Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

Por que razão Nossa Senhora quis a morte precoce de Jacinta e Francisco, videntes de  Fátima?

Em geral, quando se trata da salvação dos homens, é necessário haver vítimas que se associem à intervenção de Deus com o sacrifício de suas vidas.

Isto é especialmente frisante no que diz respeito às aparições de Fátima: trata-se de uma intervenção direta da Santíssima Virgem — atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a rotação do Sol — com a transmissão de uma das mais importantes mensagens de Nossa Senhora aos homens ao longo de toda a História.

Pois bem, nesta ocasião Maria Santíssima quis a imolação de duas almas, as quais se ofereceram na intenção do pleno cumprimento dos planos da Providência.

Este oferecimento nos atesta como o sofrimento é insubstituível e como ele abre, verdadeiramente, os caminhos para a Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

Catedra de São Pedro – Rocha inabalável

A festa da Cátedra de São Pedro celebra o Papa como mestre infalível, e o Papado como a rocha inabalável do alto da qual o Soberano Pontífice se dirige ao mundo inteiro, revestido da infalibilidade que Deus lhe outorgou.

Uma bela forma de nos unirmos a essa importante celebração seria oscularmos em espírito os pés da imagem de São Pedro que se encontra no Vaticano, nos quais a delicadeza do beijo alquebrou a força do bronze.

E assim, em espírito, oscular o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1964)

Reflexo do senhorio divino

Recolhido nas grandiosas e abençoadas solidões de Subiaco, São Bento idealizou a Civilização Cristã que, pouco depois, começaria a ser edificada em solo europeu.

Para o santo Patriarca, era preciso que houvesse uma vida religiosa no ápice de toda a existência humana, seguida pela vida temporal dos homens que se entregam às meras atividades terrenas.

Porém, era igualmente necessário, por vontade de Deus, que esses homens tivessem um alto pensamento, uma alta mentalidade e elevados anseios, a fim de engendrarem uma sociedade temporal toda marcada por aquela sociedade espiritual.

Uma bela manifestação deste ideal encontra-se na praça e no Palácio Público de Siena, na Itália. Ali se notam esplendores que nasceram com São Bento e com a obra beneditina no retiro de Subiaco. Sobretudo em determinados momentos em que a praça se acha praticamente vazia, tem-se a impressão de que toda a história do lugar conseguiu fugir do século atual e voltar, reconfortada, para as centúrias em que não tinha em torno de si a não ser suas próprias maravilhas e homens cheios de fé.

Num cenário bastante bonito, o palácio se ergue como um rei, dominador, pronto para governar as outras casas. Dir-se-ia que, através de seu relógio, ele possui um olhar com o qual supervisiona os acontecimentos ao seu redor. É um olhar ordenador, de quem conhece a situação própria de cada coisa se o bem que há no fato de elas estarem em seus respectivos lugares, cobrando-lhes, pelo mesmo olhar, a permanência delas nas suas posições.

Este o palácio, esplêndido e digno, amplo, confortável, severo e forte, que não depende a não ser de si para dirigir, e que exerce esta função tão parecida com a de Deus: governar os homens. O poder que se aloja ali, embora temporal, é exercido em nome de Deus, e representa eminentemente o domínio divino sobre a humanidade.

É um poder que não se exprime com a leveza e o esplendor das coisas sobrenaturais, como por exemplo, numa linda catedral gótica, as ogivas elegantes e os vitrais paradisíacos.

Não, a natureza é mais pesada que a graça. Ela nasce do chão, santa e legitimamente, mas é do solo que ela vem. A graça desce do Céu. Elas se encontram e se osculam: a natureza, serva, beija os pés da graça, a senhora.

Contudo, os dirigentes e os súditos do tempo em que o Palácio Público de Siena foi construído, estavam profundamente compenetrados da ideia de que, quem governa, mesmo na ordem temporal, o faz por desígnio de Deus. E que, para corresponder de modo perfeito a essa disposição divina, o governante deve, não raras vezes, demonstrar a sua força persuasiva natural, equivalente ao dom de mover as almas que tem a graça. Daí, um ligeiro ar de fortificação, uma certa aparência de quartel no Palácio Público, em cujos porões poderiam caber alguns cárceres, os quais, entretanto, não comprometem o conjunto de majestade desse edifício. Pormenor curioso, os dois torreões levantados nos ângulos do corpo central parecem braços e mãos erguidos ao Céu, pedindo a ajuda de Deus para o exercício de mando das coisas temporais…

Assim, por trás da magnífica temporalidade desse palácio, brilha a missão de velar sobre a Igreja para protegê-la, para favorecer a expansão dos missionários por toda a terra, para facilitar aos sacerdotes católicos a livre pregação da palavra de Deus.

O Estado tem, portanto, essa missão muito mais elevada que a de governar os homens: a de favorecer a Igreja. Este lado altíssimo do poder estatal é muito bem representado pela torre do palácio.

Esta se alça nos ares, sobe e sobe, como quem diz: “Vós, olhando para o lado terreno das coisas tendes toda a minha figura temporal. Vede como ela é bela! Mas vós não vistes nada. Vós não conheceis minha missão divina. Olhai!”

O interior do Palácio acompanha sua grandeza e esplendor externos. Salas cobertas de pinturas de extremo valor. Em Subiaco abriam-se as vastidões que têm como cúpula o próprio céu, e que alimentaram as reflexões de São Bento. Nesse palácio há tetos e arcos que convidam ao recolhimento do espaço pequeno, onde o homem pode também meditar nas coisas de Deus.

E então somos levados a imaginar um governante dessa Siena medieval, passeando pelas salas, terraços e torres do seu palácio. Um espírito ponderado e pensativo, cuidando da magnitude de seu poder temporal, das grandes responsabilidades e dos grandes serviços que pode prestar à salvação das almas, para o bem dos homens e, sobretudo, para o da Igreja.

Enquanto toda a cidade dorme, e apenas se ouve, de tempos em tempos, um tilintar dos relógios e um eco dos sinos a indicarem as horas que correm, ele está lá em cima, sozinho, rezando e pensando, pensando e rezando, como São Bento em Subiaco meditava…

São homens assim que sofrem e se tornam solitários nas grutas de Deus e são construções e monumentos como o Palácio de Siena que se transformam em instrumentos da graça, para conduzir as almas ao Paraíso Celestial.

Propósito de fidelidade à luz da graça

Ó minha Mãe, Medianeira de todas as graças, na vossa luz veremos a luz!

Mãe, antes ficar cego do que deixar de ver vossa luz, porque vê-la é viver. Na sua claridade contemplaremos todas as luzes; e sem ela, nenhuma luz refulge. Não considerarei vida os momentos em que ela não brilhar; e eu, da vida, não quererei ter mais nada do que a mente banhada por essa luz.

Ó luz, eu vos seguirei custe o que custar: pelos vales, montes, desertos e ilhas; pelas torturas, pelos abandonos e olvidos; pelas perseguições e tentações, pelos infortúnios, pelas alegrias e triunfos. Eu vos seguirei de tal maneira que, mesmo no fastígio da glória, não me incomodarei com ela, porque só me preocuparei convosco. Eu vos vi, e até o Céu não desejarei outra coisa, porque, uma vez, vos contemplei!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composto na década de 1970)

Saúde dos enfermos

O  homem que, em consequência do pecado original, está sujeito às mais aflitivas doenças, amiúde recorre à Santíssima Virgem suplicando-Lhe a cura de seus males. Por isso a Igreja A invoca como a “Saúde dos enfermos”.

Não raras vezes, Nossa Senhora permite doenças e provações físicas a fim de que os homens, curados por sua intercessão, sintam a maternal bondade com que a Mãe de Deus os atende e sejam, assim, por Ela mais atraídos e conquistados. Nossa Senhora, Saúde dos enfermos é, portanto, num primeiro plano, Aquela que restitui a saúde corporal aos homens.

Será só isto? Maria é Mãe apenas quando trata de nossos males? Não será também insigne favor o fato de Ela permitir que nos acometa alguma doença, e que esta perdure longamente? Muitas vezes sim. A doença pode ser um meio mais excelente de nos aproximar d’Ela, de tomarmos distância das coisas do mundo, de compreendermos como é transitória a vida, de purificarmos nossa alma de inúmeros pecados e defeitos. Neste caso, a doença é um bem para nós. De tal sorte que podemos dizer a Nossa Senhora: “Se essa enfermidade for melhor para minha alma, eu a aceito. Porém, Vós tendes o poder de abreviá-la, caso esteja nos desígnios de Deus fazer-me mais bem a saúde do que a doença. Se tal for, se meus pecados não constituírem obstáculos à vossa misericórdia, peço-Vos que me cureis. Do contrário, acolho com humildade o que me destinais”.

Sobretudo devem se dirigir a Maria Santíssima os pecadores, para que Ela restitua a saúde às suas almas enfermas da pior das doenças, que é o pecado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1970)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

Símbolo da santidade, majestade e força – I

Analisando um leão heráldico, Dr. Plinio demonstra como, através de um ente criado, nos elevamos a considerações de caráter metafísico e sobrenatural, reconhecendo em seres materiais os símbolos de realidades espirituais.

 

Um dos modos pelos quais podemos fazer apostolado, hoje em dia, é levar as almas para a consideração da quarta via de São Tomás de Aquino(1).

Como abordar o tema

Há, entretanto, uma dificuldade que consiste no seguinte: alguns espíritos são muito sensíveis a isso; outros, pelo contrário, são pouco sensíveis. Sem dúvida, essa insensibilidade é produzida, em parte, pela Revolução, mas também por determinadas características legítimas do espírito humano, que devemos tomar em consideração.

Existem pessoas que sabem muito bem ver os reflexos de Deus numa determinada arte, mas não em outra. Por exemplo, são muito sensíveis àquilo que um fenômeno sonoro reflita de Deus, mas menos sensíveis aos fenômenos cromáticos. Outros têm grande sensibilidade ao elemento olfativo, para os quais o perfume diz extraordinariamente. Outros ainda serão mais sensíveis a uma produção literária. E assim por diante.

Quer dizer, há legítimas diferenças de espírito na consideração da quarta via, o que já estabelece uma primeira dificuldade para abordar o tema. Ademais, há demonstrações erradas que habituaram os espíritos a considerar as coisas de um modo equivocado.

Não dispondo no momento de músicas nem de perfumes, pareceu-me adequado fazer uma exposição da quarta via baseada na heráldica, disciplina nascida na Idade Média que, através de sinais e símbolos, exprime determinadas realidades referentes à vida de um indivíduo, de uma família, província, nação, instituição, enfim de qualquer entidade que se possa conceber.

Analisemos o estandarte que temos diante de nós. Começo por dizer como o símbolo que o compõe não deve ser considerado: o leão é o mais forte dos animais; portanto é legitimo que ele tenha sido escolhido como símbolo da fortaleza. O sangue derramado pelo homem é uma manifestação do martírio e da dedicação. De maneira que é legítimo que, quando se queira simbolizar a coragem levada até o limite do heroísmo do mártir ou do guerreiro, se use essa cor. Então, por essas razões, o nosso estandarte fala de combatividade e de heroísmo: a combatividade do leão e o heroísmo de quem verte o seu sangue pela causa que defende.

Este é o modo pelo qual o assunto não deve ser examinado. Não que seja errado dizer isso, mas não é sob este aspecto que o tema precisa ser abordado.

O leão heráldico, quintessência de todos os leões

O leão é um animal cuja figura foi acolhida e manipulada pelos desenhistas da heráldica, que procuraram fazer um leão evidentemente parecido com o que se vê nas selvas, mas no qual os traços característicos foram acentuados, de maneira a serem, por assim dizer, estilizados. Estilização é tomar aquilo que é característico e representá-lo de modo acentuado.

Em nosso estandarte, por exemplo, vemos que os traços característicos do leão foram acentuados pelos heraldistas. Portanto, algo que nem todo leão tem e até muito poucos leões possuirão, talvez nenhum tenha no seu conjunto, o heraldista soube, por um efeito da arte, destacar de maneira a modelar um leão que é, ao mesmo tempo, a quintessência de todos os leões. Um leão exatamente assim não existe em nenhum lugar. Em outras palavras, é um leão ultra-real, de um lado, pois o que há de mais real no leão está expresso aí; mas, de outro lado, é irreal porque nenhum leão é realmente assim.

Este leão, assim modelado, pode ser considerado como símbolo de um determinado tipo de força, não por se parecer com um animal selvagem, mas é outra ideia. Há diversos animais na natureza que podem simbolizar a força: a águia, a sucuri que estrangula um cordeiro e o come, o touro, o elefante, o rinoceronte. Mas nenhum animal simboliza o tipo de força simbolizada pelo leão.

Tomemos, por exemplo, o rinoceronte. Um animal feio, sem nenhuma arquitetura. A figura dele é uma massa de carne carregada por umas patas furibundas que escoiceiam estupidamente. Tem uma agressividade cafajeste, de botequim. É a força bruta na sua estupidez.

O leão representa, antes de tudo, uma força suprema na órbita em que ele se move. Entretanto, ele é o primeiro não apenas por ser o mais forte, mas porque é o mais glorioso. Ele tem a sua cabeça cercada por um halo de glória, porque aquela juba não se compõe de pelos desordenados como os do rinoceronte, do búfalo, não são pelos cheios de bichos, de pedaços de folga, nem nada disso, mas limpos. O leão é um animal de corte, bem arranjado; seus pelos caem como devem cair e formam uma espécie de auréola meio áurea em torno dele. Ele se move e os meneios de sua cabeça são cercados pelos movimentos prestigiosos da sua melena.

O olhar dele é fronteiro e já tritura antes de as mandíbulas terem triturado, dando a ideia de que sua força está na alma mais do que no corpo, o que é propriamente a força bem ordenada. É a força de espírito que move a do corpo. E não uma força do corpo imbecil, governada por um espírito insuficiente para regê-la; isto é uma degradação, uma supremacia da matéria sobre o espírito.

Espaços vazios de criaturas, mas cheio de vitória

Disseram-me que o leão não enxerga coisas pequenas, só as grandes. Isso que poderia parecer uma insuficiência tem também seu aspecto simbólico. Há um provérbio latino que diz: “Aquila non capit muscas” – A águia não pega moscas. O leão não olha coisinhas. Há outros bichos que cuidam delas; ele é feito para as coisas grandes, é superior em tudo.

O focinho do leão não é vilmente achatado, nem uma ponta bicuda. Tem uma nobre elevação que vai bem com a conformidade da face, cobre inteiramente a mandíbula que aperta sem nervosismo, mas quebra e come com a naturalidade com que um de nós comeria, por exemplo, uma sardinha. Assim a mandíbula do leão fará com o osso de um animal considerável. Ele tritura e ainda passa majestosamente sua língua rubra, bonita, por aquela beiçorra. A língua faz uma volta elegante, movendo-se com beleza, enquanto ele engole. Depois o leão fecha a boca e entra numa espécie de quietude: “Agora digerirei”. Está terminada a mastigação, a luta; a deglutição já tem algo do repouso, em seguida vem a digestão majestosa, com a serenidade da vitória conquistada. O leão paira nos espaços vazios de criaturas, mas cheio de vitória; e seu repouso é repleto de reflexos áureos.

Delicadeza e força

O passo do leão é dominador, mas não o domínio estúpido com que o elefante esmaga a formiga. Uma catástrofe para a formiga. Aquela montanha de carnes achatando vilmente um pequeno bichinho cheio de complexidades e de organicidade. É a derrota da subtileza diante do fato consumado, estúpido e brutal.

O leão, não. As patas dele não foram feitas para esmagar, mas para andar, correr e saltar. De maneira tal que ele salta com certa delicadeza. Não, porém, a delicadeza do frágil. Uma das belezas do leão é o modo pelo qual ele alia a delicadeza à força. O jeito da pata do leão pisar o chão é todo um movimento muscular lindo. Ele avança a pata e toma posse do chão, sem esmagá-lo; cria uma soberania de alguns centímetros em torno da pata, simplesmente pelo fato de pousar sobre ela. E depois aquela pata se encolhe e dá apoio a ele. Vê-se o serviço que a pata presta: carregar aquela massa possante. Mas quando ele se equilibrou inteiramente, a pata já está distendida e pronta para caminhar. E vai aquilo assim, numa conquista progressiva dos espaços inocupados, que é uma verdadeira beleza. É metódica, serena, não admite discussão, e quando chega a hora do leão correr é diferente. Porque aí aparece qualquer coisa de raposa dentro do leão. Ele se torna perspicaz, se assanha todo, começa a trotar preocupado e sôfrego. Cada vez que ele se aproxima mais, o olhar vai fixando e já engolindo o que as patas ainda não alcançam. O ataque é régio porque nesse momento ele vira bípede. E entra com toda a sua estatura.

Vemos nesta figura heráldica o leão que levanta as patas e já vai agarrar, mas cada pata se transforma numa espada, numa arma. Com as garras assim erguidas está feito o assalto, numa espécie de indignação tão majestosa e direita que se diria estar o leão indignado contra quem ousou não se sujeitar a ele. Essa atitude tem algo de régio. Assim Luís XVI deveria ter recebido as multidões revoltadas que atacaram o Palácio de Versailles.

A cauda, um pouco acima da cabeça, dá ideia de triunfo

O corpo do leão tem isto de muito bonito, que os nossos estandartes reproduzem bastante bem. O leão é tão arquitetônico que ele possui como que duas zonas distintas do corpo: a zona felpuda, a da cabeça, é a fachada do leão. Assim como um prédio, além da fachada, possui outras alas, o corpo do leão tem uma parte que é inteiramente raspada e lisa, de uma forma que, à medida que vai chegando para trás, se adelgaça. Nele o peito é mais saliente. A outra parte do corpo vai se tornando mais esguia até às patas traseiras, que já participam do ímpeto de combate. Quase não se percebe que as funções digestivas ocupam uma parte no corpo do leão. Ele todo é uma máquina de guerra, em que a fisiologia passa por uma coisa mais ou menos irreal. Nem se pensa em fisiologia, quando se vê um leão andando. Ele parece pairar acima das contingências fisiológicas, tão esplêndido ele é.

A cauda do leão foi aproveitada no nosso estandarte para ser um ornato a mais. O rabo é frequentemente feio nos animais. Só há dois tipos de animais em que o rabo é bonito: o cavalo e certo gênero de pássaros, a começar pelo pavão, naturalmente. Esta ave me encanta. A mentalidade moderna rejeita os pavões, pois para ela eles são o símbolo do fausto inútil que não trabalha, da coisa preciosa que vale pouco dinheiro. Se a cauda do pavão fosse feita de cheques, esse gênero de pessoas a compreenderia melhor, mas sendo de penas tão vistosas e bonitas, o que pode valer aquilo?

O artista que representou esse leão segundo a tradição heráldica aproveitou a cauda do animal como uma manifestação de galhardia a mais. Eu fiz questão de que essa galhardia fosse tal que a cauda ficasse um pouquinho acima da cabeça, dando a ideia de um triunfo. Quer dizer, mesmo aquilo que se arrasta normalmente pelo chão, o leão tem a vitalidade para levantar de um modo nobre, representando quase uma flâmula ou uma bandeira, que ele carrega para dar a ideia da leveza de seus recursos, depois de ter dado a ideia de toda a majestade de sua “personalidade”.           

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1973)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.

 

A gota d’água no cálice de vinho

Ainda sobre o papel do nosso sofrimento (que Dr. Plinio aborda neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima), mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à Paixão  redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais abundantíssimos.

Embora os merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam superabundantes, dispôs a vontade divina que deles se aproveitassem os homens, em muitas circunstâncias, unindo seus  próprios sacrifícios aos do nosso Redentor. Assim nos ensina a Santa Igreja.

Donde, para conseguir tocar e converter determinada alma, por exemplo, seriam suficientes os méritos infinitos alcançados por Jesus, sem os quais nada obteríamos. Porém, é do superior desejo  de Deus que essa conversão se efetue mediante o concurso dos nossos sofrimentos, associados aos de Nosso Senhor.

E se almejamos, portanto, uma imensa transformação moral para a sociedade contemporânea, ou um “renouveau” da vida da Igreja, cumpre que soframos todo o necessário, nos consumindo nesse  sofrimento como uma tocha ardente. Tais são os desígnios de nosso divino Salvador, para que, de fato, a dolorosíssima Paixão d’Ele se verificasse útil a essa alma, àquele grupo social, ou mesmo àquele ciclo de civilização.

A essa necessidade de unir nossas dores às de Jesus, costuma-se aplicar um dos muitos e lindos simbolismos da liturgia eclesiástica. Trata-se da gota d’água que o sacerdote verte no cálice com  vinho, durante o Ofertório, a qual representaria o sofrimento humano depositado no oceano do sofrimento divino, para, juntos, serem imolados ao Padre Eterno.

Quiçá esse simbolismo não tenha fundamento na história litúrgica, porém exprime ele adequadamente um pensamento piedoso suscitado por esse ritual da celebração eucarística. E sempre que  observo o padre fazer essa mistura da água com o vinho, lembro-me dessa ideia muito formativa: é a gota do nosso sofrimento no mar das dores de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por outro lado, reveste-se de extrema beleza o fato de essa gota d´água, uma vez dissolvida no vinho, ser também transubstanciada.

Quer dizer, o que não era matéria para consagração, acaba se tornando uma só coisa com a espécie do vinho e se transubstancia no Sangue preciosíssimo de Cristo.

Isto manifesta bem o valor descomunal de nossos méritos, de si tão minguados, quando unidos aos méritos infinitamente valiosos de Nosso Senhor.

O sofrimento humano completa o desenho da Criação

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão de ser desse vínculo entre o nosso sacrifício e o de Jesus. Considerando os desígnios divinos, chegaríamos à conclusão de que, tendo Deus criado seres  inteligentes e dotados de vontade, intencionalmente deixou que uma parte da beleza da criação fosse completada por esses seres. Daí uma série de coisas lindas da natureza surgirem graças ao engenho humano. Por exemplo, o casulo do bicho-da-seda é uma obra saída das mãos do Onipotente, com a manifesta intenção de que o homem o utilizasse para fabricar o rico tecido com que  orna mobílias, decora ambientes ou confecciona magníficas peças de vestuário.

De si feios, o verme e o casulo oferecem ao talento dos artífices a matéria para realizarem maravilhas.

E assim, mil outros elementos se encontram na criação, tornando-a semelhante a esses desenhos pontilhados no seu contorno geral, feitos para serem completados e coloridos pelas crianças.

O homem, entendendo a criação, amando-a e aperfeiçoando-a, recebe de Deus a honra incomparável de ser elevado à dignidade de continuador d’Ele no seu plano para o mundo.

Ora, tendo acontecido que Deus, além de Criador, se fez Redentor, dispondo que Jesus Cristo padecesse e morresse na Cruz para nos salvar, era natural que o homem também fosse associado a  essa obra-prima da criação, que é a Redenção. E que ele, portanto, tivesse um sofrimento complementar a oferecer ao Padre Eterno, unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.

Grandeza das almas que sofrem pelas outras

Temos, então, as mais diversas e tocantes formas de padecimento do homem nesta terra de exílio.  É belo o sofrimento do apóstolo, com seu caráter expiatório ou imprecatório, como um ato de  amor e de holocausto desinteressado, tantas vezes misturado a lutas e dificuldades de toda ordem. É belo, quando ele precisa levar a bom termo sua faina apostólica num determinado meio, e surgem as incompreensões, as calúnias, os motejos, precipitando-se sobre o apóstolo. Ele enfrenta todos os obstáculos, parecendo abandonado por Deus. Por quê?

Porque é preciso que ele sofra, assim como é necessário que ele atue e reze. Sem esse sacrifício do apóstolo, Nosso Senhor poderia recusar a aplicação dos méritos da Paixão d’Ele para aquele  ambiente, para aquele meio, para aquela alma.

Belo é, igualmente, o padecer daqueles dos quais a graça divina se serve para atuar, pela primeira vez, junto a um determinado grupo social. Esses  instrumentos suscitados por Deus são como que  fundadores, e devem ter um sofrimento mais intenso do que os outros. De fato, o homem que inicia uma obra possui a glória de tê-la começado. Mas essa glória traz para ele o peso tremendo de  sofrer pela obra inteira. E se esta for chamada a perdurar até o fim do mundo, produzindo frutos que o tornarão ainda mais engrandecido, é natural que ele irrigue com suas dores a existência inteira dessa fundação.

Para suprir a debilidade dos homens no oferecimento de seu sacrifício, existem na Igreja as almas que têm a vocação de sofrer pelas outras. Diante dessas pessoas desejosas e capazes de padecer  pelo próximo, teria vontade de me ajoelhar e lhes dizer — “servatis servandis” — como São João Batista a Nosso Senhor: “Não sou digno de desatar as correias de seu sapato”. De tal maneira me empolga e entusiasma essa forma de apostolado, merecedora de meu respeito e profunda veneração.

Nada é mais nobre e mais bonito, nada revela maior integridade de alma e maior sinceridade em todos os propósitos, nada é mais eficiente em seu gênero próprio, do que a alma que aceita sofrer pelos outros. Barreiras enormes se abatem, preconceitos tremendos caem, dificuldades fabulosas se resolvem quando uma determinada alma decide ser conseqüente e abraçar a dor até onde o  permita a vontade de Nosso Senhor. Não tenho palavras para exprimir a gratidão emocionada, o sentimento de culpa e de vergonha que me toma diante de uma alma que realmente seja capaz de  levar essa vocação até o fim.

“De culpa e de vergonha”, digo, porque sempre me fica a impressão de que, na raiz do êxito admirável de nosso apostolado, existem almas que sofreram e talvez já morreram — ou ainda estejam  vivas — padecendo para nos alcançar tudo o que a nós foi concedido por Nossa Senhora.

Se me fosse dada a felicidade de conhecer uma alma assim, sem dúvida me ajoelharia e lhe beijaria os pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria diante da causa verdadeira da nossa grandeza, da  razão primeira de nossos sucessos, da minha perseverança e do que possa haver de virtude em mim. Com efeito, se alguém não tivesse tomado a cruz às costas e subido ao alto do Calvário, imolando-se por nós, não creio que eu pudesse realizar a obra que me foi confiada.

Portanto, essa alma sofredora é o sustentáculo de minha fraqueza, o remédio para as minhas lacunas, enfim, é o fator preponderante para que nossas atividades progridam e frutifiquem.

Nada se faz sem os “micro-Cristos”

Claro está que as almas mais especialmente por Nosso Senhor para se associar ao sofrimento d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam a algo que poucos têm coragem de abraçar. Muitos estão  prontos para agir, alguns para rezar. Onde estão os dispostos a sofrer? Onde encontraremos alguém que deseje se sacrificar, com este sentimento: “Eu sofro, peço à Nossa Senhora que conforte a  minha fraqueza, mas aceito e dou esse passo”?

É natural que em nossa obra a Providência suscitasse almas dispostas a sofrer e a fazer do padecimento seu primeiro apostolado. Essas almas seriam as principais entre nós, incumbidas da missão  mais difícil, mais necessária, mais urgente.

Para se compreender o mérito dessa vocação particular, devemos tomar em consideração que o sofrimento não é só se flagelar ou se martirizar. Não. Antes de tudo, é aceitar bem as diversas  provações que Deus permite em nossa existência diária. Devemos recebê-las de frente e dizer: “É verdade, eu sofro. Posso até agir para eliminar essa dor. Mas, enquanto não for evitada, acolho-a  de bom grado, porque é algo inapreciável para a minha alma e para a dos meus semelhantes. É preciso que alguém se imole por eles.”

Penso não existir expressão mais vil do que esta: “Vê lá se eu sou um Cristo para aguentar tal coisa!”. Embora seja de uma sordície inominável, ela tem um pressuposto curioso: existem “micro-Cristos”, digamos, que aqui, lá e acolá se deixam crucificar para que as realizações humanas cheguem a bom termo. E sem esses “micro-Cristos”, nada se faz. Eles são a honra, a glória, a alegria, a  vitória dos ambientes pelos quais sofreram. É deveras inapreciável essa condição de sofredores dentro da Igreja. Almas que devemos amar entranhadamente, porque foram corajosas o bastante  para oferecerem a Nosso Senhor sua própria imolação: “Quero unir meu sofrimento ao vosso. Se tenho de ser como uma azeitona a ser espremida para dela tirardes o óleo, ou como a uva da qual  extraíreis o vinho, ou como o grão de trigo triturado para dar a hóstia, é este o meu desejo!”

Tenho a impressão de que eu diria com o Salmo: “meus ossos humilhados exultam”, se visse em nosso movimento almas chamadas por Nossa Senhora para o sofrimento e a dor.

Holocausto digno de admiração e gratidão inteiras

Em um de seus famosos escritos, Huysmans nos conta que há em Lourdes um Carmelo cujas freiras têm por missão sofrer e expiar para conseguir conversões e curas no Santuário. Porém, no  momento daquelas lindas “procissões das velas”, daquelas curas miraculosas, daquelas grandes transformações morais, daquela glorificação de Nossa Senhora em meio à felicidade do povo,  ninguém está se lembrando do convento das carmelitas, onde existem religiosas doentes, morrendo, sofrendo aridezes interiores e desolações tremendas, para que os outros estejam na alegria ou  sendo objeto da benevolência divina. Não importa: aos olhos de Nossa Senhora, a fonte de toda essa alegria está naquele Carmelo.

O mais bonito é que as freiras assumem o compromisso de não pedir a própria cura. Pergunto: haverá na Terra algo mais digno de admiração do que essa forma de holocausto?

A esse respeito, vale recordar um lindo fato da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente ser tudo na Igreja: missionário, padre, apóstolo leigo… E essa vontade intensa  chegava a constituir para ela um verdadeiro suplício. Mas, a partir do instante em que entendeu o valor do sofrimento, através do qual poderia obter graças para as almas que cumpriam essas  vocações, e, desse modo, atender o seu anelo de fazer tudo em todos os lugares ao  mesmo tempo — ela então encontrou ânimo para sofrer e achou paz para a sua alma.

É compreensível que, diante de uma pessoa assim, nos emocionemos até o extremo que nos seja possível.

E que a veneremos, respeitemos e lhe externemos nossa gratidão, em toda a medida que nos seja dado agradecer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

 

A Igreja é o centro da História

A Igreja é o princípio vital da sociedade, do Estado, da civilização e da cultura. Com essa conclusão pouco consonante com a História laica e materialista ensinada hoje em dia, Dr. Plinio encerra  seus comentários à Carta Apostólica “Annum Ingressi”, de Leão XIII. Antes ele aborda dois pressupostos para completar seu pensamento a respeito da matéria: as influências preternaturais na vida humana e a natureza dos mandamentos de Deus, de cujo cumprimento nascem a ordem e a harmonia.

 

Já vimos anteriormente que as paixões desregradas do homem, somadas ao poder das trevas, constituem no seu conjunto a “cidade do demônio”. Resta-nos dar sobre ela algumas precisões.

A escravidão “natural” ao demônio

A expressão é do próprio Jesus Cristo: “Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum” (Lc 22, 53) — “esta é vossa hora e do poder das trevas”. Se Jesus Cristo é a luz que veio a este mundo (cf Jo 1,  9), as trevas, sendo o contrário da luz, são portanto aquilo que se opõe a Jesus Cristo, isto é, o demônio.

Há, pois, uma “potestade do demônio”. Esta se exerce no inferno, que é o reino das trevas, e também neste mundo. E por isto o demônio é chamado “príncipe deste mundo”. Vejamos em que  sentido.

Desde que o pecado original trancou para os homens as portas do Céu, eles se tornaram súditos do demônio. Com efeito, foi o demônio que arrastou Adão e Eva ao pecado pela voz da serpente (Gn  , 1-5), fechando-lhes, assim, o Céu e provocando o desregramento das potências de suas almas, desregramento que é a fonte de todo pecado. Posto na impossibilidade de praticar o bem em razão dessa desordem, o homem era escravo de suas paixões e, portanto, do demônio, autor dessa servidão.

É verdade que, “ante praevisa merita”, em previsão dos méritos de Jesus Cristo, o homem começou a receber a graça logo depois da queda. Também é verdade que, com a Redenção, ele se tornou  independente do demônio e se fez escravo de Jesus Cristo.

Não obstante, pelo pecado mortal, o homem remido rompe com Deus e volta à escravidão do demônio — “volta o cão a seu vômito”, escreve São Pedro (2 Pe 2, 22) — na qual fica durante todo o  tempo em que se conservar em tal estado. E assim, mesmo depois da Redenção, o demônio tem escravos entre os homens, e estes terão mais culpa se forem cristãos, máxime se católicos.

Quanto maior é a altura de que se cai, maior a queda.

Chamamos a essa escravidão “natural”, porque ela se explica quase inteiramente pela maldade natural do homem depois do pecado.

O poder das trevas preternatural

Mas há outra forma de maldade, que degrada o homem abaixo desse nível. É a que vem da ação preternatural do demônio na alma. Quando o homem se entrega a essa ação, torna-se escravo do  príncipe das trevas a título muito especial.

Embora decaído de sua glória celeste, o demônio não perdeu a natureza angélica e na abjeção do inferno conserva toda a lucidez, pondo suas capacidades a serviço de seu ódio contra Deus.

Mas o inferno é um cárcere e o demônio, um condenado. Infinitamente inferior a Deus como inteligência e poder, só estende sua ação fora do inferno na medida em que a Providência o permite. E  Ela o permite habitualmente. No livro de Jó lê-se um impressionante diálogo entre Deus e o demônio.

Este último, agastado com a glória dada a Deus pela virtude do patriarca, afirma que essa virtude é apenas superficial, e pede licença para tentá-lo. Deus consente. E todas as desgraças da terra se   abatem sobre o heroico varão.

Cada alma tem sua história e, enquanto história de alma, vê-se que Deus permite ao demônio atormentar e tentar por todas as formas os justos, com o intuito de pôr à prova sua fidelidade. Sobre  eles se exerce de mil modos — ora com violência tempestuosa, ora com pérfidos ardis, sempre com uma sedução terrível — o misterioso poder das trevas. E eles lhe resistem.

Entretanto, muitos homens não lhe resistem e se entregam ao pecado. Note-se bem que, no caso aqui considerado, o pecado não tem por causa exclusiva as paixões humanas desregradas.

Conquanto o demônio não possa obrigar o homem a pecar, pode ter, por permissão de Deus, uma ação por vezes muito grande sobre a imaginação, de sorte que por esse meio pode aliciar vigorosamente o homem para o pecado. Sobre os que, no exercício de seu livre arbítrio, não lhe resistem, o demônio pode adquirir, por punição divina, o poder cada vez maior de exercer sua ação.

E, a correrem as coisas segundo seu desenvolvimento lógico, esse poder pode chegar a ser uma tirania à qual o homem só pode resistir com recursos excepcionais da graça e um esforço heroico da  vontade.

Essa servidão, que pode existir em modos e graus incontáveis, é preternatural, distinta da servidão natural, considerada no item anterior. “Preternatural” é um termo utilizado pela linguagem da  Igreja para designar aquilo que é superior à natureza humana, mas é distinto da ordem sobrenatural, relativa a Deus e, portanto, superior a todas as criaturas.

A ação que a graça de Deus exerce sobre o homem é sobrenatural. A ação do demônio é preternatural. Até onde pode ir essa ação preternatural?

Afirma a Sagrada Escritura que “omnes dii gentium demonia” (Sl 95, 5), e isso foi constantemente admitido pela Igreja. Satanás tem, pois, seus altares e seus adoradores por toda a Terra.

Todo culto ao demônio é intrinsecamente tão contrário à natureza humana, as profanações de hóstias consagradas, as “missas negras” que ele muitas vezes comporta revelam um tal ódio a Deus que não se podem explicar por causas exclusivamente naturais.

É preciso a atuação de algo de pior do que têm os piores homens para que sua maldade chegue a esse ponto.

À medida que, pela ação preternatural do demônio, aumentam em quantidade e em gravidade os pecados dos homens, a Justiça de Deus tende a retrair suas graças. À medida que se retraem as  graças, vai ficando livre o campo para os pecados dos homens e Deus vai dando ao demônio maior liberdade de ação.

Acontece que o homem pode inclinar sua vontade livremente, quer para o lado de Deus, quer para o do demônio. Por conseguinte, conforme uma ou outra inclinação desse verdadeiro pêndulo  entre o Céu e o inferno, que é o livre arbítrio humano, os homens e as nações caminham pelas veredas da virtude rumo ao Céu, ou pela larga estrada do vício rumo ao inferno.

Em nossa época de cepticismo, as afirmações de Leão XIII a respeito de tudo isso podem fazer sorrir. Nesse sorriso céptico não serão coerentes consigo os que admitem como inspiradas por Deus  a Sagrada Escritura.

Com efeito, a Escritura nos fala, do Gênesis ao Apocalipse, sobre duas raças espirituais em que se dividem os homens: filhos da Virgem e filhos da serpente, filhos dos homens e filhos de Deus,  filhos da luz e filhos das trevas, raça de justos e raça de víboras, filhos do demônio e filhos de Deus.

Os Mandamentos, imposição arbitrária de Deus?

Os Mandamentos nos instruem sobre os atos que devemos fazer ou não fazer para salvar nossa alma. O Divino Redentor é explícito a este respeito. Ele promete a vida eterna aos que observam a  Lei: “Si vis vitam ingredi, serva mandata” — “Se queres entrar na vida, observa os Mandamentos” (Mt 19, 17). E ameaça com as penas do inferno os que a violam.

Por que estabeleceu Deus esses Mandamentos e não outros? Poderia ter permitido que os homens praticassem as ações proibidas pelos Mandamentos, e condicionar a salvação à prática de atos que os Mandamentos não proíbem? Poderia, por exemplo, ter dispensado o homem do 6º mandamento, substituindo-o por outro que proibisse algum ato reputado inócuo pela moral católica?

Para Puffendorf e outros tratadistas protestantes, é fora de dúvida que sim. Para eles, os Mandamentos são arbitrários, são sacrifícios impostos a nós por Deus para provar nosso amor.

Pensam, assim, que a Lei foi editada com o único intuito de nos impor sofrimentos. Mas Deus poderia perfeitamente ter escolhido outros Mandamentos, em lugar dos que estão em vigor. Em  outros termos, os Mandamentos não são bons nem maus em si, e devemos obedecer a eles só porque Deus o quis.

Segundo a doutrina da Igreja, a prática dos Mandamentos realmente impõe sacrifícios que dão a prova de amor a Deus, e sem esse amor o homem não se pode salvar. Todavia, ao estabelecer os  Mandamentos, Deus não escolheu ações inócuas em si, que passaram a ser más só porque Ele as proibiu. Pelo contrário, Ele as proibiu por serem intrinsecamente más. Há, pois, para a Igreja um  bem objetivo que está em certas ações, e um mal objetivo, que está em outras. Note-se a palavra “objetivo”. Não se trata de um bem ou um mal subjetivos, existentes na mente deste ou daquele homem, deste ou daquele povo, mas de um bem e um mal reais, imutáveis, que continuariam a ser bem e mal, qualquer que fosse a ideia formada por homens ou povos a esse respeito.

Em conseqüência, sendo Deus infinitamente sábio e bom, Ele não poderia ter editado uma Lei oposta à que nos deu no Monte Sinai. Deus pode tudo, menos o erro e o mal. Esta doutrina, como se  vê, está toda baseada na ideia do bem e do mal objetivos. O que se deve entender por isto?

A lei eterna

Como ensina a doutrina católica, Deus, Criador de todas as coisas, sendo infinitamente sábio, criou cada ser com uma natureza própria, dotada de atributos próprios, e com um modo de operar conforme a essa natureza. Operando de acordo com esta, todos os seres fazem a vontade de Deus. Essa vontade, presente na mente divina antes de todos os séculos, é chamada de lei eterna (Suma  Teol. I-II, q. 91, a. 1; q. 93). Dela decorrem todas as outras leis.

A lei eterna, entretanto, não existe só na mente de Deus. A partir da criação, passou ela a vigorar objetivamente para os seres criados, de modo tal que, desde o seu primeiro instante, todos eles  passaram a participar de algum modo na lei eterna, impressa neles pelo próprio Deus (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2). Contudo, as criaturas racionais participam de uma forma mais excelente.

A lei natural

O homem é capaz de conhecer, pelos recursos de sua inteligência, a vontade de Deus. Pode, assim, conhecer os seres, sua natureza, seu modo de operar, e de proceder em relação a si mesmo, ao  próximo e a cada ser de acordo com a respectiva natureza, segundo a vontade divina. Sua propensão em proceder dessa maneira é chamada de lei natural (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2; q. 94).

Como diz São Tomás, a lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna na criatura racional (nas criaturas irracionais essa participação se dá apenas por analogia).

A lei natural tem seu fundamento imediato, pois, na natureza humana, e seu último fundamento em Deus. Em outras palavras, a lei eterna e a lei natural não são senão a mesma vontade divina,  enquanto existente em Deus e enquanto gravada no coração das criaturas racionais.

A lei divina

Como o homem tem um fim último sobrenatural, para o qual deve ser dirigido de um modo superior, não limitado apenas aos preceitos da lei natural, era conveniente e necessário que Deus lhe  revelasse a lei divina, “pela qual a lei eterna é participada de acordo com esse modo superior” (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 4).

A lei divina se tornou também indispensável em virtude do pecado original, pois a inteligência humana ficou sujeita a erros, podendo levar o homem, por debilidade intelectual, a não ver bem este  ou aquele ditame da lei natural. Pior do que isso, a vontade humana passou a ser propensa ao mal, podendo facilmente induzir o homem a fechar os olhos ao conhecimento da mesma lei, e assim somar, a uma causa de erros intelectuais involuntários, outra de erros voluntários.

Estando o homem nessa profunda miséria moral, Deus veio em seu auxílio e, à lei divina em vigor na época primitiva, acrescentou os Mandamentos da Antiga Aliança, dando a Moisés, no alto do  monte Sinai, a tábuas da lei.

No Decálogo estão inscritos os princípios essenciais que contêm em si toda a lei natural (Suma Teol. I-II, q. 94, a. 4, ad. 1). Séculos depois, foi promulgada por Nosso Senhor e pelos Apóstolos a Nova Lei, que aperfeiçoou a Antiga; conservou o Decálogo e ab-rogou os preceitos relativos ao povo judeu antes da Redenção. Está ela contida na Sagrada Escritura e na Tradição.

Ordem e desordem

A ordem, como diz São Tomás, é a disposição das coisas segundo sua natureza e seu fim. O cumprimento da vontade de Deus é, portanto, a própria ordem. Pois Deus quer a disposição das coisas  segundo sua natureza e seu fim. E a desobediência à vontade de Deus é a desordem. O código da ordem é, como vimos, o Decálogo.

O bem de um ser é aquilo que lhe convém, que é conforme a sua natureza e o conduz a seu fim. O mal é o contrário (Suma Teol. I, q. 48, a. 1). Todas as criaturas não racionais movem-se conforme  sua natureza e seu fim, por assim dizer cegamente. Apenas o homem, dotado de inteligência e vontade livre, tem o poder de praticar o mal. Com isto, ele desrespeita a vontade de seu Criador, e  introduz a desordem na criação, isto é, em si e em torno de si.

O bem e o mal na sociedade humana

Em nossa época de estatismo exagerado, confia-se por demais no poder das leis e da administração para resolver os problemas humanos. Essa atitude provém do fato de não nos lembrarmos  suficientemente de que a matéria-prima da qual é feita a sociedade é o homem. Se a matéria prima for boa, tudo se pode esperar do efeito de boas leis. Mas se for má, as boas leis serão  radicalmente impotentes.

Com fios podres, o que pode fazer o mais hábil dos tecelões? Com cidadãos corrompidos, o que pode fazer o mais perfeito dos governantes? Se, em determinada sociedade, cada homem se portar  bem nos ambientes sociais a que pertence — família, profissão, etc — toda a sociedade andará bem. Se se portar mal, toda a sociedade andará mal. Daí a necessidade da Igreja que, corrigindo e  santificando os homens, é princípio vital para manter no bem a sociedade.

A Igreja, centro da História

Ora, se a Igreja é assim indispensável para o bem das sociedades, é também princípio vital das nações e dos Estados. Dai-nos — dizia Santo Agostinho — “um exército composto de soldados que  observem fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os juízes, e até os contribuintes e os cobradores de impostos, todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo, e veremos se [os filósofos anticatólicos] ainda ousarão dizer que essa doutrina é nociva ao Estado, ou se, pelo contrário, terão de reconhecer que é um valioso sustentáculo para o Estado” (Ep. 138 ad Marcellinum, 2, 15).

A Igreja é igualmente o princípio vital da civilização e da cultura. Qualquer que seja o sentido que se dê a essas palavras, as realidades por elas  designadas contêm em si uma noção de perfeição, razão pela qual a Igreja tem de ser, forçosamente, sua alma.

Em outros termos, a cultura e a civilização só são plenamente elas mesmas se forem católicas.

A contrario sensu, quanto mais uma civilização ou uma cultura vai perdendo seus valores católicos, tanto mais vai deixando de ser civilização e deixando de ser cultura.

De tudo isto se segue que a grande necessidade essencial dos povos, das culturas e das civilizações é serem católicos, e que o grande perigo para eles consiste em se afastarem da Igreja. Daí ser esta  o centro de gravidade em torno do qual giram todos os fatos históricos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 59 (Fevereiro de 2003)

Beato Angélico

O Beato Angélico, cuja festa é celebrada no dia 18 de fevereiro, soube transmitir às suas obras certas fulgurações que, na verdade, são manifestações da virtude da sabedoria, pela qual o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, mais do que os bens menores do existir humano.

Essa harmonia exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus. E quem a ama, ama o simbolizado por ela, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira

GRANDEZAS E PULCRITUDES DA DOR

O homem tem necessidade de tornar suportável a vida nesta Terra. Para adoçar suas agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos lícitos, entre os quais, a contemplação do que há de celeste e maravilhoso na obra da Civilização Cristã.

Acontece, porém, que um dos frutos excelentes engendrados pela Cristandade é, precisamente, a atitude que o católico deve tomar em face da dor.

Certa vez, nos meus tempos de aluno dos jesuítas, um professor de Religião nos propôs um problema muito interessante, abstraindo-se do aspecto prosaico que o envolve.

— Imaginem — dizia ele — que uma galinha fosse capaz de pensar, e que alguém se aproximasse dela e lhe dissesse: “Tu foste criada para servir de alimento ao homem. Daqui a pouco, seu dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se, então, que sentimento deveria ter a galinha: de horror, porque vai morrer? Ou de entusiasmo, porque o fim para o qual ela existe — alimentar o homem — vai se realizar?

O problema estava bem apresentado, e me impressionou de modo profundo.

Anos depois, procurando resolvê-lo à luz da doutrina católica, a solução me pareceu clara. Não se trata, é evidente, da galinha, mas do estado de espírito delineado pela figura metafórica que o professor nos pintou. A resposta que encontrei foi esta: a galinha sentiria necessariamente a dor horrorosa de sua própria imolação; porém, mais do que a dor, ela não poderia deixar de sentir a felicidade inerente ao fato de ter alcançado o seu fim último, a sua completa realização. E isto traz uma alegria muito superior à infelicidade do holocausto. Portanto, os dois sentimentos deveriam se juntar, de tal maneira que a galinha amasse o fato de chegar a seu fim, embora o fizesse com dor.

O mesmo se pode aplicar à vida humana. Neste mundo, a pessoa feliz não é a que vive muito, nem a que vive prazerosamente. É, na verdade, aquela que conduz a sua existência segundo o objetivo para o qual foi criada: amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento dos desígnios que Ele tem sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer desse senso de que a alegria elevada e serena da finalidade alcançada é a autêntica alegria da vida. Nela encontramos as forças para suportar os sofrimentos que a Providência permite em nosso caminho, e os recursos para compreender tudo quanto eles significam na consecução de nossa realização suprema.

Por isso mesmo, na época da Europa maravilhosa, nos áureos tempos da Civilização Cristã, encontramos a dor instalada no meio dos esplendores da vida, com toda a amplitude possível. Assim, a morte transformava-se numa grande solenidade, a respeito da qual a etiqueta tinha disposto todas as suas exigências.

Por exemplo, quando um arquiduque d’Áustria agonizava, no momento em que lhe seria ministrado o Santo Viático, todos os príncipes da Casa Imperial ali presentes entravam em procissão no quarto, e formavam uma corola de velas acesas em torno do Senhor Eucarístico e daquele que em breve partiria para a eternidade. No meio de toda essa magnificência, o moribundo recebia o Santíssimo Sacramento, era ungido com os santos óleos. Seu falecimento se dava em meio a esse aparato da morte realizado com as pompas da vida. Como suprema despedida, seu funeral era um requinte de gala.

Magnífica expressão desse enobrecimento da dor, dessa superior beleza de que se revestia o sofrimento, temos os garbosos e hieráticos gizantes medievais, os grandiosos monumentos fúnebres, as estátuas representando homens cobertos de véu e carregando imponentes caixões. Toda uma arte imensamente desenvolvida, para revestir de pulcritude o aspecto doloroso da vida.

Mais. O entusiasmo com que se esperava e se cantava, nas vésperas das batalhas, a agonia da luta. Nasceram as canções de gesta, nas quais cada golpe, cada “ai!” recebia a glorificação de um acento épico, de uma arrebatadora melodia. Nas salas de armas dos castelos, na noite que antecedia a partida para a frente de combate, os homens conversavam e sorriam. E nos bailes das festas de primavera, enquanto dançavam pelos salões dos palácios, aqueles nobres de cabeleira empoada, de sapatos de fivelas de prata e saltos escarlates sabiam que dali a poucas semanas estariam partindo para a guerra. Sabiam que muitos não retornariam, que várias daquelas senhoras estariam na viuvez, mães ficariam sem filhos, e os filhos, sem pais. Entretanto, dançavam… Eles encaravam a dor com serenidade e grandeza de alma.

Do mesmo modo eram respeitadas e postas em foco as mais variadas formas de sofrimento — inclusive o da maternidade ou o do esforço intelectual levado a bom termo —, porque bem se compreendia a noção de que esta Terra é um vale de lágrimas, segundo a linda expressão da Salve Rainha. Sorria-se para a dor por uma superior razão: “Vou realizar meu fim, aquilo para o que existo, e, por causa disso, apesar de todo sofrimento, estou alegre”.

Daí vêm, igualmente, o júbilo e a pompa com que a Igreja celebrava — e celebra — a entrada de alguém para a vida religiosa. É o ingresso numa existência de renúncias e provações. Mas, em se tratando de uma jovem, esta se veste de noiva, orna-se a capela de flores, toca-se o órgão, o coro canta, e tudo se passa como se fosse uma esplêndida festa de casamento. A razão disso: a moça está em vias de realizar a finalidade para a qual foi criada.

Em sua vida no claustro ela encontrará a dor, sem dúvida, porém a assumirá de “grand coeur”, com abundância de alma, sondando-a até o extremo, a exemplo do Divino Mestre que, diante da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto de comoção no qual, avantajando-se ao oceano de amargura interior, entrava uma imensa felicidade: era seu supremo objetivo, a Cruz para a qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.