Excelências do Coração de Jesus

Graças a Dona Lucilia, desde muito criança Dr. Plinio desenvolveu uma profunda devoção ao Sagrado Coração de Jesus, faceta do Homem-Deus que ele procurou cada vez mais explicitar e amar durante toda a vida. Eis o excerto de uma de suas numerosas conferências sobre o tema.

 

Estando no mês em que se celebra a festa do Sagrado Coração de Jesus, parece-me muito oportuno admirarmos a beleza de algumas das invocações com que O honramos na sua Ladainha. Esta é um verdadeiro tesouro de maravilhas e louvores, próprio a encher nossas almas de amor e adoração a Ele.

Coração do Filho, Coração da Mãe

Tomemos, por exemplo, essa belíssima invocação: Coração de Jesus, formado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Mãe.

Se considerarmos o Coração de Jesus em sua realidade material e carnal, objeto de nosso culto como símbolo da vontade de Nosso Senhor e, portanto, do seu amor para conosco; se o considerarmos enquanto formado no seio imaculado de Nossa Senhora, com a matéria que a Mãe fornece para a constituição do corpo do Filho, ligada à divindade d’Ele em união hipostática compreendemos que a carne de Jesus é a própria carne de Maria, o sangue de Jesus é o próprio sangue de Maria, e, portanto, o Coração de Jesus é de algum modo o Coração de Maria.

Se nos detivermos na evocação desse processo de geração tão admirável, pelo qual Jesus foi assim formado do corpo de Maria, num oceano, num incêndio de amor e de adoração d’Ela para com esse filho que se modelava em suas entranhas, compreenderemos ainda mais como o Coração de Jesus está ligado ao Coração Imaculado de Maria, e como podemos ter uma confiança sem reserva na eficácia da intercessão de Nossa Senhora junto a Nosso Senhor.

Com efeito, Ele jamais poderia recusar qualquer coisa a essa Mãe Santíssima, perfeitíssima, da qual Ele não tem nenhuma queixa, antes o mais superlativo e total contentamento que o Criador pode ter em relação à sua criatura. Mais ainda: de cuja carne virginal Ele sabe ter sido formada a sua própria carne, e cujo Coração pulsa em uníssono com aquele que lateja em seu sagrado peito.

Creio que, para os devotos de Nossa Senhora, essa invocação se reveste de imenso significado, e merece ser recitada com especial fervor.

Um céu de majestade

Outra lindíssima invocação é esta: Coração de Jesus, de majestade infinita.

Segundo o luminoso ensinamento de Santo Agostinho, onde está a majestade, ali se acha também a humildade. As duas são inseparáveis. Daí concluímos que o Coração de Jesus, abismo de humildade, é por isso mesmo um firmamento de majestade.

Se dons artísticos eu tivesse, muito me alegraria representar a figura de Nosso Senhor, exprimindo não apenas a sua majestade ou somente a sua humildade, mas retratá-Lo numa dessas apresentações em que se vê, num só relance, aquilo que a majestade tem de comum com a humildade, ou vice-versa, e que é aquela esfera superior de virtude onde essas duas excelências particulares como que se encontram e se fundem.

Algo dessa ligação da suma majestade com a suma humildade me parece existir numa imagem na qual não está visível o Sagrado Coração, mas nem por isso deixa de ser muita expressiva nesse sentido: trata-se do “Beau Dieu d’Amiens”. Ali O vemos como um rei digníssimo, um doutor nobilíssimo, mas ao mesmo tempo tão sereno, tão manso, tão senhor de si, que se percebe que Ele seria capaz de receber a pior injúria e de se conservar inteiramente quieto, pacífico, sem nenhuma reação de amor próprio, desde que fosse essa a atitude mais santa no momento.

Foco de todo o amor de Deus

Outra invocação: Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade.

Caridade é o amor de Deus. O fato de o Coração de Jesus ser essa fornalha  ardente ou seja, não só uma fornalha, que de si já traz a ideia do ardor, mas uma fornalha ardentíssima exprime bem a ideia de que Ele é o foco de todo o amor de Deus. E que a devoção ao Coração de Jesus, por intermédio do Coração Imaculado de Maria, é especificamente esplêndida para quem se lamenta de ser tíbio, de estar se arrastando de maneira vagarosa na vida espiritual. É a devoção mais indicada e mais excelente, capaz de comunicar o fogo e o fervor da caridade a essas almas que deploram sua estagnação nas vias da piedade.

Modelo de verdadeira paciência

Também me parece muito importante, para nossa época, a invocação com a qual louvamos o Coração de Jesus, paciente e misericordioso.

“Paciente” significa aquele que sofre. É, portanto, o Coração de Jesus sofredor e misericordioso, pronto a padecer até mesmo as injúrias que Lhe fazem os homens. É o Coração d’Ele enquanto amando o sofrimento, compreendendo que é a grande lei da vida e que, sem isso, a existência não vale absolutamente nada. Pois, em última análise, consideradas as coisas sob certo ângulo, o valor de uma criatura humana se mede por sua capacidade de aceitar com coragem e resignação as dores que a Providência permite em seu caminho.

E então temos o Coração de Jesus como nosso modelo de paciência. E uma das formas importantes de sermos pacientes, nesse sentido superior da palavra, diz respeito à atitude que tomamos em relação aos nossos próximos. Quer dizer, sabermos aturar os desaforos e provocações, sermos amáveis e bondosos para com aqueles que nos fazem sofrer pelo seu mau gênio, pelas dificuldades de trato, etc. Para isso, é necessário pedirmos ao Sagrado Coração de Jesus essa paciência de que Ele é a fonte.

Além dessa forma preciosa de paciência, uma das expressões mais típicas da capacidade de sofrer é o espírito de iniciativa, pelo qual o homem vence a preguiça, a moleza, o tédio, o amor a si mesmo e se lança ao trabalho, à luta apostólica, e se joga até o mais grosso e ardoroso dessa luta, se necessário for, quites a deixá-la imediatamente se o interesse da Igreja conduzi-lo no sentido oposto.

Eis a melhor forma de paciência que devemos rogar ao Coração de Jesus, é esse espírito de iniciativa e de combatividade, em virtude do qual renunciamos a todos os nossos relaxamentos.

Paciente e misericordioso. É a misericórdia enquanto corolário da paciência, disposta a tudo aturar e a tudo perdoar. Sim, convençamo-nos dessa maravilhosa verdade: o Sagrado Coração de Jesus nos perdoa uma vez, duas vezes, duas mil vezes, e não quer que desanimemos de seu perdão.

Assim, esta é a magnífica invocação que nos exorta a nunca perder a confiança na clemência de Nosso Senhor, pela intercessão do Coração Imaculado de Maria: Coração de Jesus, paciente e misericordioso. Paciente com os meus defeitos, com os meus pecados; misericordioso em relação às minhas lacunas. Pelos rogos do Coração de vossa Mãe Santíssima, tende pena de mim, ó Senhor.

Vítima que pagou por nossos pecados

Envolvendo idéias análogas à da invocação anterior, é a do Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados.

Às vezes acontece nos sentirmos fundamentalmente indignos e as almas mais puras e mais altas o podem sentir até com maior intensidade. E compreendemos que, diante da justiça infinita de Deus, não somos absolutamente nada. Donde essa invocação constituir inestimável motivo de tranqüilidade para nós. Ela significa que, se meus sacrifícios, sozinhos, não têm valor diante do Altíssimo, há entretanto uma Vítima que vale tudo: porque é uma Vítima sem mancha, sem jaça, ligada por união hipostática à própria divindade. E essa Vítima é Nosso Senhor Jesus Cristo, que se ofereceu por mim, de tal maneira que tudo aquilo que eu tenho receio de não conseguir, essa Vítima alcança.

Ela carregou os meus pecados, por eles sofreu, e em virtude desse holocausto eu considero minhas faltas com vergonha, com contrição, pelo menos com atrição, mas em todo caso com imensa confiança, porque Alguém se imolou e derramou por mim, pela minha salvação, todas as gotas do seu sangue. Por isso eu devo ter confiança, não em mim, mas nesse sangue infinitamente precioso que por mim foi vertido à exaustão.

Esse é o Sagrado Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados.

Fonte de toda consolação

Consideremos uma última invocação: Coração de Jesus, fonte de toda consolação.

A palavra “consolação” encerra dois sentidos: num deles quer dizer fortalecimento; no outro, alegria, suavidade, unção do Divino Espírito Santo na alma. E em ambos os sentidos o Sagrado Coração de Jesus é fonte de toda consolação.

Sabemos quanto Ele enche de júbilo e de satisfação espiritual as almas que Lhe são devotas, os corações que se abrem para a sua bondade infinita. Mas importa compreendermos também que a nossa força vem d’Ele. E quando nos sentirmos fracos, tíbios, desorientados, sobretudo quando estivermos sem coragem diante de algum grande ato de generosidade, não devemos avançar sozinhos, imaginando que por nosso próprio mérito o conseguiremos. Não! O Coração de Jesus é a fonte de toda a força. Por meio do Coração Imaculado de Maria, canal único e necessário para nos aproximarmos do Coração de Jesus, temos de nos dirigir a Ele e implorar as forças de que carecemos.

E seguramente não seremos frustrados em nosso pedido. Em determinado momento sentiremos a força de que precisamos, inclusive e acima de tudo, para realizarmos as coisas mais árduas e difíceis com relação à nossa vida espiritual.

Aqui ficam, portanto, algumas considerações que nos podem ser úteis em nossa piedade. Por exemplo, quando comungarmos, procuremos nos lembrar dessas invocações, pensando que recebemos na alma, por presença real, física, verdadeira e viva, esse Coração no qual adoramos todas as perfeições expressas nessa Ladainha.

Sagrado Coração de Jesus

Na imagem do Sagrado Coração de Jesus contemplamos a força, a varonilidade, a seriedade, a decisão do Rei e Mestre por excelência. Mas, ao lado disso, vemos n’Ele tanta doçura, tanta harmonia e um modo tão bondoso de tomar todas as coisas, que sentimos algo a nos dizer: “É feliz quem está com Ele, acerta na escolha do caminho da vida quem se põe afim com Ele, porque é objeto dessa bondade”. E Ele tem o poder de dar aquilo que o afeto d’Ele promete. Nosso Senhor Jesus Cristo não mente: de alguma maneira, custe o que custar, Ele nos concederá o prometido.

Plinio Corrêa de Oliveira

Contemplando o Sagrado Coração de Jesus

Junho é o mês do Coração de Jesus. Dr Plino tinha essa devoção arraigada em sua alma desde a mais remota infância, e a desenvolveu ao longo de toda a sua vida, como se pode ver no texto da conferência que transcrevemos a seguir.

 

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é tão antiga em mim que — como já contei aos senhores — antes mesmo de eu saber dizer “papai” ou “mamãe”, quando minha mãe me perguntava: “Onde está o Sagrado Coração de Jesus?”, eu apontava para a imagem d’Ele.

Conhecer uma devoção é, sem dúvida nenhuma, debaixo de certo ponto de vista, degustá-la. E o degustar alguma coisa, para o meu modo de ser, nunca é completo enquanto eu não conhecer essa coisa até ao fundo. Uma das razões que me empolgaram tanto no livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, é que ele toma o assunto central e vai até onde se pode e se deve ir para ter conhecimento da questão. Vendo a montagem racional desse assunto, em função da doutrina católica, eu o compreendi. E compreendi bem, como gosto de compreender.

Entendendo desse modo, eu me sinto muito mais eu mesmo, sinto-me muito mais em casa para amar, porque a mente humana gosta de ver a insondabilidade das coisas, se com praz em de ver a força do raciocínio, se alegra em sondar palmo a palmo uma questão e ir até ao fundo dela.

É assim que o homem ama. Ao menos é assim que eu sei amar. Não sou, nem um pouco, amigo desses espíritos cartesianos que pensam que tudo se resume em compreender e que, uma vez compreendido, está tudo acabado. Não. É preciso ter o raciocínio, mas também o sentimento. Por que fazer a escolha entre o raciocínio e o sentimento? Se Deus fez o homem capaz de raciocínio e sentimento, tenhamos ambas as coisas, para fazer a vontade de Deus e para sermos nós mesmos.

O que se deve entender por “coração”?

Tomo os elementos que me parecem fundamentais nesse grande e misterioso assunto que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Por “coração” os antigos entendiam não precisamente o que se entende hoje, mas algo que é ao mesmo tempo mais vasto e, em certo sentido, diferente.

Em nossos dias, o coração é quase o símbolo do sentimento desacompanhado da razão. Diz-se que o coração de uma pessoa vibra quando ela sente um certo enternecimento, quando é alvo de um ato de bondade, ou quando tem uma condescendência com algo.

Mas coração é só isso?

Para os antigos, não era assim. Eles tomavam o coração como o órgão que nós conhecemos, que pulsa, que tem aurículas, ventrículos, faz sístoles e diástoles, e em razão de cujo funcionamento — uns mais solidamente na sua jovem idade, outros mais precariamente nas idades avançadas — todos estamos vivos. Mas coração significava para eles algo mais. Era o conjunto das coisas que o homem vê, ama e guarda na sua mente, por assim dizer, como se fossem “slides”, porque lhe falaram mais.

A palavra coração representa esse conjunto de coisas enquanto amadas pelo homem com um amor que não é apenas uma conaturalidade ou uma simpatia, mas é um ato racional. As coisas que foram julgadas segundo certa doutrina verdadeira — que é o ponto de referência de tudo — e foram encontradas conformes a essa doutrina, e, por isso mesmo, amadas. A sensibilidade é um eco harmonioso, delicado e nobre, desse amor. Mas, é preciso ter compreendido bem e ter chegado bem até ao fim no julgamento, para amar inteiramente. É necessario compreender até ao fundo, para admirar e amar de corpo inteiro, de coração inteiro.

O coração do católico. O Coração de Jesus

O coração do católico representa, nesse sentido, a mentalidade dele, que inclui a sua sensibilidade, mas indica sobretudo aquilo que — estando de acordo com a doutrina católica, apostólica, romana — ele conhece pela Fé como verdadeiro. Aquilo que ele ama acima de tudo e toma como uma “linha rectrix” de todas as outras coisas, porque é conforme à verdade verdadeiríssima, à verdade soberana, à verdade padrão, segundo a qual todas as outras verdades são de fato verdades, e contra a qual todas as aparências de verdade não são senão erros enganosos.

Em todo caso, tendo já como pressuposto que o coração é o símbolo da mentalidade, nós podemos nos perguntar como era a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um tema audacioso, é uma navegação tão alta que o homem tem medo de chegar até lá. Mas, de outro lado, esse ar atrai. Quanto mais alto se voa nele, mais se tem vontade de subir, e medo de ser obrigado a descer. É o contrário da aviação terrena.

O que nos é dado entrever daquilo que seria a mentalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo em algum de seus aspectos?

Devemos considerar essa mentalidade muito mais na sua Humanidade Santíssima do que na sua Divindade. Nesta última, o tema subiria tanto que não seria fácil, pelo menos a um leigo, tratar da questão. Mas a Humanidade santíssima d’Ele está mais perto de nós. Um “perto” cuja distância vai de uma ponta a outra do universo, porque a perfeição d’Ele não tem comparação com nada e com ninguém.

A Fé nos ensina que o Verbo se encarnou e habitou entre nós. A natureza humana d’Ele está ligada pela união hipostática à natureza divina. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnou-se e desse acontecimento único resultou Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa dualidade de naturezas numa só pessoa significa que a sua Humanidade santíssima tinha com a Divindade um contacto mais íntimo que que teria com Deus o Santo mais perfeito.

Mistérios da união hipostática

Essa união, porém, não deixa de ter aspectos misteriosos para nós. Por exemplo, na Oração do Horto das Oliveiras, parece que a natureza humana de Jesus teve uma como que treva, uma como que noite escura, em relação à natureza divina, de maneira que Ele se sentiu abandonado e rezou:

— Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice.

E veio um Anjo que o consolou, e Ele se reanimou.

Também, no alto da Cruz, Ele teve uma exclamação que parece lançar uma luz especial sobre o mistério das relações entre a sua natureza humana e a natureza divina. Ele bradou:

—Meu Pai, meu Pai, porque Me abandonastes?

É verdade que este é o primeiro versículo de um salmo que prenuncia a sua vitória, e, recitando-o, afirmava que ia ressuscitar. Mas, de qualquer forma, havia ali um brado de abandono.

Foi tão grande esse abandono que pouco depois Ele disse: “Consummatum est!” E entregou o seu Espírito.

Os senhores estão vendo, por aí, que havia mistérios, havia dores e padecimentos nesta humana natureza tão ligada à natureza divina. E como nesta vida há uma certa proporção entre os sofrimentos e as alegrias, que tremendos padecimentos devem ter sido os d’Ele, uma vez que devem ter sido tão extraordinárias suas alegrias! Os senhores podem imaginar, numa alma unida a Deus, formando com Deus uma só Pessoa, a alegria que isso pode dar! Nenhum Anjo do Céu tem essa alegria! Ele tinha e tem no Céu. Mas, de outro lado, se há uma proporção das alegrias com as dores, que dores, e que dores, e que dores Ele deveria sofrer!

“Tudo está consumado”: a dor do inexplicável

Poucas coisas fazem sofrer tanto o homem quanto a dor do inexplicável. Quando ele tem explicação para a sua dor, ele sofre menos. Mas, quando a dor é inexplicável e cai sobre ele como algo que ele não entende… Não é porque ele queira tomar satisfações de Deus, mas é que do não-entender lhe vem o medo de que aquilo seja um castigo por alguma culpa, que aquilo seja algo fora dos desígnios divinos.

Nosso Senhor não podia ter culpa, e Ele sabia disso, e nada para ele era inexplicável. Porém, que misteriosos sofrimentos Ele teve? Nós não o sabemos. Só sabemos uma coisa: é que Ele passou pelos tormentos mais pasmosos que jamais um ser tenha padecido na História. Esses sofrimentos de alma eram tão extraordinários que deixariam qualquer homem com a saúde arrasada em poucas horas: poderiam sobrevir enfartes, derrames cerebrais, e tudo o que os senhores possam imaginar. Ele aguentou até o fim, e seu último ato foi um ato de lucidez: “Consummatum est — Tudo está consumado”.

Depois de criar o universo, Deus o viu em seu conjunto e considerou que cada coisa era bela, boa e verdadeira, mas que o conjunto era mais belo do que cada uma das coisas em particular. Tem-se a impressão de que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao morrer, considerou tudo o que sofreu e viu que tinha sofrido tudo o que devia padecer, e que era uma beleza, uma torrente de sangue e de dores, como nenhum oceano poderia conter. A última gota de sangue estava derramada, a última dor, a mais inexplicável, a mais pungente, estava sofrida. Estava tudo pronto. Ele contemplou a formosura deste horror e disse: “Está tudo oferecido pela Redenção do gênero humano: “Consummatum est”. Eu sofri tudo o que tinha que sofrer, e tudo o que se pode sofrer, Eu sofri de maneira a minha tarefa redentora estar inteiramente pronta: “Consummatum est”. Só me falta o último lance, que é a separação da alma do corpo. Depois disso, cessarei de sofrer. Mas esse último lance, Eu ainda tenho que dar: morrerei!”

E morreu… Que coisa maravilhosa! Com que sensibilidade, mas com que compreensão profunda de sua missão, com que força e continuidade Ele sofreu aquilo tudo! É algo que não se pode medir suficientemente.

Harmonia de perfeições

Ora, devemos imaginar o Homem Deus com todas essas forças e grandezas implícitas na alma, imaginá-Lo assim, vivendo os vários aspectos de sua vida terrena.

Por exemplo, quando Ele acariciou as crianças que vieram falar com Ele e disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu”. Os senhores estão vendo o afeto, a bondade, a doçura… Não há homem de qualquer idade que vendo-O dizer: “Deixai vir a Mim os pequeninos”, não pense: “Bem, então há um lugarzinho para mim também, por mais que eu seja um pequenino, porque, em comparação com Ele, todo mundo é pequenino. Eu vou me aproximar”.

Que doçura nessas palavras! Essa é a suavidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual era ao mesmo tempo tão forte e, no sentido mais sublime da palavra, tão decidido. Resolveu sofrer, sofreu até ao fim e até ao ápice tudo, e de bom grado, sem excluir nada. Tão terrível e tão misericordioso, a ponto de dirigir-se ao bom ladrão e fazer a primeira canonização na Igreja Católica:

— Tu hoje estarás comigo no Paraíso.

Os senhores podem imaginar como o bom ladrão se sentiu reconfortado e animado com essa promessa. Ficasse com inveja dele. Cada um de nós que, na hora da morte, ouvisse essas palavras: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, se levantaria da cama para glorificar a Deus e dizer: “Mas então, Senhor, o que esperais? Vamos! Vamos, levai-me!”

Mas como pode uma alma humana compor esses quadros de conjunto, de maneira a, quando vir Nosso Senhor expulsando os vendilhões do templo, pensar n’Ele acariciando uma criancinha ou contando a parábola do Bom Samaritano; imaginá-Lo, com uma bondade indizível, curando este, aquele, e aquele outro, espargindo em torno de Si alegria, consolação, tranqüilidade, saúde; pensar n’Ele encantando os Apóstolos que O ouviam enlevadíssimos?

Como conjugar essas duas visões: Ele tão forte, tão incomparável, tão único, e, ao mesmo tempo, tão misericordioso e tão acessível aos pequeninos?

É preciso lembrar-se d’Ele como está no Santo Sudário, e aí se compreenderá como Ele era, no sentido mais nobre da palavra, o atleta de Deus, o herói de Deus! Siegfrid, Lohengrin, toda espécie de “heróis” dessa ordem, sublimados por Wagner, aqueles homens da mitologia antiga, tudo isso é quinquilharia em comparação com o Varão do Santo Sudário!

Como imaginar no Menino Jesus, apenas nascido em Belém, como imaginar que nessa Criança, cuja alma contém todas as canduras e inocências imagináveis e excogitáveis, estava o Herói que iria sofrer de maneira a impressionar os homens até ao fim do mundo?!

N’Ele todas essas perfeições se ajustavam de maneira a não se poder compreender. Ele é muito maior do que o campo de nossa visão. Ele é uma maravilha que, ou nós O consideramos por partes, ou não O conseguimos considerar.

Adorar todas as perfeições do Sagrado Coração de Jesus

Cada um adora Nosso Senhor como foi chamado a adorá-Lo. Como sou eu quem está falando, tenho de dizer o que me vai na alma. É meu modo de ser.

Eu nunca me contentaria de adorar só um desses aspectos sem procurar reuni-lo a todos os outros e, ao

menos muito sumariamente, fazer a ideia de como seria o conjunto. Eu tenho a impressão de que, se eu O conhecesse nesta vida terrena, uma das coisas que eu mais gostaria era de admirar e de adorar as transições de estados de espírito d’Ele, o como Ele passava de uma disposição para outra. De modo que eu pudesse compreender como é que uma disposição se encaixava na outra. E nessas transições, adorar a harmonia desses estados de espírito tão diversos. Parece-me que, com isso, o meu desejo das correlações, das reversibilidades e das harmonias, das ordenações em tudo, encontraria algo que o saciasse.

Há no teto da igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, um afresco que é uma pintura boa, ao estilo do século

XIX. Esses quadros habituais de Nosso Senhor, muito respeitáveis e veneráveis, satisfazem muito a piedade, mas em geral fixam a atenção do homem num determinado estado de espírito de Nosso Senhor. Nos quadros do Sagrado Coração de Jesus, os autores fixam sempre — e a justo título, muito fundadamente — a sua misericórdia infinita. Mas a sua misericórdia infinita era só uma de suas perfeições. Não podemos sustentar que Ele não tinha outras perfeições, uma vez que Ele as tinha todas.

Como é belo esse afresco! Como é ótimo, como me tem feito bem ao longo de minha vida! Mas eu gostaria que outros quadros pintassem Jesus em outros estados de espírito.

Por exemplo, Ele meditando. O olhar absorvido, enlevado e contemplativo d’Ele, sozinho no deserto, durante quarenta dias de jejum. Gostaria de imaginá-Lo junto de uma pedra, no deserto árido, ou com uma vegetaçãozinha ordinária e muito rasteira, que seria o contrário da sublimidade da cena. Ou com uma bonita areia que se estende ao longe. No fundo, um pôr-de-sol em brasa e seu divino perfil se recortando sobre ele… Jesus meditando e orando. Portanto, sua natureza humana, por assim dizer, fazendo filosofia e teologia. Como é que seria a sua expressão fisionômica nessas ocasiões?

Se Ele já se tinha deleitado na contemplação do universo, quanto mais se deleitaria na contemplação daquilo que é mais do que todo o universo, Nossa Senhora! Gostaria de imaginá-Lo, então, na sua Humanidade e na sua Divindade juntas, olhando para dentro dos olhos de Nossa Senhora. Ela, enlevadíssima, num êxtase altíssimo. E Ele, enquanto Deus, pensando: “A minha obra-prima!”; e enquanto Filho e Homem pensando: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que um de nós daria para estar do lado de fora da porta e olhar pelo buraco da fechadura? Se nos exigissem como preço disso fazer qualquer sacrifício depois, nós faríamos. Morrer depois, não nos importaria! Ter visto essa cena e morrer… para que viver mais? E, de fato, me pergunto: haveria ânimo para viver, depois de ter visto isso? De que adiantaria, por exemplo, depois disso ver a beleza do mar? Eu gosto tanto do mar, mas depois de ter visto Maria, o que é ver o mar?…

Eis o Coração que amou tanto os homens!

Voltando àquele afresco da igreja do Coração de Jesus. Está Ele aparecendo a Santa Margarida Maria. O lugar da aparição está todo iluminado. Ele fala a ela com uma expressão de muita bondade, muito comprazimento, muita misericórdia. E ela está muito enlevada, naturalmente. A cena é ainda completada com as palavras tocantes de Jesus. Ele aponta o seu próprio Coração e lhe diz: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado!”

Os senhores compreendem que é de cortar o coração! Que um tal Coração tenha amado tanto e tenha sido tão pouco amado, não se sabe o que dizer! Evidentemente, nós fomos amados por Ele muito mais do que nós O amamos, porque Ele é tão maior do que nós, que um ato de amor d’Ele deixa os nossos pobres amores muito atrás… Entretanto, o problema é que nós não O amamos até onde podemos, e era o que nós deveríamos fazer. Ele diz essas palavras com misericórdia e bondade. Mas eu gostaria de perceber ali todos os outros estados de espírito; gostaria de perceber essa correlação e de, por assim dizer, pela admiração, pela adoração — que é a palavra adequada quando se trata d’Ele — pela adesão, de algum modo tentar viver isso em mim. Enternecer-me como Ele, adorar como Ele, resistir como Ele, sofrer como Ele! Por que não?! Isso todos nós gostaríamos de fazer.

Uma coleção fabulosa

Se nós pudéssemos fazer uma coleção dos timbres de voz de Jesus ensinando como Mestre!… Ninguém foi mestre como Ele, que é o Divino Mestre! Explicando com clareza, com sabedoria, com profundidade, horizontes extraordinários, mas com uma simplicidade de desconcertar. Seu ensino é tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundo! Santo Agostinho dizia que o ensinamento d’Ele era como um rio no qual um elefante se afogaria e um cordeiro passaria sem molhar senão os pés.

Como nós gostaríamos também de, por exemplo, colecionar os seus sucessivos olhares! Para não falar senão em dois : o olhar para São Pedro, que o converteu e o fez chorar a vida inteira, e um olhar para Nossa Senhora. Escolham o momento. Talvez o momento do último olhar nesta vida. Com certeza, antes de morrer, Eles trocaram um olhar em que transpareciam o carinho e a adoração da parte d’Ela, e o amor indizível, o apreço extraordinário e o carinho da parte d’Ele, ao se separarem.

Como seria a história de todos os seus olhares? E como seria o olhar d’Ele expulsando os vendilhões do Templo? Para Pilatos, desprezando toda a covardia do Procurador Romano? E o olhar de repreensão aguda e severa para Anás e Caifás?

Tudo isso era um reflexo do seu Coração. Esse Coração pulsou, ora com mais, ora com menos intensidade, ao longo de todos esses acontecimentos.

E por isso é belo pensar como a mente e o Coração d’Ele, numa união, viveram todos esses acontecimentos da sua vida terrena. Até ao fim do mundo haverá gente que adorará esses vários aspectos de Jesus.

Oração a fazer ao Sagrado Coração de Jesus

Que oração fazer a esse Divino Coração? Nós podemos repetir, olhando para Nosso Senhor crucificado, com seu Coração chagado pela lança do centurião, a jaculatória que está na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus e que me encanta:

“Cor Jesu lancea perforatum, miserere nobis. — Coração de Jesus perfurado por uma lança”, tende compaixão de nós. Vós que levastes a pena de mim a ponto de quererdes que, depois de morto, vosso Coração ainda recebesse essa ferida, e que o resto de água misturado com sangue saísse de vosso lado por meu amor, tende pena de mim!”

E rezar também: “Anima Christi, sanctifica me. — Alma de Cristo, santificai-me”. Nada há de mais santo do que a Alma de Cristo… Que a Alma de Cristo, por assim dizer, toque em mim e me torne um Santo! Eu não quero outra coisa.

“Corpus Christi, salva me. — Corpo de Cristo, salvai-me. Sangue de Cristo inebriai-me. Água do lado de Cristo, lavai-me… e lavai-me mais ainda! Paixão de Cristo, dai-me forças. Olhai para minha miséria, minha moleza e minhas insuficiências. Dai-me força na luta contra os vossos inimigos. Ó Bom Jesus, ouvi-me, pelos rogos de Maria. Escondei-me nas vossas feridas. Cobri-me, com vossas feridas, da justa cólera do Padre Eterno. Na hora de minha morte, chamai-me e mandai-me ir para junto de Vós, para que Vos louve com os vossos Santos, com a Santa das Santas, por todos os séculos dos séculos. Amém.”

A recusa ao chamado divino e a necessidade da reparação

Se Luís XIV tivesse sido fiel à Mensagem do Sagrado Coração de Jesus, a França inteira se converteria. Mas o rei não a levou a sério. Nosso Senhor esperava que as diversas classes sociais fossem deixando filtrar, de umas para as outras, a Mensagem, e todos os corações batessem em uníssono com a de um rei fiel ao Coração de Jesus. O supremo esforço desse apelo divino foi despertar um movimento de reparação: a Contra-Revolução

 

A atitude do Sagrado Coração de Jesus com Luís XIV foi de misericórdia, mas ao mesmo tempo de inteiro respeito – o Coração de Jesus podia chamar-Se “Coração infinitamente respeitoso de Jesus” – em relação à organização político-social vigente.

Era bem claro que Ele queria considerar o rei de maneira tal, que não fez nenhuma alusão direta à má vida, nem aos pecados pessoais do monarca, mas chamou de “filho dileto do meu Coração” um pecador que O tinha insultado publicamente de diversas maneiras. Basta mencionar a destruição do Calvário edificado por São Luís Maria Grignion de Montfort, mas há muitas outras coisas a mencionar para se compreender bem quanto Luís XIV errou, ao lado de algumas coisas magnificamente acertadas que ele fez como, por exemplo, a revogação do Edito de Nantes.

Consequências da infidelidade na correspondência ao chamado divino

Acaba sendo, portanto, que o Sagrado Coração de Jesus tratou Luís XIV com muito afeto, porque quis fazer dele a primeira concha de repercussão de seu apoio, pois o recado d’Ele a Santa Margarida Maria Alacoque, que se dirige ao mundo inteiro, deveria ser comunicado antes de tudo ao rei. E, pela repercussão que encontrasse nele, ter uma dilatação por todo o bem-amado Reino da França, filha primogênita da Igreja.

Na sua comunicação, fica bem claro que Nosso Senhor esperava que as diversas classes sociais fossem deixando filtrar, de umas para as outras, a Mensagem, e que, afinal de contas, esta se espraiasse pelo reino inteiro, com a aceitação da missão das classes mais altas de baterem os corações em uníssono com a de um rei fiel ao Coração de Jesus.

Isto me parece muito importante inclusive do ponto de vista contrarrevolucionário, pois se Luís XIV tivesse feito assim e a França inteira se convertido ao som da voz do monarca amado pelo Sagrado Coração, creio que a Revolução Francesa teria ficado impensável. Notem bem: não é dizer que ela se tornaria impossível, mas ficaria impensável. Porque com o prestígio que tinha a realeza naquele tempo, mas também o prestígio individual colossal que Luís XIV, o Rei Sol, possuía na Europa inteira, tudo isso junto faria com que o modo de se embeber essa devoção na nobreza e depois no povo seria de um efeito extraordinário.

Por conseguinte, se a torneira da Revolução não tivesse sido aberta sobre a França, não teria podido alcançar o mundo inteiro como alcançou. O prestígio da França concorreu enormemente para que a Revolução se tornasse universal. Então, fica um homem colocado na posição por onde depende dele tudo, dar-se ou voltar atrás. No que diz respeito à atitude reparadora de nossa espiritualidade, do Sagrado Coração de Jesus como devoção inspiradora de pensamentos e atitudes contrarrevolucionárias, isto vem muito a propósito.

Estado de espírito difundido pelo mal

Por que o Sagrado Coração de Jesus estava de tal maneira pisado? Ademais, em um período a respeito do qual São Luís Grignion chegou a afirmar que a impiedade estava inundando a Terra inteira. Como se explica que analisemos a situação do mundo no “Ancien Régime” quase com uma nostalgia daquilo que nós não conhecemos, e esta mesma situação até anteriormente ao fim do “Ancien Régime” – portanto, quando ela estava menos grave do que se tornou nas vésperas a Revolução Francesa – foi, entretanto, qualificada por São Luís Maria Grignion e tantos outros santos, e a “fortiori” pelo Sagrado Coração de Jesus, de uma situação gravíssima?

Houve a difusão de um estado de espírito pelo qual, quando alguém denuncia o avanço do demônio, uma ou outra voz, em surdina, diz palavras de adiamento, de dúvida, de “laissez faire, laissez passer”(1). Entrevê-se que Luís XIV e as pessoas de seu tempo que receberam a Mensagem do Sagrado Coração de Jesus participavam de um estado de espírito que lhes sugeria ideias mais ou menos assim: “Temos o Rei Sol e todo o princípio monárquico que brilha com o seu resplendor máximo; neste momento falar da possibilidade de uma Revolução que vai chegar à decapitação dos reis, a um virtual destronamento das dinastias, é um absurdo. Nosso Senhor disse isso à Sóror Margarida Maria, mas na superior sabedoria d’Ele, da qual eu sou partícipe – porque a vaidade não pode deixar de entrar nessas ocasiões –, percebo pelo meu “feeling” e pela sensação normal das coisas que isso vai demorar.”

Donde a ideia de que essa Mensagem não poderia ser tomada tão a sério, e deveria ser sensatamente relativizada. Assim, todos os apelos feitos por meio de São Luís Grignion e outras pessoas deveriam parecer radicalismos e fanatismos.

Mensagens totalmente viáveis de serem cridas

Isso constituiu um pecado enorme, pois esta Mensagem foi dada em condições de, logicamente, ser crida por todo o mundo. Deus não pediu a ninguém uma adesão irracional, mas sim um “rationabile obsequium”; havia todas as razões para acreditar na autenticidade desta Mensagem como, por exemplo, na de Fátima também.

Estive lendo, há algum tempo, um relato sobre coisas de Fátima e encontrei o seguinte: o médico de Jacinta era um dos melhores de Lisboa. E no dia do enterro da vidente havia uma reunião de um centro médico católico de muita importância na vida cultural de Lisboa. O Cardeal Arcebispo Patriarca de Lisboa presidia a reunião, quando chegou atrasado esse grande médico cuja ausência todos estavam notando. Ele pediu desculpas ao cardeal pelo atraso e disse que fora a Fátima acompanhar o sepultamento de Jacinta. Apesar da respeitabilidade desse médico, a sala estourou em gargalhadas por causa da credulidade dele. Inclusive o cardeal ria a bandeiras despregadas.

Quer dizer, a Mensagem de Fátima, dada por meio de três pastorzinhos, tinha todas as condições para ser crida. Pois bem, a atitude do público lisboeta diante do enterro de Jacinta é quase uma negação galhofeira.

Vê-se que essa posição foi tomada por certas correntes em face da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Provavelmente houve risadas assim em círculos precursores do “voltaireanismo”, do iluminismo, etc.

Um espírito tépido, ideal para abafar qualquer fervor

Outras correntes foram mais moderadas. Quiçá tenha havido uma corrente comodista que não se ocupou muito com a coisa, pensando: “Essa mensagem talvez seja verdadeira. Mas que importância tem isso em comparação com saber se Madame de Montespan e os filhos dela vão ser reconhecidos por Luís XIV ou não; ou se o rei vai fazer suas caçadas em Fontainebleau este ano? Isto sim é o importante: a vida da corte e dos círculos sociais que se seguem em hierarquia. O resto, se o Sagrado Coração de Jesus disse… Talvez tenha dito mesmo, mas não vale a pena estudar isso. Basta que eu tenha alguma devoção tradicional, boa, segura e que, sobretudo, não seja principalmente católico, mas sim um cortesão ou uma cortesã, está acabado”.

Uma grossa parte de gente, que constituía o peso geral da opinião pública, tomava diante do fato essa atitude. Depois, algumas almas piedosas que tiveram conhecimento da Mensagem seguiram a coisa com atenção, e prolongaram uns filõezinhos que vararam de alto a baixo toda essa imensa crosta de classes sociais até chegar ao povinho. Então, há salpicos de devoção ao Sagrado Coração de Jesus em várias correntes da opinião pública.

Essa marcha geral conjunta da opinião francesa diante desse fato mostra o espírito da Revolução Iluminista – ele próprio filho da Revolução anterior, portanto, da Renascença, do Humanismo, do Protestantismo –, que foi com o tempo radicalizando-se. A bem dizer, o iluminismo já estava nascendo e ensopando de indiferença, de dúvida, essa devoção, não querendo aceitá-la porque ela pediria fervor, e essa grande massa não queria fervor, porque o fervor contrarrevolucionário é uma atitude diametralmente oposta à Revolução. Aliás, o próprio fervor revolucionário essa crosta grossa aprecia, mas não muito. É preciso viver tepidamente.

“Oxalá fosses frio ou quente. Mas porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca”, diz Nosso Senhor (Ap 3, 15-16). O pessoal vomitado pelos lábios divinos de Nosso Senhor é essa enorme crosta. Portanto, o grande esforço não era estar em dissonância com o rei, com esse ou com aquele, mas dissonar dessa enorme massa.

A alma da Contra-Revolução é o espírito reparador

Vemos, assim, a importância de uma concepção da História para compreender bem a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e para adotar diante dela a atitude devida em face dos tempos atuais. Não é capaz de tomar bem uma posição de compreensão da devoção ao Sagrado Coração de Jesus quem não leve em consideração a noção de que essa foi uma imensa providência tomada por Deus para sacudir a Revolução e acabar com a tepidez. Terminada esta, o resto desapareceria.

Essa tepidez era produto de uma evolução histórica. Se um homem do tempo do Rei Sol não quisesse compreender tudo quanto ele perdeu na trajetória da Idade Média para Luís XIV, e que foi uma Revolução que lhe roubou tudo isso, não tinha solução.

A Mensagem do Sagrado Coração dá a entender que diante da situação de derrocada, a qual, em profundidade, acentuava-se já naquele tempo, o específico era a promoção dessa devoção enquanto reparadora. Esses fatos despertam a cólera divina. Mas Deus não quer punir o mundo. Então Ele indica o caminho especial para evitar que essa punição se dê. Não é um caminho entre outros, é o caminho específico.

Logo, o supremo esforço do seu amor é despertar um movimento de reparação que seja a Contra-Revolução, porque se tudo isso é a Revolução; por excelência e mais do que tudo, a Contra-Revolução é o que Ele está indicando. A própria alma da Contra-Revolução é o espírito reparador.

O que isso significa? Deus está ofendido pela Cristandade em geral. Ele considera a Cristandade como um bloco pecador. Tão gravemente pecador que o último esforço do amor d’Ele é aquele, como quem diz: “Prestai atenção, mas se esse esforço que Eu estou deitando não for seguido como deve, virá algo que é a liquidação da ordem em que estais”. Indica também, com a visão histórica retrospectiva inerente a essa devoção, que já foram feitos nessa direção muitos esforços não correspondidos pelos homens. E que então Deus apresenta um esforço que é ao mesmo tempo último e supremo, tão expressivo de amor, tão capaz de tocar as almas, que não se pode cogitar mais do que isso.

Assim, Ele convida a que, ao menos algumas almas de valor, se entreguem completamente a esse esforço reparador e sofram tanto que aplaquem a Deus, deixando-se crucificar como Nosso Senhor Se deixou.

Dona Lucília, sobre quem o Sagrado Coração de Jesus deitou diversas cruzes

Deste modo, as palavras do Sagrado Coração de Jesus se transformam numa mensagem para almas de elite que, sendo em número suficiente e, sobretudo, com um amor intenso, suportam todo o peso desses pecados. Se o resgate pago não estiver na proporção dos pecados cometidos, a avalanche se desencadeia.

Tenho a impressão de que se passou com esse lance de Nosso Senhor o mesmo que se deu com lances anteriores, ou seja, o número de almas que corresponderam foi real, com muito mérito e de um modo muito precioso, mas não foi suficiente. Muitos procuraram corresponder, mas de um modo mole. Várias organizações buscavam atender ao apelo do Sagrado Coração de Jesus, mas com falta de profundidade, de conceitos, etc.

Por esta forma conseguiam que, já dentro do mar solto, alguns barquinhos continuassem a navegar, mas vítimas das ondas que os arrastariam para onde quisessem. Embora continuassem a ter sucessores nessa reparação, provavelmente em número e amor cada vez menores, até chegar a um ponto no qual o número fosse tão pequeno que a avalanche ficaria solta.

Ora, dentro do horror desse mar tempestuoso, minha Obra seria um barquinho, preciosa resultante desses atos de reparação. Não se pode negar que no nascimento e na formação de minha Obra o Sagrado Coração de Jesus teve um papel muito grande, antes de tudo porque houve uma senhora sobre quem Nosso Senhor deitou cruzes desde meninota, e que sofreu desde pequena com uma resignação extraordinária e com os olhos voltados para o Sagrado Coração de Jesus. Esta senhora teve um filho que, por sua vez, fundou esta Obra.

Tendo nascido de Dona Lucília, posso dizer que nasci desse movimento descrito acima. Não propriamente nesse movimento, pois essa devoção já estava tão rarefeita na massa geral dos fiéis, que grande parte do que estou dizendo foi recomposto por mim pelo fato de eu ser contrarrevolucionário, e ter uma visão da História a qual me levou à conclusão de que a reparação é o único jeito.

Abominação num lugar sagrado

Quando tomei conhecimento das revelações de Paray-le-Monial eu teria uns dezessete anos mais ou menos. Para mim aquilo foi claríssimo. Portanto, tudo quanto estou dizendo agora é fruto de muita reflexão, ao longo de anos. Eu não disse antes porque a devoção ao Sagrado Coração de Jesus estava tão aguada, que se eu quisesse levá-la a todos esses extremos, receberia a objeção da imensa crosta dos tépidos que diriam: “Essas são considerações que se fossem verdadeiras estariam nos lábios de todos os bons padres que conhecemos…”

Como eles tratam essa devoção? Não é à maneira de lábaro, pois este supõe um exército em ordem de batalha. Quando chegou o momento de movimentos piedosos serem quase liquidados sob o pretexto de constituírem piedade privada e não litúrgica, essa devoção já não apresentava mais este caráter bélico. Antes de o demônio fazer o que se permite agora, essa devoção foi enxugada da face da Terra.

Deparei-me com um dos indícios mais marcantes desse destroçamento quando estive na França, na década de 1950, e fui visitar Paray-le-Monial. Saindo da igreja, minha vista bateu normalmente em uma livrariazinha católica que ficava em frente. Pensei em comprar para minha mãe uma lembrança que mostrasse com quanto afeto lembrei-me dela nesse lugar tão ligado a ela. Então, dirigi-me a uma vitrine onde vi cartõezinhos preparados com o bom gosto francês em todos os sentidos, de boa qualidade. Aproximei-me para ver o que havia nos cartõezinhos, certo de trazerem fragmentos da Mensagem do Sagrado Coração de Jesus. Pensei: “Eu posso comprar para mamãe essa coleção de cartõezinhos; ela vai gostar.”

Quando eu me inclino para ler, vejo se tratarem de trechos de Voltaire, Rousseau, d’Alembert, sem dizer uma palavra sobre o Sagrado Coração. Expostos numa livraria oficialmente católica, em frente à porta por onde saíam os que tinham ido venerar o lugar onde Nosso Senhor aparecera a Santa Margarida Maria Alacoque! Era a abominação no lugar sagrado, evidentemente.

Diante do sofrimento devemos ter o espírito reparador

Tomando tudo isso em consideração, vemos que se tivéssemos compreendido a necessidade da reparação e oferecido nossos sofrimentos com essa intenção reparadora o tempo inteiro, é fora de dúvida que teríamos obtido melhores resultados na luta contra a Revolução.

Pelo favor de Nosso Senhor Jesus Cristo e pela mediação onipotente de Nossa Senhora, conseguimos constituir a Contra-Revolução. Mas não somos ainda a Contra-Revolução marcada a fogo pela sua característica essencial: a reparação. Isto é o que falta!

Porque entre nós há os que fazem parte da legião dos acomodados, dos tépidos. E essa tepidez nos afasta do desejo da reparação, da cruz e de qualquer forma de sofrimento.

Ora, é preciso termos esse espírito reparador diante do sofrimento. Como se pode pretender vencer uma luta contra um tal inimigo sem aplacar primeiro a Deus? Como se Deus fosse um parceiro de segunda classe, cujo apoio na luta nós desejamos, é bom, vale a pena ter, nada mais. Mas o importante e decisivo fossem as regras de atuação na opinião pública. O que é isso em comparação com o que as circunstâncias exigem?

Antes de tudo, desarmemos a cólera de Deus por meio das orações de Nossa Senhora, tomando-A como a grande reparadora, associando à devoção ao Sagrado Coração de Jesus a devoção ao Imaculado e Sapiencial Coração de Maria.

Que essas palavras nos deem, pelo menos, um acento de especial desejo de que, por meio do Imaculado Coração de Maria, obtenhamos o perdão pela nossa afronta ao Sagrado Coração de Jesus.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1995)

Revista Dr Plinio 255 (Junho de 2019)

 

1) Do francês: deixai fazer, deixai passar.

 

Adoração da personalidade de Nosso Senhor

Quando prestamos culto ao Coração de Jesus, adoramos a personalidade divina e insondavelmente perfeita de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual abarca todas as personalidades e todas as qualidades dos Anjos e homens, desde o começo da Criação até o fim dos tempos.

 

A solenidade do Sagrado Coração de Jesus é tão grande que não podemos deixar de fazer um comentário. Devemos considerar a relação dessa solenidade com as de Cristo Rei, do Imaculado Coração de Maria e da Realeza de Nossa Senhora.

Mentalidade de Nosso Senhor

A do Sagrado Coração de Jesus tem por objeto imediato cultuar o Coração físico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, cultuá-Lo em Si e enquanto símbolo da Alma Santíssima do Salvador, e que vem a ser aquilo que se poderia chamar a mentalidade ou, se quiserem, a psicologia de Nosso Senhor, com aquela composição de feitio de inteligência e de vontade que as noções de mentalidade e de psicologia retêm em si.

Quer dizer, é uma solenidade na qual nós celebramos, por assim dizer, a personalidade divina e insondavelmente perfeita, única de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, ao mesmo tempo, abarcando todas as personalidades, quer dizer, contendo em grau supereminente, enquanto Homem e Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, todas as qualidades de todos os Anjos e de todos os homens, desde o começo da Criação até o fim dos tempos. Isso é propriamente o que nós adoramos, quando prestamos culto ao Coração de carne de Jesus, Nosso Senhor.

Por uma simbologia de outra natureza, as pessoas acabaram se habituando a considerar no coração apenas o símbolo do amor, mas tomando a palavra “amor” com uma corrupção do século XIX, na acepção sentimental da palavra, significando apenas ternura, enquanto sentimento de alma.

É claro que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma ternura supereminente enquanto Homem, e infinita enquanto Deus. Mas não é só a sua ternura – e poder-se-ia dizer que não é principalmente a sua ternura – que nós adoramos na solenidade do Sagrado Coração de Jesus, embora essa ternura seja digna de toda adoração possível. A personalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo não se esgota em ternura; tem muitos outros adornos, predicados além da ternura.

Não é principalmente a ternura. Embora esta – com equilíbrio, com critério, conforme era em Nosso Senhor Jesus Cristo – seja uma grande perfeição de alma, entretanto ela não é a maior das perfeições que uma alma possui. Em Deus todas as perfeições são infinitas, mas na hierarquia de valores num homem a ternura não é, evidentemente, o principal valor.

Desejo de reconquistar por misericórdia uma humanidade revoltada

Entretanto, não deixa de ser verdade que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus contém uma nota legitimamente acentuada no que diz respeito à misericórdia d’Ele, isto é, a bondade, a capacidade de perdoar, de passar por cima dos pecados, de amar, de dar sempre novas graças. E pode-se dizer que há qualquer coisa de legítimo no fato de que a piedade no século XIX, romântica por alguns lados, focalizou principalmente a ternura do Sagrado Coração de Jesus. O mal foi que, às vezes, tenha focalizado só a ternura.

Em fins do século XVIII e ao longo do XIX, vemos começar a se dar a grande expansão da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a qual foi quase clandestina antes da Revolução Francesa. São João Eudes a pregou, Santa Margarida Maria Alacoque também, mas era uma devoção de tal maneira considerada audaciosa, e quadrando pouco com o ambiente da época, que um filho de Luís XV, tendo querido erigir um altar na capela de Versailles, não teve coragem de erigir lá, e mandou colocar uma imagem do Sagrado Coração de Jesus do lado de trás do altar, onde, aliás, ela ainda existe. Vejam o misto de ortodoxia e clandestinidade que havia nesta devoção.

Portanto, o grande desenvolvimento desta devoção ocorreu no século XIX. E nós podemos dizer que, apesar de todo o caminho tortuoso, foi também no século XIX que começou a reconquista do mundo da parte de Nosso Senhor. E nesse século houve enorme progresso da Igreja Católica, grande surto de dogmas marianos, a expansão da devoção ao Papa, a definição do dogma da infalibilidade papal, a devoção ao Santíssimo Sacramento, o movimento ultramontano, “pari passu” com o desenvolvimento da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Qual é a relação entre tudo isso?

O Sagrado Coração de Jesus, sendo visto de um ângulo de misericórdia, de bondade e de perdão, não castiga os homens na medida em que merecem, mas procura lhes fazer um bem ao qual eles não têm direito. Vem daí, então, o desejo de reconquistar por misericórdia uma humanidade revoltada e de prodigalizar graças, uma em cima da outra, para, apesar de serem mal acolhidas, operar essa reconquista dos homens.

Depois dos castigos preditos em Fátima, virá o Reino de Maria

Após o reinado de São Pio X, o curso da História da Igreja muda. Nós temos ainda uma expansão grande de piedade com o florescimento da devoção a Santa Teresinha do Menino Jesus, que se deu no reinado de Pio XI, quando as primeiras neves do progressismo e do modernismo começavam a cair sobre o mundo, depois da grande repreensão de São Pio X.

Mas essa foi uma flor que desabrochou na boca do inverno. De lá para cá, nós não notamos na Igreja nenhum grande movimento de piedade, nenhum desses surtos enormes que levam milhões e milhões de almas a se entusiasmarem, a se afervorarem, como foi no movimento ultramontano do século XIX.

Vimos no Brasil, de um modo efêmero, o esplendor das Congregações Marianas, que se deu ainda no tempo de Pio XI, em que nosso país, por atraso, vivia ainda o pontificado de São Pio X. Tivemos, mais ou menos, uma década de desenvolvimento do movimento mariano, de 1928 a 1938. Depois disso, sucumbiu também.

Embora a devoção ao Sagrado Coração tivesse perdido muito, a devoção ao Imaculado Coração de Maria ter-se difundido bem menos, essas carências de expansão na Igreja não são sempre frutos de infidelidades; são muitas vezes tesouros que a Igreja como que guarda para dias piores.

Então se compreende que, rejeitado o Sagrado Coração de Jesus, venha o Reino do Imaculado Coração de Maria. É a Mãe do Perdão que veio onde Ele foi recusado, para perdoar ainda mais, ir aonde só a mãe pode chegar e o pai não vai.

Não estou afirmando que Nossa Senhora é mais misericordiosa do que seu Divino Filho; quero dizer que Ela é a fina ponta da misericórdia d’Ele. Nosso Senhor manda sua Mãe aonde Ele, como que, não poderia ir. Ele encontra este “artifício” de mandar a sua Santíssima Mãe até lá.

Então, Maria Santíssima recomeça a reconquista do mundo. Fátima, um movimento muito mais difuso do que o do Sagrado Coração de Jesus, é alguma coisa na qual se preconizou o Imaculado Coração de Maria. E nós vemos uma espécie de luta da Providência desafiando os homens, dizendo: “Vocês são tão ruins, mas serei de uma tal bondade que vou vencer toda a ruindade de vocês. Eu acabarei triunfando”.

Isso indica uma vontade deliberada de reinar, de acabar vencendo que, aliás, é muito expressa na mensagem de Fátima: “Por fim o Meu Imaculado Coração triunfará”.

Então, nossa atenção se concentra nessa imagem final: o Sagrado Coração de Jesus, fonte infinita de graças que escoa através do Imaculado Coração de Maria, canal de todas as graças, e inunda a humanidade para reconquistá-la. Uma reconquista na qual é preciso estar perdoando sempre, concedendo sempre mais graças, mas em que, num determinado momento, cairão também os castigos preditos em Fátima, após os quais virá o Reino de Maria.  

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/6/1970)

 

Grande lição de combatividade

Tendo fraquejado a coragem de proclamar os dogmas, houve uma diminuição da Fé em incontáveis pessoas que se dizem católicas. A Solenidade de “Corpus Christi” nos ensina a ser cada vez mais combativos por amor a Nossa Senhora e por adoração à Sagrada Eucaristia.

 

Deverei falar alguma coisa a respeito de “Corpus Christi”. Os aspectos da instituição do Santíssimo Sacramento e da presença da Eucaristia na Igreja já têm de tal maneira sido estudados por nós, que se fica um pouco embaraçado em dizer algo de novo. Mas uma vez que não estamos propriamente na festa da instituição do Santíssimo Sacramento, que é na Quinta-feira Santa, mas na solenidade de “Corpus Christi”, eu gostaria de dizer algo sobre a razão pela qual ela foi instituída.

Um dos maiores escândalos na Igreja, no século XVI

Todos sabem que os protestantes, hereges, negaram e negam a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. E esse foi um dos maiores escândalos sentidos ou realizados na Igreja, no século XVI, no qual houve tantos escândalos.

Os medievais tinham uma profunda Fé no Santíssimo Sacramento, na presença real e, portanto, uma devoção enorme à Santa Missa, à adoração do Santíssimo Sacramento. E a negação brutal da presença real, feita pelos protestantes, foi um dos pontos de fratura entre eles e os católicos, tendo sido recebida por estes como um dos piores ultrajes que jamais se tenham cometido contra Nosso Senhor.

Qual foi então a política – porque se pode aqui falar em política, no sentido elevado do termo –, quer dizer, a tática pastoral usada pela Igreja em face desse fato?

A Igreja tinha dois caminhos. Um seria o de dizer: “Nossos irmãos separados protestantes estão negando a presença real. Se formos afirmar de modo protuberante essa presença, nós sustentamos a separação. Como eles não querem saber de nenhum modo desse dogma, na medida em que nós o afirmamos, eles se afastam. Vale a pena, então, repensarmos o dogma da presença real. E tomando em consideração que os tempos mudaram – porque o ano de 1500 estava afinal de contas bem longe do ano I da era Cristã –, era muito natural que nós agora exprimíssemos a presença real num vocabulário diferente, que agradasse aos protestantes”.

“Não seria uma negação da presença real, pois é um dogma definido por Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas em vez de afirmar de forma tão acentuada que Ele está realmente presente, debaixo das aparências eucarísticas, com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, nós poderíamos dizer que há a presença de Cristo no pão aqui consagrado. O que essa presença significa? Deus está presente por toda parte, e os bons amigos protestantes podem entender que Ele se encontra ali como está, por exemplo, numa flor ou num pão qualquer. Nós compreendemos que não é isso, mas sim que Ele está realmente presente com Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Porém, não vamos declarar isso para não criar uma cisão. Vamos usar um termo confuso, equívoco e assim eles ficam unidos conosco. Depois, vamos começar o diálogo, no qual dizemos para eles: ‘Que tal seria se nós reestudássemos os fundamentos do dogma da presença real, para verificarmos em conjunto até que ponto ele tem ou não seu fundamento da Sagrada Escritura?’”

O protestante diria: “A sua dúvida é irmã da minha. E tenho vontade de re-pesquisar o assunto, como você tem também”. Eu não lhe iria afirmar que duvido, porque destruiria a Fé. Então eu lhe falaria: “Se você tem dúvidas, era bom estudar”. Ele fica com uma certa  impressão de que eu tenho dúvidas, mas eu não disse que tenho dúvidas.

Se satanás fizesse uso da palavra…

Então, começa uma conversa a respeito do Santíssimo Sacramento em que digo: “Seria mais interessante, em vez de eu tomar uma posição endurecida e você também, nós estudarmos qual é o modo pelo qual poderíamos chegar a um acordo. De maneira tal que, da tese ‘Jesus Cristo não está presente realmente na Eucaristia’, nós conseguíssemos deduzir uma terceira posição que não seria inteiramente uma coisa nem outra. Você cede um pouco e eu também. E nós afirmaremos juntos que Jesus Cristo está presente de fato na Eucaristia. Porém, se ele está presente apenas enquanto Deus, ou enquanto Homem-Deus, é um pormenor a respeito do qual cada um de nós reserva sua liberdade de posição. Então, teremos chegado finalmente a uma síntese”.

Por essa forma poder-se-ia evitar uma ruptura entre protestantes e católicos, e o mundo cristão seria hoje unanimemente católico. Essa unidade teria dado à Religião Católica um vigor, uma magnitude muito diferente da tristeza dessa bipartição que está aí.

“Vocês católicos – argumentaria um protestante – quando veem, do alto e de dentro de sua unidade, as seitas protestantes pulverizadas, riem dessa pulverização, imaginam bem de que desgraça, de que infortúnio estão escarnecendo? Vocês têm uma ideia de quanto isso representou para o rebaixamento moral desse mundo protestante assim dividido? Quanto significou de lutas, de divisões, de dores, de sofrimentos? A primeira cisão partiu de vocês, quando rejeitaram a nossa novidade. Depois, as outras cisões vieram em cadeia, por causa exatamente da rejeição que vocês praticaram. Vocês são os autores dos males dos quais se queixam.”

Se satanás tivesse que fazer uso da palavra, diria – com mais inteligência e mais charme – mais ou menos a mesma coisa.

O ensino deve ter clareza

Ora, os Santos, os teólogos, os papas daquele tempo seguiram uma política inteiramente diversa. Eles pensaram o seguinte: a Igreja Católica foi instituída por Jesus Cristo para ensinar a verdade. E ela não tem o direito de dar um ensinamento confuso porque não é um ensinamento digno desse nome. É indigno o ensinamento confuso, mesmo de um professor que, involuntariamente, por incompetência, deixe a confusão reinar sobre o conteúdo do que ele está ensinando. Porque a clareza é a primeira das qualidades do professor, ou seja, o ensino exige como pressuposto a clareza. Um homem pode ser sábio e não ser claro. Mas não pode ser professor e não ser claro. Seria mais ou menos como um fabricante de binóculos que os faz com um cristal excelente, com uma montagem muito boa, mas os cristais que ele usa são um pouco embaçados: é uma porcaria. Porque o binóculo foi feito para se ver à distância com clareza. Se não dá para ver com clareza, é uma porcaria, o resto não interessa.

Portanto, a primeira exigência do ensino é de ser claro. Se aquele que ensina não o faz com clareza intencionalmente, ele é pior do que um incompetente: é um desonesto. Porque é uma desonestidade, uma fraude, apresentar-se alguém a um outro com a segunda intenção de não lhe transmitir a verdade inteira, quando este supõe que a verdade inteira lhe será dada.

Em termos mais definidos: há uma questão a respeito de saber se os portugueses já conheciam ou não o caminho do Brasil, quando aqui chegou Pedro Álvares Cabral, e se o descobrimento do Brasil foi, portanto, realmente um descobrimento ou uma expedição mandada pelo Rei de Portugal para oficialmente descobrir o Brasil. Os portugueses julgaram que era o momento de revelar ao mundo a posse desta terra que eles já conheciam, mas não queriam que fosse habitada ainda, porque não sentiam ainda a nação portuguesa bastante pujante para iniciar o povoamento deste mundo que estava diante deles.

Há uma discussão sobre esse assunto na História do Brasil. Um professor tem o direito de sustentar uma dessas duas teses, que se apoiam em argumentos prováveis; tem o direito de dizer que não aceita nenhuma delas como demonstradas ainda, porque não as acha suficientemente elucidadas. O que ele não tem é o direito de, numa aula de História tratando da questão, tirar o corpo da solução e não dar a posição dele. Se, por uma razão política qualquer, ele evita tomar posição, não é honesto porque tem a obrigação de dizer a verdade a respeito das coisas.

Pode-se até compreender – não chego a dizer que se possa escusar – que um ou outro faça silêncio a respeito de um determinado ponto de História. Contudo, segundo pensaram aqueles grandes teólogos e doutores, se a Igreja fizesse o silêncio a respeito da Eucaristia, ela estaria fraudando os fiéis que receberiam dela um ensinamento confuso sobre uma verdade indispensável à salvação. E ela, assim, faltaria com a sua missão.

Necessidade de levar os princípios até suas últimas consequências

Ademais, se a Igreja silenciasse a respeito da Eucaristia faria com que os fiéis comungassem mal, porque eles, não tendo o ensinamento claro sobre o que estão recebendo, não podiam recebê-lo bem. Como fazer um ato de adoração ao Santíssimo Sacramento se não se tem certeza que ali está Nosso Senhor Jesus Cristo? Não é possível. Quer dizer, para manter uma unidade pútrida, a Igreja sacrificaria a vida espiritual de seus fiéis.

Por fim, viria um princípio que, embora não seja o mais forte, é o menos realçado, e por isso desejo salientá-lo: A força de toda instituição consiste em levar às últimas consequências seus próprios princípios. A partir do momento no qual ela julga que, para sobreviver, deve adoçar os seus princípios, reconhece que já morreu.

Tomem, por exemplo, o estado militar. As forças armadas constituem uma instituição do país. O próprio delas, na sua pujança, é deduzir da condição militar o estilo de vida militar levado tão longe quanto possível. A partir do momento em que, por exemplo, um ministro da guerra dissesse que o Brasil é um país ao qual repugna tanto o estado militar que, ou o militar toma ares de civil, ou não haverá mais militares, as forças armadas morreram no Brasil. Porque se a coerência do estado militar é inaceitável pelo país, afugenta as vocações; então é preciso reconhecer que o estado militar morreu.

Vocações clericais: um padre deve ser, pensar, vestir-se e viver como padre. Se alguém diz que em determinado país é preciso trajar os padres de macacão para atrair vocações, então esse país não quer ter mais padres, ficou pagão. 

Aplico o mesmo princípio à instituição da família. Alguém dirá: “Dr. Plinio, se não for aprovado o divórcio, muita gente começa a não se casar mais e a viver no amor livre.” A resposta é: “Então diga que morreu a instituição da família. Não vale a pena fazer uma familiazinha moribunda, caricatura abastardada daquilo que deve ser”.

Vamos, então, tomar a questão de frente e dizer logo: tal país morreu. Porque uma nação onde não há compreensão para o estado militar, para o estado eclesiástico e nem apreço pela família é uma nação morta.

Política de enfrentar, lutar, afirmar, proclamar 

Os padres do Concílio de Trento entenderam ser preciso fazer o contrário. E em oposição ao protestantismo, acentuar o culto ao Santíssimo Sacramento. Então, o Concílio fortaleceu o decreto da instituição da festa de “Corpus Christi”, prescrevendo ao clero a realização de uma procissão na qual o Santíssimo Sacramento saísse à rua, para se ver que as multidões O adoram de joelhos postos em terra, reconhecendo que debaixo das aparências eucarísticas está Nosso Senhor Jesus Cristo. Desde então, impulsionou-se o culto ao Santíssimo Sacramento de todos os modos, chegando a essa plenitude que era a adoração perpétua do Santíssimo Sacramento, instituída por São Pedro Julião Eymard.

Era a política de enfrentar, não conceder, lutar, afirmar, proclamar. A política da honestidade, da lealdade, da integridade, da coerência, de onde veio para a Igreja uma torrente de graças, exatamente as graças da Contra-Reforma, que representaram uma das maiores chuvas de bênçãos que a Igreja tem recebido.

Acentuar o culto ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e a devoção ao Papa foi a resposta da Igreja ao protestantismo. Uma longa resposta de trezentos anos. No século XIX ainda, a proclamação da infalibilidade papal, do dogma da Imaculada Conceição; no século XX, o dogma da Assunção. Enfim, tivemos uma série de afirmações e instituições desdobrando e afirmando aquilo que o protestantismo negava. De maneira que quanto mais eles persistam no seu erro, tanto mais nós íamos proclamando alto a nossa verdade. Quanto mais eles se esfarelavam, tanto mais a nossa unidade se afirmava. Quanto mais eles morriam, tanto mais a nossa vitalidade se multiplicava.

Até que outros ventos sopraram… Vejamos a verdade de frente: há incontáveis católicos que não têm mais a coerência de sua Fé. Não possuem mais a pugnacidade, aquela integridade que caracteriza uma instituição quando está viva. A Igreja nunca diminui de vitalidade porque é imortal, sobrenatural, divina, mas a correspondência de seus filhos a ela pode diminuir e, portanto, a densidade de Fé minguar também no espírito de muitos deles.

Como, em nossos dias, a coragem de proclamar os dogmas diminuiu, há, portanto, uma diminuição da Fé em incontáveis daqueles que se dizem católicos!

A solenidade de “Corpus Christi” é a festa do Santíssimo Sacramento, mas também uma grande lição de combatividade. Aprendamos essa lição e procuremos ser cada vez mais combativos por amor a Nossa Senhora e por adoração à Eucaristia.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1970)

O Pão dos fortes

A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Na procissão de “Corpus Christi”, devemos querer glorificá-Lo e pedir que esse Pão comunique a sua força a todos, para obstarem a ação do demônio. Como seria bonito que, de trecho em trecho, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

 

A Solenidade de “Corpus Christi” é uma festa litúrgica instituída pela Igreja para comemorar, homenagear a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. Daí o nome “Corpus Christi”.

Reparação pelas blasfêmias proferidas por protestantes

Essa festa foi instituída pelo Papa Urbano IV, no século XIII, e teve um grande desenvolvimento no período da expansão protestante, como réplica à contestação feita por eles à afirmação de que Nosso Senhor está realmente presente na Sagrada Eucaristia, e com o intuito de estimular os católicos a oferecer uma reparação a Nosso Senhor por causa da blasfêmia que aquela heresia propugnava a esse respeito.

Com o curso dos tempos, e se tornando menos ativa a polêmica entre católicos e protestantes, essa nota polêmica da festa também diminuiu de carga e ela passou a ter como tônica a importância da devoção eucarística na vida espiritual dos fiéis. Cada vez mais a atenção dos católicos, no período que corresponde à História moderna e depois à História contemporânea, foi se concentrando nessa maravilha do amor de Nosso Senhor para com os homens, que é a sua presença real no Santíssimo Sacramento. No século XIX, a Igreja instituiu a Congregação do Santíssimo Sacramento, os sacramentinos, fundada por São Pedro Julião Eymard, especialmente para honrar continuamente o Santíssimo Sacramento na sua adoração perpétua.

São Pio X – já no século XX, portanto – instituiu a Comunhão para as crianças e deu forte impulso à Comunhão frequente, até mesmo quotidiana, para as pessoas que pudessem receber a Sagrada Eucaristia. Os congressos eucarísticos se espalharam por toda a Terra e, com essa irradiação da devoção eucarística, a festa de “Corpus Christi” tomou realce. É a própria glorificação de Nosso Senhor sacramentado.

Esta festa se celebra por meio de uma procissão nas ruas.

Compreendo que se possa dizer ao homem, premido por problemas pessoais, psicológicos e de toda ordem, vendo o mundo atormentado naufragando nas crises contemporâneas, que o mais importante é a adoração ao Santíssimo Sacramento. Entendo até que esse homem tire disso um proveito e invoque a Sagrada Eucaristia para não naufragar. A atenção dele está fortemente chamada para a sua condição de náufrago. E que, portanto, é preciso estabelecer uma relação entre sua situação e essa devoção. Do contrário, todas as conversas sobre a festa correm o risco de deixar o homem sem recursos, sem uma atração devida para um mistério tão augusto.

Tudo quanto dissemos a respeito dessa festa é perfeitamente verdadeiro. Entretanto, é como se, por exemplo, me mostrassem uma fotografia de uma árvore com tronco pujante, forte, mas na qual os galhos não aparecem. Aquilo é uma árvore verdadeira, forte; porém sem os galhos, só o tronco não dá ideia da árvore.

Bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento

O que ficou dito é o tronco – realmente saboroso, venerável, perfumado – do assunto, mas esse tronco impõe uma irradiação para toda uma galharia.

Em primeiro lugar, a polêmica entre protestantes e católicos, tendo-se tornado menos acre, era o caso de perguntar se nisso não entrou moleza, tibieza da parte dos católicos, e se não se deveria tomar uma atitude que tornasse mais acerba essa polêmica. A festa de “Corpus Christi” até seria uma ocasião muito boa para isso. São só os protestantes? Naquele tempo, eles estavam no centro do panorama, porém, com o passar dos anos, toda espécie de heresias, de abominações se multiplicaram pela Terra como fruto do protestantismo. Este gerou seus filhos e com eles encheu a Terra. Assim, essa procissão não deveria ter um caráter contrário a todos esses filhos do protestantismo? Portanto, não deveria ser ainda mais polêmica?

Santa Genoveva, com o Santíssimo Sacramento, fez recuar os bárbaros que avançavam sobre Paris. Os bárbaros de nossos dias avançam e nós não podemos conceber essa festa como glorificação daquilo que é nossa arma para fazermos recuar os bandidos?

Eu sou entusiasta dessa festa e de tudo quanto foi dito a seu respeito, mas me sinto triste por ela ter sido privada desses complementos indispensáveis.

Para combater é preciso ter força. A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Esse Pão dos fortes nós vamos levar pelas ruas para glorificá-Lo, fazendo um pedido para que Ele comunique a sua força a todos quantos se encontram na rua e para obstarem a ação do demônio.

Que coisa linda acrescentar uma intenção exorcística na bênção do Santíssimo Sacramento, dada no final da procissão! Como seria bonito que, de distâncias em distâncias, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

Por outro lado, é verdade que durante todo esse tempo a devoção ao Santíssimo Sacramento se desenvolveu muito. Mas não foi só ela. Cresceu muito também a devoção a Nossa Senhora. Não se deveria invocar muito mais a Santíssima Virgem ao longo das procissões, com cânticos louvando-A enquanto modelo da adoradora do Santíssimo Sacramento? Ela foi o tabernáculo vivo que abrigou Nosso Senhor até seu nascimento e que, depois da primeira Comunhão d’Ela, conteve-O até o momento de Ela morrer. Tudo isso precisa ser lembrado e é por meio d’Ela que devemos dirigir nossas preces ao Santíssimo Sacramento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1982)

Meu filho, aprenda a sofrer!

O sofrimento, tão comum e tão evitado por todos os homens… Com a acuidade que lhe é própria, Dr. Plinio mostra como sofrer representa uma glória para o verdadeiro católico.

 

A dor é algo que não pode ser extinto da vida do homem. Para cada indivíduo ela se apresenta de uma maneira especial. Porém, há alguns sofrimentos que são comuns para todos: fazer os sacrifícios necessários para não pecar; não se limitar a evitar o pecado, mas crescer cada vez mais na virtude; salvar sua alma e também as almas dos outros.

Sobretudo para quem possui uma vocação especial como a nossa, a Providência tem a intenção de que salvemos certo número de almas. O esforço comum da organização à qual pertencemos deve visar salvar um número quase incontável delas, porque os males que há na civilização contemporânea são enormes, e muitas pessoas se perdem.

Assim, é preciso que nos ergamos contra a iniquidade praticada e lhe digamos como São João Batista: “Não te é permitido!”

É difícil calcular o número de pessoas que poderiam salvar-se caso tivéssemos a alma plena dessa convicção. Pois bem, nesse esforço comum cada um deve dar tudo o que recebeu da Providência para produzir o rendimento necessário. E isto significa carregar a cruz.

O ódio ao mal faz parte do amor a Deus

É preciso evitar o pecado, porém não apenas cumprindo este ou aquele Mandamento isoladamente; devemos, acima de tudo, amar a Deus sobre todas as coisas.

Ama-se a Deus desejando tudo aquilo que é conforme a Ele, e odiando tudo aquilo que se Lhe opõe. Por exemplo, considerando a Paixão, deve-se adorar Nosso Senhor Jesus Cristo na perfeição moral indizível, divina, que Ele manifestou ao sofrer tudo aquilo. E também encher-se de indignação contra os que O ofenderam.

Um indivíduo que fique com muita pena de Nosso Senhor, mas não se indigne contra quem praticou aquele mal, é um hipócrita e está mentindo. Porque se vejo uma pessoa praticar um crime e tenho muita pena da vítima, mas não tenho indignação contra o criminoso, estou querendo mentir a mim mesmo.

Até o rompimento com uma amizade má pode representar uma cruz

Por mais duro que seja, caso eu tenha uma amizade que me conduz ao pecado, devo romper com ela inteiramente. Neste caso, não posso fazer um rompimento leve, distanciando-me aos poucos. A ruptura precisa ser completa, porque, ou evito meticulosamente tudo quanto me leva para o mal, ou, no fundo, estou à procura do caminho da perdição.

E é um sofrimento a alma adquirir uma têmpera tão forte, que olha de frente cada dificuldade dessas e diz inexoravelmente “não” ao pecado! E realiza o sacrifício já, por inteiro e definitivamente.

Um sacrifício que se faz arrastando: Devo romper com tal amigo, mas não o faço hoje e deixo para a semana seguinte. Faço depois uma ruptura incompleta e dentro em breve encontro-me com ele num bar, num ônibus, e aquela relação péssima se refaz, e a tentação continua. Isto não vale nada. É preciso dizer que rompeu de vez; se não tem pretexto, é sem pretexto. Isso significa cruz, porque muitas vezes é dificílimo fazê-lo, mas devemos imitar nosso Divino Salvador que tomou a sua Cruz e foi para frente. Assim, preciso romper e não mais olhar para trás, de tal modo que nem me lembre mais daquilo; é um episódio de minha vida que se apagou.

Mas se eu lembrar um pouquinho, quando menos eu esperar, em casa de um parente que vou visitar ou em qualquer outra circunstância, lá está ele; e aquilo tudo renasce. Quer dizer, há certas coisas que devem ser extirpadas como um câncer: arranca-se de uma vez só, senão ele volta e todo o drama se reapresenta.

A gloriosa falange dos esquecidos por amor a Deus

Há outras coisas às quais se deve renunciar. A pessoa forma na vida tantos sonhos aos quais tem apego: gostaria de ser isto, aquilo, aquilo outro. Porém, aparece o jogo das circunstâncias na vida e a salvação eterna pede que ela não seja nada daquilo, mas tome outro caminho.

Por exemplo, um jovem imagina ser locutor de rádio porque nos círculos dele se considera isso uma maravilha. Ele já sonhou cem vezes falando no rádio e alcançando sucesso: o povo o espera para aplaudi-lo; quatro ou cinco pessoas disputam quem vai conduzi-lo de automóvel para casa; um outro grupo de indivíduos se oferece para levá-lo a uma confeitaria para comer coisas saborosas; todos querem falar com ele, julgando-o genial. Caso ele passe a fazer parte de algum movimento religioso e tenha de renunciar à carreira que almejava, certamente não vai obter o sucesso esperado anteriormente. Ele fará parte da gloriosa falange dos esquecidos. Neste caso ele, então, deve dizer: “Eu quero ser empurrado de lado, com Nosso Senhor Jesus Cristo. Aceito qualquer coisa, contanto que eu siga o Redentor.”

Combati o bom combate

Como isso é difícil! Em nossa vida, desde a infância até a ancianidade, quantas e quantas vezes circunstâncias análogas se apresentam, tendo como causa apenas o fato de sermos católicos, apostólicos, romanos, leais e fiéis, difundirmos aquilo que temos a vocação de difundir.

Assim, quando morrermos, poderemos dizer como São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia”.

Segundo uma lindíssima tradição, ou lenda, com o grande Apóstolo — que, a bem dizer, converteu toda a bacia do Mediterrâneo, da qual depois se irradiou para o mundo a Igreja Católica e a Civilização Cristã — aconteceu o seguinte: levaram-no para junto a um tronco de árvore para ser decapitado com um gládio; ele se ajoelhou, a espada bateu com todo o vigor e sua cabeça rolou longe, pulando três vezes no solo, e dali nasceram três fontes. Tais fontes mostram a santidade de São Paulo e a divindade da Igreja. Até depois de morto, sua cabeça abriu fontes de água viva. Para trilharmos o caminho da santidade é preciso ter muita resolução de sofrer.

Às vezes, a Providência dispõe que infortúnios de outra natureza caiam sobre nós: uma doença, uma calúnia, etc.

Nosso Senhor Jesus Cristo disse que não cai um pássaro de uma árvore, nem um fio de cabelo de nossa cabeça sem que Ele saiba e queira. Se eu fui atingido assim, Jesus quis; se Ele quis, eu quero, assumo esse sofrimento até o fim.

A quem Deus ama, permite o sofrimento

Isto supõe uma lógica, uma coerência a toda prova. Não basta entender ser necessário o sofrimento; devo efetivamente sofrer o que está no meu caminho. E sem ter surpresa, porque preciso estar preparado. Não devo ter a ideia: “Quem sabe se eu escapo com um jeitinho, e Deus não me peça o sofrimento!” Porque se Ele não me enviar a dor, é sinal de que não me ama.

É claro, pois a cruz é uma honra, um sinal de predileção, que Nosso Senhor dá para os seus prediletos. As almas a quem Ele não faz sofrer são aquelas que preferem seguir as vias cujo termo final é o inferno.

Deus, na sua justiça infinita, dispõe que o pecador seja mais feliz na Terra do que quem vive virtuosamente. Isso parece um absurdo: o Criador não deve amar mais aqueles que são virtuosos? Amando mais os virtuosos, não é natural que Ele lhes dê mais felicidade?

Não, por uma razão muito simples: os sofrimentos da alma após a morte são muito maiores do que os havidos durante a vida. Enquanto se está vivo, pode-se sofrer muito, mas isso não é comparável às chamas do purgatório! E uma alma pode ficar um tempo indefinido dentro do purgatório, queimando! E a queimadura da alma dói muito mais do que a do corpo! Não nos deixemos levar pelo seguinte sofisma: “O purgatório, em última análise, queima a alma, mas não o corpo, o que seria pior”. A alma nos é muito mais interna do que o corpo. De maneira que meu eu é muito mais atingido por um fogo que queima a alma do que por chamas que queimam o corpo.

É algo misterioso que a alma, sendo espírito, entretanto pode ser atingida pelo fogo e por isso sofrer terrivelmente. E para poupar os bons das chamas do purgatório — já não falo do terrível fogo do inferno —, a Providência manda-lhes sofrimentos muito grandes nesta Terra para punir os males que praticam: pecados veniais, às vezes mortais já perdoados. Quando morrem, Deus lhes abre os braços e eles vão para o Céu diretamente.

Deve causar-nos alívio a ideia de que nossos sofrimentos obtêm a expiação dos nossos defeitos e, ao mesmo tempo, nos abre diretamente a glória do Céu. Algumas almas morrem já na alegria do Paraíso, sorriem, têm visões sobre a felicidade eterna. É que tudo já foi sofrido, a dívida está paga, e elas entram no banquete eterno do Céu.

Também os inocentes são chamados ao sofrimento

Há pessoas especialmente amadas por Deus a quem Ele pede uma coisa especial. O Homem-Deus, sendo a própria inocência, sofreu para expiar os pecados do mundo. E a Ele se reza: “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis — Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós”. Deus, para salvar certas almas que estão se perdendo, a fim de obter certas vitórias para a sua Igreja, quer não apenas o sofrimento do pecador.

O Redentor bate à porta de certas almas, dizendo: “Meu filho, tua alma é inocente; Eu a preservei até agora do pecado, e tu correspondestes à minha graça. Como Eu te amo, meu filho, quero de ti esta pedra preciosa que é o sofrimento do inocente; quero de presente um grande rubi, teu sangue não do corpo, mas da alma. Aceitas isso, ó meu filho inocente?”

Às vezes é para ganhar uma só alma, mas a partir desta Deus quer salvar muitas outras. E a alma inocente, que não é mole — inocente e mole são coisas contraditórias; o mole não é inocente, e o inocente não é mole —, a alma rija aceita e diz: “Senhor, quero sofrer por Vós. Não tenho palavras para Vos agradecer a inocência com que me preservastes. Além de sofrer como inocente, peço-Vos padecer tudo quanto queirais, de maneira que, quando cerrar meus olhos, eu possa dizer: Sofri tudo quanto Deus queria de mim, o cálice das dores eu o bebi até o fim, não hesitei, e o fiz em goles grandes e generosos. Cumpri vossa vontade. No Céu Vós me direis qual é o bem que quisestes fazer por meu intermédio.”

Os sofrimentos de Santa Teresinha do Menino Jesus

Lembro-me de fatos da vida de santos que são verdadeiramente desconcertantes nesse sentido. Um exemplo: Santa Teresinha do Menino Jesus. Desde muito cedo a alma dela, inocentíssima, foi convidada pela graça para sofrer pelo amor de Deus. Ela entrou para o Carmelo de sua cidade, Lisieux, e tinha um desejo ardente de morrer o quanto antes pelo Redentor.

De fato, ela teve que sofrer bastante no Carmelo…

Num convento carmelita, lugar onde as freiras são inteiramente dependentes de sua superiora, Santa Teresinha teve uma que, em vez de dar o exemplo de todas as virtudes, deixava muito a desejar… Para se ter ideia das coisas que fazia a superiora, cito apenas um exemplo: ela possuía um gato, e a freira que quisesse obter uma licença, um ato de misericórdia da superiora, deveria tratar bem o gato dela.

Além disso, a superiora era muito mundana e vivia recebendo visitas da pequena sociedade de Lisieux. Estas pessoas vinham contar-lhe coisas como as seguintes: Fulana brigou com a amiga; uma outra ficou noiva; uma terceira rompeu o noivado… E a superiora se intrometia para resolver esses casos. À noite, ela reunia as freiras para narrar-lhes tais acontecidos.

Nesse ambiente, as freiras não compreenderam a santidade de Santa Teresinha, nem o esplendor de sua pessoa.

Ela era de uma bondade celestial para com todos, sobretudo para as noviças, das quais foi nomeada mestra. Durante todo o tempo de sua vida no convento, fecharam os olhos para a sua virtude, exceto uma noviça que certa vez ajoelhou-se diante dela e disse: “Irmã Teresa do Menino Jesus, eu vos peço: rezai por mim, porque um dia vós sereis uma grande santa e todo o mundo dirá: Santa Teresa do Menino Jesus, rogai por nós. E eu me antecipo e digo: Ó grande Santa Teresa do Menino de Jesus, rogai por mim”.

Certa noite, Santa Teresinha expeliu sangue pela boca; era o sinal da tuberculose, doença naquele tempo considerada gravíssima, com muito menos possibilidade de cura do que hoje.

Chegou o dia de sua morte. Há muito tempo, Santa Teresinha não podia mais se mover, e uma pessoa que estava em seu quarto viu-a, em certo momento, erguer seu tronco e, com ar transfigurado de alegria, ela disse “Ó meu Deus!” Era uma última consolação de Deus, que lhe poupava o último instante de dor. Em seguida, caiu morta e um perfume de violeta espalhou-se por todo o convento.

Ela praticara a humildade na perfeição, e a violeta é o símbolo dessa virtude. Até mesmo a superiora, que não gostava de Santa Teresinha, foi beijar os pés do cadáver; a alma dela já estava no Céu.

Isto é sofrer até o fim. E cada um de nós, em relação aos sofrimentos que nos estão destinados, deve, por meio de Maria Santíssima, pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo a graça que o Divino Salvador implorou no Horto das Oliveiras: “Meu Deus, se for possível, sejam diminuídos esses sofrimentos, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Roguemos a Nossa Senhora a graça de padecermos tudo quanto for inevitável, e de sofrermos até o fim, com coragem e decisão. Se assim caminharmos com passo decidido e forte, entraremos no Céu onde os anjos e os santos nos receberão.

Nossa fidelidade pode estar sendo sustentada por uma vítima expiatória

Em certo momento de minha infância, já entrando na adolescência, o peso da fidelidade me foi tão grande que muitas vezes cambaleei, não no sentido de que hesitasse em sair do bom caminho, mas eu percebia que as minhas forças não eram suficientes. Porém, na hora “H” essas energias se espichavam e eu conseguia mais um pouquinho e ia para frente, e assim cheguei até os 81 anos.

É possível que esta fidelidade tenha sido conseguida por alguma alma que tenha resolvido sofrer muito por mim. Lembro-me de que, com frequência, eu via nas igrejas uma mulher baixinha, com um cabelo preto liso e não muito abundante, bem penteado, com uma risca ao meio. Era pobre, mas muito limpa, com uns trajes comuns de mulher do povo. Porém ela não tinha nariz, e usava um pano que dava toda a volta na cabeça para tapar a hediondez do buraco no meio da face.

Ela andava depressa, em geral carregando diversos pacotes e um guarda-chuva. Via-se que ela tomava muito cuidado com a chuva — no clima de São Paulo é compreensível. Estava sempre com a fisionomia alegre e atraía os olhos de todo o mundo que passava, porque para uma mulher sem nariz olha-se ainda que não se queira.

Eu muitas vezes pensava: “Quem sabe se essa mulher — e eu notava que ela passava perto de mim e me fixava — está oferecendo por mim essa humilhação de não ter nariz, e todos os incômodos daí decorrentes. Certamente no Céu eu lhe agradecerei muita coisa, pois — caso ele tenha de fato feito tal oferecimento — eu seria um pernibambo se não fosse ela”.

Ela me olhava, mas poderia adivinhar que daquele moço nasceria nosso Movimento? E se essa pobre mulher ofereceu seu sacrifício nesse sentido — ela era bem mais velha do que eu, e deve ter morrido —, podemos imaginar a glória dela no Céu, ouvindo-me falar isto?

Aquele que se dedica à salvação do próximo, sofrendo como deve, em certo momento receberá uma glória indizível, porque quem salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu como um sol por toda a eternidade. Por uma alma! O que dizer de nosso Movimento que ajuda a salvar tantas almas em tantos lugares e frear a Revolução, para que venha ao mundo o Reino de Maria!

 A glória do sofrimento

É claro que na vida de um católico nem tudo é sofrimento; existem momentos de alegria. Porém precisamos nos habituar à ideia de que em certas etapas da existência há sofrimentos, sofrimentos e mais sofrimentos. Saibamos carregá-los, pois a glória de alguém não consiste em ser grande homem, mas grande sofredor. Sendo grande sofredor, será grande batalhador. E se for grande batalhador vencerá para conquistar o Céu. É isso que cada um de nós deve fazer.

 

(Extraído de conferência de 7/4/1989)

 

 

 

Atitudes erradas em face dos “slogans” da Revolução

Reafirmando a necessidade de se combater a Revolução como esta age em concreto junto à opinião pública, Dr. Plinio alerta os contra-revolucionários sobre o triste equívoco de se apresentarem sob uma luz “simpática e positiva”, esquivando-se de atacar o adversário. Com essa atitude, adverte-os, a Contra-Revolução só tende a perder em conteúdo e dinamismo.

 

O mais importante para combater a Revolução é ler muitos livros?

“O esforço contra-revolucionário não deve ser livresco, isto é, não pode contentar-se com uma dialética com a Revolução no plano puramente científico e universitário.  Reconhecendo a esse plano toda a sua grande e até muito grande importância, o ponto de mira habitual da Contra-Revolução deve ser a Revolução tal qual ela é pensada, sentida e vivida pela opinião pública em seu conjunto.  E neste sentido os contra-revolucionários devem atribuir uma importância muito particular à refutação dos ‘slogans’ revolucionários” (p. 119).

Sem polêmica, diminui a reação contra-revolucionária

Não seria mais eficaz eliminar os aspectos polêmicos da ação contra-revolucionária?

“A ideia de apresentar a Contra-Revolução sob uma luz mais ‘simpática’ e ‘positiva’, fazendo com que ela não ataque a Revolução, é o que pode haver de mais tristemente eficiente para empobrecê-la de conteúdo e de dinamismo” (p. 119).

Poderia desenvolver este ponto?

“Quem agisse segundo essa lamentável tática mostraria a mesma falta de senso de um chefe de Estado que, em face de tropas inimigas que transpõem a fronteira, fizesse cessar toda resistência armada, com o intuito de cativar a simpatia do invasor e, assim, paralisá-lo.  Na realidade, ele anularia o ímpeto da reação, sem deter o inimigo.  Isto é, entregaria a pátria…” (p. 120).

O exemplo do Divino Mestre

Mas às vezes não é necessário empregar uma linguagem matizada?

“Não quer isto dizer que a linguagem do contra-revolucionário não seja matizada segundo as circunstâncias.

“O Divino Mestre, pregando na Judeia, que estava sob a ação próxima dos pérfidos fariseus, usou de uma linguagem candente. Na Galileia, pelo contrário, onde predominava o povo simples e era menor a influência dos fariseus, sua linguagem tinha um tom mais docente e menos polêmico” (p. 120)(1).  v

 

1) Para todas as citações: Revolução e Contra-Revolução, Editora Retornarei, São Paulo, 2002, 5ª edição em português.

 

Os “Exercícios Espirituais”, programa de santificação

Na seqüência de sua exposição sobre a Companhia de Jesus, durante as celebrações do IV centenário desta instituição, Dr. Plinio salienta a primordial característica dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de Loyola: constituem eles, não um meio para simplesmente nos corrigirmos de um defeito ou adquirirmos uma virtude, mas um programa de reforma total do homem para durar a vida inteira.

 

Não é difícil perceber que o cumprimento dessa altíssima tarefa [para a qual o jesuíta é chamado] requer raro equilíbrio de inteligência, vontade e sensibilidade.

Inteligência sutil, vontade enérgica, amor ilimitado a Deus

Dotado de uma inteligência particularmente sutil e penetrante, o jesuíta precisará saber ler, não apenas nas linhas, mas também nas entrelinhas, discernindo e apontando os pensamentos subjacentes, as conclusões necessárias dos princípios de cada autor, ainda mesmo que este não os tenha explicitamente enunciado; as idéias recônditas dos políticos e as intenções veladas dos diplomatas. Munido de um espírito de observação finíssimo, deverá o jesuíta ter uma visão bastante clara e serena da realidade, para aplicar efetivamente e a fundo, os princípios doutrinários na ordem prática. Favorecido por uma vontade especialmente enérgica, deverá ser bastante equilibrado para jamais presumir de suas forças e tentar o impossível, se bem que nunca subestime suas energias, e deixe de tirar delas o proveito que, para a glória de Deus, seria de esperar. Olhos postos em Deus, só d’Ele esperará auxílio. Mas, voltados para si, empenhar-se-á como se só da aplicação total de suas forças lhe pudesse vir a vitória.

Claro, essa tarefa não é própria aos temperamentos comuns, para as inteligências banais, para os homens sem fibra. O fundo de toda esta enumeração de deveres supõe um total desprendimento das criaturas e um amor sem limites a Deus, uma grandeza de alma e um equilíbrio os quais somente serão obtidos pela intransigente fidelidade à vontade divina — o que se alcança pela graça.

Perfeito equilíbrio dos afetos

De fato, para ser fiel a essa altíssima missão, não basta ao jesuíta que tenha desterrado de si todos os afetos ilegítimos. Cumpre que de seu espírito esteja ainda banida toda e qualquer complacência para com os mil matizes em que o erro se dilui, para penetrar nas almas crentes. A aversão declarada e militante aos erros que se parecem com verdades, a proscrição dos mil artifícios pelos quais se enunciam certas verdades, dando-lhes ares e tons de erro para cortejar e atrair o adversário, tudo isto é essencial ao jesuíta.

Por essa razão se exige também que, em sua alma, a ordem dos afetos legítimos seja perfeita, e saiba amar tudo em Deus e só por Deus. Por pouco que nele se empalideça a noção da hierarquia dos valores, se obnubile a idéia de que tudo lhe será lícito somente quando Deus for a causa e o termo de seu amor, tornar-se-á um homem relativa ou inteiramente aleijado para o cumprimento de sua especialíssima e excelsa missão.

De um pequeno erro, uma negligência insignificante cometidos de modo consciente neste terreno, quantas e quantas catástrofes podem originar-se!

Evidentemente, essa missão não poderia ser assegurada sem que a Companhia de Jesus tivesse — como garantia da continuidade de seu espírito — elementos para se certificar de que ela era sempre realizável em seus membros.

Daí a ascética de Santo Inácio.

Inestimável valor dos Exercícios Espirituais

A suprema garantia dessa grande obra está, evidentemente, em Nosso Senhor, sem cuja graça vivificadora e santificadora os homens não podem produzir frutos de salvação. Mas aprouve a Deus dotar a Companhia de Jesus de um meio humano que, constantemente fecundado pela graça, asseguraria a continuidade e autenticidade de seu espírito. Este instrumento são os Exercícios Espiri­tuais de Santo Inácio de Loyola, livro pequeno, mas de ouro, o qual, conforme muito bem disse o Revmo. Pe. J. de Guibert, na Revue D’Ascetique et de Mystique, contém toda a espiritualidade da Companhia de Jesus.

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio não são um meio para simplesmente nos corrigirmos de um defeito, adquirirmos apenas uma virtude, ou fazermos uma ou outra vez algumas meditações. São um recurso para reformarmos nossa personalidade, pela rejeição de todos os defeitos, aquisição das mais altas virtudes, regeneração de nossa inteligência na Verdade, restauração de nossa vontade no Bem, morigeração de nossa sensibilidade na mortificação. Em outros termos, os Exercícios não oferecem apenas matéria para uma fase da vida espiritual, mas constituem um programa para todas as etapas de combate interior contra os vestígios do pecado original e as tentações do demônio, bem como para todos os dias de uma existência, por mais longa que seja. Reforma total do homem para durar a vida inteira, eis o programa dos Exercícios.

Como realizar bem um retiro espiritual

No que consistem eles?

Evidentemente, podem ser feitos num só dia, por qualquer pessoa que viva no século. Normalmente, entretanto, quando feitos em forma de retiro fechado em alguma casa religiosa, chegam a durar até trinta dias, os quais o retirante deve passar no afastamento de todas as preocupações humanas.

Esse longo e fecundo período de meditação, dividiu-o Santo Inácio em quatro semanas. Mas a palavra “semana” não deve, aí, ser tomada em sentido estrito. Algumas fases podem durar mais ou menos dias, conforme as possibilidades, os desejos e as necessidades espirituais do retirante.

Durante esse tempo, o retirante somente conversará consigo mesmo, com o Padre Pregador ou com Deus, Nossa Senhora, os Anjos e Santos, submetendo-se a um horário que deve guardar um sábio equilíbrio entre a austeridade e a prudência. Mais de uma vez por dia, o Padre Pregador far-lhe-á exposição sobre um tema, e não propriamente um sermão. Segundo as regras de Santo Inácio, o retirante não é um indivíduo plenamente passivo. Pelo contrário, fará seu trabalho pessoal de elucubração, ou seja, sua meditação.

Na primeira fase, “deformata reformat” [reforma-se o que está deformado], Santo Inácio dispõe as meditações de maneira a fazer com que o retirante renuncie inteiramente ao pecado e às suas más inclinações. Na segunda fase, “reformata conformat” [dá-se forma ao que está reformado], fá-lo escolher a vocação ou o teor de vida mais conforme à santa vontade de Deus, e o inicia na imitação de Nosso Senhor. Na terceira fase, “conformata confirmat” [confirma-se o que já possui forma] aperfeiçoa, torna mais sólidas, práticas e eficazes as disposições adquiridas na etapa anterior. Na quarta, “confirmata transformat” [transforma-se o que se confirmou], vencidos finalmente todos os obstáculos, fixa o retirante na vontade progressiva e absoluta de alcançar a perfeição, substituindo nele seu sentimento de pesar pela separação das coisas ilícitas e a sensação de fadiga devida ao esforço realizado em adquirir a virtude, pela santa alegria das almas que vivem em Deus.

Método claro e simples para tender à santidade

A grande característica dos Exercícios consiste em ser um método não apenas lógico, mas ainda psicológico; em outros termos, em querer não somente persuadir o homem de que deve evitar o mal, praticar o bem e adquirir a perfeição, mas em fazê-lo renunciar efetivamente ao mal, adquirir realmente a virtude, e tender com generosa lealdade à aquisição da perfeição.

Os Exercícios Espirituais não têm um caráter diretamente apologético, ou seja, em geral são úteis apenas às pessoas de fé. Assim, nota-se em Santo Inácio a preocupação de simplificar e auxiliar o mais possível o papel do entendimento, deixando que a vontade, nua e privada dos subterfúgios que normalmente uma razão tortuosa e sofística lhe oferece, fique exposta diretamente à ação saneadora do livre arbítrio e aos raios vivificadores da graça.

Por isto, os temas que Santo Inácio apresenta são claros, simples e indiscutíveis. Bastará que lhes dê alguns exemplos. Como vereis, neles não haverá lugar para sofismas, recuos ou meios termos. Ou o homem confessa a si próprio sua má vontade sem qualquer pretexto, ou resolve emendar sua vida.

I — Para persuadir-nos de que devemos subordinar nossa vida à doutrina e moral católicas: a) todas as coisas só valem na medida em que realizam seu fim; b) ora, o homem tem por fim supremo honrar, servir e dar glória a Deus; c) logo, o homem que não honra e serve a Deus neste mundo, nem O glorifica no outro por toda a eternidade, de nada vale.

II — Com o intuito de nos levar à rejeição de uma vida pecaminosa: para me salvar, o Homem-Deus suportou as dores inenarráveis da Crucifixão, e teria padecido todas elas só por mim, ainda que não houvesse nenhuma outra pessoa a redimir. E eu não farei este ou aquele sacrifício para me emendar?

III — A fim de nos incitar ao apostolado: a famosa meditação do reino. Se um rei me convidasse a ir lutar com ele contra os in­fiéis, e se submetesse a todas as fadigas e riscos que eu mesmo deveria arrostar, prometendo-me em troca toda sua amizade e todo seu afeto, que covardia a minha, se recusasse! Ora, Jesus Cristo, sendo Deus se fez Homem, padeceu e morreu para a salvação das almas, convida-me a batalhar com Ele pela salvação do próximo, tendo suportado para isto fadigas incomensuravelmente maiores, dores inefavelmente mais meritórias que as minhas! O prêmio que Ele me oferece não é a amizade precária de um rei, mas o amor de Deus. E eu recusarei?

Como se vê nestes três exemplos, a inteligência fica como que deslumbrada e paralisada na sua capacidade de engendrar subterfúgios. E a vontade fica frente a frente com a verdade. É a hora augusta entre mil, da vitória do livre arbítrio tonificado pela graça.

A característica das verdades que Santo Inácio aponta em seus Exercícios consiste em serem lúcidas, simples, breves. Em sua conceituação, não encontra a inteligência reta qualquer pretexto para divagações que lhe facilitem a evasão para a ordem meramente especulativa. E tais verdades, Santo Inácio as funda em argumentos tão claros, diretos e irrespondíveis que os ócios e as subtilezas da dialética ficam decididamente relegados para um segundo plano. Começa então esse formidável diálogo entre o homem e a verdade, que está na essência dos Exercícios Espirituais.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua em próximo artigo.)
Revista Dr Plinio 109 (Abril de 2007)

 

Extraído dos “Anais do IV centenário da Companhia de  Jesus, Ministério da Educação  e Saúde, Serviço de  Documentação, 1946, pp. 369-382.)