A procura do absoluto e o perfeito convívio – I

A perfeição do relacionamento humano está profundamente condicionada à capacidade que as almas tenham de transcender à fruição meramente material e elevar-se a uma esfera metafísica e sobrenatural.

 

O maravilhoso na ordem temporal tem como desfecho a tendência para o Céu empíreo.

Deleitar-se com os bens temporais à procura do absoluto é um ato de natureza espiritual

Normalmente, para o comum dos homens — não para um com vocação especial —, o maravilhoso, o religioso, não podem ser vistos a não ser numa orientação análoga com o temporal. Portanto, o grande comprazimento com a coisa temporal não se confunde com o ato de volúpia, mas é um ato de natureza espiritual quando se procura nele o absoluto. Toda a teoria da procura do absoluto em função das coisas temporais é o que leva ao Céu empíreo. Porque no Céu empíreo a coisa sensível é dada ao homem para ajudar a sua integração na visão beatífica.

Em mim, a problemática metafísica foi modelada pela influência da Fräulein Mathilde, porque um mundo de coisas da mentalidade, da educação das crianças alemãs é embebido da ideia de que certas coisas têm valor metafísico. Mas não vão mais adiante e não relacionam este valor metafísico com Deus.

Então, por mil aspectos, minha alma aderia muito a isso. E eu percebia que a procura do absoluto me conduzia à Igreja, me completava como católico e, portanto, eu deveria estimulá-la. Porque dia viria em que as coisas se conectariam. Eu notava a dissonância entre a posição que eu tomava e a de outras pessoas, e percebia com todas as luzes que a atitude delas não podia ser a católica.

Do lado brasileiro, ajudou-me nisto também a vida tranquila e, até certo ponto, regalada existente na São Paulo de meu tempo, onde uma série de deleites era concebida ainda dentro da ordem tradicional, e eu percebia que esses prazeres tinham uma coerência com os princípios católicos e, portanto, a questão não consistia em largar esses deleites retos, mas em ensinar as pessoas a conservá-los.

Um exemplo característico tão frisante, quase infantil: a árvore de Natal. Uma criança muito virtuosa diante de uma árvore de Natal tinha dois caminhos: por penitência, comer coisas de que não gosta e torturar o seu Natal, ou, por outro lado, gozar o seu Natal. Ora, embora compreenda em tese que, a uma alma chamada de modo muito especial, Deus possa exigir o sacrifício do Natal, para mim, teria dado uma asfixia do outro mundo!

O gáudio reto, santo, inocente do Natal me enchia de amor a Deus. E também com uma série de outras coisas, por exemplo, a vida um tanto cerimoniosa que se levava no meu ambiente. Isso dava propriamente em uma vida com bons regalos. Essa teoria do regalo santificante não poderia deixar de desfechar numa teoria do Céu empíreo. Donde durante décadas eu insistir, de um ou de outro modo, sobre o regalo bom santificante. Em certo momento, caiu-me nas mãos esse material sobre o Céu empíreo, do Cornélio a Lápide(1).

Duas escolas espirituais diante dos deleites legítimos

Segundo certa escola espiritual, uma pessoa virtuosa, na hora de colher morangos nos bosques, diria: “Ó, fujamos disto! Não vos esqueçais de que hoje é sexta-feira e Nosso Senhor padeceu por nós.” É uma consideração muito santa, muito direita para certo filão de almas. Para outro filão: “Vá pegar morango no bosque, passe pela capela, pela paróquia que está aberta, faça uma Via-Sacra, porque é sexta-feira, Nosso Senhor morreu nesse dia”. Está muito bem.

Eu estou vendo que uma pessoa poderia me dizer desde logo: “Ofereça esse pequeno sacrifício e renuncie a esse regalo, porque isto é grato a Deus”. Eu digo: Desde logo ponho em dúvida o que você diz. Há certos casos em que é, há certos casos em que não é.

Certa vez, uma pessoa me disse: “Você quer passar um dia de virtude? Faça o seguinte: o tempo inteiro quando você quiser esticar as pernas, você cruze; quando quiser cruzá-las, faça o contrário, e assim por diante, o contrário do que você quer. Você à noite terá uma tonelada de méritos”.

Pensei comigo: “Eu não vou desencorajar essa boa alma, mas tenho um abismo de mal-estar e de perplexidade com isso”.

Alternativa em face da fruição e o risco de abandonar a “transesfera”

Quando a pessoa está na fase anterior às provas, o deleite é quase sempre santificante. Entretanto, há um determinado momento na evolução de uma pessoa em que o deleite da coisa pela coisa se diferencia saudavelmente do deleite por causa daquilo que ela significa. Então, por exemplo, o deleite físico de mexer com esta pedra, que adorna minha mesa, e o deleite espiritual de contemplar as ranhuras que há nela diferenciam-se um do outro, mais ou menos como de dentro da haste de uma flor se diferenciam as pétalas.

E, em consequência, começa a aparecer um apego a isto, que já não é concomitante com o deleite espiritual, mas é autônomo. E que nasce de uma profundeza da alma, como o deleite espiritual nasce também.

Vamos dizer, banho de mar. Ele pode dar toda espécie de deleites físicos e espirituais ao mesmo tempo. Mas há um momento em que o deleite puramente físico do banho de mar, da respiração cutânea, enfim, do movimento, da aventura nas ondas, do “pulchrum” do mar se apresentam já eles mesmos diferenciados daquilo que seria o trans-esférico(2), que a atenção ora vai para uma coisa, ora vai para outra. Quando isto se dá, o amor pelo trans-esférico começa a ser provado, porque a alma não pode prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo. Ela não pode pensar como seria o mar trans-esférico e fruir com toda a alma daquele mar concreto. E a provação começa.

Dá-se uma espécie de alternativa onde ainda não entra diretamente, muito de imediato, a tentação para o mal, mas ela está a um milímetro daí. A pessoa pode ser mais arrastada pela fruição do mar, enquanto mar sensível, do que pelo mar trans-esférico, pelo simples fato de que essa fruição do mar sensível tem qualquer coisa de absoluto, de imperativo, de arrebatador, que é uma coisa tremenda. E com isso ela é colocada diante de uma opção: “Qual das duas é melhor?”

Para a maior parte das pessoas, essa escolha se passa nos lindes da semiconsciência: a pessoa vê bem pela inteligência que um é mais nobre, que corresponde mais à sua estatura inteira, que o outro apresenta uma fruição da parte. De um modo mais ou menos implícito, é positivo que vê.

A alma pode começar a optar por um dos dois polos e, portanto, entrar pelo caminho de Esaú ou de Jacó. Quando a alma está nesse estado, a parte fruitiva baixa começa a se deformar, e constituem-se ansiedades, apegos, tormentos, reações próprias do pavor de perder aquele prazer. E o metafísico começa a empalidecer porque não concorre em nada, ou em muito pouco; aquela fruição lota o horizonte. Aí entra uma espécie de opção que vai pela vida afora.

Se uma pessoa, diante dessa fruição, disser: “Eu não te quero assim, vou te conter, limitar-te, reduzir-te à devida proporção e, se for o caso, eu te elimino, porque não quero ser infiel”. Então há um sacrifício que vale muito mais do que o amor inocente não sacrificado dos primeiros anos. Entra a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, se a pessoa tiver uma fruição desvinculada disso, ela erra completamente.

Do amor a uma ordem superior nasce o perfeito relacionamento entre os homens

Esses problemas da vida relacionam-se cronologicamente segundo uma maturação prevista pela Providência: na criança, com o amor primeiro não provado, ela não tem dificuldades de relacionamento com os seus, e aquilo é manso, “mar azul”. A mãe, o pai, os irmãos, a parentela toda, aquilo tudo é uma maravilha. Depois começam a aparecer as diferenças e as decepções, como também os atos de justiça em relação a esses e àqueles, e o mundo familiar vai se rasgando.

Há rasgões externos como internos, apresentam-se os deveres que a pessoa segue ou não, juntamente com várias provações simultâneas, e a puberdade, cedo ou tarde, irrompe dentro disto e a pessoa vai entrando na batalha.

Se imaginarmos almas numa posição inteiramente reta a respeito deste assunto, as relações entre elas serão fundamentalmente diferentes. Porque essas almas amam principalmente a ordem trans-esférica, mística, sobrenatural para a qual elas vivem, e por causa disso o relacionamento com outras almas análogas em função desta ordem é reputado por elas um bem mais precioso do que o trato baseado em outros valores.

Tomemos como exemplo dois bons irmãos que se estimam, se prezam e têm relações de alma completamente corretas neste ponto. Aparece entre eles uma questão de divisão de uma herança paterna. Ela se faz amistosamente, sem nenhuma dificuldade, porque, por esta sua retidão neste patamar superior, eles são parecidos e, portanto, têm facilidade de se entender e fazer a justa divisão. Mas também porque se um notar uma pequena fraqueza ou um pequeno apego que possa prejudicar o superior relacionamento entre ambos, o irmão bom facilmente desiste da vantagem material para conservar um convívio mais elevado.

O episódio bíblico ocorrido com Abrão e Ló é característico. Abrão diz: “Aqui estão as terras, pega a parte que tu queres, eu fico com a outra”(3). Esta é a atitude de uma pessoa que preza o relacionamento bom, muito mais do que a terra.

Mas se a pessoa cedeu ao desejo do bem material, inferior, da fruição não metafísica, não religiosa, facilmente entra em briga. Porque quando não apreciam aquele bom relacionamento e o viverem juntos para uma esfera mais alta, dividem-se miseravelmente a respeito de ninharias. Seriam capazes até de fazer o seguinte: “Tal ponto não fica nem teu nem meu. Construamos ali um altar, um templo, mas teu não fica!”

Os vínculos na Cristandade medieval eram baseados no amor ao transcendente

Assim, todas as relações humanas de ordem política, social, familiar, econômica são completamente diferentes num mundo onde haja esta boa ordenação. Do ponto de vista humano, formas de governo, estruturas, leis, simplesmente não pegam, na medida em que esse relacionamento superior não exista.

A lealdade, por exemplo, provém propriamente do fato de alguém ter verazmente em relação a outrem essa disposição de alma. Tê-la e saber torná-la notória, isto é a lealdade que permite funcionarem direito vínculos como os da sociedade feudal.

O ponto de partida está em que as almas não sejam apegadas às coisas de modo fruitivo e amem o transcendente.

Esse amor ao transcendente, a Cristandade medieval conheceu a fundo, embora não soubesse explicar. Todos os vínculos da ordem social eram vínculos de amor baseados nesse vínculo das almas pelo lado superior.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1982)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Relativo a “transesfera”: termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

3) Cf. Gn 13, 8-9.

Santidade e personalidade – I

A Doutrina Católica visa que cada homem aprimore sua personalidade, caminhando rumo à santidade. Assim são criadas as condições para a constituição de uma civilização perfeita.

Todos ouviram falar vagamente, com certeza, do panteísmo, e da diferença entre este e o ateísmo. E depois, sobre a crença em Deus.

Noção de pessoa

De acordo com o ensinamento da Igreja infalível, existe um só Deus em três Pessoas realmente distintas. Mas esse Deus é pessoal. O que é uma pessoa? Chama-se “pessoa” um ser que pensa a respeito de si mesmo e forma, portanto, um circuito fechado. Um bicho, uma planta, uma pedra não são pessoas, e sim indivíduos. Por quê? Porque eles não pensam, não têm consciência de que existem, de um mundo interno e de um mundo externo. Nós, pelo contrário, temos essa consciência, e por causa disso somos pessoas.

Deus é Pessoa porque Ele tem consciência de Si próprio, daquilo que Ele criou. E de tal maneira é Pessoa que, na sua unidade — porque é um só Deus —, há três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O que constitui o mistério da Santíssima Trindade.

Tendo criado o universo, o qual, sendo necessariamente um reflexo d’Ele, Deus quereria refletir no universo o fato de que Ele é Pessoa. E, portanto, haveria de criar o universo constituído por pessoas; e por isso, criou os anjos e os homens, que são os elementos essenciais do universo. Os animais, as plantas e os minerais estão a serviço do homem, e são para o universo mais ou menos como a franja é para o tapete. Ninguém iria pôr em casa um tapete só feito de franja. Não seria tapete. Pelo contrário, há tapetes muito finos que não têm franja. A franja do tapete é uma coisa que faz parte dele, mas não é de nenhum modo a sua essência.

Assim também os animais, as plantas e os minerais são como as franjas do universo. Deus criou o universo para as pessoas, que são os anjos e os homens. E é em cada uma dessas pessoas que Deus encontra a sua imagem.

Com essa noção, compreende-se fazer parte da Doutrina Católica que cada pessoa se personifique cada vez mais. Quer dizer, Deus criou cada um de nós com determinadas características, as quais são agrupadas em torno daquilo que nós chamamos a “luz primordial”. Se a pessoa corresponde à graça, de fato se santifica, a sua personalidade toma um realce extraordinário, e tudo quanto ela tem de bom e característico fica ultra-característico. Tudo o que ela possui de mau é posto de lado.

Deus é eminentemente personificante

Em qualquer santo isso é ultra-característico. Todos são muito parecidos entre si, mas ao mesmo tempo enormemente diversos uns dos outros. O que São Paulo prefigurou de modo magnífico, dizendo: “Stella differt stella”(1).

Olhem para o céu onde há uma porção de estrelas. Uma criança diria que são iguais. Mas na realidade nestas miríades de estrelas não há nenhuma igual à outra. Assim são os homens.

Mais ainda, todos os homens que houve, há e haverá no plano de Deus formam uma coleção. E essa coleção deve de algum modo, no seu conjunto, espelhar o que o Criador é no seu conjunto. Quer dizer, assim como Deus é imenso, infinito, e tem todas as qualidades possíveis, isto se reproduz no conjunto dos homens. Cada um com sua tônica, tomando essas tônicas no conjunto se obtém uma espécie de mapa de Deus, de conjunto constituído por Deus. De maneira que nós não temos consciência, mas somos peças de uma coleção; peças super-individuais, peças pessoais de uma coleção, e cada um de nós, se corresponder à sua luz primordial, é de um jeito que faz parte da coleção de Deus. E para que esta tenha toda beleza, todo colorido, todo vigor, é necessário que cada uma dessas peças possua toda a sua personalidade. Deus é eminentemente personificante. Quer dizer, Ele dá à pessoa a sua personalidade. Por quê? Porque Ele é Pessoa.

Um extremo oposto disso é o panteísmo. O panteísmo sustenta que há um deus, mas esse deus não é pessoa, é um ente sem pensamento, sem conhecimento de si próprio; que vive, portanto, no eterno sono do bicho, da planta e da pedra. Quer dizer, não conhece nem entende nada, e que todos os seres que existem saíram desse deus, como moléculas saem de um determinado corpo.

A Doutrina Católica ensina o contrário: nós não saímos de Deus; fomos criados por Deus.

Mas, para o panteísmo, ser uma pessoa é uma desgraça; porque para ser uma pessoa é preciso sofrer, e sofrer é uma desgraça. Então, a finalidade da religião é que a pessoa vá se preparando para, morrendo, desaparecer, fundir-se de novo nesse ser sem raciocínio, sem consistência pessoal, que é deus.

Assim, dizem os panteístas, deus é a natureza. O que querem dizer com isto? Que deus é uma força a qual está presente em tudo, e que não tem consciência de si. Se quiserem, deus é a vida. A vida está nos presentes neste auditório, está em mim, nos bichos, nas plantas. A vida não tem consciência de si, nem é uma só vida. O panteísmo apresenta isso como um só fluido presente em todo mundo. Este fluido, esta vida, tem como objetivo despersonificar, liquidar as pessoas, para elas se prepararem a sumir quando elas morrerem. Desaparecerem dentro deste grande conjunto sem pensamento que é chamado “deus”.

Civilização cristã e cortesia

Daí decorre uma ideia da civilização católica, e outra ideia da civilização pagã, panteísta. Para a civilização católica trata-se de, nessa vida, a pessoa se personificar cada vez mais e depois adorar, no Céu, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Para o panteísta trata-se de diluir a personalidade.

A civilização católica faz da vida, sobretudo, uma relação de pessoa para pessoa, e concebe a formação de maneira que cada pessoa é ela mesma e depois respeite a personalidade do outro, sinta as afinidades e as diferenças. Tenha cortesia.

O que é a cortesia? É a perfeita afinidade de pessoas distintas umas das outras. Há então um abismo que separa uma pessoa da outra. Eu sou eu, sou um circuito fechado em mim. Cada um dos que aqui se encontram é um circuito fechado em si. De outro lado, nós temos relações, porque somos todos homens.

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima deste abismo existente de homem para homem. A força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o laço cheio de respeito, de distinção, de afeto que prende as pessoas diferentes e as coloca numa relação, como notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma música estão em estado de cortesia umas com as outras.

Imaginem uma pessoa irrefletida que, por exemplo, passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia sobre o piano para não cair; sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Por quê? É que não há harmonia.

A cortesia é a musicalidade das relações humanas. Mas nessa musicalidade cada homem constitui sua personalidade apoiado pelo outro, e todos crescem, todos brilham, cada um com a luz de sua personalidade própria.

Daí partem inúmeras consequências. Uma delas é que, na civilização medieval, a lei tomava em linha de conta direitos e deveres, o que a lei contemporânea não toma mais em consideração.

Por exemplo, o dever entre benfeitor e beneficiado é de gratidão. Na lei de hoje quase não há resquícios desse dever. Na lei da Idade Média o dever de gratidão era enorme. Daí nasceu o feudalismo, que é uma concatenação de gratidões. O rei dava terras a um suserano, que ficava vassalo do rei. O suserano concedia terras ao nobre menor, o qual se tornava vassalo desse suserano. Esse nobre menor dava terras a um plebeu, que ficava vassalo desse nobre menor. Cada um que deu ficava obrigado à proteção daquele que tinha recebido, para tudo. E cada um que recebeu ficava obrigado a obedecer e a apoiar aquele que tinha sido seu benfeitor. E esta era a concatenação das relações pessoais.

O nobre e o burguês, na Idade Média e no “Ancien Régime”

Na Idade Média, os direitos eram mais sobre as pessoas do que sobre as coisas. Havia direito sobre as coisas também, mas o direito sobre as pessoas se considerava muito mais do que o direito sobre as coisas.

Querem ver um exemplo curioso disso? Na Idade Média o que era mais: um riquíssimo burguês, ou um nobre, senhor de um castelinho com uma aldeia? Era o nobre. Mas o burguês não era muito mais rico, mais poderoso? A resposta que um medieval daria era é a seguinte: “Não vem ao caso. O nobre governa pessoas; o burguês governa matéria, governa ouro. É muito mais governar homens do que ouro. De maneira que é uma riqueza metafísica maior ser senhor de uma pequena aldeia do que dono de uma grande fortuna”.

Não sei se percebem o respeito ao homem que entra dentro disso. E por essa razão se, por exemplo, entrasse numa cidade um senhor feudal num cavalinho rapado, vestido ele mesmo meio apertadamente, porque suas terras produziam pouco, com um escudeiro que ia a pé, porque não tinha cavalo; o senhor portando uma espada com o forro meio gasto, e um chapéu com uma pluma que já tomou muita chuva…

Passando ele diante de um burguês, médio, vestido de veludo, usando um chapéu magnífico com pedras preciosas, e não uma pluma, mas uma cauda de pássaro no chapéu, o burguês se descobria, dando um passo à frente, e o nobre correspondia amavelmente, mas de cima.

Alguém diria: “Incompreensível, orgulho”. Não. É o contrário. O nobre afirmava aí o maior valor dos seus vassalos, porque eram homens, sobre o ouro do burguês. Isto não se encontra em nenhum manual de História, mas é o modo do medieval conceber as relações.

Terminada a Idade Média, o feudalismo foi acabando, mas muitos restos dele ficaram na sociedade do “Ancien Régime”(2). A sociedade se transformou, mas isso ainda existia.

Considerem, por exemplo, um nobre do “Ancien Régime” e um burguês riquíssimo. Por que aquele era nobre? Porque ele era de uma classe social que tinha obrigação de ir à guerra e derramar o sangue pelo rei. Enquanto o burguês não podia ser convocado para o serviço militar; fazia serviço militar se quisesse.

O nobre tinha essa excelência de alma de aceitar ser da classe que é obrigada a ir morrer pela pátria, ainda que não quisesse — quer dizer, era crime não ir. Como a dedicação vale mais do que o ouro, porque a dedicação é uma qualidade do homem, e o homem vale mais do que o metal, por causa disso o nobre valia mais do que o plebeu. Não sei se estão percebendo a ação contínua da pessoa humana.

“E se um plebeu ou um burguês quisesse ir para a guerra?” Ah! Se fosse para a guerra e se tornasse um herói era frequentemente elevado ao cargo, à condição de nobre. Mas aí ele se engajava num outro circuito. Acabou a vida cômoda, terminaram os verões despreocupados e com passeio, acabou a agradável contagem do dinheiro por detrás dos guichês da loja. Porque, habitualmente, chegando a primavera e o verão, começava a guerra e os nobres todos tinham que partir. Se o plebeu ficasse nobre, ele tinha que ir para a guerra também.

Compreende-se que o número de candidatos para nobre era bem menor, do que se podia imaginar à primeira vista.

Como se explica isto? É a prevalência do homem sobre a matéria, das qualidades humanas sobre as qualidades materiais.

O burguês tinha uma vida muito mais confortável do que o nobre. Tomem gravuras daquele tempo, representando o interior das casas burguesas: são residências agradáveis, aconchegadas, confortáveis, com tudo abundante, etc., feitas para as pessoas se regalarem.

Observem as gravuras representando os palácios: são lindos, de alto luxo, não são cômodos. Basta ver os móveis que restaram. Se um indivíduo sentar-se irrefletidamente numa daquelas cadeiras, ele cai com a cadeira. Aqueles móveis exigem que a pessoa esteja continuamente numa atitude de grande dignidade, de grande distinção. Aquele modo de falar todo trabalhado exige uma atenção contínua na língua que se usa, nas fórmulas de cortesia, nas etiquetas, para estar à altura da situação. Que cultura era preciso ter para sustentar aquelas grandes conversas…

Para considerar simplesmente isto: como entrava uma jovem nobre em sociedade? 

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

1) Do latim: Há diferença de estrela para estrela (1Cor 15,41).

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A mais fulgurante das estrelas

Por que Nossa Senhora é simbolizada por uma estrela? Porque é durante a noite que cintilam as estrelas, e esta vida é para o católico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação, de perigo e de apreensões.

Na eternidade teremos o dia, porém na vida terrena temos o escuro da madrugada. E nesta noite existe uma estrela que nos guia, que é a consolação de quem caminha nas trevas, olhando para o céu: Maria Santíssima, a mais fulgurante de todas as estrelas!

Plinio Corrêa de Oliveira, 24/8/1965

Uma devoção da cristandade…

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu numa sexta-feira e ressuscitou num domingo. Ambos os dias foram-Lhe especialmente consagrados, de modo que, semanalmente, relembram a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Porém, entre estes dias há outro: o sábado. Como faria a civilização cristã para solenizar este dia posto entre duas datas tão sublimes?

 

Na Idade Média, sob o impulso dos monges cluniacenses, o sábado passou a ser consagrado a Nossa Senhora. Mas, por que razão a piedade católica instituiu esse costume?

A Ressurreição

Embora os Apóstolos tivessem um misterioso instinto de que a história de Nosso Senhor não podia estar concluída e que a última palavra ainda não fora dita — caso contrário haveriam se dispersado —, eles ainda não tinham atinado com a ideia da Ressurreição.

Não concebiam eles que Quem ressuscitara Lázaro — fato que eles puderam comprovar —, ressuscitar-se-ia a Si próprio; não imaginavam que Nosso Senhor aceitaria o desafio lançado pelo mau ladrão crucificado a seu lado: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo!”(1). Cristo fez muito mais do que descer da Cruz e curar-se a Si próprio: Ele consentiu em morrer para depois ressuscitar-Se.

De fato, a Ressurreição é algo tão extraordinário e miraculoso, que o espírito humano é propenso a sequer imaginá-la. Pois, se um vivo ressuscitar um morto é incomum, quanto mais o é um morto voltar à vida por suas próprias forças, sair dos abismos da morte e dizer a seu corpo: “Levanta-te!”… Esta é uma espécie de vitória dentro da vitória, de esplendor dentro do esplendor, que o espírito humano não pode sequer imaginar.

A Fé da Santíssima Virgem sustentou o mundo

Porém, havia alguém que possuía plena certeza na Ressurreição de Jesus: Maria!

No sábado que precedeu a Ressurreição de Nosso Senhor, somente Nossa Senhora, em toda a face da Terra, teve uma Fé completa e sem sombra de dúvida na Ressurreição. Ela possuía uma certeza absoluta, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado que havia sido cometido, mas imensamente calma, com a certeza da vitória que se aproximava.

A cada minuto que passava, de algum modo a espada da saudade e da dor penetrava ainda mais seu Coração Imaculado. Mas, de outro lado, havia a certeza de uma grande alegria da vitória que se aproximava. Esta concepção inundava-A de consolação e gáudio.

Maria Santíssima, nesta ocasião, representou a Fé da Santa Igreja e, por assim dizer, sustentou o mundo, dando continuidade às promessas evangélicas, pois, se não houvesse Fé sobre a face da Terra, a Providência teria encerrado a História.

Maria foi a Arca da Esperança dos séculos futuros. Ela teve em Si, como numa semente, toda a grandeza que a Igreja haveria de desenvolver ao longo dos séculos, todas as promessas do Antigo Testamento e todas as realizações do Novo; tudo isto viveu dentro da alma de Nossa Senhora.

Podemos até nos perguntar se este episódio não foi mais bonito do que quando a Santíssima Virgem trazia o Messias em seu seio. Numa ocasião Ela gestava o Messias e carregava dentro de Si a salvação do mundo inteiro; noutra, tinha Ela em Si a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, portanto, o Corpo Místico de Cristo.

É à noite que é belo acreditar na luz

Na obra Chanteclair, de Edmond Rostand, há uma linda frase: “É à noite que é belo acreditar na luz”.

Que mérito há em acreditar na luz ao meio-dia? Mas, acreditar na luz à meia-noite, ou mais ainda, às três horas da manhã, quando até a própria meia-noite já vai longe, tem-se a impressão de que o curso das coisas nos afundou nas trevas definitivamente; aí é que é belo acreditar na luz.

Ora, Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível meia-noite da morte de seu Filho. Apesar de presenciá-Lo “rompu, brisé, anéanti”(2), Ela não teve dúvida nenhuma.

Quando Jesus morreu e Nossa Senhora teve seu divino cadáver no colo, Ela fez um tranquilíssimo ato de Fé, dizendo: “Apesar destas chagas e desta morte estraçalhante, Ele ressuscitará! Eu creio porque Ele prometeu!”

Este foi, sem dúvida, um dos mais belos momentos da vida d’Ela.

A fidelidade de Maria fez-Lhe merecer, até o fim do mundo, ser lembrada especialmente aos sábados

Compreende-se assim, com que tato a Igreja escolheu para festejar Nossa Senhora este dia que lembra exatamente a hora trágica da dúvida e do abandono de todos.

No sábado, Jesus estava na sepultura, cheio de perfumes e de aromas, envolto no sudário. O sepulcro estava selado por uma enorme lápide e guardado por soldados. Para todos estava tudo acabado, exceto na alma d’Ela, onde uma tocha de Fé e de convicção ardia com a certeza de que Ele ressuscitaria.

Este é o Sábado Santo, dia especialmente consagrado a Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

 

1) Lc. 23, 39.
2) Roto, quebrado e aniquilado.

O poder das lágrimas de Maria

No momento de Jesus ser retirado da Cruz para ser depositado, como sobre um altar, nos joelhos virginais e santíssimos de sua Mãe, Nossa Senhora olhava para Ele e chorava amargamente.

As lágrimas de Maria Santíssima, vertidas tão abundantemente quanto o sangue por Ele derramado, operaram algo extraordinário: para que os efeitos da Redenção santíssima se aplicassem plenamente a nós, essas lágrimas mereceram o que nós não mereceríamos, aquilo que os nossos pecados rejeitaram afastando de nós o Sangue de Cristo.

Pelas lágrimas de Maria, intercessora onipotente junto a Deus, a misericórdia exalada pelo Sangue de Cristo mais uma vez desceu até nós, nos resgatou, nos deu forças e nos incitou à luta.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/4/1990)

A Quarta-Feira de Cinzas em seu nascedouro

Dentre as inúmeras luzes irradiadas pela Santa Igreja sobre a Civilização Cristã, encontra-se uma de inigualável valor: a Liturgia católica! Esta, quando vista em função do contexto no qual surgiu, apresenta brilhos e encantos próprios.

Analisando a gênese da Quarta-Feira de Cinzas, Dr. Plinio  aponta-nos o verdadeiro estado de espírito com que devemos  ingressar na Quaresma.

 

Para bem se compreender a intenção da Igreja ao instituir o cerimonial da Quarta‑Feira de Cinzas, é necessário considerar suas origens, bem como sua repercussão na época em que foi estabelecido.

Portanto, é necessário voltarmos nossa atenção a um longínquo passado, visto que essa prática litúrgica — à semelhança de como quase todas as outras — se constituiu, provavelmente, de modo definitivo na Idade Média. Algo ainda se acrescentou nos primeiros séculos dos tempos modernos, e depois disso quase nada foi acrescido.

A Igreja, centro da vida social

Como eram constituídas as cidades no tempo em que essa prática litúrgica surgiu?

Por aquilo que delas restou, ou pelo que ficou retratado nas iluminuras, vê-se que as cidades medievais eram pequeninas, com ruas estreitas a fim de caber dentro de muralhas, as quais eram necessariamente circunscritas, pois que serviam para defender os habitantes de ataques inimigos.

Por isso, as casas eram muito próximas umas das outras; o andar superior se projetava mais para a frente de modo a ficar sobre a rua, a ponto de, estando à janela de uma dessas casas, ao estender o braço, poder-se tocar na casa que estava adiante.

No centro desse emaranhado orgânico de edifícios erguia-se uma torre: o campanário da igreja. Mais próximo à igreja havia, às vezes, uma ou mais abadias ou conventos, em torno dos quais se agrupava a população. Deste modo, tudo quanto se passava na igreja constituía o centro da vida social.

Os pecadores ante a sociedade

Ora, o que se passava na igreja, na quarta-feira que marcava o início da Quaresma?

As pessoas que haviam se tornado claramente pecadores — tendo, por exemplo, matado alguém sem disso ter se arrependido e confessado, portanto, vivendo afastadas dos sacramentos; ou então blasfemado publicamente contra Deus e contra a Igreja, e apesar de repreendidas persistiram em sua obstinação; e até mesmo aquelas que notoriamente se tinham afastado da Igreja, deixando de comparecer à Missa e frequentar os sacramentos — eram chamadas pecadores públicos.

Como eram vistos pela sociedade estes pecadores?

O conceito do homem medieval a respeito deste tipo de gente era o seguinte: “Eles são pecadores, miseráveis e, por isso, altamente censuráveis, deles devemos viver afastados, pois o homem reto não convive com o pecador, e quando tem que tratar com um deles, o faz com distância e frieza, pois, até que se arrependa e faça penitência por seu pecado, sendo inimigo de Deus ele é também inimigo do gênero humano!”

Apesar disso, a centralidade da Igreja na sociedade medieval era tal que até mesmo esses pecadores compareciam à igreja por ocasião da Quarta-Feira de Cinzas, mesmo porque a maior parte deles sabia que estava no mau caminho e pesava-lhes viver naquele estado, apesar de não querer abandoná-lo.

Além desses pecadores, nesta ocasião havia outros que se denunciavam como tais. Às vezes, eram homens tidos como muito virtuosos, mas que nessas cerimônias apareciam entre os pecadores públicos, acusando‑se de algum pecado. E, por terem sido objeto de uma honraria e consideração à qual não tinham direito, estando arrependidos queriam receber o desprezo que mereciam.

Ademais, a estes se somavam muitos que, por terem cometido pecados que não eram públicos, mas se julgavam pecadores, juntavam-se àqueles para fazer penitência e assim reparar suas faltas.

Aproximai-vos de onde o perdão vos vem

Assim, quando os sinos começavam a tocar, as pessoas iam saindo de suas casas, e no grupo dos inocentes ou dos pecadores se dirigiam para a igreja. Imaginemos o estado de espírito desses homens pecadores, andando pela rua, ao lado da população inocente, vendo de longe a fachada imponente da igreja, adornada de santos e de anjos, tendo no centro uma imagem do Crucificado, ou de Nosso Senhor Jesus Cristo abençoando, ou então a imagem da Virgem das Virgens, concebida sem pecado original.

Ouvindo ainda o bimbalhar dos sinos, chegam diante da fachada da igreja que se ergue imponente, aparentando severidade, entretanto tão acolhedora que parece dizer: “Vinde, filhos! Vós pecastes, mas aproximai-vos de onde o perdão vos vem, confessai‑vos e arrependei‑vos”.

Entravam todos e, transcorrida a cerimônia, os pecadores se retiravam para um determinado lugar onde iriam fazer penitência.

Contudo, isto só tinha verdadeira autenticidade porque o homem na Idade Média possuía uma profunda noção da gravidade do pecado.

Alguém que não se toma a sério a si próprio

Como manter firme esta noção que inúmeras circunstâncias procuram desbotar em nós?

Para compreendermos isso, vou levantar uma pergunta um tanto estranha. O que meus ouvintes pensam de um homem, do qual se afirmasse o seguinte: “Você é um tipo leviano, que não se toma a sério a si próprio”. A resposta normal a tal injúria poderia ser uma bofetada! Pois, um homem que não se toma a sério a si próprio não vale nada; é próprio do homem tomar‑se a sério, e este é o primeiro passo para ele ser alguma coisa.

Ora, quanto mais descabida, para não dizer blásfema, a seguinte pergunta: Será que Deus se toma a sério a Si próprio?

Evidentemente, Deus Se toma infinitamente a sério, assim como Se ama infinitamente a Si próprio. Donde deflui que, tendo Ele apontado que determinadas atitudes constituem pecado, de tal forma que os homens que as praticam rompem com Deus e tornam-se seus inimigos, isto é tomado realmente a sério por Deus.

Tomando-Se a sério, Deus não diz algo que não produz efeito, não proclama uma inimizade que não é autêntica. Do contrário seria o caso de se perguntar se Deus existe.

A seriedade de tudo diante de Deus

Com esta seriedade, que participa de sua infinita sabedoria e santidade, Deus vê as ações dos homens.

Tudo é imensamente sério diante de Deus. O pecado, portanto, é profundamente sério, execrável e gravíssimo! Quem o comete rompe com Deus, pondo-se na mais miserável das situações.

Por mais rico que alguém possa ser, ao pecar torna-se o mais desafortunado dos homens, pois tendo tudo o que a Terra pode oferecer, não pode merecer o Céu. O pecador deve saber que é ainda pior o fato de ele estar na contingência de, a qualquer momento, advir-lhe a punição divina, seja com penas nesta vida, através de inúmeras e inopinadas desgraças que podem desabar sucessivamente sobre ele, ou então com a pior das punições, que é a do inferno, às quais nada nesta Terra serve como termo de comparação: as trevas eternas, onde o fogo queima e não ilumina, onde os piores tormentos atazanam continuamente os homens, os quais compreendem não haver para eles mais remédio.

O pecador tem a noção viva do mal que fez contra Deus e que não deveria ter feito, por ser Ele infinitamente Santo, Bom e Verdadeiro. Sabe igualmente que é pela infinita Justiça divina que aquela tremenda cólera desaba sobre os pecadores.

Esta noção os pecadores na Idade Média a tinham, e por isso iam à igreja pedir perdão e fazer penitência.

Sentir a gravidade do pecado

O que são essa penitência e esse perdão?

Em primeiro lugar, o pecador deve reconhecer todo o mal que fez. Para isso a Igreja incita-o a recitar os salmos penitenciais, os quais, de modo magnífico, estimulam o sentir da enorme gravidade e malícia do pecado. Através dos salmos penitenciais nota-se que sendo Deus tão insondavelmente bom, Ele cria o homem com a glória do estado de prova para assim poder adquirir méritos.

Contudo, tendo o homem pecado — ao invés de exterminá-lo de imediato conforme a ofensa mereceria —, Deus “cochicha” no ouvido do homem aquilo que o homem deve considerar a fim de medir a gravidade do mal cometido, além de ensiná-lo como pedir perdão, tal como um juiz que recebe o réu com uma majestade indizível, com aparatos de força e severidade tremendos, mas ao mesmo tempo manda alguém entregar ao réu um bilhete que diz: “Se rogares ao juiz na sinceridade de tua alma e pedires com as seguintes palavras que estão neste bilhete, o juiz te manda o recado que te atenderá!”

Assim, o pecador como um réu caminha para o Deus Juiz, com a oração ditada por Ele próprio. Não se pode imaginar maior manifestação de misericórdia do que esta.

Então, do fundo da igreja, vinha o mísero cortejo dos pecadores rezando: “Miserere mei Deus, secundum magnam misericordiam tuam, et secundum multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam — Tende compaixão de mim ó Deus, segundo a vossa grande misericórdia. E segundo a multidão de vossas bondades, apagai a minha falta”.

Sentindo-se esmagados pela grandeza do Juiz e pela infâmia de sua culpa, eles rezam para pedir perdão. Mas, ao mesmo tempo, são alentados pela promessa do Juiz que lhes diz: “Reza desta forma, meu filho, sente isto, que eu me tornarei teu amigo!” Nisso vê-se o magnífico equilíbrio da atitude divina.

Havendo Deus “ditado” a oração que deve ser a Ele dirigida para pedirmos perdão, não poderia ter Ele resumido esta súplica numa jaculatória, com isso adiantando o momento do perdão?

De súplica em súplica, até a confiança no perdão

Tal como está constituído, este conjunto de salmos dá a impressão de que, enquanto a pessoa reza, permanece, entretanto, certa dúvida acerca do perdão de Deus. Por isso o penitente repete o pedido com um novo argumento. Por vezes apela-se à bondade de Deus, noutra parte à glória. Porém, cada uma dessas palavras é muito adequada e útil para preparar o espírito à compenetração da gravidade do pecado, mas também para que vá se adquirindo uma confiança inabalável de que Deus o perdoará.

À medida que os salmos se sucedem, tem-se a impressão de que o Salmo da Confiança vai despontando, até chegar à última palavra, a qual opera uma explosão de confiança: “Vós me salvareis ó Deus!”

Quando se chega a esta esperança cheia de alegria pelo fato de Deus ter dito no fundo da alma do pecador que ele será salvo, inicia-se a Quaresma. Movido por esta esperança o pecador quer sofrer para expiar suas faltas.

Então, aproximando-se do padre, o pecador se ajoelha e este lhe traça com cinza uma cruz sobre a fronte, dizendo: “Lembra‑te, homem, que és pó e ao pó hás de voltar”. O que naquela ocasião equivalia a dizer: “Cuidado! A morte ronda em torno de ti. Deus, apesar de infinitamente bom, é justo também. Agora vai e faze penitência”.

Ela fere, mas também cuida da ferida

Como eram as penitências?

Antes de tudo tratava-se de jejuar, alguns chegavam a passar os quarenta dias a pão e água. Mas havia também uma cerimônia da bênção dos cilícios, os quais geralmente eram cintos cheios de pequenos ganchos de ferro que arranhavam a carne em torno do tronco, causando dolorosas feridas. Estes eram usados por alguns durante todo o período da Quaresma.

Note-se a bela atitude da Igreja que aqui está contida. Ao mesmo tempo em que ela estimula o uso dos cilícios, institui uma cerimônia para abençoá-los, como se dissesse: Penitencia‑te até o sangue, mas sendo tu meu filho, aproxima-te que vou deitar minha bênção neste instrumento que te tortura!

Aí se vê mais uma vez o equilíbrio entre a justiça e a misericórdia. E justamente por dever existir este equilíbrio entre estas, bem como entre as demais virtudes, é que devemos amar a justiça tanto quanto a misericórdia.

De maneira que diante de uma afirmação como a seguinte: “Deus disse ao pecador: Eu te execro!” Nós devemos exclamar, assim como o faríamos diante de uma frase misericordiosa. Pois, quando o pecador compreende o mal de seu pecado, e percebe quanto Deus odeia o pecado, ele compreende também quanto Deus é a Pureza. E diante da Pureza infinita de Deus, como pode alguém não se entusiasmar?

Quem tem horror ao pecado, ama a virtude à qual este se opõe. Portanto, é sumamente necessário ter entusiasmo pela severidade de Deus.

Uma bela oração para se fazer nesta Quaresma é a seguinte: “Ó meu Senhor, como Vós odiais meus pecados! Eu Vos peço: dai‑me uma centelha de vosso ódio sagrado em relação a eles!” Porém, logo depois, nós devemos também pedir a misericórdia, pois sem ela quem pode subsistir?

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/3/1984)

Paixão

Cada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos em determinada celebração.

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o “mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo, a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1966)

O caminho da dor – II

O caminho do sofrimento é, sem dúvida, o caminho da felicidade. Quanta alegria no meio da dor têm aqueles que, com serenidade e força, procuram unir-se a Deus!

A preguiça leva a criança a não estudar, mas se esta cumpre seu dever e estuda, ela se fortifica e abre para si um caminho de luz. Se, pelo contrário, ela não estuda e vai passear, no fim do ano leva bomba, perde um ano da vida… E o resultado é a frustração.

Tentações de uma criança e de um adulto

E isso se põe de tal maneira que nunca na História o número de suicídios entre crianças e adolescentes foi tão grande como em nossa época. Por quê? O mundo atual convida ao prazer de todos os modos possíveis. As pessoas aceitam e muito cedo ficam com a noção do próprio fracasso: “Fracassei, não vou ser nada, a vida não é nada. Vou entregar-me ao pecado. Ao menos assim, eu saio da realidade e gozo a vida como posso”.

Uma coisa traz outra. A criança adquiriu o hábito de não resistir às tentações, entra numa rampa que ninguém sabe até onde pode chegar.

Mas isso se repete a vida inteira. Entre vinte e cinco e trinta e cinco anos de idade, aparece para o homem outro tipo de tentação, embora as tentações contra a pureza continuem.

Ele vê os de sua idade, que estão fazendo carreira: um já é um médico ilustre; outro recebeu um prêmio para realizar estudos numa universidade da América do Norte ou da Europa, volta laureado e se torna cirurgião de um hospital. Um terceiro é um grande advogado que faz discursos e tira os criminosos da cadeia; quando ele efetua defesas no júri, a sala se enche de gente que vai somente para vê-lo falar e o aplaudem; por fim, o réu é absolvido devido à sua eloquência; então ele se dirige até o banco dos réus, felicita o réu e sai de braços com o mesmo; e as pessoas que foram assistir exclamam “Aahh!”. A vida é cheia de coisas dessas.

Enquanto aqueles vão para a frente, ele está parado, queimando o rojão da vida…

A perseverança na prática dos Dez Mandamentos é heroísmo

Conheci um professor público em Curitiba, Paraná. O pobre homem levou-me até sua casa e eu lhe propus certas atividades católicas; disse-me ele: “Dr. Plinio, não vale a pena o senhor me propor nada. Vou lhe explicar quais são as minhas condições. Eu sou católico praticante, nunca quis assumir compromisso com ninguém, estou numa situação de pobreza e imolando minha vida por minha família, para acabar de educar meus filhos. Meu médico me disse que, para eu não morrer do coração de uma hora para outra, preciso diminuir o número de minhas aulas pela metade. Se eu fizer isso, meus filhos não podem formar-se. Quero que eles estudem numa boa faculdade e isso custa dinheiro. Então estou carregando o dobro de trabalho que meu coração permite e, portanto, vou viver a metade do tempo que me restaria de existência. Diante disso, como assumir mais algum encargo apostólico?”

Tive vontade de dizer-lhe: “Professor, reze por mim!”, porque se respeita e se venera um homem que faz esse sacrifício.

Esse é o caminho da dor. Não é indispensável que sobre o homem caia uma grave doença, como a cegueira ou outra desgraça. Se cumprir bem os Mandamentos, ele vai encontrar em nossa época tantas dificuldades, que a perseverança é um heroísmo. Terá que rezar e refletir muito para manter-se no bom caminho, tornando-se um homem sério. E ainda que os outros o desprezem, desde que ele diga: “Eu me imolo por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual morreu por mim na Cruz, e vou para a frente”, ele não só vai para a frente, mas para cima.

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, há recompensas nesta vida. Um homem desses é pelo menos um pai tão venerado pelos seus filhos, que seu lar modesto se torna para ele um pequeno paraíso”.

Não se iluda, pois na maior parte dos casos os filhos caem debaixo da influência da Revolução(1) e ficam com raiva do pai que lhes dá exemplo em sentido oposto. Essa é a realidade. Eles seguem um caminho, o pai segue outro e ainda tem o desprazer de ver a ingratidão daqueles pelos quais se imolou. Ele morre abandonado, incompreendido por todos, como Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz. E, no momento de sua morte, poderá dizer em união com o Redentor: “Consummatum est”.

Devemos cumprir o dever, sem choramingar

Numa de suas cartas, São Paulo escreveu o seguinte: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia” (2Tm 4,7-8). De fato, o prêmio da glória ele não viu na Terra, mas no Céu; entretanto, segundo uma bonita lenda, os que assistiram à morte dele viram esse prêmio na Terra. Ele estava ajoelhado diante de um tronco de árvore ou uma pedra, e o carrasco golpeou com a espada a nuca dele com tanta força que a cabeça de São Paulo saltou longe, batendo três vezes no solo. De cada um dos lugares onde ela tocou, nasceu uma fonte. Esse milagre mostrou aos homens para todo o sempre como Deus amou aquela alma que estava na Terra.

Então não podemos ter a ilusão, fazer uma ideia moleirona, de que, depois de nosso sacrifício, vem uma consagração. Às vezes ela ocorre, mas não devemos fazer isso por causa dessa consagração. É necessário estarmos prontos para a ideia de que venha a ingratidão e a incompreensão. Apesar disso, faremos o sacrifício!

O caminho da seriedade é este: fazer sempre aquilo que é o dever, ainda que doa; fazer logo e bem feito, sem choramingar.

Nunca tenham pena de si mesmos! A pena de si é o começo da moleza. Se um homem declara: “Pobre de mim”, tenho vontade de lhe dizer: “É pobre mesmo, porque agora você perdeu todo o mérito anterior. Não tenha pena de si mesmo, meta o peito por cima da espada da dor, custe o que custar, dê no que der! O seu prêmio no Céu será enorme”.

Os prazeres desta Terra nunca saciam

Essa é a dor e a luta do homem que anda bem. Como é a vida do homem que procede mal?

Na aparência pode ser uma vida cheia de delícias, mas acontece uma coisa curiosa em sua alma: o castigo das delícias que ele arranjou. Cada vez que esse homem tem uma delícia, ele fica com vontade de uma delícia maior e, quando não a consegue, ele sofre. E quando obtém mais alguma delícia, ele sofre porque não tem outra; não há o que lhe baste.

Dou um exemplo concreto.

Imaginemos um homem que começa a ganhar dinheiro indevidamente. Ele compra um automóvel Mercedes e, ao ir pegá-lo na loja, para prestigiar-se na família, diz aos de sua casa: “Passarei aqui à tarde, vamos jantar juntos num grande restaurante”. Para a mulher: “Fulana, vista-se bem porque aquele é um restaurante onde você nunca foi!” E aos filhos: “Fulano, sicrano, beltrano, preparem-se, todos com bom apetite!” Vão ao restaurante, comem, divertem-se etc. Naquela hora isso dá prestígio.

Voltam para casa e, entre as cartas por ele recebidas naquele dia, há um convite, mandado somente às pessoas ricas da cidade: “Foi preparado um cruzeiro magnífico no melhor hotel flutuante que há no mundo, o cruzador ‘Queen Elisabeth’, o maior navio de passageiros construído até hoje, no qual há todo o luxo moderno, todas as delícias da vida”.

O homem se lembra de que, conversando com um colega, este lhe perguntara: “Por que você não vai com sua família ao passeio do Queen Elisabeth?” Mas para isso ele não tem dinheiro… 

Sua mulher lhe diz, como se fosse por acaso: “Fulano, vamos fazer um passeio no Queen Elisabeth!” Eles dormem amargurados porque não podem viajar no Queen Elisabeth, quando há um ano atrás eles tinham apenas um Volkswagen qualquer, para se deslocar de um lugar para outro, e usando-o pouco para não estragar a máquina. O indivíduo passava as manhãs dos domingos limpando o Volkswagen como se fosse uma criança, e ele mesmo o consertava. Agora ele tem um automóvel Mercedes. Mas, porque não pode fazer uma viagem verdadeiramente fabulosa pelos pontos mais bonitos da Europa e do Oriente Próximo e, ao cabo de seis meses, estar de volta, ele tem a amargura que sentia no tempo em que apenas possuía o Volkswagen.

Às vezes sentimos isso na própria pele. Porque cada um de nós, em proporção maior ou menor, faz o papel do homem do automóvel Mercedes em comparação com outro indivíduo mais pobre. Todos os presentes neste auditório conheceram meninos mais pobres, que os olhavam como os que estão aqui consideram quem tem um automóvel Mercedes. Os que assistem a esta reunião tinham tudo o que um desses meninos desejava possuir, mas não se sentiam felizes.

Essa era uma reflexão que várias vezes fiz, por causa do bairro em que eu morava, onde havia casas muito boas, casas modestas e até de operários. Em minha residência, que ficava em frente a uma fila de casas de operários, existia do lado de fora uma escada, a qual eu subia e descia estrepitosamente; era barulhento por natureza.

Quando eu saía, uma ou outra pessoa de uma dessas casas metia a cabeça fora da janela para me ver: era uma velha, ou uma mocinha, querendo casar com o moço rico, ou então um rapaz da minha idade que se deslumbrava de ver o luxo que eu tinha. Mas de fato meu luxo inexistia, porque eu era o mais pobre da roda de amigos que frequentava. Era uma regra de três: ele queria ter o que eu possuía, como eu desejava possuir o que um rico tinha; e o rico queria ter o que o mais rico possuía. É uma sede que ninguém sacia.

Serenidade, força e alegria dos bons

Quer dizer, a infelicidade do filho das trevas é maior do que a do filho da luz, porque este possui, na sua infelicidade, a alegria da consciência tranquila; e o filho das trevas tem a recriminação da consciência, que a Escritura compara a um verme roedor, o medo da morte que pode vir de uma hora para outra e, além disso, a frustração nesta vida.

Aquele bom professor com quem conversei podia ter todos os desapontamentos, todas as decepções, passar a vida atracado na dor, carregando sua cruz, mas ele possuía a certeza de que fazia a vontade de Deus, que o estava abençoando; ele tinha a consciência tranquila e a confiança de que iria para o Céu.

Prestem atenção nas Vias Sacras bem escritas, leiam no Evangelho a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo! Verão que não há um momento em que Ele tenta tirar o corpo da dor, ou está adotando um jeitinho para ver se sofre menos. Nosso Senhor vai para a frente, não cessa de caminhar um instante. E cai três vezes sob o peso da Cruz, porque não aguenta mais; readquire um pouco de fôlego, levanta-Se e continua.

Quando Ele chega ao alto do Monte Calvário, dir-se-ia que não tem mais nada para sofrer. Nessa hora Jesus é deitado sobre a Cruz e começa o pior: pregos são cravados, a coroa de espinhos O fere mais ainda, o Sangue verte. Ele sente uma sede tremenda, porque quem perde muito sangue fica com enorme sede, e é erguido no alto da Cruz. E o peso do Corpo começa a rasgar os tendões, as mãos a se crisparem, os pés estão atravessados por um prego, no qual Nosso Senhor procura Se apoiar. Em geral, nas cruzes se põe um pauzinho para apoio dos pés, mas não foi a realidade. Os pés ficavam torcidos e pregados na Cruz, causando-Lhe dores. Então, para sentir menos dor nos pés, Ele era obrigado a fazer força com as mãos para Se soerguer um pouco; sentia dores nas mãos, perdia o aprumo e voltava a Se apoiar nos pés. Era pêndulo de dores contínuo.

E o tempo inteiro Jesus ia cumprindo o seu dever e marchando resolutamente para o fim. E ainda organizando o que Lhe restava: a Mãe e o discípulo bem-amado, São João, que estavam ao pé da Cruz. O Redentor disse-lhes: “Mãe, eis o teu filho. Filho eis a tua Mãe”. Como quem afirma: “Eu vou deixar a Terra, mas quero que minha Mãe fique nas mãos virginais deste meu Apóstolo casto”. O Evangelho diz que a partir desse momento São João A tomou como Mãe.

Afinal, Ele ainda perdoa o bom ladrão, fazendo-lhe uma predição que é sua própria canonização, o que indica o oceano de esperança existente na alma d’Ele e, ao mesmo tempo, uma dor sem fim. Qual era o oceano de esperança? O que Ele disse ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, o que queria dizer: “Hoje estarei no Paraíso”.

Depois Ele pronunciou as palavras de sua própria liberação: “Consummatum est”. Sua Alma santíssima desprendeu-se do Corpo, Ele morreu e terminou a Paixão. Desceu ao Limbo, onde foi recebido com uma alegria sem fim por todos os justos que lá estavam; anunciou-lhes que tinha havido a Encarnação do Verbo, explicou-lhes tudo. Ressurgiu e subiu ao Céu.

Quanta alegria no meio da dor! Disso não devemos nos esquecer. A serenidade, a força, a alegria daqueles que procuram unir-se a Nosso Senhor e Maria Santíssima, os ímpios não têm.

Certa vez, eu caminhava no entroncamento da Av. Ipiranga com a Rua da Consolação, no centro velho de São Paulo, onde havia então pouco trânsito. Eu tinha sido deputado, não fui reeleito e aceitara dois empreguinhos para manter a minha mãe. De longe reconheci um colega deputado que estava fazendo uma grande carreira na vida. Encontramo-nos, abraçamo-nos, e ele, que era um homem muito cordial, me perguntou alguma coisa sobre minha vida e eu lhe respondi. Depois nos despedimos, cada um tomou seu caminho e eu pensei: “Ele tem o que desejou; eu tenho o que quis”.

Um ou dois dias depois, lendo no jornal a secção “Falecimentos”, encontrei a notícia: Deputado fulano morreu logo depois de chegar a sua casa, dando-se um tiro na cabeça.

Minha ilusão seria: aqui está um homem feliz. Pela Fé, eu sabia que não o era, mas as aparências humanas indicavam que era feliz. Provavelmente ele se despediu de mim pensando: “O Plinio é que escolheu o caminho da felicidade”. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1986)

1) Revolução: Dr. Plinio assim denominava o processo multissecular que procura destruir a Igreja e a civilização cristã. (cf. Revolução e Contra-Revolução, Editora Retornarei, São Paulo, 5ª edição em português.)

Stabat Mater…

No Calvário, Nossa Senhora viu o céu encher-se de trevas, a terra tremer e o Templo sacudir-se. Ela, entretanto, manteve-se de pé!

Só A vemos sentada quando colocaram o Divino Cadáver sobre seus joelhos, para ungi-Lo com os aromas, conforme o costume judeu, antes de O depositarem na sepultura. Assim mesmo, Ela é representada com o busto ereto.

Daí vem a poesia famosa “Stabat Mater dolorosa, juxta Crucem lacrimosa” — Junto à Cruz, chorando, estava a Mãe cheia de dores. Mas “stabat”, em latim, não quer dizer simplesmente “estava”; significa “estava de pé”.

Assim deve ser a alma do verdadeiro católico!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/6/1988)

Cerimônia do Sábado Santo Ocasião de graças

Dr. Plinio possuía um amor intenso às cerimônias, não só as litúrgicas — pelas quais tinha um enlevo especial —, mas também as realizadas no Movimento por ele fundado. Na medida em que possuam o espírito militante da Igreja, as cerimônias constituem um modo eficacíssimo de fazer a Contra-Revolução.

 

Analisei profundamente a cerimônia do Sábado Santo da qual participei. A cerimônia é um conjunto de ritos. Por rito se entende o conjunto de ideias, de gestos realizados pelo celebrante, pelos acólitos e pelas outras pessoas que ali estavam participando da cerimônia eclesiástica propriamente dita, feita pelo sacerdote.

Oração pública e oração privada

Entretanto, a cerimônia não consistia apenas em gestos, mas também em palavras pronunciadas pelo padre e diante das quais todos os presentes reagiam ora por gestos, ora por palavras, ora por cânticos, ora pelo silêncio e pelo recolhimento, que manifestavam a impressão que tudo aquilo lhes estava causando.

O que faziam ali o clero e os fiéis? O clero, personificado pelo sacerdote, rezava uma oração oficial da Igreja. Quer dizer, não era apenas a pessoa do padre que orava. Ele poderia, eventualmente, fazer uma oração privada, por exemplo, se estivesse recitando um Terço acompanhado pelos presentes; como pessoa particular, rezaria em nome dele e, sendo sacerdote, por sua dignidade puxaria a oração e todos nós participaríamos, mas não passaria de uma oração privada.

Na cerimônia de ontem, porém, o padre estava fazendo o que se chama uma oração pública, isto é, em nome de toda a Igreja. De maneira que como ele é, dentro da Igreja, uma pessoa pública, fazendo aquela oração era a Igreja universal que falava por sua boca.

Notem especialmente o seguinte: não só era a Igreja universal, mas o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo Quem falava por ele. A Cabeça mística da Igreja é Cristo, e quando a Igreja fala oficialmente, é Ele Quem fala. E tudo quanto o sacerdote pede, Nosso Senhor Jesus Cristo está oficialmente rogando ao Padre Eterno. Eis o valor impetratório de uma oração oficial da Igreja.

A cerimônia se compõe de várias partes; há o Círio Pascal, o fogo, a renovação das promessas do Batismo, etc., que preparam a Missa e antecedem as alegrias da Páscoa, e de um ou outro modo se relacionam com a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, comemorada na Santa Missa.

A Igreja militante, padecente e gloriosa

Tudo conflui, portanto, para a Missa, na qual se dá a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, mas na alegria pela Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, festejada pela Igreja. A Igreja militante celebra na Terra, a Igreja gloriosa festeja no Céu, e há, portanto, uma especial alegria no Paraíso porque na Terra é Páscoa.

Alguém perguntará: “E a zona dolorosa da Igreja penitente?” Nesse dia, Nossa Senhora, sorridente, vai ao Purgatório e leva para o Céu uma quantidade enorme de almas, cujo tormento Ela abrevia. Ademais, Ela alivia o sofrimento de muitas que permanecem ali e as enche de gáudio pela presença d’Ela. É a Páscoa da Ressurreição!

Vejam que firmamento de ideias — cada uma mais rica do que a outra — povoam essa cerimônia!

A parte não litúrgica da cerimônia teve um complemento muito bonito: o momento em que se descerrou o véu e apareceu a Sagrada Imagem(1). Nesse instante, olhei para os outros também, e tive a impressão de que havia um estado de espírito coletivo por onde, no fundo da alma, numa zona que se sente pouco, todos estavam bebendo, em pequenos goles, o licor mais delicioso e mais seleto do espírito católico. Havia um recolhimento sacral, uma paz, uma alegria, um bem-estar que nem sequer pode ser adequadamente descrito com as palavras “felicidade de situação”. Porque a felicidade de situação é um comprazimento do homem com uma determinada circunstância terrena, e o bem-estar de alma que se sentia ali era muito mais do que isso; e lembrava mais o Céu empíreo, com lampejos de visão beatífica, do que qualquer outra coisa.

Um mistério cheio de luz, uma luz cheia de mistério

Na cerimônia, as pessoas estavam como que vendo uma fisionomia, que era a fisionomia da Igreja, e aprendendo, a respeito da Esposa de Cristo, um modo de ser, uma impostação de alma feita de uma seriedade cheia de alegria, de um bem-estar que não é nem um pouco o que no mundo entendem por bem-estar — aquela delícia horrível que a cibernética e outras coisas pretendem trazer —, mas é um bem-estar feito de harmonia e de equilíbrio, o qual reúne junto de si as coisas mais heterogêneas numa harmonia suprema.

Por exemplo, o maior recolhimento, mas ao mesmo tempo com a maior naturalidade. É o recolhimento sem esforço em que a alma, sem tentar pensar em outras coisas, é atraída para aquela seriedade, dignidade, que a música e tudo quanto está ali exprime, que faz entender fiapos do que é dito em latim, mas que tem um sentido, uma significação extraordinária, em que a pessoa se percebe num mistério cheio de luz — não é um jogo de palavras, mas um outro sentido da coisa —, uma luz cheia de mistério. E assim fica posto um estado de alma diante do qual, de bom grado, se passaria ao Céu.

E o efeito disso sobre a alma é diretamente o seguinte: torna-a suave e amoravelmente propensa a todas as virtudes.

Esta impressão é conjunta. Não é a impressão somada deste, daquele ou daquele outro, mas todos sentem que estão com esta impressão. E o fato de no conjunto todos terem esta impressão, ganha mais do que se as pessoas estivessem sozinhas.

A ação da graça é intensificada pelas aparências sensíveis

Tratamos há pouco do que se passou entre Deus e o celebrante, em nome da Igreja, e da participação daqueles que concorriam para a cerimônia à maneira de leigos. Existe, contudo, algo mais profundo. Esse estado de alma ao qual me referi, de onde nasce e o que ele é perante Deus? Esta impressão individual e coletiva que se teve ali, como se relaciona com a graça?

Nós temos a graça recebida no Batismo. Ademais, recebemos também a graça da vocação. Mas outras graças se acrescentaram a essas, de maneira a incrementá-las. Nessa ordem interior, o que se passou em nós?

É uma coisa correlata com o que o padre estava fazendo, porque tudo isso constitui um todo, não são dois pedaços. A correlação entra pelos olhos, mas são aspectos distintos. Apresentada a distinção, vou tratar disso.

A graça teve como ocasião a cerimônia. O que quer dizer aqui ocasião? É uma palavra de sentido muito precioso. Deus é o Autor da graça, a qual é um dom criado por onde o homem participa da própria vida do Criador. Contudo, Deus muitas vezes liga a concessão da graça a fatos externos que são, assim, ocasiões para Ele concedê-la. Por isso, ao considerarmos tal fato, ela fala a nossas almas.

Quando contemplamos esse conjunto de ações correlatas, sentimos e conhecemos um “verum, bonum, pulchrum” — uma verdade, ou todo um horizonte de verdades da Fé que vem ao nosso espírito, a santidade e a beleza dessas verdades em si — e, por outro lado, como o que está se passando exprime bem aquelas verdades, e faz sentir a santidade e a beleza delas. Então, as aparências sensíveis são também elas uma ocasião para que a graça intensifique em nós a sua ação.

E vendo, por exemplo, as respostas varonis dadas às perguntas do padre sobre a renovação das promessas do Batismo, aquilo tudo é ocasião para a graça da virtude da fortaleza operar em nossas almas.

Aspecto simbólico da cerimônia

Isso age de várias maneiras, porque nós raciocinamos e vemos o nexo entre as coisas, mas também — e eu queria chamar a atenção para este pormenor — pelo seu lado simbólico. Esses gestos, esses objetos, esses sons, esses paramentos, essas cerimônias são símbolos que nos fazem ver, de um modo para nós meio misterioso, por uma série de analogias, aquilo que está sendo simbolizado. É o próprio do símbolo.

Por exemplo, a Sagrada Imagem está com uma coroa, que é o símbolo da realeza. Vendo-a sobre a cabeça da Sagrada Imagem, nós temos uma ideia de realeza ainda mais plena de Nossa Senhora como Rainha, ainda mais perfeita, de maneira que o símbolo nos fala prodigiosamente dentro da alma. E essa simbolização serve de ocasião para a graça produzir em nós esse estado de espírito que notamos ali.

Então, a cerimônia assim vista é uma ocasião para a graça. Se olharmos os paramentos do padre, a cor e a forma deles, o barrete, os gestos que ele faz, o modo pelo qual o texto é cantado, tudo isso tem cintilações de grandezas, todo o passado da Igreja aparece, por assim dizer, em pequenas chamas.

Sente-se, por exemplo, quando o texto fala do fogo, que há uma certa grandeza patriarcal dos tempos primitivos, do Antigo Testamento; e tem-se a impressão de ver a Igreja sair das névoas mais profundas da História, cantando o fogo, quando ela nem era nascida, mas havia a pré-Igreja, que eram os justos do Antigo Testamento e o culto verdadeiro de Yaveh. E um padre em 1982 — face aos problemas da cibernética e de todos os horrores promovidos pela Revolução — de repente faz emergir misteriosamente esse passado. Assim são os aspectos da vida da Igreja.

Quem coligou esses trechos? Quem determinou que, para o Sábado Santo, essas deveriam ser as impressões causadas nos fiéis? Quem definiu que tais paramentos e tais gestos eram indicados para tal ocasião? Quem reuniu tudo isso para formar essa cerimônia?

É assombrosa a naturalidade com que o sacerdote segue os ritos; por exemplo, tirar o fogo da pedra para acender a chama pascal. Isso é do tempo em que não havia fósforo, quase a época da pedra lascada, da pedra polida! É até lá que aquilo nos leva! Em seguida, o padre faz uma invocação de algo tirado do Evangelho, e posteriormente se refere à Cristandade atual. Ele desliza pelos séculos como um pássaro…

O barrete, a estola, a capa magna, o cantochão, o órgão

Aquele barrete que o padre usa em certos momentos, no fundo, corresponde à ideia de que o homem deve ter adornos que o completem, porque sem eles o homem não realiza inteiramente aquela beleza que perdeu quando saiu do Paraíso. Portanto, é uma espécie de vergonha do pecado, não relativa ao pudor, ao sexto Mandamento, mas da condição de pecador, e vontade de algum modo recompor a dignidade humana, que leva os homens a usarem chapéus. Aquele barrete corresponde a esta ideia; é preto, em sinal de luto pela Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, como a batina é preta. O barrete é dividido em três gomos, e tem uma parte inteiramente lisa do outro lado: Deus Uno e Trino. Mas o barrete, do qual gosto muito, dá ao padre uma dignidade perfeita e acabada, porém não suprema. Para indicar a plenitude do sacerdócio a Igreja tem para a fronte humana um símbolo mais augusto, que é a mitra; e, para mostrar a plenitude conjunta dos três poderes, a tiara que pousa sobre a cabeça de um só: o Papa.

Símbolos e símbolos, graças e graças, dizendo coisas misteriosas à nossa alma. Até o sapato. Por exemplo, o sacerdote pode celebrar de sandálias, mas não de tênis. A capa magna, a capa de asperges, a estola, tudo tem beleza! O cantochão! O órgão! O harmônio é um filho do órgão. Que maravilha!

Mas como é que se juntou isso ao longo dos séculos? Historicamente, para quase todas essas coisas, ou para muitíssimas delas, há uma explicação, a qual, entretanto, é insuficiente, porque a pergunta não é quem propôs isto, aquilo, mas quem incrustou isso definitivamente na vida da Igreja.

Ação do Espírito Santo e espírito militante

Quem fez isso foi o Divino Espírito Santo. Ele é o Espírito da Igreja, e foi juntando, dispondo as coisas ao longo da História da Igreja, arranjando tudo isso para chegar àquela maravilha que vimos na cerimônia.

De maneira que tivemos, naquela simbolização toda, uma comunicação do Espírito Santo aos homens, indicando como o ambiente no qual habitualmente o homem se move, as mentalidades, a sociedade espiritual e a temporal deveriam ser.

Ali vimos, movendo-se, a Igreja de todos os tempos, e a Igreja do Reino de Maria que vai nascendo. E que, ou eu me engano muito, ou timbrará em conservar, mais saliente do que nunca e manifestado com todos os esplendores, o seu caráter de militante. Tudo naquela cerimônia entrava como uma moção do Espírito Santo, já dando os primeiros lampejos do Reino de Maria.

Nas graças que recebemos durante aquela solenidade há um nota preponderante, dizendo às nossas almas: “Tudo quanto constitui nesta cerimônia um chamado para toda espécie de virtudes, concebei-o, vede-o à luz da batalha. Sede militantes até o fim, que o resto vos será dado abundantemente! Sede filhos da luta, deixai-vos inspirar por ela, sede batalhadores vossa vida inteira e cada vez mais, e Deus fará convosco uma aliança”.

Mas não se trata apenas de ter a alma aberta a uma impressão enquanto se está na cerimônia. É preciso levá-la como uma recordação saudosa e analítica do que houve e, de vez em quando, retomá-la.

Então, compreendemos qual é o papel que nossas cerimônias têm. Naturalmente, num grau eminente, as solenidades ligadas à sagrada Liturgia, em que a Igreja fala e implora. Nosso Senhor Jesus Cristo pede oficialmente em nome de toda a Igreja. Mas também, e de modo autêntico, se bem que menos eminente, em todas as nossas cerimônias.

A cerimônia, enquanto tal, é ocasião para graças deste gênero. Ela exterioriza, torna sensível aquilo que não basta estar só na inteligência e na vontade. Mais ainda, não entra inteiramente na inteligência nem na vontade enquanto não tiver penetrado de algum modo na sensibilidade.

Compreendemos, assim, que a cerimônia é um modo de combater; é um modo eficacíssimo de fazer a Contra-Revolução, na medida em que levemos o espírito militante para dentro dela.

Evidentemente não é uma luta sem sentido, sem razão de ser. A causa pela qual se combate é a Fé; é por Deus que lutamos. Se não amássemos Nosso Senhor e Maria Santíssima, não teríamos razão para combater. Mas, diante do pecado que ofende a Ele e a Ela, a atitude é a luta. Não se compreende a oração sem luta, como não se compreenderia, a “fortiori”, a luta sem oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/4/1982)

1) Imagem de Nossa Senhora de Fátima que verteu lágrimas milagrosamente em Nova Orleans, em 1972.