Exercícios Espirituais

Na seqüência de sua exposição sobre a Companhia de Jesus, durante as celebrações do IV centenário desta instituição, Dr. Plinio salienta a primordial característica dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de Loyola: constituem eles, não um meio para simplesmente nos corrigirmos de um defeito ou adquirirmos uma virtude, mas um programa de reforma total do homem para durar a vida inteira.

 

Não é difícil perceber que o cumprimento dessa altíssima tarefa [para a qual o jesuíta é chamado] requer raro equilíbrio de inteligência, vontade e sensibilidade.

Inteligência sutil, vontade enérgica, amor ilimitado a Deus

Dotado de uma inteligência particularmente sutil e penetrante, o jesuíta precisará saber ler, não apenas nas linhas, mas também nas entrelinhas, discernindo e apontando os pensamentos subjacentes, as conclusões necessárias dos princípios de cada autor, ainda mesmo que este não os tenha explicitamente enunciado; as idéias recônditas dos políticos e as intenções veladas dos diplomatas.

Munido de um espírito de observação finíssimo, deverá o jesuíta ter uma visão bastante clara e serena da realidade, para aplicar efetivamente e a fundo, os princípios doutrinários na ordem prática. Favorecido por uma vontade especialmente enérgica, deverá ser bastante equilibrado para jamais presumir de suas forças e tentar o impossível, se bem que nunca subestime suas energias, e deixe de tirar delas o proveito que, para a glória de Deus, seria de esperar. Olhos postos em Deus, só d’Ele esperará auxílio. Mas, voltados para si, empenhar-se-á como se só da aplicação total de suas forças lhe pudesse vir a vitória.

Claro, essa tarefa não é própria aos temperamentos comuns, para as inteligências banais, para os homens sem fibra. O fundo de toda esta enumeração de deveres supõe um total desprendimento das criaturas e um amor sem limites a Deus, uma grandeza de alma e um equilíbrio os quais somente serão obtidos pela intransigente fidelidade à vontade divina — o que se alcança pela graça.

Perfeito equilíbrio dos afetos

De fato, para ser fiel a essa altíssima missão, não basta ao jesuíta que tenha desterrado de si todos os afetos ilegítimos. Cumpre que de seu espírito esteja ainda banida toda e qualquer complacência para com os mil matizes em que o erro se dilui, para penetrar nas almas crentes. A aversão declarada e militante aos erros que se parecem com verdades, a proscrição dos mil artifícios pelos quais se enunciam certas verdades, dando-lhes ares e tons de erro para cortejar e atrair o adversário, tudo isto é essencial ao jesuíta.

Por essa razão se exige também que, em sua alma, a ordem dos afetos legítimos seja perfeita, e saiba amar tudo em Deus e só por Deus. Por pouco que nele se empalideça a noção da hierarquia dos valores, se obnubile a ideia de que tudo lhe será lícito somente quando Deus for a causa e o termo de seu amor, tornar-se-á um homem relativa ou inteiramente aleijado para o cumprimento de sua especialíssima e excelsa missão.

De um pequeno erro, uma negligência insignificante cometidos de modo consciente neste terreno, quantas e quantas catástrofes podem originar-se!

Evidentemente, essa missão não poderia ser assegurada sem que a Companhia de Jesus tivesse — como garantia da continuidade de seu espírito — elementos para se certificar de que ela era sempre realizável em seus membros. Daí a ascética de Santo Inácio.

Inestimável valor dos Exercícios Espirituais

A suprema garantia dessa grande obra está, evidentemente, em Nosso Senhor, sem cuja graça vivificadora e santificadora os homens não podem produzir frutos de salvação. Mas aprouve a Deus dotar a Companhia de Jesus de um meio humano que, constantemente fecundado pela graça, asseguraria a continuidade e autenticidade de seu espírito. Este instrumento são os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, livro pequeno, mas de ouro, o qual, conforme muito bem disse o Revmo. Pe. J. de Guibert, na “Revue D’Ascetique et de Mystique”, contém toda a espiritualidade da Companhia de Jesus.

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio não são um meio para simplesmente nos corrigirmos de um defeito, adquirirmos apenas uma virtude, ou fazermos uma ou outra vez algumas meditações. São um recurso para reformarmos nossa personalidade, pela rejeição de todos os defeitos, aquisição das mais altas virtudes, regeneração de nossa inteligência na Verdade, restauração de nossa vontade no Bem, morigeração de nossa sensibilidade na mortificação. Em outros termos, os Exercícios não oferecem apenas matéria para uma fase da vida espiritual, mas constituem um programa para todas as etapas de combate interior contra os vestígios do pecado original e as tentações do demônio, bem como para todos os dias de uma existência, por mais longa que seja.

Reforma total do homem para durar a vida inteira, eis o programa dos Exercícios.

Como realizar bem um retiro espiritual

No que consistem eles?

Evidentemente, podem ser feitos num só dia, por qualquer pessoa que viva no século. Normalmente, entretanto, quando feitos em forma de retiro fechado em alguma casa religiosa, chegam a durar até trinta dias, os quais o retirante deve passar no afastamento de todas as preocupações humanas.

Esse longo e fecundo período de meditação, dividiu-o Santo Inácio em quatro semanas. Mas a palavra “semana” não deve, aí, ser tomada em sentido estrito. Algumas fases podem durar mais ou menos dias, conforme as possibilidades, os desejos e as necessidades espirituais do retirante.

Durante esse tempo, o retirante somente conversará consigo mesmo, com o Padre Pregador ou com Deus, Nossa Senhora, os Anjos e Santos, submetendo-se a um horário que deve guardar um sábio equilíbrio entre a austeridade e a prudência. Mais de uma vez por dia, o Padre Pregador far-lhe-á exposição sobre um tema, e não propriamente um sermão. Segundo as regras de Santo Inácio, o retirante não é um indivíduo plenamente passivo. Pelo contrário, fará seu trabalho pessoal de elucubração, ou seja, sua meditação.

Na primeira fase, “deformata reformat” [reforma-se o que está deformado], Santo Inácio dispõe as meditações de maneira a fazer com que o retirante renuncie inteiramente ao pecado e às suas más inclinações. Na segunda fase, “reformata conformat” [dá-se forma ao que está reformado], fá-lo escolher a vocação ou o teor de vida mais conforme à santa vontade de Deus, e o inicia na imitação de Nosso Senhor. Na terceira fase, “conformata confirmat” [confirma-se o que já possui forma] aperfeiçoa, torna mais sólidas, práticas e eficazes as disposições adquiridas na etapa anterior. Na quarta, “confirmata transformat” [transforma-se o que se confirmou], vencidos finalmente todos os obstáculos, fixa o retirante na vontade progressiva e absoluta de alcançar a perfeição, substituindo nele seu sentimento de pesar pela separação das coisas ilícitas e a sensação de fadiga devida ao esforço realizado em adquirir a virtude, pela santa alegria das almas que vivem em Deus.

Método claro e simples para tender à santidade

A grande característica dos Exercícios consiste em ser um método não apenas lógico, mas ainda psicológico; em outros termos, em querer não somente persuadir o homem de que deve evitar o mal, praticar o bem e adquirir a perfeição, mas em fazê-lo renunciar efetivamente ao mal, adquirir realmente a virtude, e tender com generosa lealdade à aquisição da perfeição.

Os Exercícios Espirituais não têm um caráter diretamente apologético, ou seja, em geral são úteis apenas às pessoas de fé. Assim, nota-se em Santo Inácio a preocupação de simplificar e auxiliar o mais possível o papel do entendimento, deixando que a vontade, nua e privada dos subterfúgios que normalmente uma razão tortuosa e sofística lhe oferece, fique exposta diretamente à ação saneadora do livre arbítrio e aos raios vivificadores da graça.

Por isto, os temas que Santo Inácio apresenta são claros, simples e indiscutíveis. Bastará que lhes dê alguns exemplos. Como vereis, neles não haverá lugar para sofismas, recuos ou meios termos. Ou o homem confessa a si próprio sua má vontade sem qualquer pretexto, ou resolve emendar sua vida.

I — Para persuadir-nos de que devemos subordinar nossa vida à doutrina e moral católicas: a) todas as coisas só valem na medida em que realizam seu fim; b) ora, o homem tem por fim supremo honrar, servir e dar glória a Deus; c) logo, o homem que não honra e serve a Deus neste mundo, nem O glorifica no outro por toda a eternidade, de nada vale.

II — Com o intuito de nos levar à rejeição de uma vida pecaminosa: para me salvar, o Homem-Deus suportou as dores inenarráveis da Crucifixão, e teria padecido todas elas só por mim, ainda que não houvesse nenhuma outra pessoa a redimir. E eu não farei este ou aquele sacrifício para me emendar?

III — A fim de nos incitar ao apostolado: a famosa meditação do reino. Se um rei me convidasse a ir lutar com ele contra os in­fiéis, e se submetesse a todas as fadigas e riscos que eu mesmo deveria arrostar, prometendo-me em troca toda sua amizade e todo seu afeto, que covardia a minha, se recusasse! Ora, Jesus Cristo, sendo Deus se fez Homem, padeceu e morreu para a salvação das almas, convida-me a batalhar com Ele pela salvação do próximo, tendo suportado para isto fadigas incomensuravelmente maiores, dores inefavelmente mais meritórias que as minhas! O prêmio que Ele me oferece não é a amizade precária de um rei, mas o amor de Deus. E eu recusarei?

Como se vê nestes três exemplos, a inteligência fica como que deslumbrada e paralisada na sua capacidade de engendrar subterfúgios. E a vontade fica frente a frente com a verdade. É a hora augusta entre mil, da vitória do livre arbítrio tonificado pela graça.

A característica das verdades que Santo Inácio aponta em seus Exercícios consiste em serem lúcidas, simples, breves. Em sua conceituação, não encontra a inteligência reta qualquer pretexto para divagações que lhe facilitem a evasão para a ordem meramente especulativa. E tais verdades, Santo Inácio as funda em argumentos tão claros, diretos e irrespondíveis que os ócios e as subtilezas da dialética ficam decididamente relegados para um segundo plano. Começa então esse formidável diálogo entre o homem e a verdade, que está na essência dos Exercícios Espirituais.

(Continua em próximo artigo.)

(Plinio Corrêa de Oliveira) Extraído dos “Anais do IV centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)

Canal da clemência divina

A insondável misericórdia de Maria Santíssima nos leva a esperar com maior confiança na misericórdia infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É Ela o canal da clemência divina para com os homens, e por esse manancial a bondade do Criador flui com inesgotável exuberância. Sobretudo nos momentos em que nossa alma se julga abandonada e na “estaca zero” da vida espiritual, a Mãe de Misericórdia se acha mais próxima de nós. Nessa hora, confiar no socorro d’Ela é um supremo ato de fidelidade o qual cumpre praticarmos.

Nossa Senhora jamais nos abandonará no meio do caminho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/5/1968)

As realidades visíveis, sinais de realidades invisíveis

Como explicamos na seção “Datas” do presente número, em 1973 Dr. Plinio quis reservar para os mais jovens de seu auditório as conferências que dava aos sábados à noite. Na primeira delas, no  dia 7 de abril, ele pôs ao alcance desses jovens um de seus temas preferidos: a necessidade de contemplar a Deus refletido na Criação.

 

“Os capítulos de Guilherme Auran, do século XII, consagrados à explicação da Missa, estão entre os mais surpreendentes de sua obra. Eis aqui, por exemplo, como ele interpreta a primeira parte do Divino Sacrifício. O canto grave e triste do “Intróito” abre a cerimônia; exprime a espera dos Patriarcas e dos Profetas; o coro dos clérigos representa o coro dos santos da Antiga Lei, que suspiram antes da vinda do Messias que, entretanto, não verão. O bispo então entra, e aparece como a figura viva de Jesus Cristo. Sua chegada simboliza o aparecimento do Salvador, o esperado das nações. […] O bispo senta-se no seu trono e permanece silencioso. Ele parece não desempenhar nenhum papel na primeira parte da cerimônia. Sua atitude contém um ensinamento. Ela nos recorda, pelo seu silêncio, que os primeiros atos da vida de Nosso Senhor se desenrolaram na obscuridade e no recolhimento.”

Através das coisas criadas, pode-se entrever a Deus

Estes são trechos do livro “A arte religiosa no século XIII, na França”, de Édouard Malle. É um bom historiador, dos muito considerados. Depois de mencionar longamente o simbolismo que os medievais viam na Missa, ele escreve: “Pode-se imaginar tudo o que uma cerimônia religiosa continha de ensinamentos, de emoção e de vida para os cristãos do século XIII. Um uso tão constante do simbolismo pode deixar estupefato alguém que não esteja familiarizado com a Idade Média. É preciso, entretanto, não fazer como fizeram os beneditinos do século XVIII, não ver ali um simples jogo de fantasia individual. Sem dúvida, tais interpretações nunca foram aceitas como dogma. Não obstante, é notável que elas quase nunca variam”.

Mais do que a explicação tomada em si, o interessante é o estado de espírito que ela supunha. É o desdém pelo mero concreto e a concepção profunda de que, através de todas as coisas deste mundo, pode-se chegar ao espiritual e entrever a Deus. Eis o verdadeiro gênio da Idade Média.

Mas como explicar esses ritos da Missa? Que significado têm?

A pergunta tem qualquer coisa que choca o espírito moderno. A própria necessidade de um significado é algo que o espírito moderno não compreende bem.

O celebrante bispo entra para rezar a Missa. Para um espírito moderno, isso não precisa ter significado, não tem necessidade de lembrar uma fase da vida de Nosso Senhor. O celebrante entra, porque tem de entrar. Se vai celebrar, tem de entrar na igreja. Trata-se de um puro fato material despido de significado. E por que o bispo fica sentado, enquanto um padre faz as leituras? Por uma razão muito simples.

O essencial da Missa é a Consagração e as orações que a precedem. E é o bispo que reza essa parte. É uma divisão de tarefas como numa fábrica de papel, por exemplo: um mistura a pasta, outro segura o caldeirão e outro achata para dar o papel (estou imaginando uma fábrica mais do que rudimentar, pois não tenho a menor ideia se é assim que se fabrica o papel…). Esses gestos da fábrica de papel não têm outro significado senão sua utilidade. São uma expressão do caráter meramente funcional. Também na Missa há uma distribuição de funções entre o principal oficiante, que é o bispo, e os outros, que serão os sacerdotes, os vários acólitos numa Missa solene são funções da mesma natureza.

Objeções do Positivismo

Este modo de ver as coisas está ligado à filosofia positivista do século XIX. Dizem que morreu e enquanto filosofia, é verdade; mas, enquanto hábito mental, continua viva. O que ensina a filosofia positivista? Que a mente humana não é capaz de conhecer, aprofundar e explicar senão os fatos que dizem respeito à matéria. Logo, tudo quanto não diga respeito à matéria é incerto, inseguro. Existe uma alma? Não sei. Não é matéria… Existe um Deus? Não sei, não é matéria… Uma das maneiras de exprimirem “inteligentemente” isso é da seguinte maneira: como nenhum médico, operando um homem, encontrou a alma na ponta do bisturi, não pode ter certeza de que ela exista. Ou como Yuri Gagarin o primeiro astronauta russo, que declarou não ter encontrado Deus no espaço.

A alma humana não pode ser encontrada na ponta de um bisturi, porque é imaterial. Mas, pelos efeitos do que se passa no homem, percebe-se que ele tem alma, porque produz operações que a matéria não poderia produzir. Deus não pode ser visto, mas o próprio mundo testemunha a sua existência. Se perguntássemos a um positivista: “Esse relógio foi fabricado por alguém?” Ele diz: “Não sei, só subindo a torre para verificar”. Ele sobe, não encontra quem fabricou, e conclui: “Não há fabricante, porque não o encontrei”. Uma perfeita imbecilidade! O fabricante do relógio não tem que estar necessariamente na torre. Percebe-se que houve um fabricante do relógio pelo fato de que aquilo é uma matéria que produz operações as quais, sem fabricante, não produziria.

Mas o positivismo, embora incoerente, encantou o século XIX, e ainda está no consciente ou subconsciente de um número incontável de pessoas em nossos dias.

Significantes e significados

Escaparia ao pensamento positivista procurar significados nos gestos e ações do homem. Para ele, deve-se considerar o corpo humano e seu agir do ponto de vista da funcionalidade, da utilidade prática das ações.

Colocados diante da Missa, mas também diante de uma porção de outros atos ou fatos da vida quotidiana, a pergunta “qual é o significado” não vem.

O que entendemos por significado? Significado é o particípio passado do verbo significar. E o que quer dizer significar? É emitir um sinal, “signum”.

Há o significado, isto é, aquilo que foi expresso através do sinal, e há um significante, aquele que produz o significado, o autor do significado. Podemos exemplificar com o telégrafo: o funcionário bate aqueles sinais. Qual é o significante? É o homem que está batendo a mensagem. Qual é o significado? É a mensagem. O significante emite a mensagem. O significado é a mensagem, aquilo que foi posto em sinal para o conhecimento de um terceiro, que é o destinatário da mensagem.

Diz-nos a doutrina católica que todas as realidades visíveis são sinais de realidades invisíveis. E que há uma analogia entre o mundo visível (o mundo dos homens nesta terra, com os animais, as plantas e os entes inanimados), e o mundo das realidades imateriais, invisíveis.

Qual é o mundo das realidades invisíveis? A alma humana, antes de tudo, porque visível ela não é. Ela é perceptível. Percebemos que ela existe, mas não a vemos. Há, então, a alma humana e tudo quanto diz respeito ao espírito. Quer dizer, os santos de Deus, cujas almas estão no Céu (porque, com exceção do Corpo glorioso de Jesus Cristo e do corpo glorioso de Nossa Senhora e talvez de algum Santo excepcionalíssimo não existe mais nenhum corpo no Céu; os outros corpos jazem por aí, desfeitos em poeira, ou guardados em relicários, à espera da ressurreição final). As almas dos justos que foram para o céu constituem, portanto, realidades invisíveis. Também os Anjos que compõem a corte de Deus no céu, outro número enorme de realidades invisíveis. E, por cima dos Anjos, infinitamente acima deles, Deus, que é puro espírito, perfeito, etc.

Temos, portanto, um mundo de significantes, significados e destinatários de significação. Os Anjos vêem a Deus face a face. Mas eles O vêem, segundo diz a filosofia escolástica, “totus sed non totaliter”: vêem Deus no seu todo, mas não totalmente, porque Deus, sendo infinito, pode-se ter uma noção global d’Ele, mas não se pode ver cada perfeição. Excede a mente do homem, como também a dos Anjos. Como cada Anjo vê em Deus algo que outro não vê, conta para esse o que viu. E esse comentário, esse eterno relato que os Anjos se dão, uns aos outros, a respeito de Deus, constitui um cântico angélico, porque se exprimem cantando. O que, evidentemente, também é um significado: o Anjo não tem laringe para cantar. Mas a mensagem que um dirige ao outro é tão nobre e tão cheia de amor, que tem alguma semelhança com o canto dos homens. Então é o canto perpétuo dos seres angélicos, narrando as grandezas de Deus. Alguns Santos têm ouvido esse cântico dos Anjos, essas mensagens angélicas, sob a forma de uma música distante, sublimíssima, perpetuamente contínua, ininterrupta, e que os deixa extasiados. São os Anjos que contam uns aos outros o que vêem em Deus e ouvem d’Ele.

Mas eles não contam apenas, ou não cantam apenas. Eles significam num outro sentido: é que cada Anjo, o que ele vê em Deus, tem relação com a natureza dele. E os Anjos não são como nós, meio feitos em série. Cada Anjo é uma espécie. É como se cada um fosse uma humanidade, sendo completamente diferente do outro. E cada Anjo simboliza, na sua natureza, aquilo que ele conta a respeito de Deus. Assim, a intuição que um Anjo tem do outro (os puros espíritos se conhecem diretamente) leva-o a “ver” no outro um reflexo particular e único da natureza divina. De maneira que cada Anjo é, para os outros seres angélicos, uma espécie de chama de manifestação divina, uma chama que canta.

Aspectos terrenos que nos lembram a Deus

Na terra há uma porção de fatos que nos lembram enquanto tal significam o próprio Deus. Por exemplo, um pai ou uma mãe que embala uma criança. Que significado isto tem? Pai ou mãe por excelência é Deus Nosso Senhor, porque Ele não nos gerou apenas, mas nos criou. Sabemos que a vida de nossos corpos vem de nossos pais, mas a alma que cada um de nós recebe é diretamente criada por Deus. Nossos pais não são pais de nossas almas. E o que temos de mais importante é a alma, não o corpo. Deus é o Pai de nossas almas. Mas Deus é o criador de Adão e Eva, que foram os pais de todos os homens. Ele é, portanto, nosso Pai por excelência. O carinho do pai, o carinho da mãe nos lembram o carinho de Deus, o afeto de Deus, a solicitude de Deus.

Ao folhearmos a Escritura, encontramos um número enorme de comparações em que Deus alude a Si mesmo como sendo pai, alude a Si mesmo como sendo mãe, e depois mostra que Ele é mais do que o pai e a mãe. Uma das frases de Deus ao pecador, no Antigo Testamento, diz: “Ainda que teu pai ou tua mãe te esquecesse, Eu não me esqueceria de ti”. Quer dizer, ainda que o homem cometa ações tão abomináveis que o pai ou a mãe o rejeitassem, Deus não o rejeitaria. Porque Ele é a fonte de toda misericórdia, e não abandona nenhuma criatura humana. Deus toma o pai e a mãe como significados d’Ele, convidando o homem a olhar para algo mais alto, que é Ele, de quem o pai e a mãe são sinais.

Só o pai e a mãe? Toda autoridade existente na terra é significado de Deus. Tomemos a “autoridade” mais humilde que há, a do pastor que guia suas ovelhas. Nosso Senhor Jesus Cristo se comparou ao bom pastor. Quer dizer, Ele mesmo indicou que, havendo criado as ovelhas e o pastor, estabeleceu uma relação pastor-ovelhas que é imagem da relação Deus-homem. E indicou que, olhando um pastor que dirige os movimentos do rebanho, devemos nos lembrar d’Ele dirigindo os homens e a história.

É incontável o número de fatos materiais que significam fatos sobrenaturais. Outro é o seguinte: nas mesas de comunhão antigas, havia por vezes pinturas de veados bebendo água numa fonte. É alusão a um salmo: “Sicut cervus ad fontem aquarum desiderat, ita desiderat anima mea ad te, Deus”. Assim como o cervo vai para a fonte das águas, assim, ó Deus, a minha alma te deseja a Ti. É a significação, no reino animal, do desejo que a alma tem de Deus. Deus é a fonte de todas as águas, é a origem de todas as coisas. Que bonita essa comparação: uma fonte que brota; e Deus, que fez “brotar” tudo do nada! Como isso é majestoso! A fonte é um sinal de Deus. Assim como o cervo que corre velozmente, encontra uma fonte e pára para se dessedentar, assim nossa alma, correndo pelos caminhos da vida, tem sede de Deus. E nossa alma pára diante de Deus e “bebe”.

Isso é do Antigo Testamento. Mas a Igreja faz aplicação para o Novo Testamento. Como pode alguém “beber” a Deus? É a Sagrada Eucaristia, que estava profetizada nisso. É a sede, ou fome, eucarística, o desejo de comungar. As saudades da alma que, por qualquer razão (está num local onde não há igreja) não pode comungar. Quando consegue, comunga como um cervo que vai à procura das águas.

Poderíamos ainda apontar mil outras aplicações.

Volto ao exemplo das autoridades. Não é só o pai que representa a Deus. Quantas vezes Deus se compara a um rei no Evangelho, ou no Antigo Testamento, para dar a entender que, se queremos ter ideia de como Ele é, contemplemos a autoridade régia. Não se trata da pessoa do rei, que pode ser um crápula, mas a autoridade do rei, os atributos, a missão, o poder, o cargo régios. É um fulgor de Deus.

O professor é um sinal de Deus enquanto ensinando. Simboliza a Deus que leciona a Si próprio às suas criaturas, que fala de Si e Se faz ver por suas criaturas. Deus, neste caso, tem um significado que é o mestre.

O patrão que dirige o trabalho, para que as coisas deem certo, é um significado de Deus, porque é Deus ordenando todo o universo para que produza.

E daí para a frente, os senhores têm um número incontável de aplicações que são significados.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 49 (Abril de 2002)

E seremos repletos de grandeza…

Ninguém que esteve no céu empíreo voltou para contar como são aquelas paragens de luminosidade, refrigério e paz. Ninguém… Esta afirmação não é exata. Alguns santos contaram haverem sido arrebatados em vida ao paraíso celestial. O difícil era depois conseguir descrever em termos humanos as maravilhas que viram. É o caso de São João Bosco. Tomando as notas que o fundador dos salesianos nos deixou a tal respeito, Dr. Plinio faz considerações sobre aquele lugar reservado para os justos.

 

Em uma de suas célebres visões do Céu, São João Bosco nos descreve um cenário repleto de belezas paradisíacas, superiores a quaisquer maravilhas deste mundo, embora lhe parecessem naturais. Então, árvores feitas de folhas de ouro e flores de brilhantes, raios de sol transluzindo numa claridade arrebatadora, e sons cuja harmonia excedia às mais belas músicas engendradas pelo talento humano.

Nesse lugar ele viu também São Domingos Sávio, seu discípulo perfeito falecido há pouco, e que se lhe apresentava como magnífico cicerone, vestindo túnica alvíssima, cingida por um cinto cravejado de pedras preciosas, tão abundantes e tão bonitas que não tinham paralelo com as da terra. Contudo, por maiores que fossem, todos esses esplendores frisava São João Bosco não se encontravam no verdadeiro Céu, no Paraíso da visão beatífica.

Ora, para certos espíritos contemporâneos essa singularidade pode ter algo de paradoxal, e suscita neles a seguinte objeção: “Se existe um Céu tão mais belo do que todas aquelas grandezas naturais, qual a razão de ser delas? Não seria melhor que só existisse de uma vez o próprio Céu, sem essa espécie de lindo patamar que o antecede? Em última análise: onde pode haver o magnífico, que lugar tem o excelente ou o simplesmente bom?”

As necessárias belezas do céu empíreo

Permito-me adiantar-lhes uma resposta, dada com as devidas cautelas de quem é leigo no assunto. Parece-me, entretanto, que essa região onde São João Bosco esteve corresponde ao que nos ensina o grande teólogo Cornélio a Lápide a respeito do céu empíreo. Com efeito, baseado na opinião de vários santos e doutores da Teologia, professa ele a ideia de que, ao lado do Céu dos Céus onde veremos a Deus face a face e a nossa transbordante alegria será inexprimível há um Céu material, de magnificência igualmente indizível, no qual nossos corpos poderão desfrutar, eles também, o prêmio de uma eternidade feliz.

Essa sentença é inteiramente lógica e compreensível. Sendo o homem composto de alma e corpo, e se a doutrina católica nos ensina que, condenado, ele sofrerá no inferno penas corporais e espirituais, por que não haverá no Céu, em contrapartida, uma recompensa para o corpo assim como tem a alma? E por que não existirá, portanto, no celeste Paraíso um lugar onde o corpo humano, glorificado, expurgado de todas as misérias desta vida e já na imortalidade, possa fruir de todas as delícias castas que lhe são próprias, ao mesmo tempo em que sua alma se acha perdida nos gáudios da visão direta de Deus? Não será esta uma necessidade decorrente da eterna união entre alma e corpo ressurrecto?

Essas celebridades teológicas opinam que sim. Não se trata, convém frisar, de um dogma da Igreja, mas de uma doutrina a que se pode aderir sem receios de incorrer em heresia. Alguns estudiosos que aprofundaram essa tese chegam mesmo a sustentar que, nesse céu empíreo, os corpos terão suas funções fisiológicas comuns, sem contudo e de uma forma misteriosa produzir qualquer espécie de podridão. Mas, uma vez que o estômago tem prazer em comer, o homem se alimentará de manjares inigualáveis; uma vez que os pulmões têm gáudio em respirar, eles respirarão os ares mais límpidos que jamais sorveram. E assim por diante, nosso corpo terá alegrias imensas, afins com os júbilos da alma imersa na visão beatífica.

Os teólogos vão mais longe em suas excogitações. Para eles, os próprios Anjos, que são puros espíritos, far-se-ão notórios de algum modo ao homem ressurrecto. Ocasionando determinados movimentos no ar, modelando certas formas ou produzindo cores e sons paradisíacos, eles nos darão uma ideia de como são. À maneira do músico que usa de um instrumento para transmitir ao ouvinte uma impressão, eles, Anjos, se servirão daqueles elementos para nos deleitar. E nada impede que imaginemos brisas ou ventos, com frescores ou tepidezes diversas, pousando sobre nossas peles como cetins, como sedas, como veludos. E que nos deem também alegrias retas, virtuosas, símbolos das perfeições de Deus que nossas almas estarão contemplando na glória eterna. E nessa conjunção de gáudios temos uma imagem da felicidade perfeita.

O divino olhar de Jesus: fonte de inexcedível alegria

Tudo isso, bem entendido, dentro da mais inteira e absoluta castidade, dentro da santidade mais total correspondente a cada um nos vários graus de santidade existentes no Céu. Portanto, com a alegria diáfana da consciência em ordem, do dever efetivamente levado a cabo, e depois da merecida purificação feita no purgatório. De maneira tal que tudo está pago, tudo perdoado, e sobre nós pousa o olhar bondoso e jubiloso de Nossa Senhora, o olhar tão poderoso de Nosso Senhor Jesus Cristo, o olhar do próprio Deus Encarnado!

Para nós termos uma ideia do que simplesmente o olhar de Jesus pode produzir em nós, pensemos no que foi, acredito, o olhar mais famoso da história. Aliás, como seria bonito se nos fosse possível retratar esse capítulo especial do existir da humanidade, que é a história dos olhares! Dos olhares magníficos, esplendorosos; dos olhares suaves, doces ou tristes; dos olhares de esperança, dos olhares de perplexidade, dos olhares de indagação, dos olhares de ordenação e de planejamento, dos olhares de justa censura e punição. Seria algo de extrema beleza!

Pois bem, de todos esses olhares de que me lembre, nenhum é tão célebre quanto aquele que Nosso Senhor deitou em São Pedro durante a Paixão, e que transformou o Apóstolo de um instante para outro. Quem é capaz de conceber a força desse olhar? A São Pedro tinham sido entregues as chaves do Reino dos Céus; sobre ele Jesus prometera edificar sua Igreja, e entretanto, São Pedro se endureceu, se acovardou e negou o Homem-Deus. O galo cantou, ele caiu em si, Nosso Senhor passou e o fitou nessa hora… Olhou-o, e São Pedro começou a chorar. Um pranto que só cessou com o martírio do primeiro Papa. Ora, se o olhar de Nosso Senhor pode exprimir tanta tristeza que mude a vida de um homem, e que transforme o tíbio numa tocha de admiração, de quanto gáudio o olhar de Jesus poderá encher um homem? Procuremos imaginar o olhar d’Ele, por toda a eternidade, pousando complacente sobre cada um de nós, enchendo-nos continuamente de todo o gáudio de que somos capazes! É tanto, que seríamos propensos a dizer:

“Senhor, para que mais? Não aguento felicidade maior do que essa! Vós me falais do céu empíreo, Vós me fazeis ver a pradaria que extasiou São João Bosco; mas, Senhor, eu me ponho de joelhos e Vos digo: um olhar vosso… Pudesse eu apenas ver um olhar vosso, e em condições tais que, fitando-o, eu visse nele a Vós e a mim, e me sentisse amado por Vós. O que mais, meu Deus? Eu poderia suportar tanto? Custa-me crer que, na minha limitação de criatura humana, eu seja capaz de aguentar durante toda a eternidade esse oceano de perfeições e delícias que é o vosso olhar límpido, profundo, tranqüilo, possante, cambiante de impressões… Um universo, o vosso olhar, movendo-se continuamente diante de mim.

“Meu Deus, o que são os vitrais das catedrais, o que são as estrelas do céu, o que são os reflexos do firmamento sobre as águas do mar em comparação com somente um minuto dessa visão do vosso olhar? Se, como reza o Evangelho, uma só palavra vossa e minha alma será salva, se tanto pode uma palavra meu Deus! quanto não poderá o vosso olhar?! Senhor, um único olhar vosso para mim, e minha alma estará salva”. Só isso? Nos momentos em que eu me sentisse pequenino para esse olhar, vê-lo se dirigir a Nossa Senhora; vê-Los, Mãe e Filho, fitarem-se mutuamente e se perderem um no olhar do outro que cena! Perceber o eterno e incessante co-relacionamento de ambos, não apenas nas expressões de alma, mas também nos gestos e atitudes de seus corpos gloriosamente ressurgidos, transmitindo extraordinárias impressões que meus olhos materiais e todo o meu ser, extasiados, também poderão contemplar!

Quem é capaz de conceber semelhante ventura? Nossa Senhora sentada em um trono próximo ao de Jesus, prolongando pela eternidade os colóquios que mantinham em Nazaré, em Belém, e naqueles nove meses em que Ela era o sacrário ambulante onde Ele morava! Quem, repito, pode descrever igual maravilha?

Pois essas são as alegrias que nos estão reservadas no Céu. Ao lado do gáudio ainda mais incomparável de ver Deus face a face, na sua natureza de puro espírito, eterno e perfeito.

A recompensa demasiadamente grande

Essas cogitações nos trazem à lembrança as palavras de Deus na Escritura, repassadas de harmonia e belezas incomparáveis, quando Ele diz: “Serei Eu mesmo a vossa recompensa demasiadamente grande!”

Sem dúvida, com tal promessa Nosso Senhor queria se referir ao prêmio inexcedível dessa dupla visão que nos será franqueada na eterna bem-aventurança: uma, a contemplação com nossos olhos carnais da sua celestial formosura de Homem-Deus; outra, o vê-Lo enquanto puro espírito, face a face, com os olhos da alma.

A ideia desse prêmio tão superior nos conduz de volta à questão que deu origem a esta nossa meditação: se tal é a felicidade extrema, aquele céu empíreo que concebemos tão magnífico, como nos parece pobre! Respirar? Comer? Quando sobre nós pousa um olhar divino? Quando podemos ver diretamente a Santíssima Trindade? De que é que servem essas etapas intermediárias em relação ao Bem supremo? Por que Deus as fez tão extraordinárias, se éramos chamados a esplendores ainda mais altos?

Acontece que essa passagem direta para o mais sublime não está de acordo com a natureza humana, nem com a ordem da obra realizada por Deus. De fato, fomos criados tais que lucramos em ir conhecendo e apreciando as coisas pelos seus sucessivos degraus. E para isso convém que cada degrau seja maior que o outro, oferecendo-nos sempre uma surpresa: “Ah! Então existe mais isto?! E mais aquilo que eu não imaginava!”

Cada novidade dessas nos prepara para o gáudio total, e constitui um complemento da felicidade perfeita. Elas são necessárias ao nosso corpo que, sem conhecê-las e experimentá-las todas, não se sentiria em harmonia e proporção ideais com a alegria da alma. Assim, obedecendo aos desígnios de Deus, ambos, corpo e alma, ascendem àquela recompensa demasiadamente grande, àquela dádiva que nos deixará repletos de grandeza!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 49 (Abril de 2002)

LÚCIDA E ARDOROSA DEVOÇÃO MARIANA

Muito jovem ainda, Dr. Plinio fora totalmente conquistado pela “Verdadeira Devoção” a Nossa Senhora, pregada por São Luís Maria Grignion de Montfort, consagrando-se à Rainha do Universo segundo o método montfortiano. E se tornou desde então um dos maiores propagadores dessa via espiritual, cujas excelências não cessava de enaltecer, como neste artigo de 1936.

 

Nas mãos de uma editora católica, recebeu o Legionário, ultimamente, a obra traduzida de Luís Maria Grignion de Montfort, sobre a Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Entre estas edições, chama a atenção por suas qualidades a da Vozes, de Petrópolis, que teve a feliz ideia de traduzir, também, em apêndice, as oração que o Autor recomenda no seu livro.

As obras do [santo] Grignion de Montfort já se impuseram, no seio da Santa Igreja, por seu excepcional valor, e hoje em dia, o Tratado da Verdadeira Devoção é geralmente reconhecido como um dos mais importantes trabalhos que jamais se tenham escrito sobre Nossa Senhora. Dados os extremos de respeito e de amor para com a Santíssima Virgem a que a obra de Luís Grignion de Montfort conduz seus leitores, alarmou ele — aliás sem o menor fundamento — alguns pensadores católicos receosos de que o Autor tivesse chegado a exagerar o culto de hiperdulia que a Nossa Senhora se deve. A Santa Sé, a fim de acalmar os espírito timoratos, e permitir às almas piedosas que singrassem sem receio os oceanos de piedade contidos no Tratado da Verdadeira Devoção, declarou entretanto, de forma expressa, explícita e oficial, nada ter aquele livro que colida com o pensamento da Igreja. É, pois, com apoio nessa garantia de supremo valor, que se deve considerar e examinar a grande obra daquele grande Santo. […]

Sensibilidade, inteligência e vontade devem andar juntas na vida espiritual

Muito se tem escrito, em nossa época, por pena de leigo, sobre piedade. Entretanto, cumpre observar que raramente os livros dessa natureza, ao menos no Brasil, apresentam aquela solidez de pensamento sem a qual a piedade corre grave risco de se extraviar.

No fundo, essa deficiência decorre de uma concepção incompleta do que seja a piedade. Raciocinando de um modo simplista, pensa muita gente que como o anelo supremo de toda a vida espiritual deve ser a intensificação do amor de Deus, e como o amor que os Santos tiveram a Deus na vida terrena se manifestou por extraordinárias provas de sensibilidade afetiva, em última análise, o amor será tanto maior quanto mais aguçada e mais viva for a sensibilidade. De sorte que a obra de um livro de piedade deve consistir em despertar a maior sensibilidade afetiva possível. Quanto mais terna a linguagem, quanto mais imaginosa, quanto mais rica de adjetivos, tanto mais eficaz.

Com isto, evidentemente, toda a estruturação doutrinária da obra sofre um sério prejuízo. A preocupação literária predomina sobre a clareza e a ortodoxia do pensamento, e o trabalho inteiro — se consegue uma vez ou outra tocar o leitor por um artifício feliz de linguagem — não deixa no fim uma única convicção sólida e profunda, uma única daquelas ideias claras e substanciosas, capazes de guiar uma vida e determinar uma reforma espiritual.

Nisto como em tudo, a Santa Igreja deve ser nossa Mestra. Ninguém, mais do que ela, se esforça por estimular e formar a sensibilidade humana, nutrindo-a com todas as impressões capazes de lhe dar uma verdadeira elevação. Pelas imagens, pelos cânticos, pela música, pelos esplendores da Sagrada Liturgia, a Igreja fala incessantemente à sensibilidade dos fiéis. E, auxiliada pela graça de Deus que nunca lhe falta, bem como pelos recursos de grandes talentos humanos, tem ela conseguido tais resultados neste terreno, que bem se pode dizer que ninguém, em toda a história, consegue propor à sensibilidade humana temas tão altos e tão nobres, ao mesmo tempo tão fortes e tão suaves, quanto ela. A par disto, ninguém tem conseguido, ao mesmo tempo, comunicar a essas manifestações sensíveis um cunho tão apuradamente artístico quanto os grandes talentos inspirados pela Igreja.

Longe, e muito longe de nós, portanto, está a preocupação de ignorar o papel da sensibilidade na vida da piedade. Deixemos esta triste tarefa para outros, e continuemos dóceis aos maravilhosos ensinamentos que, a este respeito, nos dá a Santa Igreja.

Como a vida de piedade se destina a santificar o homem, a importância que têm respectivamente a inteligência, a vontade e a sensibilidade é proporcionada à magnitude das funções de cada uma no homem. Ora, se o papel da sensibilidade é grande, ninguém poderá, por pouco que reflita, deixar de reconhecer que a ação da inteligência e da vontade ainda é muito maior.

Assim, pois, a verdadeira formação de piedade não se deve contentar com ministrar à sensibilidade estímulos sobre estímulos. Ela só será sólida se se alicerçar sobre verdades claras, substanciosas e fundamentais, ministra- das e assimiladas a fundo pela inteligência. E só será real se se servir destas verdades como meio para disciplinar vigorosamente a vontade, em um combate árduo e duro que, se bem que a alma seja espiritual, com toda a propriedade de expressão se pode chamar de sangrento. De nada vale a vida espiritual, se ela prescindir de uma instrução religiosa sólida, e de uma luta efetiva, disciplina- da, constante e intransigente conosco. […]

Inestimável valor da obra de São Luís Grignion

É raro encontrar um livro que, de modo mais patente, tem os dois predicados, o de esclarecer a inteligência, e o de estimular a sensibilidade, do que o de Grignion de Montfort. Seu Tratado é uma verdadeira tese, com lampejos de polêmica. A argumentação é sólida, substancial, profunda. Jamais se nota nele que um arroubo de amor venha perturbar a indefectível serenidade e justeza do pensamento. Sua profundidade chega a ser tal, que freqüentemente os leitores não iniciados na Teologia — e é este meu caso — têm de fazer um sério esforço de inteligência, para o compreender. Mas em compensação não há uma só frase inútil ou sem sentido em seu livro. Todas as palavras têm seu valor exato e calculado. E to- dos os conceitos geram convicções claras e profundas, que não despertam apenas sobressaltos de sensibilidade em momentos em que nosso temperamento se mostra propício a isto, mas também ideias luminosas e substanciosas, que geram aquele amor sério e sólido, capaz de sobrevier heroicamente às mais implacáveis aridezes da vida espiritual.

Entretanto, não se julgue que o Tratado da Verdadeira Devoção é uma fria exposição de princípios. Em cada ponta de frase, Luís Grignion de Montfort deixou gotejantes o suor de sua inteligência e o sangue de seu coração. Sua argumentação, se é lúcida, está longe de ser fleumática. Pelo contrário, é apaixonada, ardente, comunicativa. A cada demonstração vitoriosa, seu escrito toma acentos de gritos de triunfo e de júbilo. Sua linguagem lembra a de São Paulo. E por isto o grande padre Faber disse da obra de Grignion de Montfort que, depois das Escrituras Sagradas, nada se escreveu de mais candente do que sua famosa oração pedindo missionários de Maria.

Se há um trabalho em que se compreende aquela luz intelectual cheia de amor, de que fala Dante, esse é o de Grignion de Montfort. Lê-lo, é facilitar poderosamente o progresso na vida espiritual. Difundi-lo, é acumular coroas de méritos no Reino dos Céus.

 

(Transcrito do “Legionário” de 26/11/1936.

Nesta data, Grignion de Montfort ainda não era canonizado. Título e subtítulos nossos.)

Damas-flores, varões-estrelas

Mais de uma vez me aconteceu de, ao analisar uma planta na qual desabrocha uma flor maravilhosa, considerar o galho, o corpo do tronco e a parte deste que encosta na terra e, em seguida, perguntar‑me: “Como, nesta planta, havia contida esta flor? Como nesse verde, nessa casca, nisso que é o belo de uma planta, estava oculta e à espera de expandir-se essa maravilha que é a flor recém-nascida?”

Consideremos uma roseira. Um tronco comum, sem nada de especialmente bonito. Mas, abriga um mistério. Dentro dela há a capacidade de engendrar não sei quantas flores, cada uma mais graciosa do que a outra.

Ora, tenho para mim que as vidas dos povos, assim como as dos indivíduos, quando bem-sucedidas, são como as plantas. Olha-se para elas e, à primeira vista, parecem-nos comuns. Porém, quando acabam de empenhar todos os seus esforços e de fazer todos os seus sacrifícios, elas deitam flores. Quer dizer, espargem algo de uma beleza insuspeitada, maravilhosa, que é, ao mesmo tempo, a expressão de sua própria natureza e a superação desta em toda a linha. De maneira tal que olhamos e dizemos: “Oh! que flor!”

Os povos que têm história são aqueles que engendram flores. E um dos aspectos mais bonitos da História é considerar os homens‑flores das várias nações. Flores varonis, flores fortes, flores que, por certo, não se podem comparar com a rosa delicada; flores magníficas semelhantes a estrelas. Duras, frias, verdejantes, quentes, ardentes, conquistadoras. Poder-se-ia dizer que os povos florescem em damas e em homens. Quando desabrocham em damas, abrem-se em flores; quando em homens, esplendem em estrelas.

Essa visão dos povos nos faz compreender que, se fosse dado a uma planta pensar, ela olharia para si mesma perplexa e diria: “Gostaria que, de mim, nascesse tal flor, ou florescesse tal estrela”. E passaria longo tempo imaginando o aspecto da estrela ou da flor que dela brotaria. Mas, afinal, quando visse a flor ou a estrela se formar, e percebesse que esta é capaz de se destacar do próprio tronco e subir aos céus da História, para lá brilhar por um período talvez eterno, quando a planta contemplasse isso, exultaria de alegria: “Oh! Maravilha! Minhas raízes estão no fundo da terra, mas aquilo que eu projetei se encontra nas alturas. Eu floresci em estrelas para o céu!”

Assim uma nação se sente inteiramente realizada. E, debaixo de certo ponto de vista, essa é a história de um povo, como é a história de uma família. No momento em que, no seio de uma dessas linhagens privilegiadas, nasce o arquétipo, dir-se-á: “Essa família deu a Deus toda a glória para que foi chamada. Deu aquele homem que, em relação ao futuro, será o grande antepassado; e em relação aos seus antecessores, aquele que foi sempre esperado e que, afinal, surgiu”.

Serão estes pequenas, minúsculas, insignificantes pré‑figuras ou pós-figuras d’Aquele que, por excelência, foi chamado “o Esperado das Nações”. Segundo as Escrituras, Ele foi aguardado por todos os profetas e patriarcas. Por todos os judeus que tinham prole e desejavam ser antepassados do Messias. Quiçá David, no auge da penitência, ou Salomão, nos maiores esplendores de sua sabedoria, souberam que de sua progênie nasceria Nossa Senhora, a raiz mil vezes bendita de Jessé, da qual, por sua vez, nasceria o Verbo Encarnado — a flor, a estrela, o sol, o universo. Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  em 5/8/1978)

Oração à Mãe do Bom Conselho

Ó Mãe do Bom Conselho, eu Vo-lo suplico: falai no mais íntimo da alma deste vosso filho e escravo.

Tornai, assim, sempre presente a meu espírito a convicção de que são objetivas — e não meros frutos da imaginação — as graças que, segundo firmíssima tradição, concedeis a vossos devotos pelas “mudanças” de vossa fisionomia.

Convencei-me de que podeis instilar, desta forma, nas almas, convicções de confiança e paz que valham por verdadeiras promessas vossas.

Tendo em vista os auxílios providenciais que em várias ocasiões inesperadamente me concedestes, peço-Vos que acresçais ainda mais minha confiança, de sorte que ela se torne inabalável em todas as ocasiões.

Pela virtude dessa confiança, dai-me a certeza de que, através de graças avassaladoras, tornar-me-eis um perfeito cavaleiro vosso; exorcizai e enviai para longe de mim qualquer influência diabólica; e uni-me cada vez mais a Vós, para Vos servir na Terra e Vos louvar no Céu. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira

Síntese de maravilhas

Na história da cristandade ocidental, cada nação tem seu papel único e incomparável, concorrendo para a grandiosa soma de valores morais, de riquezas culturais e de belezas terrenas que caracterizam a civilização nascida sob a égide da Santa Igreja Católica.

Entretanto, não há quem negue que, neste imenso concerto de tradições e esplendores, um povo sobressai pelo requinte ao qual levou as qualidades de seu espírito e as maravilhas por ele engendradas. Estamos falando do povo francês.

Claro que o mundo seria terrivelmente monótono e enfadonho se nele existisse apenas a França. Mais ainda: a França mesma empalideceria por falta de inspiração. Ela  como que haure o melhor da seiva dos países vizinhos para constituir essa espécie de miscelânea super quintessenciada que é a nação gaulesa. Ela vive dos arredores, do que absorve deles, é a corola dessa flor cujas pétalas são a Alemanha, a Itália, a Espanha, a Inglaterra…

A França é assim a rainha dos amálgamas, que teve seu espírito elaborado desde os remotos tempos de Cluny, a célebre abadia beneditina de onde partiram as primeiras luzes da cristandade medieval. Esse espírito, essa conjunção harmônica das qualidades dos outros povos, resultante numa síntese de perfeições que os demais não possuem, é uma das maiores glórias francesas. Conjunto que não é cópia nem repetição, mas um auge de originalidade que reluz em diversas e magníficas facetas.

Tome-se, por exemplo, a culinária francesa. Cada prato, até o mais simples, é um poema, e cada porção precisa ser entendida e filosofada. Um conhecedor o degusta e presta  atenção nos sucessivos sabores que dele se desenrolam como um filme, nas várias etapas da consumação. Isso exige uma tal observação que não se pode nem comer muito, nem depressa. Só se deve fazer uma coisa, que aumenta ainda mais o sabor do prato: é prová-lo enquanto se conversa com um francês…

Pois, além de mestres na culinária, são-no igualmente na arte da conversação. Eles têm a prosa condimentada para as mais variadas refeições e para cada parte delas: ora leves e graciosas; ora salgadas, ardilosas, com ditos chispantes que saem entre a fruta e o queijo, já no fim do repasto.

Ora, ainda, altamente intelectualizada, sem perder a leveza e a graça, coroando a comida, que é sempre equilibrada, sempre um convite à temperança e à reflexão. Pratos que são verdadeiras obras-primas, para a vista e para o paladar.

Suavidade e elegância que se repetem em todo o “savoir-vivre” francês, no de hoje como no de outrora, notadamente naquele período tão brilhante da história desse povo que foi o “Ancien Régime”, nos séculos XVII e XVIII. A França era então a maior potência militar da Europa, e seu exército, o mais vitorioso e respeitado.

Pois bem, um fidalgo militar que havia 15 dias estava participando de cargas de cavalaria em algum campo de batalha, e dali a outros 15 dias enfrentaria novos combates, entre duas guerras retornava à corte e ia dançar em Versalhes uma pavana ou um minueto…

Era a hora da gentileza, da graça, da amabilidade, da reverência profunda, dos gestos distintos que aprendiam desde pequenos. E se acostumavam a dançar para adquirir boas maneiras, porque a dança era calculada de tal forma que, quando o homem a aprendesse, saberia fazer com categoria todos os atos da vida.

Desse “savoir-vivre” destilou-se também a brilhante diplomacia francesa, tão rica em charmes, gentilezas, formas de organizar recepções, e até mesmo em modos de obter informações perto dos quais a espionagem comum parece pífia. Mais do que métodos para descobrir segredos, têm eles um superior “olhômetro”, uma percepção especial que lhes permite captar as finuras e as segundas intenções de documentos ou de conversas sobre os interesses da sua nação. É outro efeito do gênio francês, que alcança com sobriedade de meios e esplendor de resultados, na graça e na elegância, o que os outros obtêm por sistemas diversos. Quer dizer, é leve, delicado, eficiente. E tudo termina  uma pirueta e numa vitória.

Enquanto para alguns de seus vizinhos o ápice da atitude está na discrição e na valorização do silêncio, para o estilo francês mais vale se mostrar. É um povo feito de  expansão,de manifestação de si próprio. Quando chega a algum lugar, o francês não se acanha, não se intimida, fala e ri, procura as pessoas, cumprimenta-as, e se compraz em mexer com todos.

Se assim não procedesse, julgaria estar sendo deselegante, faltando com o dever da sociabilidade. Esse mesmo desejo de se manifestar aparece nas suas paisagens e  monumentos. Para o francês, belos são os grandes panoramas. E por isso constroem tantos e tão esplêndidos cenários. São vastos parques, com imensos canteiros, fontes e cascatas, extensos jardins, castelos espetaculares, feéricos, que se desdobram formando arquiteturas proporcionadas e elegantes. É um Versalhes, com suas alamedas e jatos d’água, imponente e majestoso. Versalhes não foi feito para ser visto nas brumas em que, por exemplo, os edifícios ingleses dão toda a sua beleza. Ele tem de ser contemplado resplandecente, cintilando à plena luz do sol…

Assim é o espírito francês, soma harmônica das qualidades de todos os outros povos, síntese de maravilhas, precioso fruto da civilização cristã.

Plinio Corrêa de Oliveira

De requinte em requinte

Sendo um estilo artístico expressão da mentalidade de um povo ou de uma área de civilização em determinada época, pode ele sofrer variações, ser copiado ou substituído por outro? Dr. Plinio aborda estas e outras interessantes questões em torno do tema “arte”.

 

Se houvesse uma arte moderna, contemporânea, boa, teria propósito restaurar as coisas coloniais? Não é legítimo que, artisticamente falando, as coisas evoluam e que cada época tenha o estilo que lhe é próprio? Não é isso uma coisa adequada, conveniente? Nós não vemos cada país ter seu estilo próprio? Não notamos como, na civilização ocidental, o gótico foi substituído pela arte da Renascença e depois por outras formas artísticas sucessivas? Então, se cada época criou um estilo próprio, por que haveremos de rejeitar um estilo suposto bom de nossa própria época? Isso pareceria ser uma coisa antinatural, um conservantismo levado ao excesso.

Distinção entre os estilos e os seus matizes

Imaginemos uma construtora que fizesse casas de estilo antigo, bonitas, confortáveis, porém, que se prestassem à seguinte crítica de caráter artístico e não funcional: são cópias, em nossos dias, de um estilo que não é de hoje. Portanto, um estilo morto. Ora, copiar é intrinsecamente uma falta de originalidade. É até uma coisa artificial copiar algo que morreu. E nesse sentido, essa ação conservadora é um mal.

Parece-me que é preciso fazer uma distinção entre o estilo e os matizes dentro do mesmo estilo. Quer dizer, o estilo pode continuar igual a si mesmo, passando por matizes, por variantes. Mas ele é sempre o mesmo estilo. Então, a pergunta se desdobra: Primeiro, o estilo deve variar? Em segundo lugar, ele deve mudar em seus matizes internos? Em terceiro lugar, um povo, uma civilização devem variar de estilo?

Seria mais interessante tratar da questão da variação de estilo para depois abordar a mudança de matizes, que é um assunto menos importante e que se resolve dentro da questão da variação de estilo.

Todo estilo é o produto de um estado de espírito. E eu chamo estado de espírito um conjunto de verdades fundamentais ou de princípios — às vezes não verdadeiros —, a partir dos quais uma determinada civilização vê o homem e o universo, e o estado temperamental com que a civilização adota essa vivência.

Mentalidade e estilo

Tomemos, por exemplo, o estilo egípcio. É evidente que ele comporta uns tantos princípios que não são puramente artísticos, mas filosóficos; e filosóficos do mais alto porte porque metafísicos.

É evidente também que, a partir desses princípios metafísicos, os egípcios elaboraram uma visão do universo, de toda a realidade material, e modelaram essa visão de acordo com aqueles princípios metafísicos.

As múmias, os desenhos, as esculturas são compostos de figuras hieráticas, mas muitas delas não o são: representam o egípcio na vida quotidiana. E há qualquer coisa de uma placidez profunda, meditativa e ativa na coisa egípcia, incubada de mistério, que constitui propriamente a mentalidade do egípcio. Ora, o estilo egípcio foi uma expressão dessa mentalidade.

E o estilo medieval, o gótico, foi igualmente uma expressão da mentalidade católica.

Então, se o estilo é a consequência necessária de uma mentalidade, a questão sobre se o estilo deve ser mudado importa em perguntar se precisa ser mudada a mentalidade.

Mudança de matizes

Se fôssemos apelar para o exemplo da História, seríamos levados a dizer que todos os grandes povos que surgem e definem a sua mentalidade, de certo modo, constituem um estilo e não saem mais dele, e esse estilo não decai, não degenera. Ele continua a produzir obras boas e dignas indefinidamente, até que um fator extrínseco derruba uma determinada ordem de coisas.

Por exemplo, o estilo chinês nasceu desde quando? Com variantes, é evidente, formou-se ao longo de quantos séculos? Nós não podemos dizer que o estilo chinês esteja moribundo. Se os ocidentais não tivessem entrado na China e derrubado certas barreiras culturais, não tivessem feito imposições, o estilo chinês teria continuado indefinidamente.

E as obras chinesas elaboradas, mesmo no século XIX, de modo ainda artesanal não eram dominadas pela preocupação de produzir para trazer dinheiro, e eram de muito boa cultura e de muito bom quilate. Não se pode falar de uma arte chinesa de decadência. Isso se pode dizer do Egito, de Roma, da Grécia, da Pérsia, dos assírios, enfim de todos os povos antigos. Então, a conclusão seria a seguinte: é preciso não mudar de mentalidade e, portanto, não variar de estilo. Um povo elabora esse estilo, fica com este estilo até o fim.

Contudo, toda mentalidade, mesmo quando continua igual a si mesma, muda de matizes. Um homem, conforme o estado de espírito, o dia, as circunstâncias, varia de matizes. Então, poder-se-ia dizer que um estilo pode ser matizado, mas não propriamente mudar. Matizar-se sim, mudar fundamentalmente não.

Essa conclusão de que, sendo um estilo o produto de uma mentalidade que não deve variar nunca, consequentemente ele jamais deve mudar dentro de um mesmo povo, por mais antipática que seja a certos feitios temperamentais, e por mais evidente que possa parecer a certos espíritos lógicos, de fato não me parece inteiramente acertada, e tenho reservas sérias quanto a ela.

O progresso só surgiu com a Civilização Católica

As reservas procedem do seguinte: essa imobilidade dos estilos pagãos, dos estilos antigos, resulta, é verdade, de uma mentalidade muito definida, amadurecida. Mas há outro aspecto a ser considerado. Todos os povos antigos estavam sujeitos a uma lei, que poderíamos chamar “lei da limitação do progresso”. Quer dizer, todos eles chegavam a certo auge, até relativamente depressa, mas depois paravam e não progrediam mais. E não se pode dizer que um povo antigo tenha progredido mais do que outro, por exemplo, os romanos em relação aos egípcios. Aqueles eram muito superiores aos egípcios em muitas coisas. Mas em outras os egípcios eram muito superiores aos romanos.

Não havia o que nós chamamos de progresso, quer dizer, um povo que aparece, incorpora a si todas as coisas boas de uma civilização antecedente e vai indo para a frente.

O progresso propriamente dito apareceu com a Civilização Católica. Foi uma mobilidade, uma elasticidade, uma vitalidade que a sociedade humana tomou batizando-se, e que lhe deu exatamente a possibilidade de modificação que nós notamos na melhor parte da História católica.

Os estilos devem suceder-se à maneira de requinte

A elaboração, a partir do estilo romano, do românico foi uma mudança. Representou uma mudança de caráter contrarrevolucionário — se podemos usar assim esta palavra — porque o estilo românico é muito mais sacral, mais hierárquico e mais simpático à alma verdadeiramente católica, do que o estilo romano. Mais ainda: do românico se destilou, pelo bafejo da Igreja, o gótico, estilo já então profundamente diferente do românico. De maneira que a vitalidade da Igreja produziu uma mudança de estilo.

Por conseguinte, deveríamos dizer que não se devem copiar os estilos, e sim modificá-los.

É bem verdade, portanto, que os estilos devem suceder-se uns aos outros. Mas esse suceder-se não pode ser à maneira do estilo moderno em relação ao colonial, ou outro estilo, com uma ruptura e uma aceitação brutal do contrário, e nem pode ser uma mera diversificação. Porque também a diferença de estilo não é só para variar, mas deve ser um particular progresso no requintar o que um estilo, a mentalidade de um povo têm de bom; fazem-se coisas que são diferentes, mas à maneira de requinte, como o gótico é o requinte do românico.

Portanto, a sucessão deve ser feita de requinte em requinte, que é a linha de progresso e de variedade do estilo, posta em algo fundamentalmente conservador no essencial, enquanto é no acessório muito livre.

A resposta à pergunta inicial é a seguinte: ficar no mero colonial, em princípio e em condições normais, seria um mal. Deixá-lo para fazer um estilo simplesmente diferente, seria igualmente um mal, porque teria sido necessário requintá-lo. Isso me parece inteiramente lógico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/5/1967)

Fonte de nossa coragem

Ela possuía uma confiança heroica na Providência. Desse no que desse, um certo lúmen da vida dela a acompanharia até o fim. No fundo, não é só dizer que não acontecerá nada de ruim; mas por pior que seja, tudo se arranjará! Essa era a posição dela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Conferência de 2/5/1981)