O convívio dos Anjos

A iconografia de Anjos da Renascença e do barroco, bem como certas imagens muito difundidas no século passado não representam autenticamente os espíritos angélicos; os da Idade Média e os de Fra Angélico exprimem a realidade. Os Anjos estão dispostos numa hierarquia, em que os superiores transmitem aos inferiores “jornais falados” a respeito do que viram em Deus.

 

Ao tratar sobre os Anjos, devemos antes estabelecer alguns princípios que nos ajudarão a nos aprofundarmos no assunto.

Mosteiro de Saint-Michel

O primeiro princípio que convém lembrar é o seguinte: a Providência está permitindo ao demônio ter um arrojo e uma extensão de ação como jamais se viu ao longo da História. Nós podemos ter as mais variadas impressões a respeito do passado, a História narra as ações mais estranhas, mais censuráveis, mais condenáveis. Entretanto, quando comparamos essas ações a algumas que se dão no mundo contemporâneo, vemos que o passado era simplesmente diáfano e encantador, mesmo em seus aspectos mais censuráveis, em comparação com os lados reprováveis do presente.

Há dois mil anos a Igreja cultua os santos Anjos e, de quando em quando, eles aparecem e dão de si alguma manifestação. Recordemos o Mosteiro de Saint-Michel, na França, o qual, visto no seu total, é como que a fotografia, em pedra, de um espírito angélico.

Aquela ponta que se ergue e depois a abadia com suas várias construções, junto àquele mar variado, ora mais mar do que terra, ora mais terra do que mar, às vezes restos de poça de mar no meio de braços de terra que vão secando e emergindo no meio daquilo tudo; e depois se percebe um vento uivando e silvando na parte do mar que é sempre mar. No meio de tudo isto o Mosteiro de Saint-Michel de pé, solene, tranquilo e firme, agarrado e dominando a rocha, mostrando aos mares a inanidade de seus movimentos e com a flecha apontada para o céu.

Como o espírito humano conhece bem por meio do contraste, vamos tomar certas noções comuns, correntes, pouco precisas e infelizmente um tanto infantis a respeito dos Anjos presentes na mentalidade de todo mundo — oriundas de uma apresentação muito sumária do tema — e transpô-las para o que imaginamos de um Anjo.

Com isso trataremos de ter alguma ideia daqueles Anjos cuja vinda e intervenção nós esperamos. Fica assim indicada a nossa meta, e nossas almas, ao menos por uns instantes, apontarão para essa hora da vinda deles como a torre do sino do Monte Saint-Michel.

Anjo gorducho e despreocupado…

Quais são as ideias que há a respeito dos Anjos? A criança forma a noção de que as figuras de Anjo que ela recebe correspondem às ideias que os pais — e também o vigário — têm do Anjo. Tanto mais que a criança sabe de um modo instintivo e confuso que, em última análise, o pai e a mãe conferem com o vigário as ideias da Religião. De maneira que toda estampa, todo medalhão, toda figura que representa um Anjo, a criança julga mais ou menos subconscientemente que significa o ensinamento da Igreja Católica sobre o Anjo.

Então devemos nos reportar à estatuária, às estampas, às coisas habituais a respeito dos Anjos — e que não são muitas. Podemos cogitar um pouquinho também nos magníficos Anjos da Idade Média, passando muito rapidamente pelos Anjos do barroco. Consideremos, em primeiro lugar, como os Anjos eram apresentados na nossa infância.

Havia duas casas em São Paulo, ainda do centro velho, que vendiam relógios, algumas joias e objetos religiosos de luxo: a Joalheria Michel e a Casa Bento Loeb. Aquela imagem do Coração de Jesus que há em minha residência, por exemplo, foi comprada numa dessas lojas. Eu me lembro de que o fornecimento de artigos religiosos para crianças do meu tempo era encaminhado por essas duas casas. E eram, em geral, fábricas francesas que enviavam esses objetos para São Paulo.

Então, eu me recordo de um medalhão que representava um Anjo e me chamou muito a atenção. Era circular, bom para presentear a uma senhora que acabava de ter um filho, a fim de amarrar o medalhão na cúpula do berço; para conceder a uma criancinha de três, quatro, cinco anos que faz aniversário; próprio também para dar a uma criança um pouco mais velha que recebe a Primeira Comunhão. Nem me lembro mais se esse medalhão era meu ou de minha irmã ou de algum de meus primos. Sei que esse medalhão conviveu comigo. E no promíscuo da infância entre parentes, em que a propriedade individual existe confusamente e os objetos são trocados, passam da gaveta de um para a mão do outro, nesse turbilhão tenho a impressão de que isso acabou sendo meu, mas não estou certo.

Era um Anjo tipo, ainda, “Belle Époque”(1): gorducho, com a face cheia, cabelos ligeiramente ondeados, braços bem roliços, trançados, e uma cara de inteira tranquilidade, debruçado sobre algo que era como que a base do medalhão, tendendo um pouco para o tédio, incapaz e não desejoso de qualquer esforço. Como quem olha de um terraço para um ponto vago, mas que não está muito interessado na cena que se passa embaixo e diz: “A minha batalha eu já travei e agora estou aqui gozando; você se arranje como puder!”

Lembro-me de que eu olhava para o Anjo e me vinha uma ligeira perturbação ao espírito, no seguinte sentido: “Se um Anjo é assim e conhecesse bem o interior de sua alma, ele discordaria de você; porque você tem a respeito do Anjo umas ideias que esta imagem não simboliza. Logo, ou essas ideias são contra a realidade do que é um Anjo e você está errado, ou elas são a favor dessa realidade; mas então o Anjo está errado e, portanto, alguma coisa não acerta bem nisto.” A saída era, naturalmente: “Eu vou procurar”. E olhava, olhava, olhava para ver se encontrava no Anjo alguma coisa que tivesse relação com isso.

…ou sentado sobre uma nuvem e tocando harpa

Então, uma primeira ideia a respeito dos Anjos: vida realizada, sem futuro, numa eternidade sem grandes atrativos, um certo fundo de tédio. Esforço, não! Mas outros quadros, outras coisas de uma arte religiosa que já caminhava a passos largos para sua decadência, afirmavam isso.

Por exemplo, quadro clássico, tantas vezes comentado entre nós: Anjos sentados em cima de nuvens, sobre um céu azul, tocando harpa. Quando acaba de tocar a harpa? Como é que essa nuvem não afunda?

E, no total, tem-se a impressão de que eles eram pintados com uma cara animada, mas à maneira de pessoas muito bem educadas que estavam atravessando uma fase de tédio, com ar distraído, mas que no fundo eles estavam se aborrecendo…

Por outro lado, há a ideia reta, insinuada, de que eles são de uma natureza inteiramente superior à nossa, apresentados em carne e osso apenas porque a arte não pode pintar o puro espírito, mas gozam da presença de Deus e da familiaridade nos inefáveis do Altíssimo e são muito bem intencionados, muito bem dispostos em relação aos homens. Prontos a ajudar, a socorrer.

Tornei-me adulto e as imagens de Anjos foram se repetindo no mesmo gênero. Eu me lembro de uma estampa impressa, bastante popular colocada no parlatório de um convento que frequentei muito, representando uma criancinha atravessando uma ponte, e o Anjo da Guarda, por detrás, tomando atitudes para ela não cair da ponte, com uma solicitude, um desvelo extraordinário.

Eu olhava e pensava: “Essa imagem insinua, sem afirmar explicitamente, que o Anjo se preocupa muito com que a criança não quebre a perna, mas para que ela não peque e ame de fato a Deus, não estou vendo preocupação. É um pouco securitário. Onde está o zelo do Anjo pela causa de Deus?” Não formulava isto à maneira de censura, mas de perplexidade. Era algo que eu não encontrava. Então, suspendia o meu juízo e dizia: “Não, depois veremos”.

Os Anjos de Fra Angélico

Foi algo em minha vida meu encontro com os Anjos da Idade Média e, sobretudo, com os de Fra Angélico. E refleti: “Aqui há algo com outro pensamento, outra altura, outra classe, diferente daqueles Anjos que eu vira, de uma iconografia decadente. Ora, como Fra Angélico é beato, ele fez tudo direito”.

Mas aí vinha outra perplexidade: os Anjos de Fra Angélico, os de que eu me lembro, estão sempre na bem-aventurança eterna, expressa, é verdade, de um modo perfeitamente delicado, nobre, sobrenatural, de tocar a alma. E foi esse o aspecto dos Anjos que ele procurou e nos apresentou. Eu pus em uma de nossas salas mais nobres quatro cópias de Anjos pintados por ele, e me regozijo em estarem lá. Aquilo corresponde à imagem que eu teria a respeito de um Anjo.

Mas só naquela postura? Não há outras? Não reluzem nos Anjos também outras perfeições que a minha alma procura há tanto tempo? Como são essas perfeições?

Apenas uma ideia me ficou no espírito: Por que Fra Angélico os pinta assim? Ele mesmo viveu num período em que a Idade Média já ia caminhando para seu declínio, e o heroísmo dos guerreiros medievais tinha qualquer resto ainda da ferocidade selvagem. A Europa ia afundar, dentro em breve, no que se chama anarquia feudal, quer dizer, a explosão da revolta dos senhores contra seus reis, dos senhores menores contra os senhores maiores e um mata-mata fenomenal de uns contra os outros, em parte fermento de ferocidade revolucionária que começava a crepitar, e de outro lado uma disposição de alma para a luta que tinha sido levada além do meridiano comum.

Naturalmente se compreende que Fra Angélico não poderia, a uma humanidade assim, apontar Anjos em plena ação de batalha, pois acabaria por incitar aquilo que não era para estimular. Naquele tempo, os Anjos deveriam inspirar mansidão, ser distensivos, convidando à doçura. Assim como o violino de São Francisco Solano tocado para os índios do Peru os tranquilizava, e se compreende que o Santo não lhes ensinasse marchas guerreiras, pois eles já tinham aquele borbulhar em excesso. Entende-se, assim, que Fra Angélico tenha pintado os admirabilíssimos Anjos dele.

Anjos da Renascença

Às vezes olhamos pinturas, esculturas de Anjos da Renascença — e do Barroco, continuador em alguns sentidos da Renascença — e não sabemos se representam cupidos pagãos… Lembro-me do caso de um grande pintor da Renascença, a quem um romano famoso encomendou um São João Batista increpando os fariseus. O artista disse que possuía um quase concluído e poderia entregá-lo em breve, digamos em dez dias. De fato, passado esse prazo, o quadro estava terminado.

Como se explica que um quadro, que leva muito tempo para pintar ­— não devido às pinceladas, mas para ir excogitando cada traço, pois é uma verdadeira composição —, estava pronto em dez dias?

Ele tinha pintado um Baco, o deus indigno do vinho e da bebedeira. Como não encontrou comprador, ele pintou por cima uma pele de camelo para cobrir um pouquinho o Baco e, com a mesma expressão de fisionomia do deus da bebedeira, ele o apresentou como sendo São João Batista.

Compreende-se que Anjos concebidos nessa escola de arte muito facilmente não tenham nada de católico. E são uma deformação do conceito de Anjo.

Então, devemos pôr de lado essas noções, conservar na retina os Anjos de Fra Angélico e perguntar: Se um desses Anjos se zangasse, que expressão de fisionomia tomaria? Colocado em presença do mal, da Revolução, que aspecto teria?

Isso nos poderia dar alguma ideia de como seria um Anjo, caso nós o víssemos. Assim preparamos nosso espírito para a cogitação sobre como deve ser um Anjo.

O corpo impõe limitações ao homem

O que nos diz a Doutrina Católica sobre os Anjos?

O homem tem misérias de toda ordem e, quando vigia muito sobre si, ele as mantém acorrentadas e presas; mas só se livrará delas na ressurreição dos mortos quando, tendo ido para o Céu, estiver com a sua integridade perfeitamente em ordem e os efeitos do pecado original sobre ele tiverem desaparecido completamente, e o homem só se inclinar para o bem. Então não estará mais dividido. Realmente o homem é dividido e, por causa disso, hesita, duvida. Ora é propenso a querer uma coisa, ora a desejar outra; ele precisa, quase, de coisas contrárias para encontrar seu equilíbrio.

Eu estou numa cadeira com dois braços e um encosto. O que isto representa de limitação humana! Preciso ora me apoiar sobre a direita, ora sobre a esquerda, ora nas costas; necessito apoio variado o tempo inteiro. É uma necessidade do corpo que simboliza as hesitações, as limitações e as misérias da alma humana.

Pior. Se o homem apenas hesitasse… Às vezes ele hesita e erra, duvida e peca. E às vezes nem duvida, mas delibera e peca! Até lá chegam as coisas!

Diante dessa situação podemos fazer a comparação com o Anjo. Este, por não estar ligado à matéria, não tem as limitações que a matéria nos impõe. Quanto a carne limita e condiciona o homem: bons e maus humores, nervos, etc.!

Evidentemente, a carne não é má; ela é boa, sendo uma criatura de Deus. “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Está tudo dito! Qualquer crítica que se faça da carne expira na entrada, ao pé do monte desta afirmação. Portanto, estou longe de falar contra a carne, eu a respeito.

“Não desprezes a tua própria carne”

Vem-me à memória o seguinte fato. Havia antigamente na região central de São Paulo muitos salões de engraxate, e fui a um localizado na Rua da Quitanda. Enquanto o rapaz engraxava meus sapatos, eu estava distraído, pensando em outras coisas. Não sei se eu não punha o pé no lugar adequado, mas em certo momento notei as duas mãozonas do engraxate que pegavam o meu pé e o colocavam sobre sua perna, para ele engraxar o sapato ali, sob seu controle. Quando percebi que meu pé pousava sobre a perna do engraxate, tive um sobressalto e pensei: “Não se faz isso com a carne humana! Trata-se de um simples engraxate, mas é um homem! E o respeito à natureza humana deve levar-me a tirar o pé de cima da perna dele”.

Olhei para o engraxate e percebi que seria um duelo, porque ele queria terminar o serviço e não estava pensando em sua perna, mas nos sapatos que precisava engraxar. Era uma luta que eu não venceria, pois ele agarrava meu pé. Então refleti: “Bem, é por conta dele; se o engraxate me obriga, ele está me desrespeitando e não sou eu que estou pisando nele. Ele quer ser pisado”.

Mas fiquei com esta pergunta no espírito: Qual é o princípio em virtude do qual essa minha reação foi reta? Algum tempo depois me chegou às mãos, por circunstâncias fortuitas, uma citação da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne” (Is 58,7). Eu disse: “Olha lá! Está aí justificada minha reação no caso do engraxate!”

Eu não poderia desprezar a carne humana; não era minha, mas carne da qual também eu sou feito. Não posso desprezar a minha própria carne. Por isso não tenho o direito de pisar noutro homem, de tal maneira nós devemos respeito à carne.

A graça prepara a alma para ser o reflexo de Deus

Além da carne, há um outro fator que condiciona o espírito humano: é a graça. Quer dizer, é uma participação criada na vida divina que dá a cada um de nós lampejos, pensamentos, reflexões, volições que Deus sopra em nossa alma e por onde Ele, com muita delicadeza, prepara a alma humana para ser o reflexo d’Ele mesmo.

Assim, a graça respeita a nossa fragilidade, as nossas limitações, ama essa natureza humana composta de alma e corpo que seria a natureza humana de Nosso Senhor e a de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra. Deus, por meio da graça, de um lado, e do corpo, de outro lado, faz com que a alma, se ela se deixa conduzir, se eleve a considerações altas, pense coisas nobres, sua vontade tome força; o homem pode tornar-se um santo, ainda que muito pouco inteligente.

Houve um santo famoso por sua carência de inteligência, São José de Cupertino, que viveu na Itália. Ele era muito pouco inteligente, mas dava conselhos tão acertados que havia peregrinação para o local onde ele morava. E milagres ele praticava a jorro contínuo. É a graça superando ou compensando o que a carne não dava e fazendo dele esta maravilha de Deus: um homem de grandes horizontes, mas burro!

Era preciso que isto existisse na ordem do criado, e assim compreendêssemos bem o que é a limitação, a fragilidade e o esplendor do homem.

Alguém dirá: “Limitação, fragilidade, Dr. Plinio, eu vejo; esplendor não estou vendo…”

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação, e por isso Ele tomou a condição daquele tipo de seres que reúne as duas pontas da Criação. O homem, enquanto ser espiritual, toca no Anjo, e enquanto ser material tange no animal, na planta e na pedra. Ele é um resumo de tudo quanto Deus fez.

Quem é capaz de ver o mar sem se enlevar especialmente com aquela fímbria onde ele parece tocar no céu? Ora, este é o homem! É um horizonte composto.

Não deixa de ser verdade que todas as coisas brilham por causa do Sol, e se o homem é o conjunto, o que há neste de mais nobre, de mais luminoso, de mais belo é a alma humana, elemento espiritual que nos assemelha aos Anjos. Entretanto, estes são de tal maneira que cada Anjo é, por natureza, distinto de outro. Puros espíritos e tão desiguais entre si que são como espécies ou gêneros diferentes.

Jornal falado dos Anjos superiores aos inferiores

Os Anjos estão dispostos perpendicularmente em hierarquia. Cada superior vê mais, quer com mais força, ama com mais ardor, combate com mais eficácia, seu louvor tem mais ressonância, sua presença mais calor, sua missão mais glória do que o inferior.

O gráfico verdadeiro dos Anjos não seria uma pirâmide que encosta sua base noutra pirâmide e assim por diante. A perspectiva seria um fio de linha luminoso de puros espíritos que chegariam até o lugar aonde ninguém chega, nem eles mesmos: o trono de Deus.

E no ápice — mas tão mais no ápice que nem sei o que dizer! — está Nossa Senhora. Nosso Senhor Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Sua natureza humana está ligada à divina pela união hipostática. Nossa Senhora é mera criatura. Ela está num píncaro em relação aos Anjos, os quais cantam enlevados sem poder entender inteiramente.

Mas eles, ao longo deste fio esplendoroso, têm secções. Uma é a dos Serafins, outra dos Querubins, depois dos Tronos, das Dominações, das Potestades, das Virtudes, dos Principados, dos Arcanjos e dos Anjos. Estes são denominadores comuns entre os quais há hierarquia. Cada Anjo vê Deus face a face, entretanto os mais elevados contam aos inferiores o jornal falado sobre o Onipotente que não foi possível eles verem. Então o mais alto diz ao inferior, com amor e solicitude: “Príncipe, meu irmão, vi tal coisa e tal outra”. E o que recebe a notícia conta ao colocado abaixo: “A ti, Príncipe, meu irmão…”, e lá vai a mensagem, a informação celeste. Cada um que fala com o mais baixo conta o que os Anjos mais elevados lhe disseram e o que ele próprio viu de Deus.

De maneira que quando chega à base — quanto acima de nós! —, esta recebe uma caudal de comunicações, de incitamentos, de estímulos, de nobilitações, e canta a glória das hierarquias superiores como modo de cantar a Deus. E todo afeto, todo respeito que desce, sobe à maneira de ação de graças e louvor.

É o eterno convívio entre os Anjos em que, apesar de ver Deus face a face, cada Anjo é razão de uma alegria enorme para outro, e a corte angélica nada nas suas alegrias eternas.

Viver é sentir saudades dos píncaros

Devemos lembrar de passagem que existem vagas nessa corte, e serão almas de criaturas humanas que preencherão esses lugares. E há, por exemplo, a tese indizivelmente simpática de que São José faz parte do coro dos Serafins. Ele está no mais alto, mais alto, mais alto que possa existir, pois é o esposo da Santíssima Virgem!

Assim, esses vagos são preenchidos por gente da plebe da Criação enobrecida pelos planos de Deus, pela Igreja Católica e pela graça. E na Terra, ao longo do tempo, aqueles para isso designados, talvez todos os homens, não se sabe bem como é essa distribuição, estão sendo promovidos para obterem o trono que os espera no Céu, segundo os planos de Deus.

Nunca percebi em concreto nada que me desse a impressão mais especial de um Anjo me ajudando, mas sei que eles auxiliam e lhes agradeço com todas as profundidades que em minha alma haver possa. Tenho a certeza de que os nossos Anjos da Guarda têm por especial preocupação elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes. Não é o mero anseio de levar boa vida no Céu, mas um desejo de conhecer as coisas celestes até mesmo independentes da felicidade que o Paraíso concede. De maneira que Santa Teresa — bem espanhola na sua santidade — dizia a Deus: “Ainda que não houvesse o Céu eu Te amaria, e ainda que não houvesse o Inferno eu Te temeria!” É assim que devemos conceber o Paraíso.

Para considerarmos bem as coisas do Céu, precisamos observar as coisas da Terra, criadas por Deus à maneira do Céu. Antes de tudo a Igreja Católica e depois os vários seres materiais.

É mister termos um feitio de alma pelo qual, por um seletivo bem realizado, conhecemos o que devemos conhecer olhando sempre para o que de mais alto aquilo conduz. Este é o movimento de nossa alma para o Céu.

Tenho certeza de que o Anjo da Guarda de cada um nos ajuda especialmente nisso.

Uma alma “angeliforme”, consoante com seu Anjo da Guarda, é aquela que em cada circunstância procura o que há de mais elevado, e vive à procura do mais elevado.

Assim, devemos entender que nossos Anjos da Guarda querem isso de nós, e que só formamos um com eles se toda nossa vida for orientada ao mais alto. Para a alma ser assim é evidentemente necessária a ajuda dos Anjos. E eu agradeço do fundo da alma ao meu Anjo da Guarda, a Nossa Senhora e a Deus Nosso Senhor, de Quem parte todo o bem que a Santíssima Virgem distribui. Viver não é comer, beber e dormir, passear, vegetar. Viver é sentir essas saudades dos píncaros.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1980)

 

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.

 

Como um magnífico nascer da lua…

O nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo representou uma honra incomparável para toda humanidade. Guardadas as proporções, também a vinda de Nossa Senhora ao mundo conferiu particular nobreza ao gênero humano. Foi Ela a criatura mais perfeita nascida até então, concebida sem pecado original, a quem foi dada, desde o primeiro instante de seu ser, uma superabundância de graças.

Compreende-se pois, a afirmação de que Maria Santíssima está para Nosso Senhor, assim como a lua para o sol: Ela representa a suave e amena luminosidade da lua, e Ele, a onipotente e deslumbrante claridade do sol.

Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do fulgurante astro. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. A natividade de Nossa Senhora foi, pois, para toda a humanidade, como magnífico nascer da lua: sol das sombras, sol do repouso, sol das longas meditações e das extensas digressões do espírito…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Confiança na misericórdia de Nossa Senhora

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança. Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que —  na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Plinio Corrêa de Oliveira

Natividade de Nossa Senhora

Se o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo já representava a aurora da salvação do gênero humano, o mesmo se pode afirmar, de certo modo, da natividade de Nossa Senhora. Com efeito, tudo quanto Jesus trouxe ao mundo, começou a nos chegar com o nascimento d’Aquela que seria sua Mãe Santíssima.

Compreende-se, pois, todas as esperanças de salvação, de indulgência, de reconciliação, de redenção e de misericórdia que se abriram, afinal, para os homens, naquele bendito dia em que Maria surgiu nesta terra de exílio. Feliz e magnífico dia, marco inicial de uma existência insondavelmente perfeita, pura, fiel, e que seria a maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo daquela que devemos à Encarnação do Verbo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (setembro de 2003)

Misericórdia infindável

Enquanto dormimos, Maria Santíssima continua a velar por nós, rogando a seu Divino Filho que nos auxilie e nos olhe favoravelmente.

Quando acordamos para um novo dia, e temos a infelicidade de começar a ofender a Deus, Nossa Senhora passa também a nos perdoar e a nos incentivar em atos de virtude. Se A ouvimos, Ela nos sorri e redobra sua solicitude, seu encorajamento maternal. Se, apesar de tudo, caímos, Ela está pronta a nos socorrer sem demora, a nos dirigir sorriso ainda mais terno e consolador, a novamente nos perdoar e reerguer.

Na verdade, a misericórdia de Nossa Senhora não conhece fim.

Plinio Corrêa de Oliveira

Peregrinando dentro de uma oração cantada

No canto gregoriano não há dramaticidade, mas uma serenidade plena de reflexão. É recitado por pessoas que, encontrando-se à margem dos acontecimentos, entoam hinos os quais muitas vezes tratam da vida dos homens e das nações, sempre elevando nossas mentes até Deus, e tirando conclusões que são verdadeiros princípios de História.

 

O  Ofício Parvo de Nossa Senhora foi cantado há pouco magnificamente, segundo os melhores princípios da música sacra. Princípios estes estudados pela Igreja, através de especialistas, durante séculos. Aprimorados, destilados, postos no ponto exato até chegarem, por exemplo, ao que todos nós ouvimos.

Em nossos dias, o bulício contagiou todos os ambientes

Nesta matéria, como em todas as outras, há uma porção de escolas, e a Igreja, sempre sábia, sempre mãe, naquilo que não está ligado à Revelação deixa uma liberdade de opinião e de pensamento àqueles que são filhos dela. Assim, essas várias escolas musicais têm cidadania dentro da Igreja.

Sempre que ouvia o Ofício bem rezado, tinha uma impressão curiosa que eu descreveria empregando o título de um artigo que certa vez escrevi: “Peregrinando dentro de um olhar”(1); eu, então, diria: “Peregrinando dentro de uma oração cantada”.

Como é minha peregrinação pessoal dentro dessa oração cantada? Ao responder a esta pergunta tenho em vista, evidentemente, ajudá-los a explicitarem as suas próprias impressões; explicitando-as, conhecerem-nas melhor; conhecendo-as melhor, saborearem melhor o cantochão, compreenderem melhor o canto da Igreja e o amarem mais.

O bulício de nossos dias contagiou todos os ambientes pela imposição das circunstâncias. Se tudo corre, tudo se agita; ou corremos também ou perdemos o avião, o trem, o bonde… Então, é preciso absolutamente correr.

Hoje em dia, levo uma vida como antigamente se ouvia falar, no cinema, que levava um banqueiro riquíssimo: tomava o elevador com um secretário, com quem ele despachava alguma coisa; no trajeto entre o elevador e o automóvel ainda atendia alguma pessoa, sentava-se dentro do automóvel, tinha ali outro secretário para tomar nota de diversos assuntos. E assim conduzia a vida dele, até durante as refeições. De maneira que ele dormia o menos possível e, quando conciliava o sono, ainda sonhava com despachos!

Todo o meu temperamento é o contrário disso que representa para mim um pesadelo. Desse pesadelo, eu só não tenho duas coisas: o dinheiro do banqueiro e, graças a Deus, o sonho com negócios. Ainda os mais sagrados “negócios” de apostolado, não sonho com eles. Na hora de dormir, tomo um livro para ler, penso em outras coisas, mas não em despachar assuntos concretos.

Quando acordo de manhã, já recebo as primeiras notícias do dia e começa a roldana. De maneira que, contra a minha vontade, como um prisioneiro que está amarrado a uma máquina e é obrigado a correr com ela, levo essa vida que eu não quereria levar.

Calma, tranquilidade, distância psíquica que defluem do cantochão

Por isso posso medir bem a transição entre essa vida corrida e o momento em que, de repente, começa-se a ouvir o canto sacro. No primeiro instante, é uma sensação subconsciente, nada violenta, nada desagradável, de defasagem. Quando se está começando a pensar como fazer para corrigir o que está defasado, a ação do canto sacro — ainda quando não se entendam as palavras — vai penetrando na alma e abrindo nela certos “compartimentos” que estavam fechados.

Vai pondo em evidência e colocando em condições de vibratilidade certas possibilidades de sentir que estavam colocadas de lado, e nas quais não se prestava muita atenção. E começa a emergir, de dentro da agitação, uma calma, uma tranquilidade, uma distância psíquica(2), que fazem as coisas fluírem como flui o som do cantochão.

Para quem não tem sensibilidade, esse canto é uma contínua repetição, mas na realidade não é. Aquilo, a cada vez que se repete, diz algo de novo para a alma capaz de saborear. Depende da alma.

O sabor de uma inflexão de voz não é bem o da outra, aquilo diz uma coisa nova a cada inflexão que, de um lado, é parecidíssima com a anterior, e de outro lado fala uma coisa completamente diferente da anterior.

É preciso que o cantochão tenha entrado muito nos nossos ouvidos para nos familiarizarmos com a linguagem dele. Ele tem todo um timbre de voz e toda uma linguagem discretíssimos. Tal linguagem discretíssima supõe que alguém esteja nos falando numa certa clave, e que vai nos induzindo a nos pormos nessa mesma clave para ouvirmos e respondermos. Dessa forma é um diálogo que se abre, mas de um abrir que é um afetuoso impor.

Isso é assim, mesmo quando não se compreendem as palavras; se estas são entendidas, tomam um outro sabor.

Compreendendo o fundo dos acontecimentos, mas recusando-se a vibrar com eles

Há pouco, por exemplo, foi cantado o Salmo cujos dizeres eram:

“Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigiam as sentinelas.”(3)

Em arte declamatória, essas palavras poderiam ser recitadas legitimamente em tom de aviso, contendo uma ameaça, como quem dissesse: “Enquanto o Senhor não defender a cidade, inútil vos é defendê-la! Pedi, então, a Deus que a defenda, e vencereis! Do contrário, cairá sobre vós a mão do Altíssimo cujo auxílio não pedistes!”

Isso que estou imaginando, dito como uma advertência de alguém que vê uma cidade defendida por outros que não rezam por ela, no cantochão não tem essa dramaticidade. É recitado à maneira de uma reflexão feita por quem, encontrando-se à margem dos acontecimentos ­­— e tendo ouvido falar da ruína de muitas cidades pelas quais os defensores não oraram —, conclui um grande princípio geral da História. São desses princípios em que as torres da História entram pelas nuvens sagradas da Teologia.

São reflexões que se sucedem, feitas por homens que estão no silêncio, muito atentos ao que se passa na Terra, mas já com os ouvidos postos no Céu. Pessoas que ponderam dentro de um estado de espírito todo especial, sem as agitações terrenas, mas às quais chegam todos os ecos da vida. E que, portanto, dentro de um silêncio sacral e celeste, redestilam toda a Terra e toda a vida, com muita força de alma, pois compreendem o fundo dos acontecimentos, tomam-lhes inteiramente o sabor, recusando-se a vibrar com eles.

Uma batalha entre dois exércitos que combatem em campo raso

Imaginemos uma batalha travada em terra plana, cujos exércitos opositores são comandados por dois generais postados, cada um, no alto de uma colina. Embora esses generais não se vejam, eles estão atracados inteiramente um ao outro. Apesar de que estejam retirados e, aparentemente, não participarem da luta, o suco do combate se dá ali. Porque, como a direção da batalha vem desses generais, é ali que tudo repercute. E é essa repercussão que impede a batalha de se transformar numa brigaria individual.

A guerra é, portanto, uma realidade que exige estar um pouco fora dela para se penetrar inteiramente nela.

Suponhamos, agora, que numa colina mais elevada especialistas de guerra assistem à batalha. Eles não torcem por nenhum dos dois lados, mas estão estudando a arte militar pelo modo daqueles dois exércitos combaterem.

O tom no Estado-Maior das duas primeiras colinas deve ser tranquilo, atuante e rápido. Na colina mais alta, o tom é ainda mais tranquilo, mais distante dos acontecimentos, entretanto o suco dos acontecimentos sobe até lá com maior força. Porque ali não se resolve uma batalha, mas são os conhecimentos do gênero humano sobre a arte de guerrear que progridem. Se aquela batalha for bem observada, a História da Guerra pode mudar de direção.

Esses especialistas conversam entre si com uma cordialidade normal, observam, nunca levantam a voz, dialogam, concluem. Eles estão muito mais alto, e acima deles há apenas um “teto” chamado “teoria”. Eles viram e mexem, sobem ao mirante da teoria, depois voltam para uma prática observada de longe, chegam a uma alta consideração sobre a guerra.

Seja qual for o exército vencedor, quem tirou a melhor lição da guerra foram os que estiveram na clave humana mais elevada.

Com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus

Essas orações do saltério referem-se continuamente a acontecimentos humanos passados, mas perenes, porque em algo a História sempre repete aqueles episódios. E os Salmos nos mostram atitudes dos homens perante esses acontecimentos, regras gerais de sabedoria sobre o modo de proceder, a conduta de Deus, para aprendermos como Ele é, como devemos agir com Ele, e como Deus agirá conosco. O píncaro é propriamente saber agir com o Criador na hora da aflição.

Então, o cantochão deve ser visto como homens que se colocam intencionalmente nesse píncaro do pensamento, com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus.

Esta posição supõe uma atitude de alma preparatória para a ação, porque é um estudo da ação. Antes de tudo, ação de Deus, depois nossa ação com o Criador e com os homens, e de como o Altíssimo toma esta nossa ação com os homens.

Ora é alguém que pecou, cometeu tal crime e pede perdão, mas sente que Deus está demorando em concedê-lo. Então, invoca de um modo, alega outra coisa… Ora, pelo contrário, é um hino de ação de graças porque Deus concedeu um favor qualquer, e sentimos o sabor do dom quando nele ainda se encontra o calor da mão divina.

Trata-se, portanto, de uma espécie de oração a propósito do acontecer interno humano, da vida interior, da vida externa individual e das nações e, em face daquilo, a atitude de Deus. O coro sereno salmodia e, com as próprias palavras da Escritura, aprende a louvar a Deus.

Exercícios de voo de alma

Qual é o resultado disso na hora da ação?

O espírito sai tranquilizado, serenado e muito mais capaz de subir. São verdadeiros exercícios de voo de alma contidos não só no que o texto diz, mas, além do texto, há algo da posição temperamental do homem que pensa e reflexivamente sente, alegra-se, se entristece, chegando às vezes aos extremos da alegria ou da dor, porém sem sair daquela serenidade da reflexão, de quem está à margem e acima dos fatos.

Por vezes as pessoas formam a ideia errada de que na torcida encontra-se o próprio sabor da vida. Na verdade, encontramos o sabor da vida quando mandamos embora a torcida e olhamos de cima.

Certa ocasião, vi um homem conhecedor de vinhos que provava um vinho muito bom oferecido a ele. Ele disse que o vinho era muito saboroso, mas a análise do mesmo não se limitava em bebê-lo, era preciso também saber sentir seu aroma. Ele, então, parava de tomar e cheirava um pouco o vinho.

No cheirar há uma tomada de distância psíquica em relação ao beber, porque se analisa um pouco mais do que quando se tem a bebida meramente sobre a língua. Na língua se associam outras sensações, e logo depois se engole. O cheirar é uma análise mais intelectiva.

Saber sentir o perfume do “bouquet”(4) da vida é não torcer. É adquirir essa serenidade que constitui a própria clave da existência.

Temos, assim, algumas ideias gerais sobre o conteúdo dos Salmos e a clave em que eles nos põem, por meio do cantochão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/4/1983)

 

 

1) Publicado na Folha de São Paulo, em 12/11/1976.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Sl 126, 1.

4) Do francês: conjunto de elementos.

Maria Santíssima, nossa âncora nas nuvens

Favorecido pela Providência com o dom de se expressar  de modo muito claro e com beleza literária, Dr. Plinio utilizou largamente esse predicado  para fazer o bem ao próximo. Nesse apostolado, um dos recursos mais atraentes de que se valia era o uso das  metáforas, por meio das quais ilustrava seus ensinamentos e os tornava de fácil compreensão. A seguir, inaugurando esta nova seção,  recordamos a imagem concebida por Dr. Plinio para salientar o indispensável auxílio da Mãe de Deus em nossa vida espiritual.

 

Ao longo dos nossos anos de apostolado, analisando a ação da graça nessa e naquela alma, dir-se-ia que, para um católico dos dias de hoje — e, de maneira especial, para um membro do nosso movimento — a fidelidade à vocação consiste em desejar um retorno dos melhores frutos da Civilização Cristã que foram sendo destruídos pela incorrespondência dos homens.

A confiança de um navegante em situação desesperadora

Tal anelo, parece-me, seria compreensível e justificável noutra época. Porém, após tanto tempo de dita incorrespondência e, por conseguinte, de pecados e ofensas cometidos contra a bondade divina, a fidelidade se nos apresenta de modo diverso: exige-se de nós que sonhemos, no sentido mais nobre da palavra, com uma ordem de coisas na linha do que teria sido aquela anterior se não tivesse sido destruída e, mais ainda, que a supere totalmente.

Como sonhar? Como confiar nessa superação?

Creio que a única solução para quem se encontra em situação semelhante a essa em que estamos, e na qual provavelmente estaremos cada vez mais imersos, é lançar uma âncora. Contudo, fazê-lo à maneira de um navegante que se acha numa circunstância tão desesperadora que, ao invés de deitar a âncora no fundo do mar, arroja-a em direção às nuvens, esperando que o Céu a segure por ele. Ou seja, é preciso chegar até essa ousadia de confiança.

Quanto mais generosa a alma, mais ela acredita no socorro de Maria

 E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, seria uma atitude racional. Com efeito, sendo a voragem da água tal que o próprio fundo do mar se descobre aos olhos do navegante, ele não tem outro recurso senão lançar a sua âncora para o Céu. E é tanto mais provável que o Céu atenda seu apelo, quanto mais terá sido sua confiança na hora de jogar a âncora.

Noutras palavras, quanto mais a alma for própria a dar‑se, quanto mais for generosa em dedicar-se ao serviço de Deus e de Maria Santíssima, tanto mais ela acreditará, no momento da provação e da angústia, que Nossa Senhora fará por ela o inconcebível em matéria de socorro, de amparo, de solicitude.

Nossa Senhora segura a âncora no Céu

Alguém poderia me perguntar, muito a propósito: como se joga uma âncora para o Céu?

Responderia eu que há determinadas circunstâncias nas quais percebemos claramente que uma ação nossa corresponde ao plano da Providência para conosco, mas, ao mesmo tempo, de acordo com as disposições humanas, tal realização é por inteiro improvável. Ora, nós nos engajamos nessa obra porque percebemos tratar-se do desígnio da Providência, e só por isso, pois do contrário seria uma temeridade e uma loucura. A âncora foi jogada para o Céu.

Importa notar o seguinte aspecto: não é tanto algo que resolvemos fazer, mas uma situação que aceitamos com confiança, por discernirmos que Nossa Senhora colocou por nós a  âncora nas nuvens.

Por exemplo, aqueles que me acompanham há mais tempo em nosso apostolado nunca me viram traçar um plano com este estado de espírito: “Tal lance é uma loucura, mas vamos fazê-lo porque a Providência quer”. Porém, ouviram incontáveis vezes eu dizer: “Tal situação está perdida, mas vou me manter em paz porque a Providência nos ajudará”.

Essa, repito, é a âncora nas nuvens. Nossa Senhora a colocou ali por nós. Percebemos que o navio desapareceu, o mar corre por debaixo dos nossos pés, estamos pendurados numa corda, presa não sabemos onde. Olhamos para cima: está numa nuvem e com uma âncora na ponta. E o mais extraordinário: está ventando de tal maneira que o vento pode levar a nuvem a qualquer hora… Entretanto, Nossa Senhora quer que permaneçamos tranquilos, pendurados na âncora como se estivéssemos com o chão sob nossos pés.

Sei que não é uma atitude fácil de ser adotada. Mas, pela minha própria experiência, posso afirmar que ela é, ao mesmo tempo, terrível e altamente deleitável.

Confiança na gloriosa mediação da Virgem

Cumpre, pois, que nos formemos nessa generosidade de alma e, quando for preciso, lancemos a âncora para o Céu com toda a segurança. Preparemo-nos para jogá-la às nuvens, pedindo a Nossa Senhora que nos alcance uma virtude da confiança semelhante à d’Ela.

A abundância da misericórdia de Maria sobrepuja tudo quanto qualquer um de nós possa excogitar. Deixemos nossas apreensões inteiramente nas mãos de Nossa Senhora e Ela tudo resolverá. Essa certeza não é gratuita: baseia-se na mediação onipotente da Mãe de Deus em nosso favor. Mediação, aliás, belamente assinalada na oração final da Ladainha Lauretana, que me apraz muito recitar: “Pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria”.

Ou seja, de tal modo uma súplica de Nossa Senhora é atendida por seu divino Filho que seus pedidos podem ser qualificados de gloriosos. Isso deve nos entusiasmar e cumular de confiança n’Aquela que incansavelmente está disposta a nos socorrer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 1 e 2/3/1980)

Força e doçura

Objeto de nosso enlevo e admiração, a extraordinária figura do Imperador Carlos Magno se destaca na história da Cristandade, por ser ele o grande protetor da Igreja no seu tempo, e um dos fundadores da Europa católica. Já tive ocasião de externar o quanto seu exemplo se fez valioso em minha formação, desde aqueles remotos dias em que o “encontrei” pela primeira vez, numa revista comprada na estação ferroviária de São Paulo(1).

Entre outras inestimáveis marcas deixadas por ele na cultura e na arte da Civilização Cristã, temos o legado de sua presença em Aix-la-Chapelle (a atual cidade alemã de Aachen), aonde fazia tratamento com águas minerais e ali residia num palácio do qual restam lindos vestígios. Foi igualmente de sua iniciativa a construção da esplendorosa catedral da cidade.

Como se sabe, a escultura foi uma das manifestações artísticas mais desenvolvidas pela Idade Média, de modo especial cultivando e desenvolvendo o estilo gótico. Na Catedral de Aachen, assim como em outros importantes templos medievais, percebemos isto de curioso: nas imagens que adornam os pórticos e as fachadas há sempre uma junção de paz e serenidade profundas. Sobretudo em se tratando de personagens masculinos, temos homens grandes, fortes, vigorosos, dando-nos a impressão de serem netos ou bisnetos de um bárbaro. Ou serão protagonistas de cenas bíblicas, patriarcas veneráveis, de barba possante e a coragem de guerreiros.

Entretanto, neles transparece a doçura e a tranqüilidade. É a nota componente da Idade Média, um tanto esquecida no mundo contemporâneo: a ligação harmoniosa entre a fortaleza e a doçura. Homens fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos bárbaros — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E dão origem a esse ambiente de suavidade, nascido de um passado repleto de lutas e sofrimentos, mas também pleno de oração, de piedade, de obras de caridade e misericórdia. Foi na Idade Média que se construíram os primeiros hospitais no mundo.

Tudo isso se eternizou nas pedras e nas recordações históricas, como as da Catedral de Aachen. No seu interior, ela nos mostra altas arcadas, com dois andares de colunas, atrás das quais reluzem bonitos vitrais, e o majestoso lustre, acrescentado no século XII pelo Imperador Frederico I, como símbolo da Jerusalém celeste, pendendo do teto adornado de mosaicos com cenas sacras.

Na catedral se conservam dois objetos de imenso valor. Um, a mais bonita peça de ourivesaria por mim conhecida, é o relicário contendo os restos mortais de Carlos Magno.

O desenho é de uma basílica, toda lavorada com aplicações de prata dourada, verniz, filigranas com pedras preciosas e esmalte. Circundam-na as imagens de oito reis do Sacro-Império, sucessores do grande Carlos, desde Luís o Piedoso até Frederico II. Na parte da frente, sobre a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo triunfante, vê-se o Imperador no seu trono. Na face posterior aparecem a Santíssima Virgem com o Menino. Além disso, os relevos do teto representam cenas da vida de Carlos Magno. O conjunto desta peça impressiona pela proporção e a harmonia perfeitas dos seus vários elementos.

O outro objeto de que falamos é uma gloriosa reminiscência do Sacro-Império: o famoso trono de Carlos Magno, sobre o qual, a partir de meados do décimo século, os reis medievais recebiam a dignidade de soberanos.

Do ponto de vista estritamente artístico, é mais rústico e, portanto, menos bonito que o relicário. Porém, a preocupação de se produzir algo belo e nobre está presente na quantidade de mármores de que é feito. Como esse gênero de pedra não era achado na região de Aachen, era preciso importá-lo de outros territórios, transportando-o a dorso de mulas por estradas difíceis, escoltadas por grupos armados, enfrentando-se o perigo de saques e de acidentes provocados pelas intempéries e precipícios.

Depois dos longos trajetos, o mármore afinal chegava e vinha enriquecer o trono do magno Imperador. Uma vez terminado, Carlos o mandou instalar no andar superior da catedral, num ponto de onde ele, assentado, podia ver o altar e assistir à Missa. Então, posto nessa conveniente eminência, o monarca acompanhava o Santo Sacrifício que se celebrava.

E nós nos comprazemos em imaginar o que seria essa linda catedral repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando cânticos religiosos, ou aguardando num silêncio meditativo a hora da Consagração. E o grande Carlos sentado em seu trono, resplandecendo de piedade e de glória…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

¹ ) Cf. “Dr. Plinio” número 8.

Meiguice e bondade extremas

Um fato ungido pelo perfume dos antigos tempos em que a Fé predominava nas almas, tocou-me de modo especial, e merece ser por nós comentado. O episódio milagroso ocorreu em Prato, na Toscana, em 1484, e dele originou-se a expressiva invocação de Nossa Senhora das Prisões.

Numa certa manhã daquele ano, um menino sentiu-se atraído por uma cigarra e correu atrás dela, até se deter diante do muro da prisão de Prato, no qual se achava estampado lindo quadro da Santíssima Virgem.

Esta é, aliás, uma das belas coisas a se admirar na Itália: as pinturas e imagens da Madonna, expostas um pouco por toda parte, em Roma e noutras cidades italianas. Nos ângulos externos das casas, sobre as portas ou no centro das fachadas, de repente o transeunte se surpreende com um oratório desses, ornado de flores, sob as refulgências de pitoresco lampadário, etc. É algo deveras estupendo.

No quadro em questão, a Virgem trazia em seus braços o Menino Jesus, que, por sua vez, segurava nas mãos uma flor e um passarinho. Subitamente, para o maravilhamento da criança que a contemplava, a imagem começa a tomar vida, a animar-se. Nossa Senhora desce do muro, deposita no chão seu Filho e este se põe a brincar com o passarinho, diante do olhar atônito do pequeno italiano. Aquela cena extraordinária é então tocada por um raio de sol que abre uma passagem para o interior da prisão. Seguindo-o, entram a Santíssima Virgem, o Divino Infante e o bambino.

Nossa Senhora percorre várias celas obscuras e as ilumina à sua passagem.

Terminada essa indescritível visita, Mãe e Filho, sempre acompanhados pelo menino, deixam o recinto do cárcere e retomam sua imobilidade original no quadro suspenso ao muro.

Esse milagroso espetáculo se renovou diversas vezes, diante de uma multidão de fiéis que viram assim confirmada sua devoção à Rainha do Céu e da Terra. Consta que o fato foi relatado pelo bispo local ao Príncipe Lourenço de Médici, quem fez construir em Prato magnífica igreja, um dos mais belos monumentos italianos do século XV.

O episódio é em extremo gracioso, e nos fala, de modo ímpar, da benignidade e da bondade de Nossa Senhora. A cena inicial já nos encanta: um bambino, daqueles gorduchos, mas, ao mesmo tempo, tão vivaz que não parece sujeito à ação da gravidade, e por isso esvoaça por todos os espaços que encontra diante de si, correndo ao longo do muro de uma prisão, atrás do quê? De uma cigarra… Que cena sumamente pitoresca!

Outro aspecto digno de nota: na muralha de uma penitenciária, do lado de fora, sorri uma imagem de Maria Santíssima com seu Divino Filho. Então é o contraste maravilhoso entre o vulto austero e duro de uma prisão e a afabilidade materna da Virgem aconchegada naquele muro. E os muros italianos constituem um encanto à parte: alguns por assim dizer leprosos, de pedras tão velhas, tão escangalhadas por toda sorte de tempestades, lavradas de um modo tão bruto que se diria estarem morrendo, mas… lindíssimas! Por sobre elas, ou se estendendo pelo seu corpo, crescem vinhas que frutificam em uvas apetitosas; o sol se deleita em aquecê-las, dando ensejo a que se produzam atraentes sombreados em volta delas. E aí temos o panorama de um tal milagre.

O menino se esquece da cigarra e se detém diante da imagem de Nossa Senhora. E a Virgem começa a se mover… O pequeno Jesus brinca com um passarinho, e podemos imaginar com que delicadeza, com que candura e vivacidade! Ele, o criador, se compraz em se divertir com a sua criatura. Tudo isso fornece elementos para recrear e extasiar a piedade dos homens.

De repente, um raio de luz transpõe as rudes muralhas da prisão e leva atrás de si o passarinho, o Menino Jesus, Nossa Senhora, o bambino. Todos entram no cárcere, e aquelas soturnas penumbras vão sendo iluminadas pela passagem da Mãe de Deus, provavelmente tocando os corações dos presos e os libertando, a uma vez, do castigo e do vício.

Eis, portanto, um fato encantador que nos apresenta Nossa Senhora enquanto extremamente meiga, doce, que socorre os indivíduos mais distantes d’Ela, os menos afortunados, mais pobres e mais abandonados. Mãe de todos os homens, Ela sempre encontra a forma, o jeito, a circunstância, enfim, artes maravilhosas para protegê-los, ampará-los, salvá-los.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/5/1967)

Nossa Senhora

Neste exílio, em meio à humanidade corrompida, aparece uma criatura concebida sem pecado original, um lírio de incomparável formosura que deveria alegrar os coros angélicos e a Terra inteira.

Nossa Senhora trazia consigo todas as perfeições naturais que dentro de uma mulher possam caber: uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima. Se a isso tudo juntarmos os tesouros das graças que vinham com Ela — as maiores que Deus Nosso Senhor tenha concedido a alguém, graças verdadeiramente incomensuráveis —, compreenderemos então o que representa o advento de Maria Santíssima ao mundo.

O nascer do Sol é uma realidade pálida em relação à entrada de Nossa Senhora nesta Terra. Os mais grandiosos fenômenos da natureza, mesmo os que representem algo de precioso e inestimável, nada são em comparação com isso; a entrada mais solene que se possa imaginar de um rei ou de uma rainha em seu reino, ainda é nada em confronto com esse advento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)