para o corpo, significa possuir tudo quanto é cognoscitivo maior do que o funcional.

Detalhe que ressalta ainda mais a eloquente representatividade das imagens. Por sua vez, o desenho das barbas joga um papel peculiar na composição dessas figuras bíblicas: algumas volumosas, cheias, felpudas; outras, artisticamente talhadas, emoldurando os queixos proeminentes e vigorosos. Estas e aquelas simbolizando de modo extraordinário a força moral desses homens que atravessaram toda sorte de tormentas, de sofrimentos.

E todos aparentam uma saúde de ferro, física e, sobretudo, espiritual. Uma sanidade psíquica absoluta, objetividade completa, pensamento pão, pão, queijo, queijo; rudes e francos, paladinos da verdade sem simplificações nem relativismos. Homens dispostos a dizerem tudo a que foram destinados, ainda que o cumprimento de sua missão implique na luta e no holocausto da própria vida.

Guerreiros dotados de extrema coragem, imbuídos do espírito profético no que este tem de mais elevado. Gestos altamente expressivos, porque tocados por um vento também profético. Na verdade, nunca percebi vento animar tanto a pedra como nos profetas do Aleijadinho. É algo único e fantástico.

Se os olhos são grandes, fitam entretanto um ponto indefinido no horizonte, como o homem que traz a cabeça povoada de subidas cogitações. Contemplativos, acham-se na atitude de quem tirará  dessas reflexões uma invectiva.

Descansam da descompostura que acabaram de passar, e se preparam para a próxima. Instrumentos das recriminações divinas, polêmicos, determinados, movidos por uma superior certeza, nobres, sérios, sublimes. Não há um deles que não seja, também, modelo de honra. Cada qual, a seu tempo, foi um enviado de Deus, com visões místicas, com “flashes” próprios, com todo o direito de transmitir às gentes as mensagens recebidas do Senhor dos senhores. Falavam, proclamavam, e suas vozes reboavam como o som de bronzes tangidos gravemente. Nada neles procura se desviar para outra coisa que não seja a missão de divulgar a palavra divina. Nenhuma de suas virtudes é fingida, nenhuma dissipação em nenhum sentido. Vivem somente para o que foram criados. A honra do profeta é essa retidão integral, essa dignidade excelente, reconhecida pelos povos. Ele incute respeito.

Numa palavra, não conheço na iconografia católica figuras que exprimam tanta fé como esses profetas de Aleijadinho, que rugem um rugido eterno de pedra, hieráticos, imóveis, impassíveis. Figuras postas contra o firmamento, como se raspassem o Céu e tocassem quase em Deus, símbolos de um poder descido do alto.

Daí que não se poderia imaginar lugar mais propício para estarem. Encontram-se ali com uma tal ênfase, constituindo uma espécie de carrilhão em que cada um toca seu sino peculiar, e fazendo ouvir um conjunto que é só deles e de mais ninguém na História, que não se os concebe instalados em outro local.

Eles não ficariam bem dentro de uma igreja, de um templo, por mais colossal que fossem. Não. Dir-se-ia que a abóbada celeste é o único templo proporcional a eles, e tudo atrai para vê-los numa perspectiva do céu, para serem admirados em função das nuvens. Existem para o ar livre, para aquele descampado, ombreando as elegantes palmeiras imperiais que lhes servem de moldura.

Sem dúvida, uma obra-prima de encher a alma! Resta a pergunta: como, na Minas do século XVIII, quando a arte gótica estava mais no seu fundo e na sua desconsideração no mundo civilizado, surge um gênio como o Aleijadinho, apoiado por uma certa equipe de homens de considerável senso artístico, e revive uma Idade Média que, a meu ver, foi a época áurea da arte?

Como explicar que naquele Brasil das colônias se deu essa restauração, antecipando o próprio “renouveau” da Idade Média que aconteceria na Europa do século XIX? Aquela corrente artística então submersa, nas solidões brasílicas recobra vida, pelo indiscutível talento de um aleijado.

E nos fundos do sertão mineiro, as maravilhas medievais renascem, alcançando uma expansão e um florescimento com raro esplendor. Como?

Penso que só há uma resposta possível: foi por uma ação da graça, uma disposição misteriosa da Providência, desejosa, talvez, de fazer luzir em outros panoramas outras tantas belezas artísticas inspiradas pela Igreja — filhas daquelas que levaram a Civilização Cristã aos seus mais rutilantes dias de glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Fidelidade à estrela

Segundo uma bela tradição, baseada na exegese de algumas passagens da Escritura Sagrada(1), os Magos guiados pela estrela até Belém eram reis, possivelmente provenientes de pequenos e longínquos reinos.

Para Dr. Plinio(2), os três Reis Magos tinham como missão predispor seus respectivos reinos para a aceitação da Boa-Nova levada pelos Apóstolos ou por seus sucessores, cuja pregação encontraria receptividade da parte da população previamente preparada por seus monarcas.

Para isso — dizia Dr. Plinio —, o Menino-Deus deve ter tornado presente aos Reis Magos, por meio de graças místicas, algo de tudo quanto a Igreja e a Cristandade trariam de belo para a humanidade no decorrer dos séculos, com a promessa de que nas regiões por eles governadas isso se realizaria, se aqueles povos fossem fiéis.

Baltasar, Gaspar e Melchior eram, por certo, almas escolhidas e muito propensas ao maravilhoso, a ponto de se deixarem conduzir por uma estrela. Por isso suas pessoas aparecem nimbadas de uma atmosfera extraordinária, irradiando esse maravilhoso para o qual devem ter preparado seus pequenos reinos.

Sem dúvida, os Reis Magos foram objeto das orações de Nossa Senhora e de São José junto ao Divino Infante para o cumprimento de sua bela missão que, na opinião de Dr. Plinio(3), ultrapassou os limites do tempo e do espaço, estendendo-se a toda a História.

Procedentes de diversas raças, prefiguravam eles todos os povos que viriam adorar o Salvador. Por essa razão, os episódios históricos por eles vividos — a visão da estrela no Oriente; o encontro com Herodes; a insegurança deste rei iníquo e, com ele, de toda a cidade de Jerusalém; a alegria ao reavistarem a estrela; a adoração feita ao Menino, junto a Maria, sua Mãe; a oferenda de ouro, incenso e mirra; o aviso recebido, em sonho, para voltarem por outro caminho(4) — estavam envoltos em aspectos simbólicos que indicavam terem os Magos recebido de Deus uma autêntica e misteriosa delegação: representar as nações que, no futuro, se abririam à influência da Santa Igreja Católica.

Delegação semelhante encontramos junto à Cruz, onde Nossa Senhora, São João e Santa Maria Madalena representavam todos os católicos que ao longo da História permaneceriam fiéis aos pés do Crucificado.

Essa ideia deve dar muito alento àqueles que, nas horas difíceis da Igreja ou da Civilização Cristã, padecem incompreensões, humilhações, perseguições, e que, embora pouco numerosos, procuram representar em seus respectivos ambientes, a pureza, a ortodoxia, a intrepidez, o espírito de iniciativa, no momento em que tudo pareceria falar em recuo, em transigência, em fuga. Esses, por sua fidelidade, além de alegrar o Menino Jesus em sua pobre manjedoura ou consolar o Redentor em seus padecimentos no alto da Cruz, representam de algum modo os católicos fiéis do passado e os que o serão no futuro.

Há, portanto, uma espécie de reversibilidade por cima do tempo e do espaço, por onde essas várias ações se fundem numa cena única e grandiosa.

Peçamos aos Reis Magos que orem por nós para que tenhamos uma das muitas formas de coragem que poderão nos ser pedidas: a de estarmos sós como eles estavam no mundo pagão, à espera da estrela, isto é, da hora de Deus para cumprir com toda retidão, constância e pontualidade a vontade divina.

Para eles, a hora consoladora foi aquela em que contemplaram o Divino Infante nos braços de Maria Santíssima.

Também para nós chegará um momento muito preciso em que uma estrela nos dirá que a hora esperada chegou!

Não será, provavelmente, uma estrela exterior, mas uma voz interior, à qual devemos estar atentos e dóceis, a fim de nos prepararmos para, nessa hora, sermos modelos de exatidão e fidelidade como os Reis Magos.

 

1) Cf. Sl 72, 10-11; Is 60, 3.

2) Cf. Conferência de 22/12/1989.

3) Cf. Conferência de 5/1/1964.

4) Cf. Mt 2, 1-12.

Alta vocação dos Reis Magos

Todos os sacerdotes, reunidos no Templo, deveriam ter comunicado ao povo que os tempos haviam chegado à sua maturidade e, conforme as profecias, afinal o Messias iria nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos para anunciar em Jerusalém o seu nascimento. Isso mostra o cúmulo da degradação a que essa cidade, ainda não deicida, havia chegado.

Dom Guéranger faz os seguintes comentários a respeito  da vocação e dignidade dos Magos.

Os Reis Magos professam o desejo firme de adorar o Messias.

Tendo a estrela anunciada por Balaão se levantado sobre o Oriente, os três Magos, cujo coração se tinham aberto à espera do Messias Libertador, sentiram antes de tudo a impressão de amor que os levava a Ele. Eles receberam a nova da alegre vinda do Rei dos Judeus de um modo místico e silencioso, diferente dos pastores de Belém aos quais a voz de um Anjo convidou para irem ao Presépio. Mas a linguagem muda da estrela é explicada em seus corações pela ação do Pai Celeste que lhes revelava seu Filho.

Nisto sua vocação foi mais alta em dignidade do que a dos pastores, os quais, segundo as disposições divinas na antiga Lei, nada conheceram a não ser pelo ministério dos Anjos, mas se a graça divina se dirigiu imediatamente a todos os corações pode-se também dizer que ela os encontra fiéis.

Os Magos, falando a Herodes, exprimiram a simplicidade de sua empresa: “Nós vimos sua estrela e viemos para adorá-Lo”. Esses reis dóceis deixam, portanto, de um momento para outro, sua pátria, suas riquezas, seu repouso para caminharem em seguimento de uma estrela de que eles ignoravam o termo.

O poder de Deus que os tinha chamado os reunia em uma mesma viagem em uma mesma fé. Os perigos da viagem, os cansaços, o temor de se levantarem contra si as suspeitas do Império Romano, nada os fez recuar. Seu primeiro passo, seu primeiro repouso foi em Jerusalém. É, pois, nesta cidade sagrada que em pouco tempo será maldita que eles chegam, eles gentios, para anunciar Jesus Cristo e declarar que Cristo veio. Com toda a segurança, toda a calma dos apóstolos e dos mártires, eles professam seu desejo firme de adorar o Messias. Eles obrigam a Israel, depositária dos oráculos divinos, a confessar um dos principais caracteres do Messias: seu nascimento em Belém.

Herodes se agita em seu leito e medita o projeto de carnificina, mas é tempo para os Magos deixarem a cidade infiel, que já recebeu por sua  presença o anúncio de seu repúdio. A estrela aparece no céu e os reis decidem tomar novamente seu caminho. Mais alguns passos eles estarão em Belém, aos pés do Rei que eles vieram procurar.

A vocação dos Magos foi mais alta do que a dos pastores

Esses comentários são borbulhantes de ideias profundas, das quais cada uma mereceria verdadeiramente uma conferência.

A primeira ideia é uma comparação entre os Magos que foram procurar o Menino Jesus, guiados pela estrela, e os pastores. Mas é uma comparação que procura o valor de procedimento de uns e de outros perante o Natal, pelo modo através do qual foi noticiada a uns e outros o advento de Jesus Cristo.

Então ele diz que a chegada de Jesus Cristo foi anunciada aos pastores pelos Anjos. E aos Magos certamente por uma estrela que estava no céu, mas eles souberam que ela significava a vinda do Messias. Como? Em virtude de comunicações internas de caráter místico e silencioso operadas pela graça de Deus na alma de cada um, fazendo com que, quando a estrela chegasse, eles soubessem tratar-se do anúncio do Messias que vinha. Então, tocados por um movimento que era uma fidelidade à voz interna do Padre Eterno na alma deles, os Magos acreditaram na estrela, e como esta se movia  eles a seguiram.

Temos, assim, dois processos. Um é o anúncio de fora para dentro: os pastores, por um fato externo a eles, altamente miraculoso e extraordinário, ficam sabendo que o Messias nasceu. Pelo contrário, os Magos tomam conhecimento de que o Messias nasceu por meio de um fato interior, o qual a estrela apenas esclarece um pouco mais.

Voz interior provocada pela graça

O que tem mais mérito: seguir os Anjos ou a voz interior? Segundo a “heresia branca”

seria os Anjos porque, para esse tipo de mentalidade, a aparição de um Anjo é a prova da santidade; mais ainda, se uma pessoa tem a emoção santificante de ver o Anjo, naquela sensação ela fica santa de uma vez. É uma espécie de suspiro santificante. De maneira que o mais importante é ter recebido o anúncio de um Anjo e corresponder.

Além disso, é mais espetacular ver o Anjo, porque voz interior, quantos têm? Depois, sabe-se lá se é voz interior ou não? Pode haver dúvidas. Com um Anjo não, é uma coisa provada, garantida e, ademais, importante: Deus mandou um Anjo para falar com aquele; oh, não é pouca coisa! Voz interior é a vida de todos os dias, uma coisa apagada, sem graça, desbotada. Então, muito mais vale receber um anúncio pelos Anjos, e é mais fiel quem o segue.

Entretanto, Dom Guéranger, um grande teólogo e especialista na consideração destes temas, mostra que a operação interna da graça numa alma vale mais do que qualquer fato externo, e que a fidelidade à voz interior é mais  preciosa do que a fidelidade a um anúncio exterior; e por causa disto aqueles que não viram o Anjo, mas creram nessa voz interior, tiveram maior mérito. Evidentemente, a voz interior não é um cochicho, mas um jogo de espírito provocado pela graça, por onde a alma percebe, discerne, pondera e, iluminada pela graça, chega às conclusões impregnadas de espírito de fé.

Esse é diretamente um fruto do Espírito Santo, e a fidelidade a isso é mais árdua, mas ao mesmo tempo mais meritória, do que a fidelidade dos pastores ouvindo a voz dos Anjos.

Poder-se-ia objetar: “Mas essas vozes interiores às vezes enganam”.

É bem verdade, mas qual é a consequência?

É que Deus faz mal em nos falar por meio da voz interior? Quem ousaria censurar o Onipotente? E se Deus não faz mal, deveríamos não ouvir, como quem dissesse: “Deixa-O ir falando…”?

Há uma frase na Escritura que diz: “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Sl 94, 8). Portanto, não podemos fazer ouvido mouco à ação interna da graça na alma, mas devemos saber discernir, com o auxílio que o próprio Deus nos dá para isso.

Aqui se aplica bem a palavra de Nosso Senhor a São Tomé: “Tu creste porque me viste. Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

É fecundíssimo este pensamento.

Jesus no berço já estava dividindo, causando polêmica

Outro aspecto que o texto ressalta é a degradação do povo eleito. Nascido o Messias, esse povo deveria receber o aviso de seu nascimento.

Ora, esse aviso precisaria ser dado em Jerusalém e no Templo. O normal seria que todos os sacerdotes reunidos no Templo, num momento em que uma nuvem áurea entrasse no recinto sagrado e um cântico angélico se deixasse sentir, tivessem a confirmação daquilo do que suas almas já lhes estavam dizendo, ou seja, que os tempos haviam chegado à sua maturidade, que os fatos conferiam com a descrição das profecias e que, afinal, o Messias ia nascer. Contudo, foi preciso que viessem de longe os Reis Magos – gentios, pagãos, alheios à nação, filhos, portanto, de povos reprovados e condenados – para anunciar em Jerusalém que o Messias tinha nascido.

Quer dizer, é o cúmulo da degradação para Jerusalém ainda não deicida, mas que nada faltava para ser deicida. É interessante notar a reação dos sacerdotes. Eles confirmaram que o Messias deveria nascer em Belém e, com isso, indicaram uma das características de que de fato aquele era o Messias. Portanto, sem quererem, prestaram um testemunho de que aquele nascimento se operava nas  condições previstas pelas profecias.

Assim, involuntariamente, eles serviram à causa de Jesus Cristo. O resto é só miséria. Herodes ordenou a matança, quis eliminar o Menino.

Não consta que ninguém na Sinagoga tenha se revoltado contra isto. Nem creio que a Sinagoga, já tão pacifista, se incomodasse com derramamento de sangue dos inocentes…

O resultado é que começou a luta da Sinagoga contra Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele encontrava-Se no berço e já estava dividindo, causando polêmica; não era a causa, mas o motivo de um morticínio. O primeiro sangue derramado por Ele foi vertido quando ainda era Menino.

Pedra de escândalo para que se revelassem as cogitações de muitas almas, para construção e edificação e para a perdição de muitos, como disse bem depois o Profeta Simeão (cf. Lc 2, 35).

Essas são as considerações que me parece a propósito fazer a respeito do dia de Reis.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/1/1966)