A Cruz permanece de pé

O obelisco encimado por uma cruz, colocado na Praça de São Pedro, nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

 

Na Criação existem seres de uma grande durabilidade que nos falam da eternidade de Deus, o único Ser absoluto, perfeito e eterno, em função do qual e para Quem tudo existe. Essas criaturas muito duráveis falam-nos do Criador pela sua imutabilidade e aparente ou relativa indestrutibilidade.

Símbolo da eternidade de Deus

Por sua natureza pétrea e sua integridade, o obelisco é um exemplo adequado das coisas duráveis, que nada destrói.

Nesse sentido, pareceu-me de muito bom gosto terem colocado no centro da Praça de São Pedro um obelisco encimado por uma cruz, que nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. Quer dizer, não há quem mude, quem derrube, quem abata a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela é sempre a mesma, contra ventos e tempestades.

Esse monumento monolítico enorme, com forma de agulha, encontrava-se originariamente no Egito, onde os faraós mandavam erigir grandes pedras com inscrições, contando fatos do reinado deles ou coisas do gênero, que eles queriam comunicar à posteridade.

O pagão que mandou esculpir aquele obelisco não imaginava estar esculpindo um símbolo da eternidade de um Deus que ele não conhecia, e da indestrutibilidade de uma Igreja que ainda não tinha nascido.

Uma “desobediência” heroica

Na época em que esse obelisco foi transladado ao seu atual lugar, no século XVI, não havia os meios mecânicos que temos hoje, e a suspensão era feita através de um sistema de cordas, complicadíssimo, amarrando a pedra de vários lados, de maneira a ser puxada ao mesmo tempo por várias forças.

Para não haver desordem e evitar acidentes existia uma ordem do Papa, que era o Rei de Roma naquele tempo, condenando à morte quem falasse. Era preciso que tudo fosse feito no maior silêncio, de maneira a só se ouvir, na imensidade da praça, a voz dos mestres e contramestres.

Os homens foram levantando a pedra e, em certo momento, um dos operários, o qual era um experiente marinheiro, percebeu que a corda segurada por ele estava tão quente, pela pressão exercida, que iria se incendiar. Se o fogo se ateasse, o obelisco cairia e mataria muitos dos circunstantes.

Esse homem, com o risco da própria vida, resolveu atrair sobre si a pena de morte, pedindo para trazerem água. Então ele gritou: “Acqua alle funi!”(1)

Trouxeram depressa água para o operário e, tendo ele apontado o lugar, este foi regado, salvando-se com isso a pirâmide de cordas, e o obelisco pôde ser erguido.

Terminado o trabalho, houve um decreto do Papa Sisto V recompensando com honrarias o Capitão Benedetto Bresca, contratado para a ereção daquele obelisco, pelo ato de heroísmo praticado: enfrentou a morte, desobedecendo à ordem papal. Evidentemente, aquela ordem deveria ser desobedecida, caso contrário seria a ruína da obra.

A obra onde está autenticamente a Cruz é inatingível

Com que olhos deve-se olhar para esse obelisco egípcio, no centro da Praça de São Pedro?

A meu ver, com aplauso, porque de si é uma coisa bonita. Em primeiro lugar, um monólito como aquele é uma obra-prima da natureza e do engenho humano. Mas também o símbolo que está posto ali é muito bonito.

O Egito foi a mais gloriosa das nações antigas. Colocar o obelisco no centro da praça, encimado por uma cruz simbolizando o triunfo da Igreja sobre toda a sabedoria pagã antiga, evidentemente é belo e bom, pois indica a perenidade da Esposa de Cristo no movediço de todas as circunstâncias humanas.

O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

É também a presença da verdadeira Cruz em uma obra que assegura a sua inatingibilidade. O cosmo inteiro pode abalar-se de todas as formas; onde, de modo autêntico, está a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora, ninguém e nada atingem.

 

Plini0 Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 1/9/1973 e 8/8/1979)

 

1) Do italiano: Água para as cordas!

 

Inigualável papel da cruz na vida humana

Festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada pela Igreja no dia 14 de setembro, sempre despertou em Dr. Plinio profundos sentimentos de adoração ao Santíssimo Redentor que, ao se deixar imolar no alto do madeiro, resgatou o gênero humano e nos legou para sempre seu consolador exemplo de perfeita aceitação do sofrimento.

 

Certa feita, assim se expandiu Dr. Plinio, ao considerar a sublime importância do holocausto de Nosso Senhor no alto da Cruz: “O Evangelho nos faz ver com a maior evidência quanto a misericórdia de nosso Divino Salvador se compadece de nossas dores da alma e do corpo. Basta atentar para os milagres assombrosos de sua onipotência, praticados tantas vezes para as mitigar.

Entretanto, não imaginemos que esse combate à dor tenha sido o maior benefício por Ele feito aos homens, nesta vida terrena. Não compreenderia a missão de Cristo ante os homens quem fechasse os olhos para o fato central de que Ele é nosso Redentor, e de que quis padecer dores crudelíssimas para nos remir. Até na culminância de sua Paixão, Nosso Senhor poderia ter feito cessar instantaneamente todas essas dores, por um mero ato de sua vontade divina. Desde o primeiro instante de sua Paixão até o último, Ele poderia ter ordenado que suas chagas se fechassem, seu sangue precioso deixasse de correr, os golpes por Ele recebidos deixassem de manter cicatrizes no seu corpo divino e, por fim, uma vitória brilhante e jubilosa cortasse o passo, bruscamente, à perseguição que O ia arrastando até a morte.

Porém, Ele não o quis. Pelo contrário, Ele quis deixar-se arrastar pela via dolorosa até o alto do Gólgota, quis ver sua Mãe Santíssima entregue ao auge da dor e, por fim, quis bradar, de maneira a que O ouvissem até o fim dos séculos, as palavras lancinantes: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46). Nesses fatos compreendemos que, dando-nos a graça de sermos chamados com Ele para padecermos cada qual um quinhão da sua Paixão, Ele tornava claro o papel inigualável da cruz na vida dos homens, na História do mundo e na sua glorificação. Não pensemos que, convidando-nos a padecer as dores da vida presente, Ele tenha querido dispensar-nos de pronunciar, cada qual, no transe da morte, o seu ‘consummatum est’ (cfr. Jo 19,30).

Sem a compreensão da cruz, sem o amor à cruz, sem ter passado cada qual por sua “via crucis”, não teremos cumprido a nosso respeito os desígnios da Providência. (…) Com tal amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo tudo conseguiremos, ainda que nos pese o fardo sagrado da pureza e de outras virtudes, os ataques e os escárnios incessantes dos inimigos da Fé, as traições dos falsos amigos.

O grande alicerce, o máximo alicerce da Civilização Cristã está em que todos os homens exercitem generosamente o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que a tanto nos ajude Maria, e teremos reconquistado para o Divino Filho d’Ela o Reino de Deus, hoje tão bruxuleante no coração dos homens.”

  • * *

Há 10 anos, precisamente no dia 1º de setembro de 1995, Dr. Plinio era internado no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. Ao longo daquele mês, esse insigne varão católico provaria o seu edificante amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, encetando com resignação — e inteira confiança na misericórdia da Santíssima Virgem — os derradeiros passos de sua própria “via crucis”.

Façamos nossa, a prece que Dr. Plinio costumava recitar diante de um Crucifixo:

“Nós vos adoramos, ó Cristo, e vos bendizemos, porque por vossa santa Cruz redimistes o mundo. Mãe Dolorosa, rogai por nós. Vós, que tivestes pena de vosso Filho no alto da Cruz, tende compaixão de cada um de nós, nos fundos vales de nossa existência cotidiana. Amém.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A Cruz, glorioso símbolo da vitória

As  festas litúrgicas, sabiamente instituídas pela Santa Igreja, nunca carecem de profundo significado e inestimável riqueza. Dessa forma, a doutrina católica explica que mais valem as cerimônias do que até mesmo os documentos pontifícios, alegando serem elas mais marcantes e benéficas às almas que nelas tomam parte.

Entre tais cerimônias, distingue-se a da Exaltação da Santa Cruz. A cruz, na qual morriam os condenados por graves delitos, era por esse motivo símbolo de ignomínia e repulsa por parte dos antigos, como bem expressou São Paulo em sua carta aos Coríntios: “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cf. Cor. 1,23). Foi esse o instrumento pelo qual o Redentor abriu ao gênero humano as portas do Céu, transformando-a em sinal de nossa Fé.

Vejamos o significado e a riqueza dessa festa, como explica Dr. Plinio a seguir:

“Hoje, 14 de setembro, comemora-se uma das mais bonitas festas como título e significado: a Exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Exaltar quer dizer tornar alto. E neste dia a Igreja proclama e lembra ao mundo que Ela levanta acima de todas as coisas, pondo na maior de todas as alturas possíveis, a Cruz de Nosso Senhor.

“A Cruz é o símbolo da Paixão de Cristo, de todo sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em união com o Redentor, as portas dos Céus.

“Colocar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo no ponto mais alto foi uma constante preocupação da Civilização Cristã. Antigamente, os edifícios mais elevados de uma cidade eram as igrejas, em cujas torres colocava-se a cruz; o mesmo se fazia no alto das coroas dos reis. Quando se queria elaborar um documento muito importante, em seu início se inscrevia a cruz. Enfim, em tudo aquilo que o homem concebia de mais elevado, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual trazia consigo a ideia de que a missão d’Ele, não se esgotando na Cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central; e entre todas as coisas que o Divino Salvador tinha feito, o mais admirável e adorável era ter sofrido e morrido na Cruz.

“A aceitação do sofrimento é uma imolação e representa um ato de fidelidade do homem à sua própria vocação, em função da qual ele enfrenta as lutas, os tormentos e as dificuldades.

“Nosso Senhor Jesus Cristo, para redimir o gênero humano, aceitou a morte. Manteve a luta no Horto das Oliveiras, depois caminhou até o alto do Calvário e foi crucificado, para realizar a sua missão. E a Cruz é a afirmação de que nós, católicos, aceitamos ser humilhados, odiados, combatidos, isolados, escarnecidos, perseguidos de todos os modos, não como um armazém de pancadas, mas caminhando de encontro ao sofrimento como um cruzado.

“A verdadeira alegria da vida não consiste em ter prazeres, mas sim na sensação de limpeza da alma que temos quando olhamos nossa cruz de frente, e dizemos “sim” para ela. Fazemos, assim, como Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual não apenas permitiu que o tormento caísse sobre Ele, mas caminhou em direção ao tormento. O Redentor previu, entregou-se porque quis e, com passo valoroso, levou sua Cruz até o alto do Calvário e ali se deixou crucificar.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/9/1964)

A exaltação da Santa Cruz

Em todos os episódios da Paixão, nota-se o desejo de humilhar Nosso Senhor. A Cruz, de modo especial, representa as humilhações que Ele sofreu. Ela é a primeira das humilhações que, até o fim do mundo, todos os católicos haverão de sofrer por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por esta razão, a Cruz foi tomada como sinal de honra de tudo quanto há de mais sagrado e de mais santo, pois a honra não consiste em não sermos humilhados, mas, isto sim, em receber a humilhação com ufania.

Ter presente a contínua exaltação da Cruz é a graça que devemos pedir na festa da Exaltação da Santa Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 14/9/1965)

Requinte e amor à Cruz

Por falta de amor à Cruz, as modas começaram a visar apenas o gozo da vida e foram perdendo a pompa e a majestade. Passaram do majestoso para o “raffiné”, do “raffiné” para o gracioso, do gracioso para o vulgar. A decadência da civilização se deu, no fundo, devido ao excesso de moleza que se projetou na arte, na literatura, na moda, na vida social.

 

Temos aqui um texto tirado da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, no qual São Luís Grignion, com uma linguagem inflamada, inculca mais especialmente a ideia das tribulações, por ver quanto o homem é tendente a fugir delas.

Deus nos visita por meio dos sofrimentos

[24] Não vos ufanais, caros amigos da Cruz, de serdes amigos de Deus ou de tal poderdes vos tornar? Resolvei, pois, beber o cálice que é preciso necessariamente beber para se tornar amigo de Deus. “Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt(1)”. O bem-amado Benjamin teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o frumento (cf. Gn 44, 1-12). O grande favorito de Jesus Cristo, [São João Evangelista], teve seu coração, subiu o Calvário e bebeu o cálice. “Potestis bibere calicem?(2)” É bom desejar a glória de Deus, mas desejá-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante: “Nescitis quid petatis(3)”.

“Per multas tribulationes oportet nos intrare in Regnum Dei” (At 14, 21): é preciso, “oportet”; é necessidade, é coisa indispensável, é preciso que entremos no Reino dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.

[25] Gloriai-vos com razão de ser filhos de Deus. Gloriai-vos, pois, das chicotadas que esse bom Pai vos deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia os seus filhos.

Como a ideia de um Deus que chicoteia seus filhos é destoante e pouco afeita à falsa piedade sentimental! Mas Ele chicoteia por meio das provações e das tribulações. Evidentemente temos que nos resignar a essa ideia de que são presentes dos melhores que Ele dá quando nos faz sofrer. Devemos permitir que Deus nos castigue, flagele, exatamente por ser o que convém aos homens.

Havia na linguagem portuguesa antiga uma expressão muito bonita que me lembro de ainda ter ouvido as beatas da Igreja do Coração de Jesus usarem. Então, uma velha conversando com outra diz: “Deus tem me visitado…” Eu era ainda menino e pensava: “Será que ela teve uma visão?” Mas a expressão ficou-me na memória e indica uma coisa muito bonita: cada dor que nos vem é uma visita de Deus. Ou então, Ele nos visitou por meio de alguém que nos fez sofrer. Esta é a visita de Deus; devemos recebê-la de boa vontade, abrir a porta para ela, amá-la, manter a nossa alma em alegria enquanto durar essa visita.

Essa ideia de que Deus visita alguém nós a encontramos no Antigo Testamento, quando das visitas que o Todo-Poderoso faz ao povo de Israel por meio de profetas. Mas há outra coisa que é essa visita de Deus pelo sofrimento. Então, a expressão me parece muito bonita.

Quem não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si

Se não sois do número de seus filhos bem-amados, sois – oh! que desgraça, que golpe fulminante! –, como o diz Santo Agostinho, do número dos réprobos. Aquele que não geme neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro como cidadão do Céu, diz o mesmo Santo Agostinho. Se Deus Pai não vos enviar, de tempos em tempos, algumas boas cruzes, é que já não Se preocupa convosco, está irado contra vós, olha-vos tão somente como a um estrangeiro fora de sua casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo que, não merecendo sua porção na herança de seu pai, não merece da parte d’Ele nem cuidados nem correção.

No Antigo Testamento acreditava-se que quando uma pessoa sofria era por ter cometido algum pecado. Portanto, sobre o sofredor recaía a suspeita de ser uma pessoa má. Pelo contrário, quem era feliz nesta Terra considerava-se como sendo bom, porque Deus estava premiando as boas ações que a pessoa tinha praticado.

Porém, aos poucos foi-se tornando mais explícita no Antigo Testamento a revelação de que havia uma vida eterna. Com isso, essa impostação foi-se modificando.

Já no Novo Testamento encontramos a ideia contrária: o homem sofredor é o amado por Deus, enquanto aquele que não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si.

Esse pensamento é muito importante, porque a maior parte das pessoas têm admiração por quem não sofre e um certo desprezo por quem padece. Essa é uma visão errada, pois quem é sofredor merece admiração, mas aquele que não sofre nada merece desconfiança, ou em breve Deus irá visitá-lo com o sofrimento.

Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria

[26] Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da Cruz é desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos. É, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em vão, em todas as academias da Antiguidade, um filósofo que o haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.

Isto é bem verdade. Nós encontramos alguma coisa histórica a respeito do sofrimento, mas é uma impostação diversa, uma espécie de faquirismo. Não é tomar a Cruz como Nosso Senhor Jesus Cristo a recebeu e, sobretudo, a graça para desejar a Cruz, pois sem a graça não se compreende isso. É uma coisa toda sobrenatural.

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre, e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente.

Este é um ponto fundamental para se entender essa sabedoria. Quem tem horror ao sofrimento, o espírito desmortificado, não é capaz de ter sabedoria. Pode participar de um curso sobre a sabedoria, fazer o que quiser, não adianta. Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria. Vou dizer mais: toda forma de aquisição intelectual ou de vitória moral, sem sofrimento, não tem valor nenhum. A única coisa que dá a isso algum valor é exatamente a Cruz.

Senhoras que transmitiam ao lar um perfume moral

É a Cruz a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa pedra filosofal que muda pela paciência os metais mais grosseiros em metais preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas em riquezas, as humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que melhor sabe levar a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B, é o mais sábio de todos.

Antigamente se encontrava um estilo de velha senhora sofredora. Às vezes, casada com um marido péssimo, colérico, que perdia a fortuna e o filho fazia coisas más. Muitas delas eram beatas de igreja, mas com estilo diferente das beatas sentimentais. Eram mulheres piedosas, que iam muito à igreja em dias de semana. Olhava-se para algumas delas e via-se que possuíam verdadeiramente uma resignação, uma dignidade de alma de chamar a atenção. Esse tipo de mulheres tinha sua respeitabilidade pelo fato de serem sofredoras. Assim, procurava-se bordar a mulher com a ideia de que ela deve sofrer, que habitualmente o casamento é um martírio, pois com frequência os maridos são ruins. Isso não é uma coisa normal, embora seja habitual. É justo que a mulher sofra com isso e ela deve aceitar esse sofrimento. A condição dela é, dentro de casa, levar todas as cruzes para dar ao lar a dignidade que a má conduta do marido não proporcione. Essa era a impostação de espírito existente em um bom número de senhoras, antigamente.

Então essas senhoras tinham uma dignidade de alma e uma elevação de vistas que excedia imensamente aos maridos. Eram elas que davam ao lar um perfume moral, um recolhimento, um recato, uma atração de que não se tem ideia mais hoje em dia. Mas é porque o espírito de sofrimento desapareceu. O pressuposto da ideia errada é justamente de que a mulher não deve mais sofrer, jogando de lado a Cruz de Jesus Cristo. Entretanto, o tipo feminino anterior a isso era, às vezes, de comover de tanta dignidade.

Alguém me contou o caso de uma senhora de minha geração que tinha um irmão sem-vergonha. Ambos eram solteiros. E ela aguentou o irmão a vida inteira, sendo ele, ao que parece, desse tipo de homens que chega bêbado em casa, derrubando objetos. De tanto beber, ele arruinou a família completamente e acabou morrendo. Pouco antes de falecer, o irmão chamou um criado muito fiel a ele e lhe disse: “Eu vou morrer. Logo após a minha morte, a primeira coisa que você deve fazer é ir à casa de minha irmã, ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe que mandei agradecer tudo o que ela fez por mim. E que eu até nem tenho palavras para agradecer tantos benefícios, e por isso mandei você ajoelhar para prestar esse ato de gratidão”.

A atitude desse homem, esta sim, dá uma certa esperança de que ele tenha se arrependido nos seus últimos instantes, e ainda tenha tido um último perdão antes de morrer. Terá sido, então,  a graça do perdão obtida por uma das tais mulheres a quem os maridos sem-vergonha, antes de morrer, pediam perdão, e os filhos, ao vê-la falecer, imploravam perdão também e levavam, chorando, o caixão dela para o cemitério.

O verdadeiro apóstolo é uma alma crucificada

Não há nada num ambiente que valha o tesouro da presença de uma alma resignada a sofrer. Esse gênero de pessoas dá bons conselhos. Pode até ser gente simples, sem experiência e, mesmo sendo a última da família, os outros a ela se dirigem na hora de uma crise moral para pedir um conselho. Almas assim são sempre, no fundo, as mais alegres do lar, e são elas que consolam as outras pessoas da família.

Já vi gente nadando em felicidade e dinheiro chorar junto desse tipo de pessoa, e pedir consolação. Esse é o fascínio, essa é a influência sem nome, a ação prestigiosa da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o tesouro das famílias. E porque acabou até isso, a família praticamente morreu.

Queira ou não queira, quando a alma aceita bem o sofrimento ela toma uma tal autoridade que se diria ser a pessoa crucificada um outro Crucificado. Quer dizer, diante da pessoa que aceita o sofrimento seriamente até o fim, os outros se alteram. Pode durar mais tempo ou menos, mas eleva a alma a uma grandeza que lhe dá uma força divina, e exerce uma influência sobre as almas que arrasta tudo.

Tome-se, por exemplo, um padre que seja verdadeiramente um penitente, um homem que carrega a cruz do sacerdócio de um modo sério. Pode ser o último padrezinho do interior, de batina já rota, esmolambada. Ele entra num ambiente, sente-se ser um sacerdote que aceita contente o papel de vítima. Podem rir dele e até matá-lo, ele dominou a situação. Na alma que tenha aceito a sua própria cruz há qualquer coisa de divino que nos leva a pensar o seguinte: o apostolado verdadeiramente vem do fato de que uma alma resolve e aceita sofrer. Aí se prepara o campo para os melhores discursos, as mais bonitas tiradas, as melhores coisas que sejam feitas. Mas é preciso que se trate de uma alma crucificada.

Isso nós precisamos sempre lembrar. No Reino de Maria, se não houver numerosas almas crucificadas, ele morre. Porque o prestígio da Igreja e a força da Civilização Cristã vêm das almas que sofrem.

O pobre que sofre alegremente e o doutor da Sorbonne

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre…

Escutai o grande São Paulo que, ao voltar do terceiro céu onde conheceu mistérios ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer pregar senão Jesus Cristo crucificado.

Regozijai-vos, pobre ignorante ou pobre mulher sem espírito e sem ciência: se souberdes sofrer alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne, que não soube sofrer tão bem quanto vós.

Podem imaginar o que era, naquela época, um professor da Sorbonne e qual o desafio que uma coisa dessas representava! Era a época em que os formados, já não digo os empossados no cargo, na maior parte das cidades onde havia universidade, eram montados num animal, acompanhados pelos parentes e toda a cidade em desfile. Vestidos de um traje de formatura, de alguém que está por cima, o doutor passeando no meio de todo mundo. E um membro da classe profissional era ainda muito mais. Chegar a dizer que o pobre ignorante é mais do que um doutor da Sorbonne…  Se os doutores da Sorbonne fossem levar a sério o que São Luís dizia, que injúria! É um desafio atirado ao espírito mundano.

[27] Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disso! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfume? A cabeça não tem um travesseiro para repousar, e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminhos? Seria uma monstruosidade inaudita.

Não, não, meus caros companheiros da Cruz, não vos enganeis, estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos, nem verdadeiros membros de Jesus crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ah, meu Deus! Quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são de coração seus inimigos. Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, Cruz – porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma coroa de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Isso deve ser visto como dito àquela gente de um século que levou o “raffinement(4)” o mais longe possível. E como merecido por eles por causa exatamente do sentido de gozo desse “raffinement”. Era um requinte que não vinha acompanhado de espírito de Cruz e, como resultado, causava horror à Cruz verdadeira. E que, por isso mesmo, dava em decadência. Cada vez mais, as modas iam sendo feitas apenas para o gozo da vida e perdendo a pompa e a majestade, passando do majestoso para o “raffiné, do raffiné” ao gracioso, do gracioso ao vulgar. Realmente, a decadência da civilização se deu, no fundo, devido a esse excesso de moleza dentro da arte, da literatura, da moda, da vida social.

Vemos, assim, em São Luís Maria Grignion de Montfort um homem que possivelmente não era um sociólogo, mas que percebia de longe coisas que homens de seu tempo não sabiam ver. Por quê? Não por ser ele muito inteligente, mas porque era um amigo da Cruz. A Cruz dá a possibilidade de ver as coisas que os outros não sabem ver.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1967)

 

1) Do latim: Beberam o cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus (da antífona de entrada na Solenidade de São Pedro e São Paulo).

2) Do latim: Podeis beber o cálice? (Mt 20, 22).

3) Do latim: Não sabeis o que estais pedindo (Mt 20, 22).

4) Do francês: requinte.

 

Transfiguração de Cristo

Poder-se-ia dizer que Nosso Senhor se valeu da capacidade do homem de recordar para estimulá-lo à fidelidade.

Pensemos, por exemplo, no maravilhoso episódio da Transfiguração: no alto do Monte Tabor, d’Ele se esparge uma irradiação das suas infinitas perfeições, e os apóstolos que presenciam tal cena não desejam outra coisa senão permanecer ali, contemplando aquela manifestação da divindade do Mestre.

Ora, quem sabe, no momento de cada um deles partir deste mundo, não lhes terá servido de coragem e firmeza as lembranças das fulgurações do Tabor?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/7/1984)

Teoria do Amor à Cruz

O mundano, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formado, admira quem é cheio de honras, dinheiro e conforto. O verdadeiro católico, dotado de sabedoria, desapegado de seus bens e que os utiliza por amor a Deus, possui uma dignidade, um decoro, uma distinção, uma compostura, que são o brilho da Cruz de Cristo.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort(1) apresenta o seguinte elemento para praticarmos perfeitamente o amor à Cruz:

“Renuncie a si mesmo!”

Longe dos Amigos da Cruz os orgulhosos e os sensuais!

Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! “Abneget semetipsum”, renuncie a si mesmo! Longe da Companhia dos Amigos da Cruz os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruído e colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a mim” do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (Lc 18, 2), que não podem suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebaixem sem exaltar-se!

Tende bem cuidado para não admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, que se queixam da mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e falta de mortificação.

Mudança completa de mentalidade

Há aqui umas pequenas observações a fazer. Em primeiro lugar, essa ideia claríssima, de Nosso Senhor:

“Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz!”

Essas são palavras já tão conhecidas e referidas, com tanta superficialidade e banalidade de espírito, por pregadores de segunda classe, que elas tomam aspecto de chavões. Ora, Nosso Senhor não poderia ter dito chavões. E não é possível que o Espírito Santo tenha inspirado chavões. De maneira que, chavões não podem ser. Existe uma pátina de trivialidade por cima dessas coisas, que não se pode confundir com a substância delas, porque do contrário seria admitir que Nosso Senhor diria banalidades, o que é o absurdo dos absurdos.

Como nós podemos atender esse conselho de Nosso Senhor?  Tal conselho de algum modo toca o preceito e até o âmago do preceito: “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo…”; e deve ser aniquilado e crucificado, de tal maneira que só se glorifique na pobreza, nas humilhações e nas dores.

Em primeiro lugar, isso supõe uma espécie de metanoia, uma mudança completa de mentalidade. Porque o homem, pelas forças, pelas tendências de sua natureza, admira o contrário dessas coisas. Ele tem admiração pelo sucesso, pela riqueza, pelas glórias, pelo bem-estar. E quando ele vê uma pessoa nos píncaros da fortuna e das honrarias, gozando do sumo bem-estar, é levado a querer admirá-la. Pelo contrário, quando um indivíduo não tem isto, ele tende a não admirá-lo.

Honras, dinheiro e conforto

É por causa disso que os amigos do mundo procuram cercar de glória, de dinheiro, de bem-estar os homens que eles querem prestigiar; e buscam evitar o acesso a essas coisas às pessoas cujo prestígio desejam evitar. Porque eles sabem que uma grande glória, uma grande fortuna, a ostentação de um bem-estar mais nítido, são tribunas do alto das quais um homem afirma a sua superioridade perante os outros, e se transforma num doutor deles; o que ele diz, os outros acreditam facilmente, ele se torna um símbolo e um guia para os outros. Quer dizer, ele representa a própria plenitude da humanidade. Doutor, símbolo e guia são as três formas pelas quais um homem pode arrastar a opinião pública atrás de si.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, isso é igualmente sabido”.

Eu afirmo: “É verdade, porém não é tão lembrado”. Além disso, é preciso dizer o seguinte: devo retificar em mim esse modo de pensar, e aí está o aspecto metanoia. Quer dizer, preciso agir internamente em mim mesmo, pedir a Nossa Senhora que me dê a graça de ser de tal maneira, que essas coisas não contribuam para que eu tome alguém como meu mestre ou doutor, meu símbolo e meu guia. Mas que eu seja capaz de compreender que isso não são credenciais para ninguém, debaixo de nenhum ponto de vista, e devo tomar outros critérios para julgar os homens.

Por exemplo, o mundanismo não é senão isso. Toda forma de mundanismo acaba tendo esses sintomas. A pessoa que é mundana, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formada, admira o homem cheio de honras, ou de dinheiro, ou de conforto.

Erva daninha em nosso espírito

Eu lhes garanto o seguinte: se fizermos um exame de consciência cuidadoso, corremos o risco — não digo uma certeza, mas um risco sério — de encontrar resquícios disso dentro de nós. Quer dizer, há pessoas que admiramos e exercem império, se não sobre a nossa razão, pelo menos sobre as nossas vivências, porque elas têm algum desses três títulos. E isso de tal maneira nos fascina, que não somos capazes de abalá-lo, de derrubá-lo. Mais ainda, quando desejamos nos credenciar à consideração dos outros, em vez de procurarmos brilhar pelo esplendor da Cruz, intentamos dar-lhes ideia, ou de que somos ricos, ou cercados de muitas honras, ou de que temos um bem-estar esplêndido.

De maneira que há uma verdadeira necessidade de meditarmos a respeito disso, para evitar o desenvolvimento de uma erva má, que a todo o momento está renascendo no espírito de todos nós, ou de quase todos nós; corta-se e renasce, corta-se e renasce.

Por exemplo, conversas mundanas, tratando sobre pessoas que têm qualquer evidência na classe à qual pertencemos. No fundo, tais conversas são sempre seguidas de um preito de admiração à pessoa de quem se fala, por causa desses títulos. Daí vem o efeito debilitante do mundanismo sobre nós. Porque, admirando essa gente, imediatamente em nosso espírito forma-se uma posição falsa a respeito de nós mesmos. Começamos a nos sentir pouca coisa, inibidos, a duvidar do alcance dos grandes lances que nós jogamos. Por quê? Porque não temos dinheiro, honras, em quantidade suficiente para deslumbrar os outros. Possuímos o suficiente para aparecer com dignidade, com decoro, se quiserem, mas para deslumbrar não. Temos o nosso bem-estar nessas proporções. E muitas formas de insegurança em nós resultam da pujança dessa erva daninha no nosso espírito.

Dignidade, desapego e amor de Deus

Se os que estão neste auditório dessem orientação espiritual, compreenderiam melhor o mal que pode fazer a uma alma, numa hora errada, a evocação de um mundano. Aquilo entra como uma picada de uma mosca venenosa e pode estragar um dia, exatamente por causa do mundanismo.

Alguém poderia dizer: “Dr. Plinio, o senhor está preconizando que nós não procuremos nos vestir bem, ter um decoro, uma compostura! E que sejamos uns trapos, ao contrário do que o senhor toda a vida ensinou! Porque se é para ostentar só a Cruz de Jesus Cristo, não se pode fazer brilhar as outras coisas que a pessoa tem”.

O princípio se transmuda da seguinte maneira: como faço brilhar a Cruz de Cristo em mim?

Há uma expressão fisionômica do verdadeiro católico que lhe dá compostura, dignidade e beleza. É um quê pessoal indefinido, o qual resulta da intimidade ou da compenetração da alma com os mais altos princípios da doutrina católica. As expressões mais elevadas do pensamento se tornam para ela como que naturais. A posse da virtude da sabedoria, incluindo em si todas as outras virtudes adequadas, adaptadas ao próprio temperamento; com aquele senso da dignidade sobrenatural do que a pessoa é de fato; com o desapego das coisas no que diz respeito à vaidade, e com aquele puro amor, desejando que essas coisas brilhem, porque são dons de Deus, e para que agradem ao Criador, mas desinteressado em que façam pôr em relevo a miserável pessoinha de cada um de nós; quando isso entra numa alma dá-lhe uma dignidade, uma honestidade, um decoro, uma distinção, uma compostura que é o brilho da Cruz de Cristo.

A Cruz de Cristo é o conjunto de sofrimentos necessários para adquirir a sabedoria. É o conjunto de renúncias, de asceses, de aplicações contínuas e, portanto, muitas vezes esses sofrimentos são sentidos nos pontos fundamentais, com os devidos equilíbrios, contrafortes, as devidas hierarquias; a alma pena para ter amor à Cruz de Cristo. E o esplendor da Cruz de Cristo é uma certa nota de desapego, que vem junto com todos esses dons, e é condição para que esses dons se tornem suscetíveis de serem amados por outros.

Quando uma pessoa tem uma superioridade qualquer, é difícil fazer com que os outros aceitem a própria inferioridade. Mas o modo pelo qual isso ainda é possível, com o auxílio da graça, consiste em fazer com que os outros notem o desapego. Mas se notam uma satisfação vibrante, apegada àqueles dons, e o olhar oblíquo para ver se outros estão admirando ou não, e uma efervescência se não for admirado, os outros notam o apego. Apego gera apego, e nada torna um inferior tão apegado quanto o apego do superior.

Prestígio verdadeiro e sacrossanto

Então, a posse de todas as qualidades de uma determinada alma — que a graça ou a natureza lhe concedeu —, consideradas pelo aspecto sapiencial, nas proporções sapienciais, com renúncia a qualquer coisa contrária e sendo a posse desapegada, isto dá à alma algo que é fator de prestígio verdadeiro e sacrossanto, incomparavelmente maior do que o prestígio de ter automóvel ou qualquer outra coisa.

Esse autêntico prestígio vale mais do que o da Ciência. Há um mundanismo dos homens livrescos e outro dos fúteis. E, no fundo, um é tão fútil quanto o outro; apenas o segundo é um mundanismo mais deslumbrado e ensebado.

Há uma espécie de honestidade, de dignidade, de grandeza de alma, em comparação com o qual tudo mais é resto.

Senso aristocrático e sabedoria

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor parece fazer uma exclusiva glorificação da virtude. A glória do homem é a virtude e nada mais. Ora, isso está em contradição com o hábito que o senhor tem de realçar muito os valores aristocráticos”.

Não é verdade. O que é aristocracia? O senso aristocrático é o aspecto da sabedoria pelo qual o homem sábio nota o que é mais excelente e o que é menos excelente. E dá às coisas com que ele trata um valor que está de acordo com as hierarquias delas. E, quanto a si mesmo, se mostra compenetrado do valor que lhe toca nessas hierarquias, tudo por amor de Deus. De maneira que nada pode produzir um senso aristocrático tão “raffiné”, tão requintado, quanto a verdadeira sabedoria.

O espírito hierárquico não é senão um amor sapiencial à desigualdade, que leva o homem a ter um amor próprio — não de quem está pensando em si mesmo —, mas um amor adequado ao seu próprio grau, tanto quanto ao grau dos outros. E a respeitar cada coisa, não porque é sua, mas por amor de Deus.

Vê-se em muitas pessoas que têm, por exemplo, qualquer grau aristocrático, se entra o amor de Deus ou o amor de si mesmo pelo meio, e a vivacidade com que se interessam pela instituição nobiliárquica, quando não diz respeito a elas.

Então o amor à Cruz não é em nenhuma hipótese o “débraillé”, o desarranjado, o esmolambado, nem o sentimental. Mas é qualquer coisa que prepondera sobre isto.

Segurança e insegurança

Quanto às seguranças e inseguranças, isso dá no seguinte: quem tem esse espírito condenado por São Luís Grignion de Montfort, ou que pelo menos possui “vegetações” subconscientes desse espírito, no conflito ou no contraste entre as duas formas de esplendor — a da Cruz e a do mundo —, chega a sentir-se inseguro. Quem ama verdadeiramente essa hierarquia de valores compreende a força dela e que essa insegurança não tem razão de ser. Pode-se ir para a frente, e aguentar o confronto com toda a firmeza, porque em si a superioridade da Cruz é simplesmente incomparável.

Se nós tivéssemos sempre a compenetração disso, como a nossa vida se tornaria mais fácil! E como todas as nossas atividades se tornariam mais compreensíveis! Por exemplo, um dos segredos de nosso apostolado, do nosso modo de nos apresentarmos em público, consiste em realçar isso. Aqui está a nossa grandeza.

Pôr em ordem a consciência

Alguém perguntaria: “Mas então o senhor considera que o dinheiro, o traje e outras coisas são inúteis para a apresentação?”

Eu não disse que essas coisas são inúteis. Afirmo que elas são de uma utilidade real, mas secundária, para serem assumidas por essa superioridade de espírito e representá-la. Elas existem para sublinhar o prestígio da virtude junto às pessoas com menos profundidade de vistas. Elas representam, em relação ao esplendor da Cruz, o papel do pedal do piano em relação à nota musical, aumentando sua sonoridade. E, como a força do mundo está continuamente procurando acalcar o pedal que diminui a sonoridade, é normal que se acalque o pedal oposto. Mas não é indispensável e nem o principal.

Que vantagem há em explicar isso? Os que se encontram nesta sala não apreenderam nada de novo pelo que eu disse. Mas se lembraram de alguns princípios úteis, tiveram ocasião de se embevecer e de amar mais uma vez a doutrina católica diante de uma reexposição de tudo quanto ela tem de bonito, e sobretudo puderam pôr em ordem a sua consciência, em face a alguns desses chavões, que sempre constituem umas pedrinhas nos sapatos da pessoa.

Aí está uma pequena teoria do amor à Cruz, num comentário muito livre desse texto de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 29/7/1967)

 

1) Carta-Circular aos Amigos da Cruz, n. 17.

 

Nobreza, distinção, boas maneiras: frutos do preciosíssimo Sangue de Cristo

A distinção católica, contrarrevolucionária, evidencia a superioridade do Ocidente sobre o Oriente, embora este seja tão mais rico em pedras preciosas, tecidos e outros ornamentos.

 

Folheando uma coleção de fotografias de pretendentes a tronos em diversas nações, constatei haver pelo meio uns marajás, um sultão do Afeganistão e outros personagens assim. Então, chamei a atenção dos circunstantes para a diferença entre a atitude, o porte e a posição dos monarcas ou dos pretendentes a trono ocidentais – descendentes, portanto, das antigas dinastias históricas do Ocidente –, e os do Oriente.

Um preconceito revolucionário: ter medo de parecer por demais maravilhoso

No Oriente as pedras preciosas são muito maiores, mais bonitas, de melhor quilate, o subsolo é muito mais rico desse gênero de esplendores. Também as pérolas que se pescam em alguns lugares do Oriente são de uma beleza incomparável. De maneira que eles podem constituir para si ornatos muito mais ricos do que os príncipes do Ocidente. Além disso, dispõem de tecelões que trabalham com tecidos a mão, e podem encomendar tecidos manufaturados de uma qualidade muito superior à dos industrializados, comuns no Ocidente. Por isso, sob o ponto de vista de indumentária, os dignatários orientais se apresentam muito melhor do que os do Ocidente. Tanto mais quanto eles têm uma certa fantasia e não são inibidos por preconceitos revolucionários, pela ideia de ter medo de parecer por demais maravilhosos.

Um ocidental tem receio de parecer por demais maravilhoso. Examinem, por exemplo, os uniformes oficiais dos diplomatas e dos militares de alto grau – generais, marechais, etc. – do século XIX e os do século XX. É uma degringolada medonha. No século XIX, havia aquele chapéu de dois bicos, com abas que se reuniam em cima, e dentro tinham “aigrettes” brancas; as roupas eram bordadas com alamares e outros adornos muito bonitos, com condecorações, uma coisa que tende ao lindo. Mas o homem de hoje tem vergonha de se apresentar nesses trajes porque o espírito da Revolução achatou todas as tendências para o belo.

Pelo contrário, no Oriente isso não era assim; havia uma classe que sonhava com o maravilhoso. Então, marajás, rajás, xás, sultões, etc., que aparecem com essas roupas lindas. Mas se analisamos os homens, vemos serem eles muito inferiores, como porte, maneiras, posturas, do que os do Ocidente. Por quê? Porque durante séculos, desde que a Igreja Católica penetrou no Ocidente, começou a germinar a Moral católica. E quando consideramos alguém que observa em todos os seus pormenores essa Moral católica, essa pessoa – se não ela, seu filho ou seu neto – acaba sendo de uma educação e de um porte perfeitos.

A Moral católica gera a educação, a distinção e a correção perfeitas

Para uma pessoa que pratica a Moral católica perfeitamente, é instintivo, mesmo não tendo recebido uma educação de salão, praticar, por exemplo, atos como o seguinte: está à mesa tomando refeição com um convidado que merece uma especial honra e atenção, serve o convidado antes de se servir a si própria. Ora, isso que é ensinado como uma regra de educação – “Você, na sua casa, seja o último a se servir; quando estiver na presença de mais velhos, faça com que eles se sirvam antes; diante de pessoas mais graduadas do que você, reconheça de boa vontade essa maior graduação, preste-lhes honras, faça com que se sirvam antes” – são aplicações de princípios de Moral a questões de bom procedimento.

Se numa primeira geração de católicos muito bons não houve tempo de modelar todos esses costumes de acordo com os princípios morais, ao cabo de algum tempo esses princípios filtram e nasce daí uma atitude, uma distinção, uma amabilidade, uma cortesia, que no fundo faz parte da Moral católica. A Moral perfeita deve gerar necessariamente a educação, a distinção e a correção perfeitas.

Às vezes até acontece que uma pessoa pratique a Moral perfeita, mas não tenha uma educação perfeita, porque não houve tempo de aquilo filtrar no ambiente onde ela foi educada, de forma a começar a prestar atenção nessas pequenas questões de boas maneiras e praticá-las. Questões que, evidentemente, em matéria de Moral, estão num plano secundário, não são a essência dela. Mas ao cabo de algum tempo aquilo filtra. Pode acontecer que uma pessoa, pelo contrário, não tenha boa Moral, mas possua uma educação perfeita. Porém ainda aí é um resto de Religião Católica. Ela, sem perceber, cumpre regras da Religião Católica porque percebe ser bonito na prática, na atitude concreta. Infelizmente ela com isso não tem intenção de dar glória a Deus, mas imita os que dão glória a Deus. Imitando-os, involuntariamente ela glorifica a Deus.

O Kaiser Guilherme II e a Sissi  

Em suas memórias, o Kaiser Guilherme II, último Imperador da Alemanha, faz uma descrição que me impressionou muito. Ele estava num jardim do palácio do avô dele, então Imperador da Alemanha. Como a Imperatriz tinha morrido, a mãe do futuro Guilherme II, esposada com o então Príncipe Herdeiro, estava fazendo as honras da casa para uma visitante muito ilustre, a Imperatriz da Áustria, princesa bávara casada com Francisco José, Imperador da Áustria. Esta, além de ser dotada de uma beleza famosa, tinha uma distinção de maneiras, uma linha, uma categoria extraordinárias! 

O Kaiser conta que ele estava no jardim do palácio, vendo sua mãe que, pouco adiante, de costas para ele, recebia a visita da Imperatriz da Áustria. Em certo momento, esta deu sinais de querer partir, e a mãe dele se voltou para trás à procura de alguém para carregar a cauda do vestido da nobre visitante. Não vendo ninguém além do filho, o futuro Imperador Guilherme II, ela disse: “Meu filho, venha portar a cauda do vestido de Sua Majestade, a Imperatriz da Áustria.”

Quando ele se aproximou, a Imperatriz Elisabeth – a famosa Sissi – estava apenas se levantando muito devagarzinho, com as maneiras e todo o protocolo da antiga corte. Guilherme II descreve a inesquecível impressão que ela causou sobre ele. Todo esse protocolo dava a ela uma elegância, uma distinção, realçava de tal modo sua beleza que ele ficou deslumbrado. Todas as regras seguidas por ela – a corte austríaca era muito conservadora –, de perto ou de longe, relacionavam-se com a formação católica, com o ideal de perfeição moral ensinado pela Religião Católica.

Deve-se fazer prevalecer as qualidades do espírito 

Isso se refletia em coisas insignificantes. Houve tempo em que era contrário às regras da boa educação encostar-se no espaldar das cadeiras, em determinadas circunstâncias. Era a imagem da ascese católica, levando a pessoa a dominar-se a si mesma.

Dou outro exemplo: há pessoas que têm o hábito de estalar os dedos. Na intimidade se compreende, mas não se faz isso diante de outros, porque chama demais a atenção para o corpo, quando todas as atitudes de porte, de linha e de distinção do homem devem lembrá-lo de que ele é principalmente alma, fazendo ver com isso o elemento mais nobre de seu ser, que é o elemento espiritual e não o físico.

Isso leva as coisas do Ocidente a serem assim: um engenheiro ou arquiteto católico, ao planejar a decoração externa e interna de um palácio para um rei também católico, que exercerá o poder catolicamente sobre um povo igualmente católico, o próprio “élan” de sua alma católica leva-o a ornamentar de maneira a fazer prevalecer as qualidades do espírito, os elementos que possuem categoria, finura, distinção, nos quais a alma humana aparece na sua excelência. Pelo contrário, o homem sem essa assistência da graça e essa inspiração da Fé não é capaz disso.

Então, vemos marajás, sultões e outros tipos assim refestelados, chupando indefinidamente aquele narguilé, porque não aprenderam da Religião Católica as boas maneiras. Isso se retrata evidentemente também nos prédios, no urbanismo; enfim, em mil coisas de mil modos isso se manifesta.

É o que faz a superioridade do Ocidente, o qual tem menos rubis, pérolas, esmeraldas, safiras, brilhantes; não possui rajás nem marajás, mas tem a distinção católica, contrarrevolucionária, que domina todo o resto.

O resplandecer da graça

Lembro-me de outro episódio ocorrido com a própria Sissi, Imperatriz da Áustria. Antigamente, os potentados do Oriente quase nunca vinham à Europa, porque eram viagens muito longas e sujeitas a risco. Mas quando se estabeleceram, com os meios de comunicação moderna, a possibilidade de viagens seguras e com relativo conforto, nos primeiros transatlânticos, nos primeiros trens do século XIX, os potentados orientais começaram a vir ao Ocidente, trazendo todo o luxo oriental.

Ao recebê-los, as cortes europeias seguiam todo o protocolo com que se acolhia um chefe de Estado estrangeiro. Portanto, cerimonial muito bonito, esplendoroso, rico. Os orientais, por sua vez, vinham com riquezas fabulosas e iam às festas com seus trajes peculiares.

Então, o Xá da Pérsia foi visitar as principais capitais da Europa, entre as quais Viena. A festa se desenvolvia e, em certo momento, chegou a Imperatriz da Áustria, a quem o potentado persa foi apresentado. Ele fez uns salamaleques à moda oriental e ela respondeu com distinção, com graça, um pouco sorrindo, como diante de um “conto de mil e uma noites”, de uma fábula.

Ele ficou deslumbrado com a beleza e a distinção da Imperatriz. Provavelmente ele, um homem, tinha joias muito mais bonitas do que ela, que era uma dama. Entretanto, ela era uma joia da Cristandade! Tudo isso são frutos da Civilização Cristã.

Na Civilização Cristã os homens, possuindo pela graça a virtude da Fé e as demais virtudes teologais e cardeais, acabam tendo toda essa grandeza pessoal que é o resplandecer da graça.

Mas quem nos obteve a graça? Foi Nosso Senhor Jesus Cristo no momento de morrer na Cruz, e já quando Ele começou a sentir tédio e pavor diante do que Lhe aconteceria durante a Paixão, naquela meditação sumamente majestosa e linda no Horto das Oliveiras. Quando a graça penetra nos homens, conquistada para nós pelo Sangue de Cristo, produz todo o resto.                v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1989)

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 231 (Junho de 2017)

Coração Sapiencial e Imaculado de Maria

A principal alegria de Nosso Senhor durante a vida terrena estava numa lâmpada acesa na casa de Nazaré: o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, cujo amor excedia o de todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Assemelhar-se ao Varão de Dores

Em mais uma exposição dedicada a comentar o opúsculo de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta a divina figura de Nosso Senhor Jesus Cristo como o “vir dolorum” — varão a cujas dores devemos estar associados, com veneração e gratidão profundas; a Ele nos unindo de modo crescente, ao aceitarmos os sofrimentos que a vida nos traz.

 

No intuito de afervorar seus discípulos no amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim prossegue São Luís Grignion de Montfort: 

“Numquid et vos vultis abire” (Jo 6, 67)?

Isto é: “quereis vós também retirar-vos?”. Foi a pergunta que Nosso Senhor dirigiu aos apóstolos, quando alguns começaram a abandoná-Lo após ouvi-Lo proclamar que sua carne era verdadeira comida, e seu sangue verdadeira bebida. Ou seja, quando Ele aludiu à Sagrada Eucaristia. Vários discípulos se escandalizaram e O deixaram. Ele, então, fez aos que ficaram essa pergunta, cheia de melancolia patética: “Vós também quereis ir?” Como quem dissesse: “Se quiserdes, ide também vós”.

É uma pergunta de transpassar a alma de qualquer ouvinte que tenha um mínimo de sentimento. Nosso Senhor foi abandonado estúpida e ingratamente. Nessa ocasião, São Pedro pronunciou aquela frase magnífica: “Aonde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavra de vida eterna?” (Jo 6, 68). Estava tudo dito, nada havia a acrescentar.

Riquezas, prazeres e honras: causas de abandono da Cruz

“Numquid et vos vultis abire?” (Jo 6, 67). Quereis vós também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos; “Antichristi multi?” (1 Jo 2, 12)

Por mundano devemos entender aquele que coloca as esperanças de sua felicidade apenas neste mundo e nesta vida, procurando tão-somente as coisas terrenas. Esse foge da Cruz de Nosso Senhor e, por isso, São Luís Grignion o compara ao Anticristo.

Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, desprezar a pobreza de minha Cruz, para correr após as riquezas?

 Conforme o pensamento do santo autor, o apego às riquezas do século, ou seja, do mundo, seria um primeiro fator que inclina o homem a se recusar a seguir o Divino Mestre nas vias do sofrimento.

Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres?

O segundo motivo para a mesma recusa é a busca desordenada dos prazeres.

Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar as honras?

Estão, portanto, indicados os três grandes atrativos do mundo: as riquezas, os prazeres e as honras.

Onde não está a Cruz, não está Nosso Senhor

Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam a minha Cruz…

Esse pensamento de São Luís Grignion nos leva a uma importante consideração. Com efeito, pessoas há que parecem ser muito devotas de Nosso Senhor, mas, na hora de aceitar o sofrimento, de provar seu amor à Cruz, não o fazem. Ora, diz o santo, no fundo tais pessoas odeiam o Redentor, pois rejeitam sua Cruz.

A frase é dura, mas verdadeira. Interpretando-a, poder-se-ia apontar como ridícula a afirmação que se ouve aqui e ali: “cada um pratica a religião a seu modo; uns amam Nosso Senhor com a Cruz; outros O amam sem ela”. Pelo que nos ensina São Luís, essa postura de alma é equivocada. Onde não entra a Cruz, não se acha o Redentor. E o requinte de amor a Ele é o amor à sua Cruz. Cumpre ter espírito de sacrifício, pois sem isto não existe autêntica adoração ao nosso Salvador.

Compreendemos assim quanto é adequada a expressão de que todo católico deve se assemelhar ao Redentor enquanto “vir dolorum, um varão de dores”. Parece-me que esse qualificativo descreve de modo magnífico o Divino Mestre ao longo de sua existência terrena: um varão repleto de dores, que sofre profunda e lucidamente, e faz do sofrer o seu viver. Donde o autêntico católico dever se conformar a esse augusto exemplo, e levar sua cruz como Nosso Senhor levou a d’Ele, varonilmente, peito aberto, sem olimpismo, mas sem fraquezas.

Peçamos à Santíssima Virgem que nos alcance a inestimável graça de amarmos assim a Cruz de seu Divino Filho.

Necessidade da graça para tomarmos a sério esses ensinamentos

“Muitos [são] amigos de minha mesa, e pouquíssimos de minha Cruz. A este apelo amoroso de Jesus elevemo-nos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos da concupiscência do mundo corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: ‘Si quis vult venire post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur me!’ (Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me)” (Mt 16, 24).

Vemos, assim, qual é o convite feito para os genuínos amigos da Cruz. Nosso Senhor Jesus Cristo fez tudo por nós. Seria inteiramente lógico que, por retribuição, nós O seguíssemos. Porém, a maldade do homem é tal que precisamos pedir uma graça particular para tomarmos a sério esses ensinamentos, os quais entretanto são de molde a comover as pedras; devemos implorar o dom da fé capaz de mover montanhas, e termos os olhos sempre voltados para a Cruz.

Pensemos: a morte de Cristo causou tanta perturbação no universo que o sol se toldou no firmamento, a terra tremeu e outros fenômenos do gênero se verificaram. Ora, se as próprias criaturas materiais como que se manifestaram diante da morte do Filho de Deus e Lhe preparam aquele funeral, como posso tomar conhecimento da Paixão e não me incomodar?

Pois a maldade do homem decaído pelo pecado original o levará a ser indiferente aos padecimentos de Cristo e à sua Cruz, caso ele não seja auxiliado pela graça. A inclinação para essa indiferença, qualquer um pode sentir dentro de si: ouvirá diversos sermões a respeito dos sofrimentos de Nosso Senhor, os mais lógicos e atraentes; porém, sem uma assistência da graça, daria no mesmo se lhe narrassem a Guerra de Troia. Quer dizer, não o abalaria nem o moveria a nenhuma boa disposição.

Daí adquirirem especial valor aquelas palavras singelas do cântico “Stabat Mater”, frutos da piedade popular, acessível e amável: Santa Mãe, fonte de amor, fazei-me sentir a intensidade de vossa dor, fazei-me chorar convosco. Quer dizer, depois de Nosso Senhor ter feito tudo por mim, preciso pedir a Maria Santíssima que me alcance graças para eu ter pena d’Ele, pois a Cruz, sem o socorro da graça, pode me parecer apenas um pedaço de madeira, e todo um ciclo de conferências sobre a beleza e riqueza do sofrimento não nos tocará a alma.

Oferecer com alegria nossos sofrimentos e renúncias

Ao concluir esses comentários, gostaria de frisar como é excelente nutrirmos em nós, de maneira constante, o desejo de um verdadeiro amor à Cruz, no seguinte sentido: se Nosso Senhor Jesus Cristo, se a Virgem Santíssima, minha Mãe e minha Senhora, pedirem-me alguma coisa, devo dá-la com alegria, sobretudo em se tratando de algo que me exija sacrifício, renúncia, sofrimento, de maneira que minha dor seja uma gota dentro do oceano das dores que Ambos padeceram por nós na Paixão. É por essa forma que melhor me unirei a Eles.

Uma vez mais: não deixemos de implorar a graça de termos esse abrasado amor à Cruz, de nos tornarmos ardentes amigos dela, não querendo coisa mais elevada e mais cobiçada do que a Cruz de nosso Salvador.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência em 8/7/1967)