Estética do Universo

Numa conferência pronunciada na década de 60, Dr. Plinio analisa duas concepções de vida, duas ordens de valores profundamente diversas: a católica e a anti-católica moderna. E procura mostrar que, acima das aparências, a razão profunda da oposição entre ambas é de caráter metafísico-religioso. Esta é a causa fundamental da divisão dos espíritos. Oferecemos nestas páginas excertos dessa conferência.

 

Pode uma maneira de encarar os problemas do Universo encerrar uma questão religiosa?

Considerando a Criação, podemos nos perguntar por que Deus, tendo em si toda a plenitude, desejou criar a imensa quantidade de seres que compõem o universo.

Sendo infinitamente perfeito, não precisava criá-los. E se é verdade que não havia nenhum motivo que o impedisse de dar existência ao cosmos, de outra parte razão alguma existia que O obrigasse a fazê-lo. Em sua bondade e sabedoria infinitas, Deus assim o quis. E então, com que de um jorro, uma quantidade incontável de seres foi por Ele produzida.

Deus Nosso Senhor, além de ter em si todas as perfeições, vê também em si todos os graus de perfeição possíveis. Seu intuito, ao criar tão  grande  número de seres, foi fazer com que esses seres não só espelhassem a sua perfeição, mas a reproduzissem nos mais variados graus.

Assim se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao universo.

Esses graus de perfeição espelham convenientemente a Deus.

Não podia Deus criar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Não nos parece que esta questão possa ser considerada como objeto de uma opinião unânime dos filósofos, mas somos muitíssimo propensos a pensar que isso seria metafisicamente impossível. Deus criou o universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem de modo conveniente a perfeição divina.

A razão de ser da criação consiste, portanto, em dar glória a Deus, espelhando de modo completo e pleno as perfeições que n’Ele existem.

Essas considerações são importantes para a exata compreensão do que seja a “causa católica”. Poder-se-ia conceituá-la como sendo o ideal que visa a fazer com que a Criação dê glória a Deus, considerada entretanto a Criação em seu todo, e não somente em um ou outro de seus aspectos parciais. É o conjunto das famílias, das cidades, das nações, da humanidade, e, em última análise, do universo inteiro, que se trata de fazer com que dê glória a Deus.

O princípio da unidade na variedade e suas leis

De acordo com a escolástica, a beleza consiste na unidade posta na variedade. Julgamos um objeto belo quando seus elementos variados formam um todo uno. Os seres fragmentados, sem unidade, não têm nem beleza, nem capacidade de atração. É a unidade que dá beleza aos seres, é ela que dá o valor por seus elementos diversos e variados. Portanto, a unidade é a forma da beleza; e a variedade é a sua matéria, elemento secundário mas indispensável da beleza.

De certo modo, cada ser tem em si essa unidade e essa variedade. É fácil percebê-lo em todos os seres concretamente considerados. Examinemos, por exemplo, a alma humana. Verificamos que ela tem inteligência, vontade e sensibilidade. Eis a variedade na alma humana. Mas esta variedade está posta na unidade da pessoa do homem.

O princípio da unidade na variedade tem suas leis, que consubstanciam o que chamamos de estética do universo.

No estudo dessas leis encontramos a explicação de muita coisa da Idade Média que nos encanta.

Analisemos, em primeiro lugar, as leis da variedade.

Lei do caráter típico

Para bem entendermos essa lei, vamos servir-nos de um exemplo. Tomemos uma sala com vários objetos: poltronas, quadros, lustres, tapetes, cortinas. Aí está a variedade de elementos. Em que condições, entretanto, será autêntica essa variedade?

Só o será quando cada um dos objetos for muito tipicamente, muito caracteristicamente ele mesmo. As poltronas devem ser tipicamente elas mesmas; os quadros devem ser caracteristicamente eles mesmos. Digamos que todos esses objetos fossem feitos de uma única substância a matéria plástica, por exemplo e que seus formatos não diferissem entre si como deveriam, parecendo-se o lustre com a poltrona e a poltrona com o lustre: não teríamos variedade. O característico é, pois, um sinal distintivo da variedade autêntica, é nele que a verdadeira variedade se realiza.

É essa a razão pela qual tanto nos maravilhamos com aspectos ricos, característicos e típicos que encontramos na organização política e social da Idade Média.

Por que, por exemplo, [ao considerarmos a Espanha] temos um movimento de simpatia e admiração para com um andaluz característico? É que nele estão muito nítidas todas as notas que o tornam diferente de um biscainho ou de um navarrês. Se nada houvesse senão o homem “standard” moderno, não haveria variedade. Julgamos bonito, na Espanha antiga, o soberano intitular-se “rei de todas as Espanhas”. Sim, porque cada uma de suas regiões era como que uma pequena Espanha, com sua arquitetura, suas danças, suas músicas, tudo muito característico.

Neste mesmo sentido, é muito interessante, na sociedade medieval, a diferença nítida que havia entre as classes sociais. Um guerreiro era tipicamente guerreiro. Os monges, os comerciantes, os artesãos, os camponeses, eram marcadamente aquilo que eram. Podemos imaginar uma rua de uma aldeia medieval: passa um nobre precedido de um cortejo, logo após um clérigo, depois um artesão, passa, por fim, um frade. O que torna esta cena interessante? É o fato de cada um desses elementos ser autenticamente ele mesmo.

O mesmo podemos admirar no estilo gótico, que, sendo cheio de variedade, conserva uma profunda unidade, e por isso é equilibrado e harmônico.

O necessário contraste para que a beleza seja mais completa

As diversas coisas devem também manifestar um certo contraste, uma certa oposição, para que sua beleza seja mais completa.

A Igreja Católica tem, em suas instituições, muitas variedades que chegam ao contraste. Imaginemos, por exemplo, um cortejo papal entrando no Vaticano. Notamos, desde logo, os Prelados da Igreja Oriental, com toda a pompa peculiar ao Oriente. Mais adiante, os frades franciscanos, vestidos de maneira paupérrima, com os seus simples buréis. Seguem os príncipes, representando a nobreza; mais atrás, os militares soberbamente fardados. Por fim, entra o Papa, rodeado de um fastígio de glória, enquanto humildes religiosas, rezando, inclinam-se à sua passagem.

Há magnífico contraste entre o Papa, que está no pináculo do poder, diante do qual todos se ajoelham, e um humilde irmão leigo, que protesta se alguém se ajoelhar diante dele. Essa oposição está cheia de harmonia. É precisamente nesse contraste, nesse extremo de aspectos antagônicos, que a variedade se reveste de toda a sua riqueza.

É doloroso verificar como, no mundo moderno, a beleza está mutilada pela uniformização.

Hierarquia cheia de diversidade e inteiramente harmônica

Quis a Divina Providência criar todas as coisas hierarquizadas. Fazendo os minerais, os vegetais, os animais, os homens e os anjos, estabeleceu dentro de cada uma dessas categorias uma imensa gama de graus intermediários. Essa hierarquia, cheia de diversidade, é ao mesmo tempo inteiramente harmônica. Há uma infinidade de matizes entre os diversos graus, que faz com que neles não haja saltos bruscos. Sem esses graus intermediários, aliás, o mundo seria agreste e inóspito.

Imaginemos que o homem vivesse num mundo em que só houvesse minerais, e que a Providência o fizesse tirar daí o alimento indispensável ao seu sustento. Ele se sentiria mal, pois há um abismo entre o homem e os minerais. Porém, quando junto a si ele tem vegetais e animais, estabelece-se uma escala natural que produz nele uma sensação de bem-estar. A hierarquia orgânica e cheia de gradações é agradável ao espírito católico, porque constitui uma unidade cheia de variedade. Esta lei da gradação, transposta para o campo político-social, produziu a sociedade medieval, em que as classes sociais formavam uma hierarquia suave, com uma infinidade de status intermediários entre o vilão e o rei.

Consideremos de um lado um rei; de outro, um plebeu de baixa categoria; e, entre eles, toda uma gradação intermediária, de acordo com os princípios de beleza que acabamos de expor. O rei e o plebeu se completam; a beleza do estado do plebeu vem, de certo modo, do fato de haver o rei, e a beleza do estado do rei vem do fato de haver plebeus.

Se só houvesse reis, e não plebeus, pouca significação teria ser rei. Pois é a existência do plebeu que dá ao rei um grande valor.

Tomemos o inverso. Imaginemos, numa botica medieval, o ourives trabalhando no lusco-fusco, algumas pedras preciosas aqui, um cálice acolá. Um pouco além, um agradável odor de saborosos quitutes, os móveis de carvalho, uma cançãozinha de criança. Em uma palavra, o bem-estar plebeu. Isto é evidentemente agradável; contudo, se o mundo todo fosse somente assim, seria sem graça.

Harmonia do movimento: elemento de formosura na Criação

Há ainda um outro interessante tipo da variedade: o da transformação. Existe no mundo uma transformação constante, um movimento contínuo. Mas as variedades de movimento postas por Deus no universo são graduais, harmônicas, a exemplo das gradações da hierarquia que analisamos na lei anterior. Essa harmonia do movimento constitui um elemento de formosura na Criação.

Para exemplificar, consideremos o desenvolvimento da vida humana em um varão justo. O homem nasce, desabrocha com um movimento rico em harmonia na adolescência, e nobremente se torna maduro; envelhece em dignidade e, quando Deus chama a sua alma, é como que a colheita de um fruto precioso, que vai ser levado para o Céu. É uma bela trajetória.

No entanto, o que quer o espírito moderno? Ele pretende que o homem deva ser mocinho até cair morto. Arranjados ou pintados, todos devem parecer ter a mesma e jovem idade.

Não se tolera o plano divino, que estabeleceu a desigualdade nas idades. Quando, entretanto, é forçado a reconhecer a sua existência que não pode ser, aliás, objeto de contestação o espírito moderno procura fazê-lo com brutalidade, desconhecendo as gradações entre as idades, e desprezando a velhice que para nada serve, já que nada produz!…

Pode-se concluir isso observando a vida de uma família antiga e de uma família moderna. Na primeira, reúnem-se em uma mesma sala os avós, os pais, as crianças, os parentes, os amigos; as mais variadas idades convivem juntas, conversando: variedades na unidade. Na família moderna, se os pais promovem uma recepção, os filhos não devem comparecer. Se estes dão uma festa, os pais e sobretudo a mãe devem ausentar-se… Os pais são chamados pelos filhos de “os velhos”, e não querem com eles ter maior convívio.

Uma ação de graças por meio de Maria

A melhor maneira de reverenciar, louvar e pedir graças a Jesus enquanto Este se encontra presente em nosso interior, após a Sagrada Comunhão, é fazê-lo por meio de Maria. “Um Rei entra em nossa casa — diz Dr. Plinio — e temos algo em comum com Ele: a mesma Mãe!”

 

Segundo uma prática piedosa mais que recomendável, quando recebemos Nosso Senhor eucarístico — cuja presença dentro de nós se estenderá por algum tempo — convém nos dirigirmos a Jesus pelas mãos de Maria Santíssima, Mãe d’Ele e nossa, cogitando, por exemplo, no seguinte:

“Sinto em meu interior algo que me diz: ‘Deus está aqui’, e duas impressões se apoderam de meu espírito. Primeiro, a de ser um sacrário no qual se acha Aquele que eu julgava inatingível. Oh! honra! Oh! maravilha! Mas, em segundo lugar, a noção de que eu conheço esse sacrário… Lembro-me de quantas vezes fui infiel e dos defeitos com os quais convive minha pobre alma. E este homem ingrato, ser tabernáculo d’Aquele que é infinitamente santo, perfeito, meu Senhor, meu Criador! Eu não existia e Ele me tirou do nada, deu-me a vida. “Ecce enim in peccato concepit me mater mea” (cf. Sl 50, 7) — eis que no pecado me concebeu minha mãe, devem dizer todos os homens, filhos de Adão e Eva, porque nasceram com o pecado original, raiz de nossas faltas pessoais. Não sou digno de recebê-Lo! Preciso ter uma ponte com esse Rei que entrou em minha casa. Há algo em comum entre Ele e eu: temos a mesma Mãe!”

Nosso Senhor, Maria e nós, na Sagrada Comunhão

Ela é a mais perfeita das meras criaturas, ornada de todos os dons necessários para ser a Mãe do Verbo Encarnado. Concebida imaculada, Virgem antes, durante e depois do parto, em todos os instantes de sua vida não cessou de corresponder à graça de Deus, atingindo uma insondável elevação de virtude, até o momento bendito em que o Redentor resolveu colhê-La da Terra e levá-La para o Céu.

Ora, essa excelsa criatura é também nossa Mãe, e a verdadeira mãe nutre ternuras e compaixão até pelo filho mais esfarrapado, torto e desarranjado que seja. Então devemos nos voltar a Ela e dizer: “Minha Mãe, aqui está Plinio. Como sempre o fizestes, mais uma vez tende pena de mim. Nunca recebemos uma graça que não seja a vosso rogo. Se estou comungando a Ele, é porque Vós me obtivestes de seu Filho esta dádiva, pedistes a Ele que entrasse numa cabana tão indigna chamada Plinio. Purificai-a, ordenai-a, enfeitai-a para que seja do agrado d’Ele.”

Nossa Senhora ornando minha alma, o Rei do Céu e da Terra olhará para mim com satisfação, e dirá: “Aqui me encontro com gosto, porque minha Mãe querida está ordenando sua alma”.

Adoração e agradecimento

Ao ser objeto de mais essa bondade, minha primeira atitude deve ser de adoração. Ou seja, depois de reconhecer minha pequenez e indignidade insondáveis, devo reconhecer também a infinita perfeição de Nosso Senhor. E estando a Santíssima Virgem — espiritual e não realmente — presente em mim, não tenho receio e Lhe digo: “Minha Mãe, fazei com que eu voe para Deus!”

Sorrindo, com muito afeto, Nosso Senhor fala no meu íntimo: “Tu és um filho amado por Maria, minha Mãe. Ela quis que Eu aqui viesse. Pede-me o que quiseres”. Digo-Lhe, então: “Senhor, antes de pedir, eu Vos agradeço tanta bondade e misericórdia”. Em seguida, dirigindo-me a Nossa Senhora: “Mãe e Rainha do Céu, agradecei por mim, porque a minha ação de graças é insuficiente”.

Ardorosa reparação

E sempre por meio de Maria, acrescento: “Senhor Jesus, sei que pequei e preciso Vos pedir perdão de minhas faltas. O mundo inteiro peca contra Vós, Senhor. Sois a própria bondade e tão clemente para comigo, como posso, a menos que seja irremediavelmente vil, não me indignar diante de tantas ofensas de que sois alvo?

“Contristam-me, Senhor, os pecados cometidos por mim e pelos outros contra Vós. Perdão, Senhor! Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende compaixão de nós. Senhor, podeis tornar limpo quem é asqueroso, desde que este corresponda à graça. Mais uma vez, tende compaixão do mundo, e de mim, pelos rogos de Maria!

“E se houver pessoas que continuem infiéis, aceitai como reparação minha atitude indignada. Sabeis — pois vosso olhar penetra até o fundo de nossas almas — que eu gostaria de estar em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo, censurando os impenitentes e combatendo o mal com a força de invectiva que Vós me concederíeis.

“Não me é dado estar em toda parte, porém aceitai esse desejo que vossa graça infunde no meu coração, e não pode ser inútil. Fazei, Senhor, que em todos os lugares onde sois ofendido, minha alma de certa forma ali esteja, admoestando e fazendo recuar os fautores do mal.

“Terminada essa prece, começarei a laborar no apostolado ao qual me destinastes: acolho um, falo com outro, sorrio para um terceiro, tomo uma deliberação, atendo um telefonema, leio uma revista, um jornal, um livro. Rezo. Tomai, Senhor, cada uma dessas ações como se eu as estivesse praticando no mundo inteiro, junto a todas as almas, diante de todos os sacrários da Terra, suplicando-Vos graças para todos os homens, falando no interior de cada um deles.”

Petições repassadas de zelo

Como nos ensina a Santa Igreja, os atos de piedade são: adoração, ação de graças, reparação e petição. Assim, depois de oferecermos a Nosso Senhor os três primeiros, vem o momento de Lhe apresentarmos nossas súplicas, dirigidas a Ele pelas mãos da Virgem Santíssima.

“Devo, Senhor, pedir coisas para mim, para aqueles a quem estimo e até pelos que não conheço. Antes de tudo, rogo-Vos que em todo cargo da Sagrada Hierarquia eclesiástica — desde o sólio de São Pedro até uma simples paróquia — haja fervorosos apóstolos de Maria, ardorosos escravos d’Ela segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, em toda a força do termo”.

É o intenso desejo do Reino de Maria que surge no fundo de nossas almas. Com efeito, além das necessidades da Igreja, nos é dado conhecer as da sociedade temporal. Amamos todas as nações da Terra, e quereríamos que Nossa Senhora as fizesse florescer, no maior esplendor de sua piedade, para dar glória a Ela e a seu Divino Filho, numa nova e mais luminosa Cristandade. Poderíamos compor uma ladainha enumerando todos os países e, a propósito de cada um, suplicar graças específicas.

“Senhora, Vós pusestes em minha alma tanto amor por tal nação; tornai-a inteiramente vossa. E tais povos, raças, culturas, civilizações… Ó minha Mãe, intercedei por tudo isso junto a Deus, e obtende que desabrochem no vosso Reino, para a glória de Cristo Senhor nosso!”

Temos também obrigações especiais para com os que nos são mais próximos. Ou seja, em certo sentido, nossos irmãos de vocação, sobretudo pelos que nos mantêm, pelo seu exemplo e seu impulso, nos caminhos da Santa Igreja. Com não menos solicitude devemos rezar por aqueles que nos parecem em dificuldades na vida espiritual: “Minha Mãe, notei, pela fisionomia, que tal filho vosso se acha muito provado. Socorrei-o! Outro vai bem, mas precisa melhorar. Ajudai-o!

“Agradou-me ver um terceiro progredindo; minha Mãe, não permitais que ele esmoreça na virtude!”

Como se nota, quase que instintivamente nos dirigimos a Nossa Senhora, embora estejamos fazendo uma ação de graças após comungar o Corpo e o Sangue de Jesus. Compreende-se, pois é por meio d’Ela que nossas preces chegam mais segura e rapidamente ao Altíssimo.

Rezemos, em seguida, pelos nossos mais chegados quanto ao vínculo de sangue; aqueles dos quais nascemos, nossos irmãos segundo a carne, nossos familiares. Devemos querê-los segundo o amor de Deus e, portanto, ter para com eles, ao mesmo tempo, todo o afeto e o desapego preceituados pelos mandamentos da Lei divina. Peçamos que eles amem a Deus acima de todas as coisas, e nos queiram a nós também por amor ao Criador. Assim, pelas mãos de Maria Santíssima, estaremos rezando pelo bem da alma deles, e este é o maior tesouro que podemos lhes oferecer.

Pelos amigos e também pelos inimigos

Rezaremos pelos nossos amigos, mais próximos ou distantes, nas mesmas intenções. E, por fim, uma prece por aqueles que porventura alimentem injusta hostilidade em relação a nós; desejando que a clemência e a misericórdia infinitas de Nosso Senhor toquem os seus corações e os conduzam ao arrependimento e proporcionada penitência.

Para estes, poderíamos dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, na medida de vossa compaixão, rogai a Deus que não os castigue nem nesta vida nem na outra; sobretudo, o que Vos peço é que os salveis, pela glória da Igreja. Dai-lhes tudo o que de Vós os aproximam e tirai-lhes tudo o que de Vós os afastam”.

Deste modo terão passado os minutos do convívio com Jesus Eucarístico em nosso interior, e estará feita nossa ação de graças pelas mãos de Maria Santíssima.  

 

A Cooperação de Nossa Senhora com seu Filho

Na seqüência de suas considerações sobre o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos convida a contemplar as “maravilhas de graça” operadas em Nossa Senhora, cujo claustro materno tornou-se, durante nove meses, a paradisíaca habitação de Deus.

 

Escreve São Luís no tópico 16 do Tratado:

Deus Filho desceu ao seu seio virginal qual novo Adão no paraíso terrestre, para ai ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça.

Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação de Deus Filho em Nossa Senhora. Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe sua carne e seu sangue, e assim foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d’Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, sua carne e seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar uma maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o seu consentimento, para depois dar sua carne, seu sangue e, portanto, algo de seu próprio ser.

Maria criou, governou e ofereceu Jesus em holocausto

…Encontrou sua liberdade em ser aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou sua força em se deixar levar por esta Virgem santa…

Foi vontade de Deus Pai que Nosso Senhor ficasse contido n’Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graças só por Ela conhecidas. E foi dentro d’Ela, como no interior de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Pai Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus Pai recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo o mais perfeito ato de amor que jamais se deu na Terra. Ninguém nunca prestou-Lhe um ato de amor tão excelso quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O Santo mostra ainda como Jesus, que era Senhor onipotente, contido em Nossa Senhora, deixou-se transportar por Ela, não só pelas montanhas da Judeia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Maria o quis.

…Achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo. Para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até a morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão á vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.

Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus!… Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em sua infância, durante a qual Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança; e quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como menino, do qual Ela cuidava como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de sua vida junto d’Ela, e consagrando aos homens somente três.

Por fim, Ela O levou até o alto da cruz e, ali, ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou, criou, acariciou e finalmente acompanhou a vítima ao altar do sacrifício, onde Ela mesma o imolou, como diz o Santo autor. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela aceitou que Ele sofresse tudo o que padeceu, e morresse da maneira como expirou.

Dediquemos mais tempo a Nossa Senhora, a exemplo de seu Divino Filho

Há aplicações maravilhosas para nossa espiritualidade a tirar desse fato: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com a Virgem Santíssima e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que este é muito mais importante que a nossa união com a Mãe de Deus, de tal modo que dedicamos nosso quarto de hora de oração a Ela, e, o restante do tempo a nosso “enorme” apostolado?

Nosso Senhor nos dá exemplo do contrário. Tempo dado à união como Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem — “homenagem” de um Deus, a palavra parece até absurda —, de glória para a Virgem, o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d’Ela, dedicando apenas três à realização de sua missão. E entender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a uma imagem de Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que, amiúde, interrompamos nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria Santíssima com esta intenção: imitar Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de fazê-lo, embora seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que sempre tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, para que possamos utilizá-los quando as ocasiões se apresentarem.

Convicção e resolução em nosso amor, não mera sensibilidade…

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, a bazófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Importa, sim, ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso recorremos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão anipula, isso sim é verdadeirasi um tabernáculo admirável, “como Adão no Paraíso”. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção Ambientes, Costumes, Civilizações, que nós escrevemos, sobre a importância da beleza e a propriedade dos ambientes. Estando no seio virginal de Nossa Senhora, Jesus encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais: havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe eram perfeitos, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante este período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, neste período, Nossa Senhora vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse tempo, havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade enmente a seriedade na vida espiritual. O que desejamos é produzir convicções profundas, construir uma estrutura de espírito útil à vida de piedade, e não apenas fabricar uma faísca passageira de emoção mariana.

União inexprimível entre Mãe e Filho

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de sua gestação, enclausurou-se no ventre puríssimo de Nossa Senhora, e aí encontrou para tre Eles e o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de seu corpo, correspondia da parte d’Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica?

O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. E assim como, colocados diante do céu físico, contemplamos inúmeras pulcritudes que enriquecem nossa alma, no universo de verdades da Santa Igreja poucas maravilhas podemos considerar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana, como era a de Nossa Senhora, com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da sua Encarnação.

Assim, nos é dado ter uma ideia da intimidade que também nós podemos adquirir, pela nossa santificação, com Nosso Senhor; faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e faculta-nos a apetência de uma maior união com Jesus Cristo.

Essas considerações não podem ficar no vácuo. Na vida espiritual devemos propriamente desejar esses dons sobrenaturais, a união com Deus e os bens eternos!

 

 

Arca da Esperança

Com sua Fé inabalável e íntegra, Nossa Senhora foi a Arca da Esperança do futuro. Todas as expectativas do Antigo Testamento acerca do Messias, todas as promessas e certezas contidas no Evangelho de que Ele seria o Rei da Glória e o centro da História, todas as realizações do Novo Testamento, toda a grandeza que a Igreja haveria de atingir ao longo dos séculos e todas as virtudes que ela haveria de semear sobre a face da Terra inteira, tudo isso viveu dentro de uma só alma — a alma mil vezes bendita de Maria Santíssima!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Largamente Atendidos

Do fundo das infidelidades crônicas que nos perturbam, das sombras dos pecados que cometemos no passado, das insatisfações conosco mesmos, devemos pedir à Santíssima Virgem nos alcance a graça especial de compreendermos como Ela nos auxilia e ampara, até o inimaginável.

Nossas misérias são uma razão especial para Lhe suplicarmos a cura dos males que nos afligem. E por maior horror que nos inspirem nossos defeitos interiores, nem por isso deixará de ser verdade que, levantando os olhos para Maria, com firme e inabalável confiança, seremos por Ela largamente atendidos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/5/1964)

Nossa Senhora, o céu e o mar: reflexos da beleza divina

E se fala a respeito da sabedoria do Criador, mostra-se quase sempre como as coisas estão concatenadas de tal forma que elas não se destroem, nem colidem umas com as outras, mas que coexistem com harmonia e mutuamente se apoiam. É uma visão funcional do universo inteiramente verdadeira, por certo, mas que mostra apenas um aspecto, que nossa época mecanicista e ultra técnica mais facilmente compreende.

Mas há um outro aspecto do Universo relacionado com Deus enquanto causa exemplar, enquanto Ser incriado e infinitamente belo, que se reflete de mil maneiras em todos os outros seres que Ele criou. De maneira tal que não há nenhum ser que, a um título ou outro, não seja um reflexo da beleza incriada de Deus. […]

O mar: exemplo do princípio da unidade na variedade

Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no Universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica da unidade e da variedade.

Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e a uma definição fria desses princípios, seria, talvez, mais interessante que os consideremos enquanto realizados em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos.

Comecemos pelo mar. Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre. Assim, numa orla do mar, em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida, que se estende diante de nós até as fímbrias do horizonte, não se encerra ali, e tem atrás de si imensidades a que se sucedem outras imensidades, para formar a grande e única imensidade do mar, que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da terra.

Mas, ao mesmo tempo que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.

Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranqüilidade e de quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender-se nosso espírito, como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis, para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder que existe no mais profundo dele, e que não se suspeitava nem um pouco nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heroicos da História.

Também há variedades estéticas no mar. Às vezes é ele tão claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes, ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros panoramas ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos fechados em que, por assim dizer, ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.

O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo que parece com a prosa de um velho amigo, que já muitas vezes se ouviu. Mas, pouco depois, ele nos fala com o bramido dominador de um rei, que quer impor a sua vontade a todos os elementos.

O modo por que ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante, outras vezes caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado, que se diria quase que ele se contenta em ver a terra sem tocá-la.

Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto, se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade.

Caracteres específicos da variedade harmônica

Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas oferecer em alto grau os caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.

Tais caracteres são: primeiro, essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Essa variedade, pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não soubesse ser, por exemplo, tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e do extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.

Essa variedade de oposição deve comportar uma certa simetria. Quer dizer, é necessário que, quando uma coisa tem um caráter levado a um extremo, no lado oposto ela chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa ser tão furioso em umas horas quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.

Mas, ao mesmo tempo, as variedade harmônicas das gamas intermediárias também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Estas situações de transição são tão harmônicas que nós, em determinados momentos, nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará obscuro? Não o sabemos dizer, porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas, que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.

Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso; mas quando se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição, tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos coexistentes no mesmo meio termo, tem-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários que o mar atravessa.

Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo ao outro, o mar não salta, mas passa sempre, com rapidez maior ou menor, por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Quando, porém, tal sucessão de matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo, e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis, que até excederam a precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.

Na abóbada celeste, a variedade do progresso

Há, por outro lado, uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas que é muito relevante no céu: a variedade do progresso.

Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite posta, de maneira tal que ele oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vai ganhando em colorido, em força e em majestade até chegar à gloriosa plenitude do meio dia. Em seguida, ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e, por fim, toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora.

Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aparências, que vão dos primórdios ao apogeu e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.

Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação das múltiplas formas da variedade em torno de um elemento ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do sol no firmamento. Em função dele, no céu todas as variedades não são senão fundos de quadro, que cooperam para o realçar de mil modos em toda a sua beleza.

Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente debaixo dos nossos olhos e que são esplêndidas semelhanças da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.

A beleza da santidade na mais alta das criaturas: Nossa Senhora

Mas sabemos pela doutrina católica que se a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito, assim também, já que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também imagens do homem. E que o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus, Nosso Senhor.

Desta maneira, essas regras

de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade, no homem, sim, e, pois, na mais alta de todas as meras criaturas: em nossa Senhora, que, com tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.

Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente, da qual nenhum de nós pode ter uma ideia exata. […] [Ela reúne] numa perfeita harmonia contrastes aparentemente irreconciliáveis: é a Virgem Mãe, chamada a Virgem das Virgens, que poderia, muito lícita e validamente, também ser chamada a Mãe das Mães. Ninguém mais plenamente Mãe, Mãe por excelência, do que Ela. Ninguém mais plenamente Virgem, Virgem por excelência, do que Ela também.

Em Nossa Senhora se encontra, outrossim, a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se nota bem no fato de que, sendo una, Ela se apresenta a nós na diversidade admirável das suas invocações. Ela é a Nossa Senhora da Paz, é a Nossa Senhora dos Prazeres, a Saúde dos enfermos, mas é também Nossa Senhora das Dores, Ela é Nossa Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo Auxílio dos cristãos, mas Refúgio dos pecadores; Ela é glorificada pela sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar nas aparições comentam a sua soberana majestade. Ela é Nossa Senhora que se apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata” (“como um exército em ordem de batalha”), mas, ao mesmo tempo, Ela é “Mater clementiae et misericordiae” (Mãe de clemência e de misericórdia).

Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes, diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado, e, com todas as suas forças, deve procurar amar e imitar.

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de “O Mensageiro Carmelitano”, de 15/5/59)

Para alcançarmos a eternidade

Maria, porque é Mãe, deseja sobretudo a eterna salvação de seus filhos, pelos quais intercede. A vida presente passa. Marcada com felicidades, com infelicidades e com tropeços, um dia acaba.

É a eternidade que principalmente importa. Para nós, a única atitude sensata é procurar salvar nossas almas, para o que são essenciais as graças e virtudes que a Santíssima Virgem obtém de Deus.

Dirijamos a Ela, portanto, sem cessar, essa súplica humilde e filial: “Ó Rainha dos Corações, por cujas mãos Deus governa a História e o mundo, movei nossas almas segundo os vossos desígnios e alcançai-nos a eterna beatitude. Assim seja!”

A melhor de todas as mães

Nossa Senhora é a melhor das mães que houve e haverá até o fim do mundo.

Imaginemos que do começo do mundo até o seu término, desde Eva até a última mãe que houver, todas essas mães fossem perfeitíssimas, portanto quisessem bem a seus filhos com uma clareza, uma bondade, uma paciência e, ao mesmo tempo, com uma energia, uma força extraordinária. Se fosse possível colher as qualidades de todas elas, somá-las e colocá-las numa só mãe, esta seria de uma tal perfeição que a inteligência humana não conseguiria imaginar.

Pois bem, esta não seria nada em comparação do que é Nossa Senhora como Mãe. Porque Maria Santíssima é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Divino Espírito Santo, Filha especialíssima do Padre Eterno.

Evidentemente, Ela é tão excelsa que não pode ser comparada com nenhuma criatura, nem com todas as criaturas juntas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1990)

Nossa Senhora Auxiliadora bondade e misericórdia incansáveis

Desde menino, quando se viu atendido pela Auxiliadora dos Cristãos em penoso momento de sua vida — a Ela rezando um peculiar e fervoroso “Salvai-me Rainha”(1) —, Dr. Plinio nutriu particular devoção a esse título de Maria Santíssima. E como podemos comprovar pelas palavras que seguem, não perdia ensejo de recomendá-la a seus discípulos, mostrando-lhes as maravilhas de clemência e solicitude maternas que nos coloca ao alcance tal invocação.

 

Segundo o ensinamento da Igreja, as maiores glórias de Nossa Senhora redundam do fato de sua maternidade divina. Ou seja, porque eleita para ser a Mãe do Verbo Encarnado, foram-Lhe concedidos todos os demais augustos privilégios e dons excepcionais. Entre seus grandes títulos estão os de Imaculada Conceição, Co-redentora do gênero humano, Medianeira Universal de todas as graças, etc.

Apesar de assim louvarmos e cultuarmos de modo especial a Santíssima Virgem, a invocação de Nossa Senhora Auxiliadora nos é muito cara, e com invulgar insistência a dizemos para implorar a misericórdia de Maria.

Mãe que conhece e atende a todas as nossas necessidades

Explica-se. Sendo Ela Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, é também Mãe nossa, permanentemente disposta a nos ajudar em tudo aquilo que precisamos. São Luís Maria Grignion de Montfort faz uma comparação que pode parecer exagerada, porém inteiramente verdadeira: se uma mãe, com um único filho, reunisse em seu coração todas as formas e graus de ternura que todas as mães do mundo têm por seus filhos, ela o amaria menos do que Nossa Senhora preza todos e cada um dos homens.

Assim, Maria Santíssima quer tanto a cada um — por mais desvalido, desencaminhado, espiritualmente trôpego que seja, ou nada valha — que, voltando-se este para Ela, seu primeiro movimento é de amor e auxílio. Nossa Senhora nos acompanha antes mesmo de nos dirigirmos a Ela. Tem ciência do que acontece com todos os homens, em qualquer lugar, sabe de todas as nossas necessidades e, por sua intercessão, nos alcança de Deus as graças que são importantes para nossa perseverança e santificação. Quando nos dirigimos a Ela, como que a primeira pergunta d’Ela para nós é esta: “Meu filho, o que queres?”

Graus inexcogitáveis de misericórdia

Outra afirmação, igualmente verídica, é esta: se o próprio Judas Iscariotes — depois de ter vendido Nosso Senhor e caminhado para o local onde se enforcou — tivesse tido um movimento de devoção à Mãe de Deus, rezado a Ela, obteria um apoio. Quer dizer, se A procurasse e lhe dissesse: “Eu não sou digno de chegar próximo de Vós, de Vos olhar, de me dirigir a Vós, sou Judas, o imundo… Mas, vós sois minha Mãe, tende pena de mim”, Ela o teria recebido com bondade. Ela acolheria com benevolência o filho cujo nome é sinônimo de horror: Judas Iscariotes.

É-nos difícil ter sempre presente essa noção da imensidade da misericórdia de Maria. Em nossa miséria, muitas vezes somos daqueles que não creem porque não vêem. Não duvidamos, mas esquecemos das graças recebidas neste sentido. Tentados, somos levados a pensar: “Aconteceu-me isto, aquilo, aquilo outro, pedi a Nossa Senhora e não fui socorrido. Sê-lo-ei agora? Certo, Ela é Mãe de misericórdia, mas, às vezes, não sinto sua ajuda…”

Mais do que nunca, nessas horas, devemos dizer: “Auxílio dos Cristãos, rogai por nós!”. Quando não compreendemos uma situação nem sabemos como dela sair, o que vai nos acontecer, etc., precisamos repetir com insistência: “Auxílio dos Cristãos! Auxílio dos Cristãos! Auxílio dos Cristãos!”. Para a Mãe de Deus, todo problema tem solução. Às vezes não a vemos, mas Ela já está dando ao caso um monumental e favorável desfecho.

Auxílio especial nas aparentes catástrofes

Quando me lembro da história das catástrofes pelas quais passou nosso movimento, nossos reerguimentos, nossa dolorida e gloriosa avenida de becos sem saída, pergunto-me: “Se Ela me desse para escolher entre a via dos becos sem saída e qualquer outro dos caminhos que eu imaginava para nossa obra, qual eu teria preferido?” Eu responderia: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, a avenida dos becos sem saída!”

É a via do inexplicável, da catástrofe aparente, da derrota, do arrasamento, mas também a da vitória que se afirma. Como é bela essa via, porque é o caminho triunfal de Nossa Senhora. Ela transforma uma estrada esquartejada em becos numa linda e desimpedida avenida. Compreende-se, assim, como a Virgem Santíssima, Auxiliadora dos Cristãos, opera verdadeiras maravilhas, sobretudo nos momentos em que tudo nos parece mais difícil e a solução menos alcançável.

A batalha de Lepanto

Temos um célebre exemplo dessa intervenção misericordiosa e decisiva de Maria Santíssima em nossos momentos de apuro: a batalha de Lepanto, em 1571, episódio histórico que se relaciona com a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Sucintamente, recordemos que a esquadra católica se achava em número muito inferior à do adversário, e via-se com isso votada a uma derrota com funestas conseqüências para a Igreja naquela época. Porém, em certo momento do confronto, aparentemente sem explicação, os inimigos abandonam a luta e fogem. Contudo, nos anais redigidos pelos próprios componentes da esquadra maometana, pode-se ler: Os nossos navios debandaram porque uma Dama terrível apareceu no céu e nos olhava com ar de ameaça tal que nos causou pânico.

Quer dizer, os católicos, embora em número menor, não cessaram de confiar na proteção de Maria, e Ela os socorreu. Conta-se que, naquele mesmo instante da vitória, o Papa São Pio V se encontrava numa de suas salas no Vaticano, e rezava o Rosário, rogando o especial amparo da Auxiliadora dos Cristãos. Em certo momento, o Pontífice se volta aos que o acompanhavam, e diz: “Uma grande vitória foi obtida por Dom João d’Áustria, comandante da esquadra cristã!”

A partir de então o Papa incluiu a invocação Auxilium Christianorum na Ladainha Lauretana, e a Ela devemos recorrer em todas as circunstâncias de nossa vida e na hora de nossa morte, quando estivermos no último alento. Antes de exalarmos o derradeiro suspiro, digamos: “Auxílio dos Cristãos, rogai por mim” — e o Céu se abrirá para nós.

Errônea concepção da vida sem caridade

Antes de concluirmos essas considerações, convém insistir num ponto de particular valia para nós.

No mundo contemporâneo não é raro que alguém se deixe levar pela ideia de que os relacionamentos devem se basear numa troca de direitos e deveres, exclusivamente. Ou seja, cada homem tem determinados direitos que implicam em deveres de outrem para com ele. Uma vez respeitados tais direitos, o homem tem suas necessidades atendidas.

Portanto, o ato de bondade, de caridade, de amor ao próximo, inteiramente gratuito, não tem razão de ser. Se os direitos não são acolhidos, cumpre exigi-los, como se cobra uma letra de câmbio. Consoante tal mentalidade, todas as relações humanas se reduziriam a um sistema de cheques. Então, a verdadeira noção de caridade — que compreende prestações de serviço realizadas por amor, bondade, simpatia, a concessão gratuita de vantagens, etc. — desaparece. Mais ainda. Atrapalha a vida social, fundamentada na estrita justiça, transtorna o convívio dos homens, baseado num jogo de exigências. Se alguém pretendesse receber mais do que lhe é necessário, o indivíduo infectado por essa concepção responderia: “Dou-lhe aquilo a que apenas tem direito. Se quiser mais, mereça!”

Se uma pessoa transpõe esse modo de ver as coisas para a ordem sobrenatural, dirá: “Não compreendo a misericórdia de Deus para comigo, pois Ele está disposto a me perdoar e a me ajudar, mesmo quando não O agrado. Se agi mal, que Ele me puna, pois é a atitude lógica. Caridade, bondade… são coisas que não têm sentido. Baseio-me nos meus direitos, os quais Deus precisa atender”.

Socorro baseado numa relação impregnada de bondade

Ora, essa não é a mentalidade com a qual devemos considerar nossa vida terrena, e muito menos a nossa vida de piedade, nosso relacionamento com Deus.

Com efeito, o convívio humano, quando bem entendido e praticado, fundamenta-se em grande parte na solicitude e na compaixão de uns para com os outros, sobretudo dos que têm mais em relação aos que têm menos.

Que dizer, então, do trato de Deus conosco? Esse comércio tem como um dos seus fatores preponderantes a bondade, e bondade gratuita, a efusão de caridade, de misericórdia, compaixão, assistência contínua. E diante de Deus, devemos nos sentir pequeninos, impotentes, encontrando a razão de esperar clemência em nossa própria pequenez, até em nossa fraqueza quando pecamos.

Deus nos amou gratuitamente, e quer de nós que também O amemos. Estamos cumulados de dívidas, e o único meio de saldá-las consiste em manifestarmos esse amor e essa adoração a Deus. Em segundo lugar, compreendendo humildemente que necessitamos da ajuda divina, como o filho depende do pai, sem estar fazendo grandes contabilidades, e sim recebendo tudo d’Ele — eu diria — com uma espécie de santa sem-cerimônia.

Com esse pressuposto, entendemos melhor o fundamento do título de Nossa Senhora Auxiliadora. Pois o que se diz sobre a infinita bondade de Deus para conosco, devemos dizê-lo da insondável solicitude de Maria em relação a seus filhos. Ela nos ajuda a todo momento, nos dispensando misericórdia e favores aos quais não teríamos direito, e nos concede tudo isto com uma superabundância de amor, de sorrisos, de perdão, muitas vezes dando-nos o que não pedimos, ou mais do que rogamos, e até movendo nosso coração para aceitar benefícios que não queríamos receber.

Portanto, a ideia do auxílio de Nossa Senhora está toda pervadida pelo princípio de que as relações entre o homem e Deus são baseadas não apenas na justiça, mas em larguíssima parte na misericórdia, na generosidade sem limites, na benevolência e na gratuidade de favores.

Razões a mais para nunca deixarmos de invocá-La: Auxílio dos Cristãos, rogai por nós.

 

 

1) Cfr. “Dr. Plinio” número 1, abril de 1998

 

Dizei uma só palavra…

Na Visitação de Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel, vemos o poder da Mãe do Redentor: o eco de sua voz santifica um homem de um momento para o outro. É isto que devemos esperar de Nossa Senhora e pedir a Ela: que sua voz fale no íntimo de nossas almas e nos santifique, concedendo-nos uma virtude que às vezes anos de lutas e trabalhos não nos proporcionaram.

Todos aqueles que tenham algum desânimo, tristeza ou perplexidade na vida espiritual podem dizer a Maria Santíssima: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma será transmudada de um momento para o outro se Vós assim o quiserdes”.

Eis uma graça a pedir à Santíssima Virgem no dia da Visitação: que Ela fale em nossas almas e estas estremeçam de júbilo como estremeceu o Precursor no ventre materno, e que elas se santifiquem num instante, como a alma de São João Batista.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1970)