Stabat Mater…

No Calvário, Nossa Senhora viu o céu encher-se de trevas, a terra tremer e o Templo sacudir-se. Ela, entretanto, manteve-se de pé!

Só A vemos sentada quando colocaram o Divino Cadáver sobre seus joelhos, para ungi-Lo com os aromas, conforme o costume judeu, antes de O depositarem na sepultura. Assim mesmo, Ela é representada com o busto ereto.

Daí vem a poesia famosa “Stabat Mater dolorosa, juxta Crucem lacrimosa” — Junto à Cruz, chorando, estava a Mãe cheia de dores. Mas “stabat”, em latim, não quer dizer simplesmente “estava”; significa “estava de pé”.

Assim deve ser a alma do verdadeiro católico!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/6/1988)

Per lucem ad crucem

A constatação de nossa insuficiência em face dos sofrimentos pode nos levar a fugir do caminho da cruz, indispensável à nossa santificação. Como estarmos preparados para oferecer, sem pânicos nem desânimos, os sacrifícios que nos venham a ser pedidos?

 

Devo tratar nesta conferência a respeito de como acondicionar a cruz para que a pessoa saiba andar com ela, entendendo-se desde já como cruz não apenas os sofrimentos lancinantes que dilaceram e estraçalham, mas também a vida cotidiana nos seus aspectos normais, com uma dose de felicidade ou de bem-estar normal, que não é a alegria de delirar, e as dores também normais.

Portanto, a matalotagem que o indivíduo precisa levar no caminho da cruz, e como ele deve ver esse caminho e a suportabilidade da cruz para nele andar.

Os grandes e os pequenos sacrifícios

Muitos pregadores — não os censuro por isso, acho normal — quando falam da cruz, querem levar as almas num só voo para a admiração e a eventual aceitação da dor no que ela tem de mais lancinante e terrível.

Então dizem: “Eu vou falar da cruz. Olha, São Vicente sofreu tal martírio assim… Este outro fez isso e suportou tal situação, etc.” Pergunto: Isso é bom ou não?

Para tratar da questão da cruz é preciso, antes de tudo, um discernimento dos espíritos, porque de fato a graça chama a alma para a cruz conforme as ocasiões, os momentos. Há determinados lampejos em que ela convida de uma vez a pessoa para o pináculo da cruz, e pode ser um principiante. Às vezes, ela não chama para o pináculo, mas vai se revelando lentamente, gradualmente.

Então, pode ser que para um auditório, em certo momento, em determinada situação, um pregador seja levado, pelo discernimento dos espíritos, a ensinar a cruz no que ela tem de mais terrível: “Meus caros irmãos, quereis saber o que é a cruz? Ouvi essas palavras: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’”(1). Começar por aí e produzir um choque. Como também pode acontecer que inicie pela doutrina dos pequenos sacrifícios, de Santa Teresinha do Menino Jesus, porque a cruz é tão divina, tão enorme, tão complexa, que não a pega quem quer, do jeito que deseja. Cada um é atraído pelo Espírito Santo, pela graça, a apanhá-la de um jeito. E se pegar do jeito errado, não entra no caminho da cruz.

Admirar as pessoas mais perfeitas

A grande maioria dos fiéis tem que viver a cruz nas condições de vida comum, porque, do contrário, a sociedade temporal desaparece. Isso está ligado à teoria do estado de perfeição. A perfeição é sempre uma cruz, e uma cruz insigne. E o estado de perfeição, vivido em toda a sua autenticidade, é um estado de cruz.

Entretanto, o estado de perfeição deve ser praticado por muitos, não porém por todos. E esses muitos constituem uma multidão e ao mesmo tempo uma minoria. Porque, em absoluto, o número dos que seguem a perfeição é muito grande. Por exemplo, podemos dizer que a Igreja tem um número colossal de Santos. Não há exagero nem mentira nisso. Mas, se for comparado com o número de homens, é um pingo.

Então, são tantos que se poderia falar que há um número infindável de Santos. Mas, de outro lado, se poderia dizer também: é pequeno o número de Santos canonizados.

Na perspectiva de que esse número é pequeno, que há uma quantidade infindável de almas que não são chamadas para determinada perfeição, mas a admiram, embora sabendo que não irão adquirir aquela perfeição, elas devem ter uma espécie de tristeza de não serem chamadas para aquela perfeição. E só a alma que admirou profundamente a cruz para a qual ela não é chamada consegue ser correta.

Aqueles que admiram os mais corretos e os mais exímios conseguem ser corretos. A partir do momento em que o indivíduo deixa de ter um amor abrasado, um entusiasmo pela perfeição para a qual não foi chamado, ele começa a relaxar.

É um modelo que ele sabe que não tem proporção para seguir, e fica com certa nostalgia de não poder acompanhar. Este ponto é muito importante.

Um cuidado ao se levantar o estandarte da cruz

Então, pode-se pregar a cruz no que ela tem de mais terrível, tranquilizando as pessoas: “Não se tomem de um escrúpulo torturante ao verem que não são capazes disso, mas compreendam que podem amar sem ser tragadas por esse sofrimento que não lhes será pedido. Ou, se for pedido — porque não se sabe qual é o futuro do homem —, vocês receberão outras graças que não têm agora. Sentirem-se proporcionadas com isso no momento, não é sua obrigação”. Tenho a impressão de que, ao levantar o estandarte da cruz, a primeira precaução é essa; do contrário, perde-se o rumo.

Lembro-me de uma experiência pessoal. Eu tinha muita admiração pelos mártires, mas um medo enorme de passar pelos sofrimentos que eles tiveram. E me perguntava: “Você está embevecido de admiração por eles. Do que vale essa sua admiração? Eu queria ver se você, diante de um leão, tomaria a atitude deles. Não toma! É um fracalhão. Essa sua admiração é hipócrita!”

Eu sentia que isso me perturbava a fundo. Parecia uma increpação virtuosa, tinha seu quê de virtude, mas com algo mal visto, mal compreendido. Até que ouvi um padre dizer, de passagem, diante de mim: “A maior parte desses mártires tinha a graça no momento de chegar diante da fera”.

Para mim foi uma descoberta! Comecei a admirar os mártires sem me causar nenhum arrepio. Isso eu vi repetido, depois, em mil situações e de mil modos.

Portanto, eu colocaria como primeiro problema entender bem isso. Com o seguinte acréscimo: aquilo que se dá com os sofrimentos lancinantes, ocorre também com os padecimentos menores que conhecemos na vida de todos os dias. Vemos, de repente, alguém fazer um sacrifício de que nós não somos capazes. Admiremos! E admiremos sem remorsos, nem increpações tontas contra nós mesmos.

Alguém poderia dizer: “É bem verdade, essa cruz no momento não tenho que carregar. Eu terei que carregar algum dia? Como vai ser de mim quando precisar levá-la?”

A resposta é a seguinte: Não se ponha o problema. Admire debandadamente e sem restrições, e peça a graça — caso se ponha para você esse sofrimento — de ter a coragem de enfrentá-lo, mas sem certa forma de angústia que faz mal à alma.

O cálice por onde algo de superior penetra em nós

Quem de nós seria capaz de arcar com o sofrimento que teve Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora? Não há um! Nem de longe nós temos substância para isso. Mas, de tanto admirar aquilo de que não somos capazes, algo daquela graça entra em nós.

A admiração é o cálice por onde a coisa superior entra em nós.

E, na medida em que eu admiro a capacidade de outro sofrer, entra em mim essa capacidade. Não quero dizer que entre tanto quanto há nele, mas, dentro de minhas proporções, recebo esta capacidade à força de admirar.

A alma capaz de admirar é aberta a todas as estrelas, a todos os sóis. A alma fechada à admiração está entregue a si mesma. Da alma invejosa, então, nem sei o que dizer! Esta apedreja, insulta as estrelas!

Como entrada no caminho da cruz, devemos admirar a cruz, naturalmente antes de tudo o Crucificado e a Corredentora, mas não nos limitemos a exemplos históricos. Procuremos ver a cruz naqueles que, em torno de nós, praticam o amor à cruz.

Porque ficar no mundo do que passou, é permanecer no zero. Eu só entro em nexo com aquilo que passou quando admiro algo de congênere que ocorre em torno de mim, e por aí chego até o passado. A Paixão de Nosso Senhor não passou, pois de algum modo ela é permanente.

Então deveríamos olhar admirativamente em torno de nós. E se não temos o costume de fazer exame de consciência para saber o que se passa em nossas almas, entram pedregulhos de inveja que causam relutância em relação a essas considerações. Não tenhamos ilusões, porque entram. A inveja é tal que, ou temos a certeza de tê-la expulsado, ou ela habita em nós. Não é alentador, mas é a pura verdade. Tratemos de vencê-la, portanto, e procuremos admirar, pois temos importantes razões para querer que nossas almas progridam nisso.

Pedir forças a Nossa Senhora

Se fosse possível fazermos uma meditação sobre nossa própria cruz, precedida de uma cuidadosa preparação na linha do que estou dizendo, sairíamos da pura teoria e teríamos condições para entrar no caminho da cruz. Se não for assim, não entramos verdadeiramente.

Pode acontecer que alguém tenha diante de si um sacrifício que não tem coragem de fazer. E o pior é o seguinte: não se trata de algo extraordinário, mas está abaixo das reais resistências do indivíduo. Porém, por ser ele um poltrão, não tem forças.

Então, se sou um poltrão, rezo: “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!” Vou pedir para Ela me dar as forças que eu deveria ter e não possuo, que Ela tenha pena de mim. Vou rezar, rezar, e acabarei obtendo. Mas nunca devo me aproximar da cruz em seco, porque isso costuma causar muitos desvios!

Com essa postura a cruz se torna manuseável. Fora disso, não. E o exemplo foi Nosso Senhor, o Qual como que Se manifestou sem proporção com a Cruz d’Ele, a tal ponto que disse “Pater, si fieri potest…”(2); e a oração d’Ele, como não podia deixar de ser, foi gratíssima a Deus Pai que Lhe mandou um Anjo. E depois o Cireneu no percurso da “Via Crucis”, que O ajudou a carregá-la; a Verônica; o encontro com Nossa Senhora, etc.

Tudo isso é muito matizado, e sem essas matizações nós fugimos da cruz, o que é um disparate, pois se Deus matiza tanto para nós o caminho do sofrimento, por que havemos de imaginá-lo sem matizes?

A meu ver, para percorrermos esse tema sem constrição para nossas almas, seria absolutamente necessário considerar esses matizes como pórtico do tema da cruz.

Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição

Outro lado que ainda está no condicionamento da via da cruz é o seguinte: essas multidões de pessoas a quem nos referimos acima, aparentemente não são chamadas à perfeição. Por quê? Seria pelo fato de estarem destinadas à sociedade temporal? Esse é um erro.

É verdade que todos os que pertencem a Ordens religiosas são chamados para o estado de perfeição. O religioso que, consciente e voluntariamente, deixe de tender para a perfeição comete pecado grave. Essa é a doutrina da Igreja.

Contudo, se não houver entre os membros da sociedade temporal um bom número de pessoas que, dentro das condições próprias ao âmbito civil, pratiquem intencionalmente a perfeição, a sociedade temporal fenece, perece. De maneira tal que não devemos identificar a perfeição com a condição eclesiástica ou religiosa, e a imperfeição consentida e desavergonhada com a sociedade temporal. Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição. Para o grau de perfeição dos religiosos, a grande maioria não é chamada, mas sim a um determinado teto de perfeição, dentro da vida que leva, e para isso deve tender.

Tomemos, por exemplo, a Igreja de São Basílio, em Moscou, com aquelas cúpulas. Aquilo poderia ser o gráfico das perfeições. Algumas perfeições são enormes, outras são pequenas, como os torreõezinhos que têm na ponta uma cúpula pequenininha também. Assim é a multidão das almas: cada uma é como um torreão que tem no alto uma cúpula, ou seja, uma perfeição própria para a qual deve tender.

Considerar que alguém pode até chegar ao Céu sem passar pelo Purgatório, por ter vivido retamente na sociedade temporal para uma perfeição menor que foi atingida, faz com que a pessoa esteja animada por ter encontrado para si um ideal muito belo. Com isso, creio que a alma fica arejada e balizada para entrar no caminho da cruz.

Esse caminho é lindo e cheio de surpresas, como uma navegação num mar ignoto, que apresenta as borrascas e as ciladas mais tenebrosas, mas também os panoramas mais magníficos.

Deus nos pede o sacrifício, mas nos sustenta com sua graça

Assim, há certas coisas que, para o comum das pessoas, constituiriam um sacrifício medonho a praticar; entretanto, quando se é chamado pela graça a uma vocação, a alma se enche de alegria e de consolação.

Exemplifico com a Gruta de Lourdes. Há voluntários que se esmeram em dar banho aos doentes em piscinas apropriadas.

Alguém diria: “Olhe, você vai ter contato com o que há de mais repugnante, mais terrível. Você precisará mexer naquela água de banhos imundos, onde há as cascas de feridas, o pus de todos os que por ali passaram e os micróbios mais ameaçadores de todas as doenças. Aquelas piscinas são anti-higiênicas no sentido mais violento e literal da palavra, e você porá as suas mãos limpas, que desinfetou antes, naquela água para lavar aqueles doentes! Isso será para você uma tortura todos os dias”.

Para quem se sentiu chamado por uma graça para fazer isso, não é uma tortura. Vá lá, mexa naquilo, a graça vai mexer na sua alma de outro jeito e você dará os banhos com naturalidade. Não considere, portanto, a situação como ela não vai ser.

Com muitas modalidades de sofrimento se dá isso. Sofre-se muito, mas não se percebe que a Providência pôs uma suavidade na alma a propósito daquele padecimento, de maneira que, quando o sofrimento acabou, tem-se gosto de se lembrar dele. E às vezes vai-se ao lugar onde se padeceu, para dar graças a Nossa Senhora por aquele sofrimento.

Convém, pois, cada um compreender que não deve confrontar o sofrimento futuro com o seu estado de espírito atual, porque, quando chegar a hora de sofrer, Maria Santíssima obterá as forças. Ainda mais, Ela, que é Mãe de Misericórdia, providenciará os meios para se padecer aquilo potavelmente.

Diz-se que quando Deus permite que fiquemos doentes, Ele mesmo prepara a cama para nos deitarmos.

Existe uma doçura especial no âmago do sofrimento, quando nos lembramos de que ele nos foi dado por Deus: é o travesseiro suave que a Mãe de Misericórdia nos preparou para aguentarmos tal padecimento. Vamos adiante porque, quando isso terminar, teremos saudades desses dias. Parece-me muito importante considerar isso também.

São das tais graças como a de Jesus com os discípulos de Emaús: no momento de ir embora, revela-Se. Na hora do sofrimento cessar, percebemos que uma mão estava nos segurando, e ficamos encantados!

Aversão à atitude de Múcio Cévola

Entretanto, as pessoas que tratam habitualmente da dor não a apresentam assim, mas à maneira de um Múcio Cévola(3). Sempre tive aversão àquele tipo de atitude. Queimar minha mão? Não! Fico apavorado, tenho horror ao fogo e não vou pôr nele meu braço! Porém, se eu receber uma graça especial, ponho. Mas numa perspectiva católica, como São Lourenço na grelha.

Há, portanto, atenuantes, acolchoados que nos conduzem àquilo. Não nos apavoremos! A entrada no caminho do sofrimento é, ao mesmo tempo, uma resolução heroica e viril, mas também uma ponderação dos mil acolchoados que entram dentro disso. Do contrário, não se viveu e não se sofreu catolicamente.

Fizemos juntos uma preparação para a entrada da cruz em nossas vidas e para o modo pelo qual devemos ver a cruz. Foi apresentado um equilíbrio entre a luz e a cruz, de tal maneira que se poderia dizer “per crucem ad lucem”(4), mas também “per lucem ad crucem”, que é o reverso da medalha que poucas pessoas consideram.

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 6/12/1985)

1) Mt 27, 46.
2) Do latim: “Pai, se for possível…” (cf. Mt 26, 39).
3) Conta Tito Lívio, historiador romano, em sua obra História de Roma desde a sua fundação, que em 508 a.C. Roma foi cercada por um rei etrusco de nome Porsena. Ante o perigo, um jovem romano chamado Gaio Múcio Cévola se voluntariou a matar o rei. Mas, ao entrar no acampamento inimigo, foi aprisionado. Levado ante o rei e questionado sobre a estratégia dos romanos, Gaio disse: “Sou um cidadão de Roma e vim para matar um inimigo ou morrer com valentia, e muitos como eu estão dispostos a fazer o mesmo.” O rei o ameaçou de queimá-lo vivo se não contasse detalhes dos planos romanos. Então, Gaio Múcio colocou sua mão direita em um fogo que havia ao seu lado, deixando-a queimar até os ossos, diante do rei e de outros nobres assombrados com tal ato de valentia.
4) Do latim: “pela cruz à luz”.

Ardorosa certeza

Na hora trágica da dúvida e do abandono, enquanto o Corpo do Redentor jazia no sepulcro, para todos tudo parecia acabado. Todos, exceto Aquela em cuja alma a crença nas promessas divinas jamais vacilara. Como uma tocha de fé e de convicção, Maria Santíssima ardia na certeza de que Nosso Senhor ressuscitaria conforme dissera. Fé sem sombra de hesitações. Certeza absoluta. E uma expectativa imensamente dolorida (porque pensava nos cruéis padecimentos de seu Filho), mas imensamente calma, serena, porque confiante na vitória d’Ele que se aproximava.

“Durante a noite que é belo acreditar na luz”, escreveu o poeta. Na noite mais escura da história cristã, só a Virgem acreditou na luz. Por isso, foi esse um dos mais belos instantes de sua gloriosa existência…

Hosana

Passar por reveses, derrotas, angústias, ansiedades, ver-se à beira da extinção, diante de imensos perigos, enfrentar aparentes decadências e, entretanto, pela graça de Deus acabar vencendo — eis o sentido cristão da palavra “admirável”. Exemplo paradigmático, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os maiores milagres, os maiores êxitos, uma verdadeira aclamação como Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e uma súbita e inesperada derrocada que desfecharia nas dores e aflições da cruz. Pouco depois, o espetacular triunfo da Ressurreição. Isto é ser, na inteira força do termo, admirável!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

IX Estação: Jesus cai pela terceira vez

Nesta meditação extraída de uma Via Sacra composta por Dr. Plinio em 1943, ele nos ensina a evitar uma concepção errada sobre uma importante virtude cardeal: na maior parte das vezes é mais  prudente recuar do que avançar.

 

Há mistérios que o vosso Santo Evangelho não narra. E entre eles eu gostaria de saber se me engano ao supor que essa vossa terceira queda foi feita, meu Senhor, para expiar e salvar as almas dos prudentes. 

A prudência é a virtude pela qual escolhemos os meios adequados para obter o fim que temos em vista. Assim, os grandes atos de heroísmo podem ser tão prudentes quanto os recuos estratégicos.

Se o fim é vencer, em noventa por cento dos casos é mais prudente avançar do que recuar. Não é outra a virtude evangélica da prudência. 

Entretanto… entende-se que a prudência é só a arte de recuar. E, assim, o recuo sistemático e metódico passou a ser a única atitude reconhecida como prudente por muitos de vossos amigos, meu Senhor. E por isto se recua muito… A realização de uma grande obra para vossa glória está muito penosa? Recuasse por prudência. A santificação está muito dura? A escalada na virtude multiplica as lutas em vez de as aquietar? 

Recua-se para os pântanos da mediocridade, para evitar, por prudência, grandes catástrofes. A saúde periclita?  Abandona-se, por prudência, todo ou quase todo apostolado, mediocriza- se a vida interior, e transforma-se o repouso no supremo ideal da vida, porque a vida foi feita, antes de tudo, para ser longa. Viver muito passa a ser o ideal, em vez de viver bem. 

O elogio já não seria como o da Escritura: “Em uma curta vida percorreu uma longa carreira” (Sab. 4, 13). Seria, pelo contrário, “teve longa vida, para o que teve a sabedoria de renunciar a fazer uma grande carreira nas vias do apostolado e da virtude”. Vidas longas, obras pequenas. E vossa prudência como foi, ó Modelo divino de todas as virtudes?

Quantos amigos tendes, que Vos conselhariam a renunciar quando caístes da primeira vez? Da segunda vez, seriam legião. E vendo-Vos cair pela terceira, quantos Vos não abandonariam escandalizados, achando que éreis  temerário, falto de bom senso, que queríeis violar os manifestos desígnios de Deus!? Que esse passo de vossa Paixão nos dê graças, Senhor, para sermos de uma invencível constância no bem, conhecendo perfeitamente o caminho do verdadeiro heroísmo, que pode chegar a seus limites mais extremos e mais sublimes sem jamais se confundir com uma vil e presunçosa temeridade. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 18/04/1943)

Preparando a alma para a Semana Santa

Ao nos aproximarmos da Semana Santa, devemos ter uma compreensão clara de seu significado e do bem que a Igreja tem intenção de nos obter durante esses dias. Dr. Plinio, com entranhada piedade, nos aponta como participar das comemorações da Paixão de modo atento, devoto e esperançado.

 

Sem prestar atenção nas coisas, nada se faz bem feito. Por exemplo, um pintor que não presta atenção na pintura, não faz nada que preste. Fixar a atenção aonde deve e mantê-la ali durante o tempo necessário, é condição para que a pessoa faça qualquer coisa de bom.

Essa verdade se aplica, sobretudo, para aquilo que há de mais importante: os atos de piedade pelos quais a pessoa se volta para Deus, pede-Lhe graças e as recebe. É preciso saber recolher essas graças e aproveitá-las, agindo na linha em que elas indicam.

Tudo isso supõe muita seriedade. E para termos essa seriedade bem atenta durante o importantíssimo período do ano litúrgico onde os católicos comemoram a Paixão e Morte de Cristo, a Compaixão de Nossa Senhora e a Ressurreição de Nosso Senhor, apresentarei algumas noções a respeito dessas comemorações.

As consequências do pecado original

Quando Adão e Eva pecaram, como consequência, perderam os dons preternaturais: ficaram sujeitos à morte, a tormentos, a doenças, a dores, a indisposições, etc. Sua inteligência tornou-se mais limitada e perderam o domínio que tinham sobre os animais, desde o tigre ou leão mais feroz até o menor inseto. Qualquer mosquitinho pode nos perturbar; antes do pecado isso não sucedia com Adão.

O estudo e o trabalho, quer o manual, quer o intelectual, tornaram-se difíceis. Para a mulher, a gestação passou a ser frequentemente acompanhada de incômodos de saúde, e o dar à luz um filho, dolorido. E há uma série de outros castigos causados pelo pecado original.

Porém, isso não é nada em comparação com o seguinte. Como o pecado cometido tinha uma gravidade infinita, ficaram fechadas para o homem as portas do Céu. E, além de padecer nesta Terra, o homem corria grave risco de ir para o inferno.

Porque, depois do pecado, o homem ficou com tendências para o mal, com muita dificuldade em praticar o bem, como demonstra o episódio de Caim e Abel.

Caim e Abel

Adão e Eva tiveram muitos filhos; entre outros, Caim e Abel. Este era o predileto, bem apessoado, bom, dedicado e amava a Deus. Caim, pelo contrário, era um homem irascível, de mau gênio e invejoso.

O Gênesis não narra detalhes, mas eu imagino que a história de Caim e de Abel tenha se dado do seguinte modo:
Certa ocasião, Abel ofereceu um sacrifício a Deus: colocou frutos sobre um altar e ateou fogo a fim de consumi-los em louvor de Deus, tendo-se evolado bonita fumaça em direção ao céu.

Caim fizera também um altar, sobre o qual pusera frutas podres, e a fumaça que subira era feia. Vendo que o sacrifício de Abel era aceito por Deus e o dele rejeitado, ficou com inveja do irmão e, tomado de ódio, matou-o.

Podemos imaginar quanto Adão e Eva sofreram com isso. Nunca haviam visto uma pessoa morta, e estavam agora diante do cadáver do filho predileto. E dirigiram seus olhos para Caim, que estava com uma cara péssima, pois cometera um homicídio, um pecado que clama ao Céu e brada a Deus por vingança.

E era um homicídio com terrível agravante, pois se tratava de fratricídio.

Amaldiçoado por Deus, Caim começou a cumprir o castigo que o Criador lhe impôs: andar por toda parte sem poder parar. De tempos em tempos, Adão e Eva viam Caim meio desvairado passar, e talvez dizer-lhes: “Eu não posso parar, tenho que andar, andar, andar, porque matei meu irmão…” E novamente se afundava pelo mato.

Para salvar o gênero humano, a própria Segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio à Terra

Mas Deus queria salvar o gênero humano, e para isso era preciso que alguém resgatasse o pecado de nossos primeiros pais. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade deveria encarnar-Se e sofrer tudo quanto Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu, para que até o fim do mundo ficassem abertas as portas da graça e do Céu para o homem.

E os fiéis à comunicação de que viria um Salvador, um Messias, ficaram esperando e, em cada nova geração, eles se perguntavam: “Virá o Messias? Será o filho de um de nós?” E passaram-se milhares de anos quando, afinal, numa manhã, uma Virgem estava rezando e o Anjo Gabriel Lhe aparece, dizendo-Lhe que Ela era cheia de graça, perfeita aos olhos de Deus.

O Messias nasceria d’Ela e, em última análise, perguntava-Lhe se concordava com isso. Sua resposta foi um assentimento sublime:
“Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.”

Naquele momento, o Divino Espírito Santo interveio em Nossa Senhora e o Verbo se encarnou e habitou entre nós.

Previsão do atroz sofrimento

Em todo presépio bem feito, o Menino Jesus aparece sorrindo, afável, como uma criança que está encantada em ver sua Mãe — que Mãe! Pode-se imaginar o encantamento d’Ela em ver seu Filho, com “F” maiúsculo; que coisa incomparável! —, mas com os braços abertos, em forma da Cruz.

Quer dizer, Ele vinha à Terra ciente de que era para padecer o sofrimento da Cruz. Jesus sabia tudo que iria sofrer em todos os dias de sua vida, para salvar os homens. Ele foi o ápice dos profetas, o Profeta perfeito; não só previa o que acontecia, mas fazia o que previa.

Há composições muito bonitas — São José era carpinteiro — que representam Jesus, já adolescentezinho, trabalhando com o pai. Em certo momento, Ele apanha dois pedaços de madeira formando uma cruz e fica, sozinho, contemplando-a.

Outras mostram Nossa Senhora, na casa de Nazaré, olhando, por uma porta entreaberta, Nosso Senhor Jesus Cristo, que está numa sala vizinha rezando com os braços abertos em cruz, compreendendo e pré-sofrendo o que viria.

Início da vida pública

Ele passou trinta anos de vida particular na oração, no recolhimento, junto com São José e Nossa Senhora. E nesse período faleceu São José, que é o Patrono da boa morte, porque morreu tendo Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora alentando-o. Portanto, não se pode ter melhor morte do que a dele.

Certo dia, Jesus se despede de Maria Santíssima, a qual compreende que Ele vai para a sua vida pública. Não será mais a vida do lar, mas a do mundo; Ele vai começar a pregar, fazer milagres, converter pessoas, bem como suscitar um entusiasmo e uma veneração indizíveis, que se manifestarão no Domingo de Ramos.

Mas também vai despertar a inveja, o ódio. Muitos viram-No chorar pela morte de Lázaro e depois, chegando diante de seu sepulcro, dar a ordem: “Lázaro, venha para fora!” Lázaro levantou-se, provavelmente ainda todo enfaixado com as tiras com que os judeus envolviam os mortos, e desfez-se daquilo.

Coisa fantástica, pois afirma a Escritura que Lázaro estava havia quatro dias na sepultura e, conforme disse Marta, já devia estar cheirando mal. Nosso Senhor mandou-o sair da sepultura, e ele assim o fez em condições de perfeita saúde.

Podemos calcular a alegria de suas irmãs e o entusiasmo dos que seguiam a Nosso Senhor! Mas houve também ódio a Nosso Senhor, porque Ele era santo e pregava a virtude. Os maus odeiam o bem, a virtude, e a quem faz milagres para propagar o bem e a virtude.

Movidos por esse ódio, os maus combinaram entre si de matar Jesus.

Nosso Senhor celebra a Páscoa e chora sobre Jerusalém

Afinal, chega o momento. Era Páscoa, e Nosso Senhor vai com os seus ao Cenáculo, a fim de celebrá-la. Ele institui a Sagrada Eucaristia e depois, com os Apóstolos, se dirige cantando, como era costume entre os judeus, para um lugar onde pudessem fazer oração.

Chegam assim ao Horto das Oliveiras, depois de ter passado por um local do qual viam de longe o templo e a cidade de Jerusalém, sobre a qual Jesus havia chorado. Ele sabia perfeitamente que aquele templo seria destruído, e também a cidade, a respeito da qual fez uma linda comparação: quantas vezes procurou reunir sua população em torno d’Ele, como a galinha faz com os pintainhos. Entretanto, eles não quiseram e veio o castigo.

O lance mais pungente da Paixão

Começou, depois, a Paixão de Nosso Senhor, com sofrimentos inenarráveis. A meu ver, o mais doloroso ocorreu quando Ele se encontrou com Nossa Senhora, porque A viu sofrer tudo quanto um coração de mãe pode padecer naquela situação, no meio daquela canalha vil. Ela sabia que Jesus estava sendo conduzido para a morte e seguiu-O, fidelíssima, até o cimo do Calvário, onde ficou aos pés da Cruz até o momento de Ele morrer.

No alto da Cruz, quando os estertores das piores dores O atormentavam, Nosso Senhor fez ainda um ato boníssimo, convertendo o bom ladrão, que se chamava Dimas, e dizendo-lhe: “Hodie eris mecum in paradiso — Tu estarás comigo hoje no Paraíso”. Foi a primeira canonização, e a Igreja o saúda como São Dimas. Ele havia sido um ladrão, um bandido, mas abria-se agora a era da misericórdia.

Os últimos sofrimentos

Recentemente, médicos estudaram o que Nosso Senhor deve ter sofrido na Cruz. Cada um de seus pulsos foi transpassado por um cravo, e não havia um suporte embaixo dos pés, como em geral os crucifixos apresentam. Seus pés também estavam atravessados por um cravo, que os prendia diretamente no madeiro da Cruz.

Antes de ser crucificado, Nosso Senhor havia perdido bastante sangue, mas no alto da Cruz perdia muito mais. Quando sentia falta de ar, a fim de respirar melhor, Ele se elevava apoiado nos cravos das mãos e dos pés, sofrendo com isso dores atrozes.

Nesse terrível tormento Jesus ainda disse: “Mulher, eis aí teu filho!”, “Filho, eis aí tua Mãe.” Essas palavras indicavam um grande perdão, porque São João Evangelista havia dormido no Horto das Oliveiras.

O fato é que São João, a partir daquele momento, passou a ser especialmente filho de Nossa Senhora. Ele era parente muito chegado de Maria Santíssima, porque a mãe dele era prima d’Ela. Mas não era filho. Filho ele se tornou quando Nosso Senhor disse-lhe: “Filho, eis aí tua mãe.” Aquele que horas antes fugira, recebia agora a maior graça que se pode imaginar.

E no auge das dores, Jesus exclamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Ele sabia que não estava abandonado; era um clamor, pois seu sofrimento havia chegado ao auge. Depois inclinou a cabeça e expirou.

No alto da Cruz, Nosso Senhor tinha presente cada ato que praticamos

Nosso Senhor tinha ciência de tudo, do presente, passado e futuro, porque era o Homem-Deus. Conhecia todas as pessoas e, portanto, cada um de nós individualmente. No alto da Cruz, Ele teve em vista todos os pecados por nós cometidos, todos os nossos atos de virtude, minhas palavras neste auditório e os que estão me ouvindo. E ofereceu seus sofrimentos e sua vida por cada um de nós individualmente.

Jesus abriu o Céu para nossas almas. Continuamente nos concede graças, sua misericórdia desce sobre nós. Ele vem ao nosso coração por meio da Sagrada Comunhão. Sua Mãe está rezando o tempo inteiro no Céu por nós, como nossa Advogada.

O problema central de nossa vida…

Caso pequemos, arrependemo-nos imediatamente e, por meio de Maria Santíssima, peçamos a Ele que nos perdoe. Se for um pecado mortal, precisamos ir logo nos confessar para que essa mancha repugnante e horrível se apague de nossas almas, a fim de voltarmos à graça de Deus.

E devemos nos compenetrar de que o problema central de nossa vida consiste em praticarmos cada vez mais atos de virtude e sermos imitadores de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela intercessão de Maria. E, por outro lado, calcarmos aos pés o demônio, recusando as solicitações para o pecado que ele nos faz para o pecado. E, confiando em Nossa Senhora, poderemos dizer: “Non peccabo in aeternum – Não pecarei eternamente”.

Para que tudo isto não se apague das almas dos meus ouvintes — recordem-se de como o beneficiado tende a se esquecer do benefício recebido —, é preciso rezar a Nossa Senhora, pedindo-Lhe que isso não aconteça. E que Ela lhes dê as graças necessárias e superabundantes a fim de não pecarem mais. Desse modo, suas vidas transcorrerão na contínua amizade de Deus e de Nossa Senhora, até o momento bem-aventurado em que entregarem suas almas a Deus e subirem para o Céu.

Esta é uma introdução para esses dias de meditação.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído  de conferência  de 2/3/1991)

Como devemos carregar a nossa cruz

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo nos serve de lição para a vida: devemos, também nós, carregar nossa cruz todos os dias! Ao meditar o sofrimento do Redentor, Dr. Plinio haure valiosos princípios para nossa vida espiritual.

Sendo hoje Quinta-feira Santa, pareceu-me conveniente comentar alguns trechos da “Concordância dos Santos Evangelhos”(1), a fim de nos prepararmos para a grande comemoração que amanhã se dará: a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz e a Redenção do gênero humano.

Acontecimentos trágicos que viriam depois

“Depois dessas palavras, tendo recitado o hino de ação de graças, saiu Jesus com os discípulos para além da corrente do Cedrão. Dirigindo-se para o Monte das Oliveiras segundo costumava, chegara a um lugar chamado Getsêmani, onde havia um jardim em que entrou com seus ­discípulos.

“Chegando a esse lugar, disse-lhes Jesus: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.’”

Vemos que há uma delimitação clara entre a festa de instituição da Eucaristia, da primeira Missa, e a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Santa Ceia tem um caráter festivo, sobre o qual já se projetam as sombras e as tristezas dos acontecimentos trágicos que virão depois. Concluída a ação de graças, a festa cessou, e Ele começa então a enfrentar a dor, o drama, a grande luta. Sua vida já fora de lutas, mas nesse momento ela chega ao auge, ao apogeu.

Para bem saborear os acontecimentos que o Evangelho narra, nessa linguagem tão simples, devemos imaginar o estado de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, as disposições do Sagrado Coração de Jesus ao longo desses fatos.

A Santa Ceia para Ele foi triste por dois motivos: em primeiro lugar porque o Redentor via a Paixão que começaria logo após, pois, evidentemente, Ele tinha o conhecimento de tudo.

E também por causa da situação tristíssima dos Apóstolos. Na narração da Santa Ceia aparecem manifestações da insuficiência e da mediocridade dos Apóstolos. E o que deveria cortar o Sagrado Coração de Jesus, transpassá-Lo mais do que a lança de Longinos, era a infidelidade dos Apóstolos, o insucesso da obra que Nosso Senhor havia começado com eles.

O Redentor, dando-lhes a maior manifestação de seu amor até aquele momento, instituindo a Sagrada a Eucaristia e oferecendo-Se a Si próprio em comunhão a eles, vê aquelas almas receberem esse dom incomparável com frieza: São Pedro, grandiloquente; Judas, nas condições abomináveis que não vale a pena referir; os outros Apóstolos se preparando para a fuga.

Há aquele episódio tão bonito de São João Evangelista, discípulo amado, que reclina a cabeça sobre o peito de Jesus e pergunta-Lhe quem seria o traidor; e Nosso Senhor, então, disse quem era. Ora, esse discípulo “a quem Jesus amava”, ia fugir como os outros.

Quer dizer, tudo são sombras que vão baixando e ao mesmo tempo os clarões da Missa se vão acendendo. E Nosso Senhor Jesus Cristo, que conhecia todos os tempos e tudo quanto haveria de acontecer, se deleitava com a ideia de toda a glória que a Sagrada Eucaristia e a Missa dão ao Padre Eterno, com as adorações que Ele receberia dos Santos e das almas eleitas, até o fim do mundo. Todos esses sentimentos penetraram no Coração d’Ele e constituíram um claro-obscuro de tristeza e alegria; em certo momento o clarão se retira e Nosso Senhor vai entrando cada vez mais nas sombras de sua dor e de sua morte. Cada passo que se aproxima é mais trágico do que o outro.

Ele caminha, mas caminha seguramente, sem um minuto de distensão, de alívio — a não ser quando recebeu o Anjo que o consolou, e na hora em que viu Nossa Senhora e teve a presença d’Ela ao longo da via sacra —, tendo no alto do Calvário, no auge da dor, exclamado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”(2)

E até o “consummatum est”, ou seja, tudo quanto era para sofrer está sofrido, as coisas vão se tornando mais densas para Ele.

A Paixão, uma luta travada na solidão

Então, podemos imaginá-Lo triste após a Ceia, andando pelas ruas de Jerusalém com os Apóstolos, até o Getsêmani, onde começa sua agonia — agonia, em grego, quer dizer luta; os atletas eram chamados agonistas, porque lutavam na arena —, ou seja, a grande luta que Ele vai travar sozinho. E a solidão é uma das tragédias d’Ele durante a Paixão, até o momento em que Nossa Senhora aparece.

Ele se isola, porque sente que ninguém é digno de estar perto d’Ele nesta hora, e diz aos Apóstolos sonolentos e indiferentes:
“Sentai-vos aqui, enquanto vou ali fazer oração. Orai também para que não entreis em tentação.”
Quando Ele se afasta, em vez de algum Apóstolo perguntar-Lhe “Senhor, por que Vos isolais?” ou “Senhor, não precisais de mim?”, eles nesse lance começam a vacilar, e a tragédia de alma de Jesus já se faz sentir.

“Depois, tomando consigo a Pedro e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João, começou a sentir pavor e angústia, e caiu em tristeza e abatimento. — Minha alma está triste até a morte, lhes disse Ele. Ficai aqui e velai comigo.”

Esses Apóstolos, Ele quis ter consigo — os outros, deixou para trás —, e numa maior intimidade lhes explica: “Minha alma está triste até a morte.” E pede-lhes: “Velai”, ou seja, “Ficai acordados comigo. Eu quero ter o reconforto de vossa presença e de vossa compaixão, enquanto estiver passando por esta dor tão grande.”

“Adiantando-se um pouco, afastou-se deles à distância de um tiro de pedra, prostrou-se com a face no chão e começou a orar para que, se fosse possível, se afastasse d’Ele aquela hora.”

Tenhamos em mente o Santo Sudário de Turim: aquele olhar, aquela majestade de Nosso Senhor. O que significaria, para quem tivesse um pouco de alma, ver aquela fronte na qual estava resumida toda a glória do universo, aquele olhar que sintetizava, em grau excelso, de superação inimaginável, a santidade possível em todas as almas em todos os tempos, a inteligência, a força, a bondade, enfim todas as qualidades; contemplar aquela face, o mais perfeito espelho de Deus, que jamais tinha sido criado!

“Faça-se a vossa vontade e não a minha”

Podemos imaginar Nosso Senhor — que era um varão alto —, com uma túnica branca, numa noite que talvez tivesse a claridade da lua, com as sombras do arvoredo produzindo um claro-obscuro. O que teria de pungente, ver esse varão majestoso, inteiramente só… De repente, uma grande forma branca que se inclina e põe sua face em terra! Então, o Rei de toda glória rezava prostrado, acabrunhado por uma tristeza que O tomava até a morte.

E Ele dizia na sua oração, que os Apóstolos ouviram para depois poder contar, e assim ficasse constando para todo o sempre, estas palavras memoriais:

“Meu Pai, se é possível, afaste-se de Mim este cálice. Todavia, faça-se a vossa vontade e não a minha.”

É a oração mais doce, mais forte e mais contrarrevolucionária que talvez se tenha feito em toda a Terra.

Mais doce porque, vendo que o Padre Eterno quer o tormento, o martírio d’Ele, e vai tomá-Lo como vítima, Jesus Se apresenta cheio de amor e O trata “Meu Pai”, as palavras mais suaves que uma pessoa possa dizer a outra.

“Meu Pai”, diz Ele como quem geme! Sabe que vai sofrer aquele tormento, necessário segundo os desígnios de Deus, para sua glória. E Jesus, na sua humildade Santíssima, como que abandonado, seccionado de sua divindade, fica naquelas trevas. Sua natureza humana pede: “Se for possível evitar esse tormento, afastai-o”. Como quem diz: “É tão grande o peso da dor, que sou levado a Vos perguntar: Por misericórdia, não existe um modo de afastá-lo?”

Mas, logo depois Nosso Senhor acrescenta: “Se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha.” Vemos, então, além do afeto, a força: “Não sendo possível, embora não aguente, não tenha recursos, Eu começarei; porque nada existe que Eu não esteja disposto a empreender para fazer a vossa vontade. Sou o Varão forte por excelência, esmagado, quebrado, aniquilado. Estou, entretanto, disposto a lutar até o fim. Mandai-me a vossa força, que farei a vossa vontade”.

É, portanto, uma submissão completa, uma obediência total, um ato amoroso sem nenhuma revolta, nem a sensação de que Deus não vai ser misericordioso para com Ele; vê a misericórdia até no momento em que ela pareceria ­impossível.

Há aqui um mistério. Poder-se-ia perguntar: Deus Pai não poderia ter aceitado uma gota de Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e assim redimir os homens?

Realmente, uma gota de Sangue de Cristo tem valor infinito. E os teólogos dizem que simplesmente o Sangue que Ele derramou na circuncisão teria sido não só suficiente, mas superabundante, para resgatar o gênero humano. Porém, havia um desígnio de Deus, para nós misterioso, segundo o qual era preciso aquela enormidade de tormentos.

O colóquio entre Ele e o Padre Eterno, tão trágico, mas ao mesmo tempo tão íntimo, nos desvenda algo que podemos sondar nas relações entre o Homem-Deus e Deus Pai. Vê-se que, por algo, o Padre Eterno e Ele mesmo, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não quiseram tornar isto possível. Um pouco disso se soube e esse pouco é de uma sublimidade ­extraordinária.

Cada homem deve carregar sua cruz

Jesus quis que os homens vissem todo o sofrimento d’Ele, para que cada um de nós tivesse a coragem de carregar o seu próprio sofrimento. Se o Homem-Deus passasse pela Terra e sofresse um pouquinho, derramando uma gotinha de sangue, remidos estávamos. Mas faltaria a lição de conformidade com a dor, de aceitação do sofrimento como sendo a mais alta coisa da vida — não um desastre, um trambolho, algo que não se compreende e não deveria ter sucedido —, o caminho necessário para que o homem chegue até onde deve chegar, a estrada para a qual ele se dirige como sendo a realização de seu próprio destino.

Quer dizer, cada um de nós nasceu para carregar uma cruz, passar por um horto das oliveiras, beber um cálice, ter as suas horas de agonia e em que diz a Deus Nosso Senhor: “Meu Pai, se possível, afastai de mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.

A idéia de que o homem nasceu para dar glória a Deus, antes de tudo sofrendo, esta ideia retriz, fundamental na formação do verdadeiro católico, não a teríamos se não fosse apresentada pelo mais sublime e arrebatador dos exemplos, que é Nosso Senhor Jesus Cristo morrendo na Cruz.

Vemos aqui um contraste com o espírito moderno, segundo o qual a finalidade do homem na Terra é ter êxito, saúde, enriquecer, gozar a vida e morrer bem tarde, quando não mais houver remédio. E, durante toda a existência, ter a maior quota possível de segurança, de maneira tal que, não digo o sofrimento, mas o medo do sofrimento, não o assalte. Tal visualização é pagã por essência. Calcular a vida assim é calculá-la à maneira de um pagão. A formação católica prepara as pessoas para o sofrimento, pois está fundamentada em Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja vida foi centrada nesta hora suprema da dor.

Como consideramos os sofrimentos de nossa vida?

Isto nos leva a perguntar como consideramos os sofrimentos de nossa vida, dos quais o maior, sem dúvida nenhuma, é a nossa própria santificação. Toda santificação séria faz sofrer, e sofrer muito. E se alguém me disser que não sofre, eu teria vontade de perguntar-lhe, de imediato: “Então tu não te santificas?” Porque não há santificação que não venha acompanhada de dor.

Visando nossa santificação, devemos fazer perguntas como as seguintes:
Combatemos os maus impulsos que, em consequência do pecado original e das nossas más ações, existem dentro de nós? Como fazemos, não só para reprimir os maus impulsos, mas para praticar as virtudes que lhes são opostas?

Aceitamos as nossas limitações de inteligência, físicas de toda ordem, sociais, tais como: falta de posição, de fortuna, de atrativos? Há pessoas sem graça, com as quais os outros não gostam de ter relações; passam diante delas e, quando muito, as cumprimentam. Existem também as muito engraçadas, procuradas por todo o mundo para se divertirem com elas, e que nos solicitam à palhaçada. Como aceitamos a necessidade de resistir a essa solicitação?

Para tudo isto, cada um tem a sua cruz. E Nosso Senhor Jesus Cristo nos mostra o papel fundamental do sofrimento. Uma das razões pelas quais não foi possível ao Padre Eterno atender à oração de Jesus foi que os homens tivessem esse exemplo.

Quando Napoleão estava na fase ascensional de sua carreira, antes ainda de se tornar imperador, um bajulador disse-lhe: “General Bonaparte, por que vós não vos fazeis proclamar deus?” Os antigos heróis romanos, e os da Antiguidade em geral, quando “megalavam”(3) muito, acabavam sendo divinizados. Ele olhou para o sujeito de frente e deu esta resposta esmagadora: “Depois de Jesus Cristo, só há um jeito de alguém ser tomado a sério como deus: subir no alto do Calvário fazendo-se crucificar. Eu não estou disposto a isto.”

O exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo calou tão fundo que nunca mais nenhum candidato à divindade foi tomado a sério, porque só a cruz é séria, e apenas são verdadeiramente sérios os homens que querem carregar sua cruz. Portanto, devemos amar a nossa cruz e meditar sobre os pontos acima referidos.

Ele sofreu para que, por exemplo, no dia 30 de março de 1972, neste pequeno auditório, pudéssemos meditar isto juntos, e cada um sair daqui mais resolvido a combater o seu bom combate. Quer dizer, a carregar sua cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1972)

1) “Concordância dos Santos Evangelhos” ou “Os quatro Evangelhos reunidos em um só”, de autoria do Arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva. São Paulo: Ave Maria, 3ª ed., 1940, p. 365-368.
2) Mt 27,46.
3) “Megalar”, termo criado por Dr. Plinio, derivado de magalomania (mania de grandeza). Usado no sentido de “exagerar as próprias qualidades”, “envaidecer-se”, etc.

Oração para pedir almas que amem a Cruz

Senhor Jesus, Varão das dores, em vossa Alma e em vosso Corpo sofrestes tudo quanto é dado a um homem sofrer. Contemplo vosso cadáver descido do patíbulo, vossa humanidade como que aniquilada, e vosso Sangue infinitamente precioso vertido até a última gota ao longo da Paixão. 

Por todos os séculos dos séculos, representareis a dor no horizonte interior de nossas almas. A dor, com tudo quanto ela tem de nobre, de forte, de grave, de doce e de sublime. A dor elevada do simples âmbito das considerações filosóficas para o firmamento infinito da Fé. A dor compreendida em sua significação teológica, como expiação necessária, e como meio indispensável de santificação. 

Pelo mérito infinito de vosso preciosíssimo Sangue, dai à nossa inteligência a clareza necessária para compreender o papel da dor, e à nossa vontade a força para amá-la com todas as veras de nossas almas.

É só pela compreensão do papel da dor e do mistério da Cruz que a humanidade pode salvar-se da crise tremenda em que está afundando, e das penas eternas que aguardam os que até o último momento permanecerem fechados ao vosso convite para trilhar convosco a via dolorosa.

Maria Santíssima, Mãe das Dores, por vossas preces obtende que Deus multiplique sobre a Terra as almas que amam a Cruz. É a graça de valor incalculável, que Vos pedimos, no crepúsculo desta nossa pobre e estropiada civilização.

 

Provações e glória do Cireneu

Dr. Plinio imagina as reações de alma de Simão Cireneu ao presenciar a Paixão e ser obrigado a ajudar Nosso Senhor a carregar a Cruz. Essas explicitações mostram não apenas seu requintado senso psicológico, mas sobretudo sua ardente, elevada e nobre piedade.

 

Ao lermos no Evangelho o episódio a respeito de Simão Cireneu, devemos imaginá-lo como um homem miúdo, pobretão, que levava a sua vida com uma felicidade própria aos pobres. Os pobres são mais despreocupados que os ricos Em geral, tem-se a impressão de que o pobre vive preocupado porque lhe falta dinheiro, e que o rico passa a vida despreocupado porque lhe sobra dinheiro.

Mas não é assim. Neste nosso século todas as fortunas estão continuamente abaladas, no risco de serem perdidas. Se um homem tem uma pequena indústria, de um momento para outro pode vir uma greve e jogar a sua fábrica no chão.

Se possui um consultório médico ou um escritório de advocacia, de repente pode surgir uma calúnia e acabar com a reputação dele. Todas as profissões trazem hoje preocupações muito grandes.

Uma das vezes em que estive em Roma, visitei um seminário dos Jesuítas. O padre que me mostrava o colégio disse-me:
– Aqui morou e morreu o nosso Padre Fulano.
Perguntei:
– Quem é o Padre Fulano?
– Não ouviu falar?! Antes de ser padre, ele fora engenheiro e construiu uma ponte célebre aqui no Tibre.
– Ah!… está bem.

O Tibre está cheio de pontes, uma a mais, uma a menos não faz diferença; eu não vi a considerada especialmente  “célebre”. Mas, em todo caso, celebrei um pouco a coisa. São as gentilezas e as banalidades da amabilidade.

Então ele contou uma coisa que achei interessante:
– O senhor não imagina que antes de ser padre ele foi um engenheiro de mão cheia. E, por coincidência, deram-lhe um quarto aqui, donde se  via a ponte que ele havia construído. 

Quando ele estava à beira da morte e já não podia se mover, de vez em quando pedia ao irmão jesuíta que tomava conta dele para levá-lo até à janela, a fim de ver se a ponte não tinha caído. Não tinha razão nenhuma, coitadinho. Mas levava essa preocupação até o fim da vida.

O pobre é menos preocupado porque não tem a aflição do que fazer com o seu dinheiro. Ele vai tocando a vida. Quando olhamos para as pessoas pobres na rua, notamos terem a fisionomia mais  despreocupada do que as ricas. Um dos Santos mais alegres que houve na Igreja foi São Francisco de Assis. Ele escreveu até uma famosa reflexão a respeito da perfeita alegria. 

Certa vez, meu pai foi apresentado a um rapaz riquíssimo, uma das maiores fortunas de São Paulo. Estavam também outras pessoas da família. Começaram a conversar e meu pai, já bem idoso, começou a dormir. Mas eu percebi, pelo jeito dele, que estava meio dormindo, meio prestando atenção na prosa. Então o rapaz começou a contar que ele precisava ir para tal fábrica, etc.

Meu pai abriu ligeiramente os olhos e disse: 

– Olhe rapaz, o dinheiro é bom escravo e mau senhor. Se você tem essa fortuna toda para aproveitar, aproveite, mas para carregar o seu dinheiro como você carrega, isso não é vida.

Lembro-me ainda da surpresa do rapaz, mas ele percebeu que ali tinha qualquer coisa de verdadeiro. 

A tragédia irrompe na vida do Cireneu 

Então o Cireneu deveria andar despreocupadamente, pensando nas pequenas coisas da vidinha dele: a sandália estava meio desgastada, como ele iria fazer para mandar consertar, ou arrumava ele  mesmo… Ou, então: “Qual é a espécie daquele passarinho que está piando lá; será que serve para comer? Se servir, posso levá-lo a fim de alimentar meu filho; se não, para minha mulher pôr numa gaiola e ficar nos divertindo em casa.” E coisinhas assim… Podemos imaginar até que ele ia alegre, cantarolando. É a despreocupação da vida do pobre.

De repente depara-se com uma turbamulta gritando: “Pega! Mata! Crucifica!” Ao longe, o Cireneu ouvia uns gemidos. A tragédia irrompera na sua vida. Ele nunca escutou ninguém gemer assim. 

Que dor lancinante!

Quem seria o homem que gemia? Talvez pensasse ele: “Mas eram gemidos ou um cântico? Que voz harmoniosa, que timbre bonito, que vontade eu teria de ajudar esse homem, o qual geme de um modo tão celeste! Quem será esse homem?” Pela primeira vez sentiu-se meio atraído por algo que nunca o atraíra na vida. Quando ele via alguém sofrer, tinha vontade de fugir. A dor era precisamente o que a sua alegria despreocupada não queria ter; ele queria fugir de todos os sofrimentos, de todos os que sofrem, porque de repente aquela dor poderia contagiá-lo.

Alguém roga ajuda, um apoio, ele está com pena, mas pode acabar entrando na tragédia; isso ele não quer, é um securitário. Por isso tem vontade de sair, de afastar-se daquele caminho.

Mas ao mesmo tempo a voz vinha chegando mais perto, o vozerio dos algozes também ficava mais alto.

Simão pensava: “Que contraste! Quando esse homem geme é uma música; mas esses que gritam contra  ele, o perseguem, que barulho medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem harmonia, que gente  má! Eu estou com vontade de tomar partido”.

Era uma graça que, sem ele saber, batia em sua alma, penetrava nela e o Cireneu ficava inclinado a fazer o bem.

Mas de outro lado vinha a sugestão do demônio: “Cuidado! Fuja! Olhe, entre por aquela porta, isto aqui dá encrenca! De repente misturam você com isso e o levam para a dor junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova!” Ele pondera: “Olhe que é verdade, hein! Se eu desse uma volta por lá, pela outra porta, seria um pouco mais longe, porém eu ficaria longe desse barulho”.

O Sangue de Cristo brilha como um rubi Nesse momento ele ouve os gemidos novamente. 

Com o coração rachado de compaixão, a graça pousando nele, contudo com o egoísmo soprado pelo demônio dizendo-lhe o contrário: “Pense em si, não se incomode com esse homem! Se ele estivesse no seu lugar, fugiria; fuja você também, bobo!” Na indecisão, o Cireneu continua a caminhar. Em certo momento dá-se o encontro: ele vê um Homem de trinta e três anos com os longos  cabelos desalinhados, gotejando sangue, o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num ponto e noutro, com o nariz naturalmente arqueado, quebrado por uma pancada brutal, com a cabeça coroada de espinhos, com uma Cruz pesadíssima às costas e que Ele arrastava penosamente.

Simão ficou horrorizado e pensou: “Mas na vida, há tanta dor assim? Nunca pensei que isso pudesse  acontecer a alguém, e de repente sucedeu a ele. E não pode, de repente, acontecer a mim?” O demônio sussurra: “Fuja! Fuja!” 

Um Anjo dizia: “Fique aqui, tem alguma coisa para você!” Um dos soldados romanos viu-o nessa indecisão e lhe ordenou brutalmente: – Pegue a ponta da cruz! Os romanos dominavam a Terra Santa, eram os senhores e a nação judaica fora conquistada por eles; por isso, mandavam em tudo. Quem estivesse com aquele capacete romano, com aquela armadura, com as armas de César, esse tinha que ser obedecido. 

“Como – pensava Simão –, é essa cruz ensopada de sangue que ele me mandou pegar? Vejo o sangue que escorre e goteja no chão, e eu vou me molhar com ele…” Enquanto cogitava nisso, o Sol incide no Sangue e brilha uma cor rubi. 

Algo lhe diz: “Esse Sangue é a salvação, agarre-O.” “Mas – pensa Simão – e a dor, o peso dessa cruz?” – Pegue já – insiste o soldado –, porque ele não está aguentando e tem que subir até o alto daquela montanha. 

O Cireneu cogita: “Eu então tenho que levar essa cruz até o cimo da montanha. Subir uma montanha com uma cruz, atrás desse pobre coitado gemendo assim?! Não tenho coragem, é muito esforço, e não gosto de fazer esforço.”

– Pegue! Se não, você apanha. Simão pensa: “Agora a coisa complicou, porque então vai escorrer o meu sangue. Dessa não fujo… Já devia ter escapado, agora tenho que pegar a cruz.” Ele, então, decide carregar a Cruz.

A bondade de Jesus dedilha sua alma

Quem leva a Cruz olha para ele. E Simão percebe que aquele olhar o penetrou completamente, e ele sente uma coisa que nunca sentiu na vida. O Cireneu é um homem casado, possui filhos, alguns deles pequeninos, teve bons pais e relações de família comuns, como havia naquele tempo. Mas ele se sente objeto de um olhar como nunca ninguém o olhou assim. Ele sentia que esse olhar lhe penetrava no fundo da alma, e era de Alguém que o conhecia antes mesmo de ele nascer, sabia quem era e quem havia de ser. Um olhar extraordinário, que o envolvia de um afeto como nunca ninguém tinha tido.

Ele se sentiu compreendido nas suas peculiaridades e percebeu que aquele olhar conhecia a sua vida inteira, todas as suas dores, e que tinha pena dele. O Cireneu sentiu-se atraidíssimo mais do que nunca; tendo tomado a Cruz, o Sangue quente que escorria lhe tocou nas mãos, ele sentia-se meio envolvido naquela tragédia, e cada vez mais atraído por esta. 

Mas o medo procede por solavancos e, em determinado momento, ele diz para o romano: – Eu não quero continuar! – Se não carregar, apanha! Ele, então, mal-humorado toma a Cruz e  prossegue. 

Um diálogo mudo se estabelece entre os dois homens. O Homem-Deus e o Cireneu. O Homem-Deus dizia a ele:

– Meu filho, é por você que Eu sofro. Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último ponto do desprezo dos homens, mas olhe para Mim, note que misteriosa grandeza há em Mim.

Que bondade envolvente, a qual dedilha a sua alma como um bom médico toma uma chaga para nela pôr um unguento. Você não percebe que está sofrendo fisicamente com o peso da minha Cruz, mas que a sua alma está sentindo uma leveza como nunca sentiu? Não está percebendo que um horizonte novo se põe para você? Encontram-se ao pé do Calvário, é preciso continuar a subir  e a Cruz para Simão se torna cada vez mais pesada. Ele pensa: “É terrível  isso, entretanto mais terrível seria se eu largasse a cruz e Ele caísse sob o peso dela e esfolasse as palmas das  suas mãos nas pedras deste solo. Eu não suportaria isso, agora vou até em cima.” 

E ajudou a carregar a Cruz até o cume do Calvário. Os carrascos dizem a Jesus: – Põe a cruz no solo! Ele, humilde e bondosamente, coloca a Cruz no chão e ao Cireneu que O ajudava fitou com um olhar de reconhecimento. Foi o último olhar que Ele deu para Simão. O Cireneu afastou-se e percebeu que os romanos já não estavam pensando nele, estava fora da tragédia. 

Disseram a Nosso Senhor:
– Abra os braços, estenda bem as pernas, nós vamos cravar estes pregos nas suas mãos e nos seus pés! 

E Ele, como quem queria sofrer aquilo, fez o que mandavam e a pancadaria começou. “Transpassaram as minhas mãos e os meus pés, posso contar todos os meus ossos” (Sl 21, 17-18). Este Salmo se referia ao Messias. De fato, puseram cravos um em cada mão e depois nos pés. Segundo uma tradição, não foi um prego em cada pé, mas um grande cravo que atravessou os dois pés, prendendo-os na Cruz.

Apavorado e ao mesmo tempo fascinado

Quando isso estava feito, levantaram a Cruz e Ele ficou pendente daqueles pregos de maneira tal que, quando Se apoiava nos braços, os cravos começavam a rasgar as mãos; quando Se sustentava nos pés, para evitar que se rasgassem as mãos, o prego iniciava a dilacerar os pés, e tudo não era senão aumento de dor. O Cireneu, de longe, olhava apavorado e ao mesmo tempo fascinado, não falava com ninguém, ele tinha voltado a ser um anônimo na multidão.

Em determinado momento, ele percebeu que do alto da Cruz Nosso Senhor conversava com os dois ladrões, os quais estavam de um lado e de outro. Ele notou que um ladrão blasfemava e Nosso Senhor fingia não ouvir. E o outro olhava com tristeza e tomava a defesa de Jesus, dizendo: 

– Por que você blasfema dessa maneira? Estamos aqui porque somos criminosos; o destino de um criminoso é morrer como nós. Ele é o inocente, Ele é o justo, Ele é o Santo, e morre assim…
E Simão ouviu Nosso Senhor responder:
– Tu hoje estarás comigo no Paraíso. 

Perdoou todos os seus pecados e profetizou que Ele iria para o Céu e levaria consigo o bom ladrão. O povinho passava de um lado para o outro, alguns apedrejavam, outros vaiavam, outros se calavam, alguns choravam. O céu foi se escurecendo cada vez mais. Em certo momento fez-se noite sobre Jerusalém e, entretanto, eram três horas da tarde.

E nessa “noite” se ouviu o brado d’Ele: “Eli, Eli, lamá sabactâni? – Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E, em seguida: “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30). E morreu.

Nossa Senhora lhe dá um sorriso machucado, mas florido

Um grupo de mulheres estava lá, das quais uma exercia sobre Simão uma atração parecida com a produzida por aquele Homem. O Cireneu perguntou: 

– Quem é aquela?
– É a Mãe d’Ele – respondem.
– A mãe dele? Mas isso para mim vale mais que uma rainha, uma imperatriz, mais do que todo o mundo. 

Que honra ser mãe desse homem fracassado, tão inábil que sendo inocente não evitou a própria morte. Que sabedoria desse homem derrotado, e que vitória essa cena! Jesus morreu e o céu todo se toldou, escureceu, e quando ele pensava nisso um tremor começou a sacudir a terra.

O Cireneu continuou olhando aquilo, teve medo, sobretudo, quando viu figuras andando de olhos fechados, todas envoltas em tiras de panos brancos, que era como naquele tempo se envolviam os cadáveres quando sepultados e, com a boca fechada, diziam terríveis censuras ao povo. E com os olhos cerrados pareciam que olhavam e radiografavam o corpo e a alma daqueles bandidos. Eram os justos da Antiga Lei que saíam das sepulturas para increpar o povo que acabava de matar o Filho de Deus. Ao longe, ele viu o Templo todo tremer Ele quis falar com aquela Senhora, mas não ousou, tal a pureza que via naquela Dama. 

Tiraram da Cruz o Corpo sagrado de Jesus, ungiram-No sobre o colo d’Ela e levaram-No para a sepultura. Organizou-se, então, o cortejo de umas dez ou quinze pessoas: São João Evangelista, as mulheres, Nicodemos, José de Arimateia. 

Simão não teve coragem de acompanhar. Ele pensou: “O que vai me acontecer? Vejo-me tão cheio de ideias, de preocupações, que já estou perdendo a esperança, porque, afinal de contas, sou um miserável, um medroso, um homem carregado de pecados. Nunca estarei à altura de tudo quanto eu vi.”

O cortejo aproxima-se e aquela Senhora faz pousar sobre o Cireneu um olhar de bondade e lhe diz apenas duas palavras: “Meu filho!” “Ganhei o dia – pensa ele –, ganhei a vida, estou perdoado, vou para casa.”

Em sua residência a mulher e as crianças dormiam, tudo estava tranquilo. O primeiro cuidado que ele teve foi de trocar de túnica, pegar a usada e osculá-la com reverência; era o seu primeiro ato de adoração. Ele terá pensado: “Esse Homem é Deus”. Foi o primeiro ato de Fé, de adoração. Dobrou a túnica considerando-a o maior tesouro do mundo, osculou as manchas de Sangue como se fossem a coisa mais preciosa que há na Terra – e era mesmo –, guardou-a num lugar onde ninguém podia mexer; pôs outra túnica e sentou-se do lado de fora do jardim.

O tempo corria… De repente, ele percebe que aquele cortejo estava se dispersando. O Cireneu saiu de novo atrás deles e viu a casa para onde se dirigiam. Abriram a porta e, pouco antes de entrar, aquela Senhora olha para trás e, do fundo de sua dor, dá-lhe um sorriso, machucado, mas florido. 

Ele entendeu, era um convite. O Cireneu começou a frequentar os Apóstolos e tudo leva a crer que se santificou, talvez tenha morrido mártir. O silêncio paira sobre esta vida que começa no silêncio. Era um homem adulto que de repente saía da banalidade, da vulgaridade, e entrava nesse arco de dor e de glória. Acabou cumprindo o seu dever depois de mil dificuldades e sumiu de novo no anonimato, mas a alma dele, assim podemos esperar, foi recebida no Céu quando ele morreu. O Cireneu tinha tido a honra, a vocação única de, sozinho, carregar a Cruz do Cordeiro de Deus. 

O Cireneu não era um combatente e nós o somos

Nós podemos carregar a Cruz de Nosso Senhor?

Da Cruz resta apenas um pedaço em Roma, mas dele, de vez em quando, obtém-se algum minúsculo  fragmento com um valor moral e religioso inapreciável: é o Santo Lenho. Figura na cruz peitoral de alguns bispos, nos relicários de algumas igrejas, etc. 

Há mil modos de carregar a Cruz. Nós A levamos quando sofremos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo. Por exemplo, há muita gente que nos odeia porque amamos a Nosso Senhor, somos puros, castos, acreditamos na Santa Igreja Católica Apostólica  Romana como ela deve ser, sem embustes e falsificações. Por isso todos quantos se entregaram ao paganismo contemporâneo nos odeiam. Sempre que esse ódio bater em nosso peito, acompanhado desta ameaça: “Você vai ser vaiado e isolado por todos. Bobo, deixe isso!”, lembremo-nos de que estamos carregando a Cruz do Redentor, e de que temos um prêmio demasiadamente grande diante de nós. Quem é perseguido, odiado e desprezado por amor à virtude, à Fé, a Nosso Senhor Jesus Cristo, esse tem um prêmio
enorme no Céu. 

No sermão das bem-aventuranças Nosso Senhor disse expressamente que uma delas era para aqueles que sofrem perseguição por amor à virtude, ao bem. O bem e a virtude naquele tempo eram designados pela palavra “justiça”, que dava o nome a todas as outras virtudes. Esses bem-aventurados receberão recompensa nesta vida e no Céu. 

Mas o Cireneu não era um combatente e nós o somos. Nós não devemos nos limitar a levar a pancada,  temos que tomar o trabalho de dar a pancada também.

Quer dizer, quando caçoam de nós, não devemos fazer uma cara de bobo que apanha; isso é ridículo, não digno do nome de Nosso Senhor. Precisamos levantar a cabeça e responder taco a taco:

“Eu menosprezo o seu desprezo e me orgulho d’Aquele de Quem você fala mal. Você está falando mal de Nosso Senhor Jesus Cristo e eu me ufano de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu O adoro como Homem-Deus, ria quanto quiser, que debocho de sua risada.”

“Está vendo aquele jovem lá? Você vai corrompê-lo com maus conselhos. Eu vou junto com você defendê- lo contra suas más palavras, porque quero retê-lo junto à Cruz de Cristo. Terei batalhas por isso, mas responderei a uma ofensa com uma defesa, a um argumento com outro argumento, serei denodado como um batalhador, e levarei muitos atrás de mim; são centenas de derrotas que você encontrará no seu caminho, as quais são as vitórias de Nosso Senhor Jesus Cristo.” 

O Homem-Deus conhecia o passado, o presente e o futuro. E quando Flávio Lourenço carregava a Cruz, teve ciência de cada  um daqueles que ajudariam a Igreja e a Civilização Cristã nas lutas contra seus adversários. Ele via todos os ataques, todas as defesas. Observava, numa cidade chamada São Paulo, um auditório cheio de jovens chamados pela graça para O ajudarem a carregar a Cruz. Via essas almas se abrindo para a beleza da vocação do Cireneu e para a glória de carregar, combativamente, a Santa Cruz do Redentor. E isso O consolava na sua dor. De maneira que hoje nós consolamos a Nosso Senhor Jesus Cristo carregando a sua Cruz. 

Fomos, portanto, Cireneus. Resta-nos pedir a Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia, que nos faça Cireneus cada vez mais autênticos, mais amigos da Cruz e mais batalhadores pela Igreja e pela Civilização Cristã.

Paixão de Cristo, Senhor nosso: dai-me forças!

Sexta-feira Santa de 1991. Aos pés do Crucifixo diante do qual sua mãe costumava recordar, nesse dia, a Paixão e Morte do Redentor, Dr. Plinio, reunido com alguns de seus discípulos, medita na indizível misericórdia do Filho de Deus em se imolar pela salvação dos homens, e na necessária reforma de vida com que devemos retribuir esse resgate de valor infinito.

 

O sacrifício da Vítima Divina no alto do Calvário nos propõe diversos e importantes pontos para nossa reflexão. Tomemos em consideração alguns deles.

Nosso Senhor Jesus Cristo consumou seu holocausto e acabou de morrer por nós. Como narra o Evangelho, após o brado lancinante de “Eli, Eli, lamma sabactani — meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes” — Ele entregou seu espírito nas mãos do Padre Eterno e, em seguida, tendo inclinado a cabeça, expirou. Tudo estava terminado.

Pináculo da tristeza, aurora de uma imensa alegria

Até esse augusto e trágico momento, reinavam no mundo a desolação, o pecado e a miséria. Porém, sobre tudo isso derrama-se agora o preciosíssimo Sangue de Cristo. A Redenção acaba de se operar, o gênero humano é resgatado, e o caminho para o Céu novamente aberto para ele. Assim, o pináculo da tristeza, da tragédia e do horror vizinha a mais radiosa aurora da mais intensa das alegrias.

Aos pés da Cruz encontra-se Nossa Senhora, cujo Coração Imaculado e Sacratíssimo está rachado de dor. Ao mesmo tempo, Ela preliba todas as alegrias da salvação das almas. Maria tudo compreende, vê e mede, não só a regeneração do mundo nesta vida, mas, sobretudo, o esplendor eterno que todas as almas justas receberão para maior glória de Deus.

Diante dessa atitude da Santíssima Virgem, peçamos-Lhe que interceda por nós junto ao seu Divino Filho, e nos obtenha um inflamado zelo por nossa própria santificação. Desse modo, saberemos aproveitar tanto sangue vertido e tantas lágrimas, tanta dor e tanta tragédia, para igualmente sabermos participar da glória da Ressurreição de nosso Salvador.

As almas dos fiéis defuntos à espera da Redenção

Noutra consideração, pensemos como, há milhares de anos, as almas de Adão e Eva, juntamente com as de todos os seus descendentes justos, que cumpriram a Lei nesta vida, esperavam o momento bendito da Redenção. Aguardavam, naquela misteriosa mansão dos mortos à qual a própria alma de Cristo haveria de descer para libertá-las. Aguardam: espera longa, espera indefinida quase até à aflição, durante a qual a alma se torna cada vez mais sedenta de fazer cessar esse estado provisório em que se encontra, e de entrar na sua condição definitiva de bem-aventurada, repleta de glória e de grandeza!

Em seus insondáveis desígnios, quis a Providência que essas almas padecessem esse sofrimento da espera. Contudo, podemos imaginar também, após uma tão longa expectativa, a alegria inenarrável e ilimitada quando viram aparecer diante delas a luminosíssima e santíssima alma de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pensemos nessas almas justas. Antes de tudo, nas de nossos primeiros pais, Adão e Eva, cujas figuras devemos recordar nesse instante, com sumo amor e respeito. Lembremo-nos, no extremo oposto da perspectiva histórica, de São José, esposo castíssimo de Nossa Senhora e pai legal do Verbo Encarnado. Durante muitos anos esteve ele com a Santíssima Virgem e Jesus. Privado, pela morte, desse convívio que tanto o maravilhava e cumulava de contentamento, São José não terá se contido de felicidade, ao perceber ali, junto dele, o Redentor radioso e glorioso, trazendo-lhe a boa nova do término da longa espera e da sua passagem para o Céu.

Lá já estava, recém-chegada, a alma do bom ladrão, justificado pelos próprios lábios do Salvador: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Esperar com paciência nossa salvação

Pensemos, então, nessa libertação depois da prolongada espera. Comparemos a situação daquelas almas justas com a nossa, peregrinos neste mundo incerto, na esperança de alcançarmos o porto da bem-aventurança eterna. E peçamos a Nossa Senhora que nos auxilie e ampare a cada momento dessa nossa caminhada, a fim de que, salvando-nos, nossa libertação seja igualmente gloriosa — não para nós, mas para a honra d’Ela e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, à maneira da glória dos fâmulos que se associam ao triunfo dos mestres.

Que a Santíssima Virgem nos alcance a graça de esperarmos com paciência, não de uma espera negligente e indolente, mas sofrida e semeada de santas ansiedades. Espera sem nenhuma revolta; espera de almas que compreendem ter o Divino Senhor seu tempo para tudo, e, por isso, amam as horas de Deus.

“Sangue de Cristo, inebriai-me”

Num passo seguinte, consideremos que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo nos redimido e aberto para nós as portas do Céu, é o momento de olharmos para nossas almas pecadoras. Pensemos em todo o sangue vertido por ele para limpar e purificar nossas almas, e para inebriá-las com suas graças. E digamos: “Sanguis Christi, inebria me; acqua lateris Christi, lava me; passio Christi, conforta me”. Sangue de Cristo, inebriai-me; água do lado de Cristo, lavai-me; Paixão de Cristo Senhor nosso, dai‑me forças.

Que Nosso Senhor nos dê, pelos rogos de Maria, a graça de olharmos para nossas almas, com todos os seus defeitos, contorções e misérias, com tudo o que nos desvia do que deveríamos ser, que nos afasta do caminho da santidade para a qual somos todos chamados. Peçamos perdão por nós, por nossos próximos e por nossos irmãos de vocação, a fim de que, encarando cada um seus próprios defeitos, tenhamos coragem e força, alcançadas para nós pelo Sangue de Cristo, para empreender uma séria e honesta reforma de nossas almas.

Senhor Jesus, Maria Santíssima, Mãe dos pecadores, tende pena de nós. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído da meditação feita em 13/4/90)