Modelo de santidade

Nossa Senhora é para nós o exemplo perfeito de santidade. Ou seja, se nos modelarmos inteiramente segundo Ela, alcançaremos a completa semelhança com Nosso Senhor Jesus Cristo. Se A tomarmos como ideal, acreditarmos na eficácia da devoção a Ela, e tudo fizermos em estreita união com Maria, a Ela nos assemelharemos.

Assim, devemos pedir a Nossa Senhora, com todo o empenho, a graça de uma profunda compreensão de suas altíssimas virtudes, as quais havemos de imitar. E que Ela nos faça participar, em grau sempre crescente, da sua insondável fortaleza. Maria é a Virgem forte e combativa, a Virgem intransigente e absolutamente inflexível diante do demônio, do mundo e da carne. Supliquemos a Ela essa intransigência, antes de tudo contra o que há de mal em nosso interior; em segundo lugar, contra o que há de mal fora de nós — tendo em vista nossa própria santificação.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 76 (Julho de 2004)

Reflexões sobre um café

Há muito tempo, muitíssimo até, tenho acerca do desenvolvimento de nosso País uma impressão a comunicar.

“Desenvolvimento” é um termo tomado aqui num sentido que tem parentesco apenas longínquo com o que habitualmente se entende por tal. Não falo do desenvolvimento econômico-financeiro. Este é o sentido ápice – e não raras vezes até único – que se atribui ao vocábulo em nossos dias empapados de hedonismo burguês e de materialismo comunista.

Na perspectiva em que me coloco, tal forma de desenvolvimento tem seu lugar. Este não é, entretanto, o ápice. Pela simples razão de que o homem não é principalmente estômago. O desenvolvimento-ápice não consiste pois na promoção das coisas do corpo, do “irmão corpo”, segundo a linguagem franciscana. Consiste, isto sim, no desenvolvimento do homem todo, postos na devida hierarquia os vários elementos deste todo. E, assim, a alma em primeiro lugar. Entre as coisas da alma, quero destacar aqui uma das mais nobres, isto é, a aptidão de relacionar as coisas da matéria com as do espírito, e umas e outras com Deus.

Todo o universo foi criado à imagem e semelhança de Deus. De onde existirem analogias entre todas as criaturas. Pois seres análogos a um terceiro são, por isto mesmo, análogos entre si. Daí as coisas materiais terem o poder de exprimir as espirituais. E um dos usos mais nobres que se possa fazer de cada uma, e de todas no conjunto, consiste em lhes conhecer essa expressão espiritual. Através dessa expressão, a inteligência conhece melhor as coisas do espírito. Serventia excelsa que tem a matéria até para os bem-aventurados após a ressurreição, quando entretanto verão Deus face a face.

Uma pessoa penetrada destas grandes verdades, e habituada a fazer do relacionamento matéria-alma-Deus uma atividade-réctrix de seu espírito, pode desta maneira chegar ao ápice de sua personalidade. Ou seja, atingiu o desenvolvimento ordenado e inteiro de seu próprio eu. Seu desenvolvimento-ápice.

Essas verdades, precisamente porque muito abstratas, têm contudo relação com o que há de mais profundo e decisivo na realidade concreta. Assim é fator da grandeza, do bem-estar e da “force de frappe”, de um país o relacionamento íntimo entre os recursos naturais e a paisagem do território, de um lado, com as características do espírito nacional, de outro lado, a ponto de o observador notar afinidades entre a configuração dos montes, o curso e o rumorejar dos rios, as mil cores e formas da vegetação, os perfumes das flores, os sabores da culinária local, as harmonias das músicas e das danças populares, das formas e das cores dos trajes típicos – com o espírito da população, por exemplo com o estilo dos gracejos e das brigas das crianças, dos feitos dos homens maduros e da experimentada sabedoria dos anciãos. Tudo isto forma um emaranhado de elementos que se entrelaçam por mil afinidades indissociáveis. E é a diferença entre estes – mais até do que os limites territoriais – que distingue as nações. Que diferença entre a França e a Alemanha, por exemplo! Salta aos olhos que cada uma dessas nações forma com o respectivo “emaranhado” um só todo. Não se pode conceber uma França habitada só por alemães, nem uma Alemanha habitada só por franceses.

A tradição clássica, e mais tarde a influência profunda da Igreja, ensinou esses homens a “serem” muito mais alma do que corpo, a procurarem nas coisas da matéria analogias e ensinamentos supremos sobre a alma e sobre Deus. Daí essa admirável consonância entre o corpo e a alma dos grandes povos. Assim, tais povos foram conduzidos, numa imensa ação conjunta, a interpretarem o respectivo quadro material, encontrando nele mil afinidades com suas próprias almas. Afinidades com suas próprias almas. Afinidades estas que a cultura acentuou e pôs em relevo.

Tenho a impressão de que, dentro da tormenta contemporânea, a maioria dos homens, descaracterizados, massificados pela civilização moderna, mecânica e cosmopolita, já não sabe sentir os significados espirituais e “divinos” das coisas. Nem perceber os vínculos que os ligam entre si, nem às paisagens em que nasceram. E em países novos como o nosso, a interpretação simbólica dos panoramas, da flora, da fauna, o saboreio ou olfateação dos produtos da terra, a audição de seus ruídos ou dos cânticos da natureza, tudo se reduz, para muitos dentre nós, às vagas recordações de infância que o progresso esmagou já na adolescência por meio do rolo-compressor do “senso prático”.

Essas considerações me vieram ao espírito ao saber de um pitoresco fato que ocorre em Londrina, cidade que há cerca de trinta anos não visito. Mas sinto satisfação em contar o que a tal respeito me narraram amigos residentes na capital do café.

Um homem de espírito e iniciativa instalou ali um café, em quiosque todo de vidro. Não porém um café qualquer. No modo de preparar nossa rubiácea, usou ele de nada menos do que vinte e cinco variedades. Entretido, corro os olhos em diagonal pela lista desses modos. Entre os cafés quentes não podia deixar de estar o “café com chantilly”, seguido entre outros por um enigmático “café escocês”, daquela Escócia que não produz café. Um pomposo “café royal” e um espirituoso “café society”. Os cafés frios vêm comandados, como também é natural, pelo “café vienense”. Mas o batalhão é menor. São seis, ao passo que os quentes são doze. Depois dos frios e dos quentes, figuram sete rotulados como “outros”. Como será o “licor creme de café”? No que se diferenciará dos simples “licor de café”? E como serão os “confeitos de café”? O fato é que tudo isto encantou o povo. E o estabelecimento vive cheio.

A diversificação que um homem de generosa fantasia soube fazer com o café, em que larga medida se poderia fazer com tantas de nossas frutas e, mutatis mutandis, com nossas incontáveis flores? E quantas riquezas de nossa alma assim mais facilmente se explicitariam?

À luz das analogias de um verdadeiro simbolismo católico, num simultâneo e glorioso labor de alma de nosso povo, quanta magnificência diante de nós se desenrolaria!

E se alguém me dissesse que tudo isto não passa de devaneios porque não resolve o problema do combustível, eu responderia com uma boa gargalhada. Pois um Brasil cristãmente desenvolvido não se define principalmente como uma imensa frota de motores, mas como uma imensa família de almas.

Luís XVII poderia ter sido um novo Carlos Magno

Pertencente às duas mais importantes dinastias do Ocidente, Luís XVII possuía todas as graças com que Deus cumulou os Bourbons e a Casa d’Áustria para realizarem sua obra providencial na História. Mas os revolucionários de 1789 descarregaram contra ele uma ação antieducativa brutal.

 

Devo comentar o resumo de um trecho do livro “O menino Luís XVII e seu mistério”, de Madeleine Louise de Sion(1).

Assimilou com facilidade os princípios revolucionários…

Sem dúvida alguma, entre os crimes perpetrados pela Revolução contra a família real, o aviltamento do pequeno Delfim foi um dos maiores.

Arrancada aos sete anos de idade dos cuidados de sua família e entregue ao sapateiro Simão, a criança embruteceu-se totalmente. Quando a 3 de julho de 1793, às onze horas da manhã, Luís Charles, o futuro Luís XVII, encontrou-se em casa de seu novo pai, chorou durante quase três dias. Depois, percebendo que com isso nada obtinha e acostumado a sentir-se centro das atenções, enxugou as lágrimas e iniciou vida nova. De início, resistindo ao ambiente, mas depois nele integrando-se dolorosamente.

A missão de Simão era inculcar-lhe princípios e lhe ensinar modos do povo. Era preciso fazê-lo perder a ideia de sua posição e que ele esquecesse sua realeza. Simão iniciou seu pupilo nas “belezas” do estilo de “Le Père Duchesne”, jornal obsceno dirigido por Hébert, assim como no palavreado grosseiro dos moleques de rua. Nada de ortografia ou de fábulas, ou histórias variadas. O descendente de Luís XVI aprenderia os direitos do homem e cantaria as canções do povo.

Testemunhas inequívocas atestaram o êxito dessa missão. A criança assimilava tudo com grande facilidade. O jovem príncipe perdeu gradativamente os vestígios de sua primeira educação, afogada por atitudes vulgares que ele mesmo aceitou como sendo muito masculinas. Percebeu também que sua linguagem de soldado agradava aos cidadãos, dos quais recebia elogios e aprovação por cada palavra de baixo calão que pronunciava. Aqueles homens sentiam-se radiantes por verem o filho da “orgulhosa austríaca” semelhante a um pequeno vagabundo.

Falso acusador da própria mãe

Três testemunhos – o de um cidadão, o de Madame Royale e de Madame Elisabeth – nos mostram a que ponto chegou a pobre criança.

Um revolucionário com tendências artísticas e certa cultura relata que uma vez brincava com o Delfim, enquanto no aposento de cima, onde se supunham estar Maria Antonieta e suas parentas, ouviam-se ruídos como se arrastassem cadeiras. Num movimento de impaciência gritou a criança: “Será que essas… – aqui utilizou uma palavra obscena – ainda não foram guilhotinadas?” Retirou-se sem querer ouvir o resto.

Madame Royale afirma, por sua vez, que ouvira o irmão cantar a Carmagnole, a ária da Marseillaise e mil outros horrores; que Simão lhe colocava um gorro vermelho na cabeça e lhe ensinava a pronunciar juramentos afrontosos contra Deus, sua família e os aristocratas. O sapateiro o fazia comer e beber muito. Ele engordou demais e cresceu pouco. Finalmente, durante as horríveis acusações feitas pelos revolucionários à Rainha Maria Antonieta, o príncipe tomou partido contra sua mãe e contra sua irmã.

Enquanto Madame Royale negava as infâmias, o Delfim as afirmava verdadeiras. Quando chegou a vez de interrogar Madame Elisabeth, ela respondeu a tudo com sua costumeira dignidade e prudência. Mas ao ver seu sobrinho desmenti-la e acusar a mãe, não conteve um grito de horror: “Oh, que monstro!”

Nos acontecimentos, o aspecto político é sempre secundário

A ficha apresenta um desses episódios nos quais, por assim dizer, o espírito da Revolução Francesa pode ser tocado com a mão, de maneira que vale a pena ser pormenorizadamente estudado por nós.

Em geral, os historiadores apresentam a Revolução Francesa como um acontecimento preponderantemente político. Contudo, seria uma coisa para se perguntar: Há episódio predominantemente político? Todo acontecimento político, por sua própria natureza, seria consequência, efeito de mudanças de ordem religiosa, moral e filosófica do espírito dos povos. Assim, num acontecimento, o aspecto político é sempre secundário, enquanto o pressuposto religioso, filosófico ou moral constitui o aspecto principal.

Eu sou muito dessa segunda opinião e vejo na Revolução Francesa não um episódio preponderantemente político, mas um reflexo político de um acontecimento de ordem moral, religiosa e filosófica, que chega ao seu auge com a explosão política da Revolução.

Em outros termos, podemos medir o alcance da Revolução com a modificação da mentalidade da alma humana, analisando, primeiro, quem era Luís XVII e depois considerando o que nós gostaríamos de fazer dele e o que teriam gosto de fazer dele os revolucionários. E nesse texto o contraste dos dois espíritos, como também o profundo desacordo de ambas as causas – a da Revolução e a da Contra-Revolução –, estão muito claramente em evidência.

Duas mais importantes dinastias do Ocidente

Luís XVII era o segundo filho homem do Rei Luís XVI. Este monarca teve de Maria Antonieta, Arquiduquesa d’Áustria e Lorena, dois filhos varões. O primeiro morreu antes da Revolução Francesa, e esse segundo era criança quando a Revolução arrebentou. Tornara-se, portanto, o herdeiro do trono e, como tal, deveria usar o título de Luís XVII, uma vez que se estava estabelecendo o hábito de todos os reis da França, a partir de Luís XIII, usarem o nome de São Luís IX.

Nessa narração vemos Luís, o menino, educado na corte de Versailles e representando, a vários títulos, uma série de preciosos requintes. Ele é, em primeiro lugar, de um modo ou de outro, o herdeiro de todos os reis da Europa. Não há, a bem dizer, dinastia importante da qual ele não tivesse o sangue nas veias. Mais proximamente, ele possuía o sangue da Casa de Bourbon, correspondente à de São Luís, e da Casa d’Áustria, Habsburg, as duas mais importantes dinastias do Ocidente. Com esse sangue, ele tinha todos os carismas, todas as graças com que a Providência cumulou essas duas famílias para realizarem sua obra providencial na História.

Não que esses carismas se transmitam com a carne e o sangue, mas a Providência os pode manter fixos numa determinada família. Assim, todos eles se concentravam sobre esse menino.

Além de ele ser o ponto de encontro de tantas graças e bênçãos de Deus, era uma pessoa preparada por essa lei misteriosa da hereditariedade que transmite de pais para filhos não apenas caracteres estritamente biológicos, mas disposições de alma, circunstâncias temperamentais, enfim, um mundo de propriedades.

Ele era preparado, no plano natural, para ser o ponto de encontro de dons naturais importantes que essas famílias possuíam. Esses dons tinham sido trabalhados, desde o berço, por um dos ambientes mais requintadamente culturais que a História tenha conhecido, o ambiente do castelo de Versailles, até o momento em que o espandongou a Revolução Francesa. Portanto, esse menino era uma obra-prima à luz da Fé, da Sociologia, da História.

A santidade de São Luís, a majestade de Luís XIV, a graça de Luís XV, a força de alma dos Bourbons

O que nós quereríamos fazer desse menino?

Adão também era uma obra-prima saída das mãos de Deus quando foi criado. Ele também recebeu da Providência dons sobrenaturais, preternaturais e naturais excelentes. Mas não basta ao homem ter recebido dons magníficos ao nascer. Pode-se até dizer que o principal não está nisso, mas no aproveitamento que ele dê a esses dons.

Nós quiséramos que todo esse heroísmo, toda essa glória, todo esse requinte, toda essa delicadeza, toda essa educação fossem aproveitados de modo exímio por Luís XVII, de maneira que ele desse num herói da Civilização Cristã, num santo, num homem inteiramente entregue ao serviço de Deus e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, um rei perfeito, talvez um outro Carlos Magno.

Se a Europa tivesse tido nessa ocasião um outro Carlos Magno, seria possível frear a Revolução que subia aos borbotões, como Carlos Magno conteve – tarefa, aliás, menos difícil – as invasões dos bárbaros desencadeadas no continente europeu, no tempo dele.

Teríamos querido, portanto, um homem que reunisse em si a santidade de São Luís, a majestade de Luís XIV, a graça de Luís XV, a força de alma dos Bourbons. Então teríamos tido um homem providencial, um desses varões para quem se olhasse com entusiasmo e se pudesse dizer: Como ele é fora do comum, extraordinário, não tem igual! Como nos alegra sermos homens, pensando que o gênero humano pode dar homens assim! Como nós nos alegramos de ser católicos, pensando que a Santa Igreja Católica Apostólica Romana pode produzir um homem assim!

Nós participaríamos de sua grandeza precisamente contemplando-a e nos sentindo inferiores a ele.

Impressão de ter caído vivo no inferno

Os revolucionários o que fazem? Exatamente o oposto. Eles tomam essa joia preparada pela Providência, pela História, pelos séculos, pela cultura, e acanalham o menino o quanto podem, debaixo de todos os pontos de vista. Isolam-no, o circunscrevem, o maltratam. Sobre a alma débil dessa criança – que carregará diante de Deus uma responsabilidade conhecida somente por Ele, e que tanto pode ser pequena como enorme – eles descarregam uma ação antieducativa brutal.

Podemos imaginar qual é a sensação de um menino que sai de Versailles, do centro de todos os afetos, de todos os mimos, de todas as atenções, de todo esplendor, e de repente passa, numa transição cronologicamente muito rápida, para um cárcere onde vive sozinho, permanecendo durante muito tempo como um murado vivo numa sala escura, sem contato com ninguém, apenas um guichê por onde lhe passam comida. Um período em que ele tomava sovas noturnas, quando entravam pessoas durante a noite e o brutalizavam, maltratavam. Imaginem como é a estrutura de alma de uma criança submetida a todos esses terrores, o choque de quem vem de Versailles. O que isso pode ter sido? O tombo, a estranheza, a impressão de ter caído vivo no inferno! Podemos ter ideia do que eram esses anos em que a criança caía de cansaço e imergia no sono já no pavor da surra que deveria vir durante a noite? Os sustos ao acordar durante a noite? Surra brutal! E depois, o que era esse resto de sono, esse resto de noite? Como tudo isso deveria ser um tormento!

Através disso, realiza-se a degenerescência desse caráter. O menino começa a perceber que é bem tratado quando ele diz palavrões, usa um vocabulário novo que não lhe tinham ensinado até então, quando manifesta um tipo de pseudo-varonilidade que é a “varonilidade” revolucionária.

Os revolucionários opunham muito à delicadeza do nobre do “Ancien Régime” a violência brutal popular nascida na Revolução Francesa. Então estimulavam o menino a dizer palavras porcas, a falar de um modo cafajeste, a ostentar sentimentos contrários à família real, a injuriar o próprio pai e a própria mãe.

Resultado: a degeneração moral, que é a mais importante de todas, vai crescendo, acentuada pelo efeito do álcool. Eles embriagavam o menino e ensinavam-no a cantar canções revolucionárias.

Oposição de dois mundos 

Por fim, chegaram a dar ao menino uma superalimentação que lhe prejudicou a própria estrutura física: ele engordou enormemente e cresceu pouco. Um verdadeiro monstrengo.

Quer dizer, eles modelaram aquela criança à imagem e semelhança do espírito deles. Era aquele o símbolo da humanidade nova cuja vinda eles desejavam. Quando vemos um hippie andando pela rua, nos perguntamos: tirados os aspectos fisicamente doentios, que diferença há entre um hippie e Luís XVII? Eles não modelaram nessa criança a prefigura do homem que a Revolução, séculos depois, haveria de produzir como um padrão para a humanidade inteira? Foi precisamente isso que eles fizeram.

Logo, era um mundo novo que surgia à imagem e à semelhança dele: o menino revoltado contra os pais, obsceno, espontâneo, sem controle, sem censura, sem caráter, sem fidelidade a nenhum princípio, oportunista, procurando a popularidade.

Alguém dirá: “Pobre menino! Ele teria tanta culpa quanto o senhor está dizendo?”

Eu não estou tratando do fenômeno culpa. Foi feita ali uma escultura pedagógica, criado um modelo. Esse modelo está andando pelas ruas. O que há de mais importante a respeito de Luís XVII é o fato de ele ser, ao mesmo tempo, alguém que encerra uma série e inicia outra. Nesse contraste entre o menino que ele era em Versailles e aquele como a Revolução modelou vai uma oposição de dois mundos, de dois modos de ver o homem, a vida, o universo.

Para resumir: de um lado, o modo católico que crê em Deus, embora com possíveis deformações de uma época de decadência; de outro, um modo anticatólico que nega completamente a Deus e não quer o menino feito à imagem e semelhança d’Ele, mas à imagem e semelhança dos vícios, das taras, de tudo aquilo quanto há de mais repugnante na natureza humana.

Ofensiva do monstruoso contra o belo, da desordem contra a ordem

Isso se espelha, aliás, em toda a Revolução Francesa. Ela foi uma ofensiva do monstruoso contra o belo, da desordem contra a ordem. Quando vemos, por exemplo, a mudança pela qual passaram as modas por ocasião da Revolução, notamos ter sido exatamente o fim de uma era de modas requintadas para o estabelecimento de uma época de modas ridículas, grotescas.

Por isso, durante a Revolução a moda feminina, como também a masculina, foram quase tão ridículas quanto hoje em dia. Olha que não é dizer pouco! As maneiras baixaram, se degradaram. Se estudamos o modo pelo qual a vida social se estabeleceu depois da Revolução, vemos que é uma vida social indignamente rebaixada em relação à anterior.

Se analisamos a literatura, a música, a arquitetura e outras artes, notamos como tudo leva um tombo. Esse tombo é rumo ao sapateiro Simão e ao aspecto conferido por ele a Luís XVII. Nem tudo foi configurado à maneira desses modelos, mas a distância de todas as coisas em relação a eles diminuiu, e de lá para cá essa distância não tem feito senão decrescer cada vez mais. Porque a Revolução vai aos poucos diminuindo ou eliminando as distâncias existentes entre o estado da humanidade atual e a ordem de coisas para onde ela quer levar o gênero humano.

Dou-lhes um exemplo característico. Lembro-me de que, quando menino, eu ia fazer meus exames no ginásio do Estado, onde havia um funcionário o qual era objeto do riso geral de todos os alunos. Tratava-se de um sujeito completamente calvo, sem um fio de cabelo na cabeça, sem sobrancelhas, sem barba nem bigode. O pessoal, então, o chamava de “belos cabelos”. E o funcionário, ainda moço, mas evidentemente devorado por uma moléstia repugnante, cuja cura, naquele tempo, ainda não era bem conhecida, aceitava esse apodo e tocava sua vida. Era uma coisa que passava por monstruosa.

Ora, em nossos dias há toda uma corrente nova em matéria de moda que apresenta como a última modernidade a pessoa raspar completamente o cabelo, a sobrancelha, a barba, sob o pretexto de ser muito mais prático, higiênico e despretensioso.

Uma pessoa de minha família que frequenta certas rodas sociais me disse ter ouvido o seguinte elogio feito por várias pessoas: “De fato, uma vez que seja adotado esse costume, a higiene lucra muito. Depois, acaba com essa cabelama na cabeça e com essa história dessas pastas e pomadas que se põem. Ademais, a pessoa se mostra como é, com toda a sinceridade, sem os disfarces de um penteado”.

É a marcha para o monstruoso, o hediondo, para uma forma de barbárie pior do que a dos antigos bárbaros. Porque na barbárie do civilizado que se faz bárbaro, achando que assim é bom, há um toque de pecado contra o Espírito Santo verdadeiramente abjeto. É isso o que nós vemos representado nessa ficha.

Atitude sublime de Maria Antonieta

A cena final é o encontro do menino com Maria Antonieta. A rainha deposta está sendo julgada por um tribunal revolucionário. Então, acusam-na de ser uma mulher depravada, adúltera, uma messalina. Entretanto as fileiras revolucionárias só tinham messalinas, porque aquelas mulheres que acompanhavam os exércitos revolucionários – segundo os dizeres de todos os historiadores – eram mulheres públicas.

Pois bem, Maria Antonieta é acusada disso e de ter pecado com o próprio filho. Ela nega. Entra o menino de tamanco, bêbado, vestido com um gorro vermelho e uma roupa com as cores da República. Interrogado pelo juiz, a criança, mentindo, confirma a falsa acusação.

Não se poderia fazer sofrer mais uma mulher que já estava sendo destinada para o cadafalso. Ela, entretanto, teve uma atitude sublime: não disse uma palavra contra seu filho. Dos lábios de sua cunhada que estava presente – tia, portanto, do menino – escapou este brado: “Oh, que monstro!” Dos lábios de Maria Antonieta, porém, não saiu uma palavra sequer contra o filho, nem nessa ocasião. Ela apenas voltou-se para a sala cheia de mulheres e disse: “Eu apelo a todas as mães de França, especialmente as aqui presentes, para dizerem se acreditam nessa acusação”. Todas as mulheres começaram a aplaudir a Rainha. O juiz mandou retirar as pessoas do recinto, e o processo continuou na solidão. Era a época da “liberdade” que começava…

Creio não ser necessário dizer mais do que isso. São dois mundos: um que acaba, com as suas últimas luzes, e o outro que entra com sua careta hedionda.

Com essas considerações nós compreenderemos melhor como as mil pequenas transformações que a todo o momento se dão na humanidade não são comuns. Trata-se de transformações que indicam sempre um passo nessa marcha para o abismo, a hediondez, a completa ausência de moralidade, de Fé, de cultura e de civilização.

Então, as menores coisas: um modo monstruoso de se arranjar ou de se desarranjar, uma nova maneira de se tratarem, um novo estilo de dançar, inclusive um novo formato de garrafa, em tudo isso entra sempre uma influência a mais dessa força histórica que conduz o mundo para a hediondez.

Qual é essa força? No fundo, é a força do demônio, porque excede a maldade humana ser assim. O homem é muito ruim, mas não tanto que chegue até lá. Essa marcha prova a existência do demônio. Cada uma dessas transformações é uma ascensão nessa posse do demônio sobre nós, sobre o mundo. É, portanto, algo ainda da claridade da Idade Média que vai nos deixando, nos abandonando. E tudo o que nos cerca é um contínuo morrer da luz e um aumento das trevas.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/4/1970)

Revista Dr Plinio 232 (Julho de 2017)

 

1) Paris: Ed. Beauchesne et ses fils, 1957.