O ápice da “história dos olhares”

Como terá sido a última troca de olhares entre Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima? Imaginemos o afeto, o mundo de amor e de respeito, a veneração, o entendimento de almas recíproco que nessa hora transpareceu.

Este foi o momento culminante da “história dos olhares”.

Caso alguém tenha podido contemplar esses dois olhares, seria uma vantagem ficar cego em seguida. Pois, o que ver depois disso?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1972)

Vós fostes, Senhor

“Vós fostes, Senhor, um modelo de paciência. Vossa paciência não consistiu, entretanto, em morrer esmagado debaixo da Cruz, quando Vo-la deram.

Conta uma piedosa revelação que, quando recebestes das mãos dos verdugos vossa Cruz, Vós a beijastes amorosamente, e, tomando-a sobre os ombros, com invencível energia a levastes até o alto do Gólgota. Dai-nos, Senhor, essa  capacidade …. de sofrer heroicamente, não apenas suportando o sofrimento, mas indo ao encontro dele, procurando-o e carregando-o, até o dia em que tenhamos a coroa da vitória eterna.”

Plinio Corrêa de Oliveira

A ordem natural e os Dez Mandamentos

Resumindo toda a ordem natural em apenas dez princípios sublimíssimos, no alto do Sinai, em meio aos raios e toques de trombetas angélicas, Deus entregou as tábuas da Lei a Moisés.

 

Muitas pessoas queixam-se: “Oh, vida dura! Oh, vida complicada! Oh, vida difícil!” Até certo ponto — e eu diria que em larga medida — elas têm razão, porque nossa existência transcorre num vale de lágrimas. Chora-se porque se sofre.

Mas é verdade também que a vida oferece suaves e doces compensações, desde que se saiba procurá-las onde realmente estão. Assim, aprende-se a ver nela determinados aspectos que compensam sua dureza, dando-lhe um sentido e um bem-estar interior que o homem moderno não conhece.

Pela bondade de Nossa Senhora, um dos lenitivos que encontrei ao longo de minha vida foi o Tratado de Direito Natural, de Taparelli d’Azeglio

O homem: ápice e rei da criação material

Lendo tal Tratado, encontrei explicação para algo que eu nunca conseguira explicitar adequadamente: a razão de ser dos Mandamentos.

Eles me pareciam resplandecentes, fulgurantes; mas, por que razão eles se me apresentavam tão belos? Eu percebia ser lindo proceder de acordo com a Lei estabelecida por Deus, mas isto não me satisfazia. Sendo tão bonitos, era impossível não possuírem um fundamento racional, cognoscível ao homem. Qual era sua razão mais profunda? Deus poderia ter estabelecido outros Mandamentos? Terá, então, Deus agido arbitrariamente, promulgando estes e não outros?

Ora, Deus criou o Céu e a Terra; os animais, os vegetais e os minerais; os anjos e os homens. A cada um destes seres Ele deu uma natureza própria, colocando-os em movimento em perfeita colaboração com a ordem do universo.

Os animais e os vegetais, por exemplo, são de tal maneira ordenados que uns e outros se desenvolvem sem trazer dano para outras espécies. Mesmo quando uma fera devora outra — algo que até parece uma agressão selvagem —, vê-se que isto está na ordem da natureza. É a boa ordenação posta por Deus em todas as coisas.

No ápice e na realeza da Criação material Deus colocou o homem. Adão tinha de tal maneira o conhecimento e o poder sobre a natureza que, quando foi criado, todos os animais desfilaram diante dele. Imaginemos a beleza desse desfile: os animais passam e recebem de Adão o nome mais adequado segundo a sua espécie. Deus o colocou como o seu lugar-tenente, seu representante na Terra.

Estando no ápice da Criação, Adão tinha obrigação de agir de acordo com a sua própria natureza, de modo que a ordenação estabelecida pelo Criador se verificasse nele com mais perfeição do que em todas as outras criaturas visíveis.

Assim, ele atuaria conforme a natureza de todos os seres e poria em funcionamento essa imensa perfeição que vem a ser a Criação. Pacífica, tranquila, facilmente ele governaria toda a Terra, como príncipe herdeiro de Deus.

Pecado, a violação da ordem natural

Porém, Adão violou a ordem natural de relações entre o Criador e ele, cometendo o que se chama pecado. Agiu em desacordo com sua natureza criada e, sobretudo, com a natureza de Deus. Conhecendo-O e tendo d’Ele recebido inúmeras provas de bondade, Adão, entretanto, pecou contra Deus!

O que é então o pecado? É um ato de revolta contra Deus, que o homem praticou violando a ordem por Ele instituída.

Examinando então os Dez Mandamentos, numa rápida inspeção de horizontes, percebemos o que eles têm de profundo: são conseqüência da ordem natural das coisas posta por Deus.

Os Dez Mandamentos

A Lei imposta por Deus é bela e ordenada. Ela compreende dois grupos de Mandamentos: os que dizem respeito ao relacionamento do homem com Deus e os que tratam das relações dos homens entre si. Três Mandamentos pertencem ao primeiro grupo, sete ao ­segundo.

Quanto ao primeiro grupo, analisando-o, facilmente conclui-se sua objetividade: sendo o Criador infinitamente superior aos homens, devemos amá-Lo sobre todas as coisas, não tomar o seu Santo Nome em vão e guardar os dias a Ele consagrados; estes são exatamente os três Mandamentos que se referem ao primeiro grupo.

Analisemos alguns dos Mandamentos de ambos os grupos.

Não tomar seu Santo Nome em vão

O que quer dizer “não tomar o seu Santo Nome em vão”?

Significa nunca pronunciar o Nome de Deus, a não ser havendo uma razão à altura. Então, nunca blasfemar — é o arquétipo de tomar o Nome de Deus erradamente — nem empregar seu Nome numa conversa sem que seja razoável, porque Ele é tão supremo e sagrado, que usá-Lo sem necessidade já significa faltar-Lhe com o respeito.

Este preceito também se refere de algum modo àqueles que têm uma particular relação com o Altíssimo e, por causa disso, também às coisas sagradas as quais não podemos mencionar em vão, nem fazer brincadeiras, gracejos, porque elas participam de certa forma da dignidade de ­Deus.

Antes de tudo, o mais suave e santo dos nomes, usado pelo Homem-Deus: o Santíssimo Nome de Jesus! E depois, o mais doce e acessível dos nomes utilizado pela mais sublime das meras criaturas: o dulcíssimo Nome de Maria. São nomes que não podem ser empregados em vão. É preciso haver uma razão para usá-Los com respeito porque, do contrário, peca-se.

E, por conexão, também os nomes de pessoas, de instituições que merecem o devido respeito. Entre nós é costume, sempre que se fala de uma pessoa eclesiástica, mencionar o título antes de indicar o nome: Padre, Cônego, Monsenhor, Dom, Cardeal. Porque o nome da pessoa, pela função sagrada por ela exercida, se tornou tão respeitável que não deve ser usado sem o respectivo título.

É mais ou menos como numa família bem constituída: quando os filhos falam do pai, da mãe, não dizem o fulano ou a fulana, mas papai ou mamãe. E, referindo-se a um tio ou uma tia, tio Fulano ou tia Fulana, pelo respeito especial que lhes devem.

Terceiro Mandamento: Guardar os dias de festa

Acho o terceiro Mandamento uma linda coisa, uma espécie de imposto que Deus cobra dos homens. O Criador quer que o homem Lhe consagre um dia por semana, ou seja, nesse dia, não cuide de ganhar dinheiro.

O que há de Sabedoria dentro disso é verdadeiramente extraordinário! Não cuidar de ganhar dinheiro e não pensar no dinheiro que vai obter no dia seguinte. Nosso Senhor Jesus Cristo diria mais tarde: “Olhai os lírios dos campos, que não tecem nem fiam, entretanto nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como eles!”(1)

Consideremos a bondade de Deus. Ele tira da vida limitada do homem um sétimo dia, mas precisamente isso Ele lhe dá sob a forma de repouso… É bem à maneira divina! No momento mesmo em que faz a pessoa dar-Lhe algo, Deus põe na mão dela algo muito maior do que aquilo por ela doado: é o descanso, a distensão, o dia do Senhor. Como que lhe dizendo: “Pare, reze, eleve o seu espírito.”

Quantas pessoas há que, no domingo, preocupam-se apenas em conservar sua saúde com a distensão própria deste dia!

Enquanto o Criador lhe cobra, o homem se vê inundado por um novo dom de Deus. Já imaginaram a tristeza de uma vida em que nunca houvesse domingos?

Estes são dias que vêm acompanhados de uma bênção, de qualquer coisa de festivo, fazendo com que já no sábado se comece a respirar uma atmosfera especial. E aos domingos de manhã, quando se acorda, tem-se uma impressão de certa clemência de Deus, de uma distensão: “Agora chegou a sua vez de descansar; pare, não tenha preocupações…” É a bondade de Deus pairando sobre cada ser, fazendo-lhe sentir que Ele é Pai. Quanta beleza há nisso!

 É conforme a ordem natural das coisas que Deus possa cobrar do homem esse dia. Está na ordem da bondade de Deus que Ele “pague” desse modo maravilhoso o que o homem dá.

Honrar pai e mãe!

Está na natureza das coisas o seguinte: nossa alma é criada diretamente por Deus e insuflada por Ele no corpo que nossos pais geraram. A ação principal é de Deus. Nossos pais, quando nos geraram, cumpriram a intenção que está na ordem natural, tendo um filho. E se eu não posso, de nenhum modo, ofender a Deus, que criou minha alma, por uma razão menor, mas quão verdadeira, não devo ofender os meus pais que geraram meu corpo.

Lembro-me de que um livro de piedade apresenta um exemplo muito bem calculado, de um artista que esculpisse uma figura em pedra; e no momento em que a estátua estivesse concluída, ela desse uma bofetada no escultor. Este se sentiria ultrajado. É natural, pois ele é a causa da estátua. Ora, o filho é muito mais feito pelos pais do que uma estátua por um escultor. Então, “honrarás pai e mãe”.

E o pátrio poder é um padrão de todos os poderes que há na Terra, os quais, quando bem compreendidos e bem exercidos, têm algo de paterno. Quem exerce o poder deve governar paternalmente o súdito, e este precisa obedecer filialmente. Razão pela qual se deve prestar toda a honra àqueles que estão constituídos em poder. Do contrário, se transgride o Mandamento: “honrarás pai e mãe”.

Honrar pai e mãe não significa apenas obedecer, mas prestar respeito. Merecem respeito também os que estão constituídos em dignidade: o superior de uma ordem religiosa, o chefe de um exército, o reitor de uma universidade, quem dirige qualquer espécie de organização. 

Não matarás!

Quinto Mandamento: Não matarás!

Quem não percebe que o homem não tem o direito de matar outro homem? Quem tira a vida de outro abusa de sua própria natureza e atenta contra a natureza do outro. Caim quando matou Abel, vendo-o morto, saiu correndo e por toda parte aonde ia, sentia o castigo de Deus pesar sobre ele. Por quê? Matou seu irmão, matou outro homem.

O homem não tem o direito de matar aquele que é semelhante a ele. Matando uma pessoa, o assassino presumiu ser o que ele não é. Além disso, cometeu outro mal: tirou a vida que está na natureza da vítima possuí-la. Se espancar um outro, o indivíduo comete um pecado que está nas encostas do “não matarás”.

Não pecar contra a castidade; não cobiçar a mulher do próximo!

Sexto e nono Mandamentos: Não pecar contra a castidade; não cobiçar a mulher do próximo.

O que é a castidade? Como se prova que ela não deve ser violada? O que isto tem a ver com a ordem natural das coisas?

A castidade tem dois graus: a matrimonial e a castidade perfeita.

A castidade matrimonial é a daqueles que contraem casamento, e desta maneira assumem o encargo de multiplicar a espécie humana e de educar os seus próprios filhos. Esta é a obrigação inerente ao casamento. A castidade perfeita é própria aos que não são casados.

Mas o fim de ter filhos traz consigo a obrigação de educá-los. Realmente a Providência dotou os pais de recursos incomparáveis para educar os seus próprios filhos. O senso psicológico das mães, por exemplo, é uma coisa extraordinária… A mãe mais analfabeta, devido a seu instinto materno, conhece regras de pedagogia que os técnicos de repartições não conhecem. Porém, a educação dos filhos somente é bem feita em conjunto, pelo pai e pela mãe. Aqueles precisam ser conduzidos pela doçura da mãe e pela severidade do pai.

 Para exercerem bem essa tarefa, eles não podem separar-se. Portanto, o casamento deve ser monogâmico e indissolúvel. 

Castidade perfeita até ao casamento, fidelidade conjugal são princípios contidos no “não pecarás contra a castidade”. E mais ainda no preceito especial “não cobiçarás a mulher do próximo”, que é o nono Mandamento.

O nono Mandamento, por sua vez, enfatiza um ponto: não se pode nem pensar em ter a mulher do próximo. Quer dizer, em assunto de pureza, como, aliás, em todas as matérias, não se deve nem cogitar em pecar. Quem pensa em pecar, já pecou!

Não furtarás; não cobiçaras as coisas alheias

O homem é dono de si mesmo. Sendo dono de si mesmo, ele é dono de sua capacidade de trabalho. Sendo dono de sua capacidade de trabalho, ele é dono do fruto de seu trabalho.

Se alguém, por exemplo, que se põe a vaguear por um sertão qualquer, encontra frutas pendentes de várias árvores que não pertencem a ninguém, colhe um bom número delas e faz para si uma matalotagem, ele se torna dono desta, pois é fruto de seu trabalho. Porque as frutas pendentes da árvore sem dono estão postas lá por Deus para que alguém delas se aproprie. Uma pessoa por ali passou, se apropriou e realizou trabalho, que é uma razão a mais, além dessa destinação primeira. Aquilo ficou dela porque é dona de si mesma. E ninguém tem o direito de tirar para si algo de que o outro se apropriou, pois seria um furto.

Recentemente eu estava lendo num livro de Elaine Sanceau(2) uma descrição muito divertida da chegada dos portugueses a uma ilha, onde havia índios. Para alegrar os nativos eles distribuíam gorros vermelhos. O que um índio fazia com um gorro vermelho, não compreendo… Enfim, havia outras coisas engraçadíssimas. Quando foram embora da ilha, eles colocaram uma Cruz enorme, e aos pés da Cruz as armas do rei de Portugal. Aquela terra não tinha dono, porque índio no estado selvagem tem uma capacidade de possuir limitada — o que se poderia provar numa outra longa demonstração. Chega uma nação civilizada, Portugal, e coloca ali uma Cruz: é de Jesus Cristo! E as armas de Portugal: é do rei de Portugal! É inteiramente normal. Este nosso país estava como um fruto pendente; passou por cá Pedro Álvares Cabral e o colheu… É verdade que colheu um fruto enorme… Viva Portugal!

Além de proibir o roubo, Deus ordena não cobiçarmos os bens alheios. 

Por exemplo, estando diante de uma loja onde se vende água-de-colônia, e vendo aproximar-se um homem que compra um frasco, quem fica com vontade excessiva de possuir este objeto, sem ter condições financeiras para tal, e o cobiça, peca contra o décimo mandamento. Mas se ele tiver dinheiro para comprar, não comete pecado.

Quando se procede mal, então, cobiçando os bens do próximo? Quando se vê alguém ter bens que não se pode adquirir, e fica-se com raiva do próximo porque ele os tem.

Oitavo mandamento

Não levantar falso testemunho! A razão desse preceito entra pelos olhos de tal maneira que não precisamos justificá-lo. Se uma pessoa se comunica com outra, é para dizer a verdade. A voz foi dada para dizer a verdade, e a mentira é contrária à ordem natural. Portanto, deturpa a finalidade da palavra quem mente: não se pode levantar falso testemunho.

***

Eis aí uma exposição abreviada sobre a relação entre a ordem natural e os Dez Mandamentos. Assim compreendemos o pensamento de Santo Agostinho: “Um Estado onde todas as pessoas observassem os Dez Mandamentos chegaria ao seu fastígio, porque a ordem da natureza feita à imagem de Deus, expressão de sua vontade, sua sabedoria, foi obedecida e tudo prospera.” v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1984)

Revista Dr Plinio 144 (Março de 2010)

 

 

1) Lc. 12,27

2) Elaine Sanceau. Historiadora de origem francesa, porém, nascida na Inglaterra. Em 1930 passou a residir em Portugal e lá escreveu inúmeras obras que narram as aventuras portuguesas em além-mar. (1896-1978)

Retidão: limpa como uma paisagem alpina!

Hoje, indo para uma das sedes de nosso Movimento, vi ao longe uma pessoa sentada num caminhão, a qual estava com uma roupa de uma cor tão pouco cuidada que fiquei espantado.

Na realidade, seu traje era um pano imundo. Não sei há quanto tempo a pessoa não o lavava; e ela parecia sentir-se, dentro daquela sujeira, perfeitamente bem. Veio-me então à cabeça o seguinte pensamento: “Se esse homem lavasse sua roupa, ela ainda seria aproveitável?” E imaginei o aguaceiro imundo que sairia dela. Depois pensei com os meus botões: “Se fosse lavada uma vez, ter-se-ia que passar para outra pia, porque a primeira deveria ser lavada só porque nela foi lavada aquela roupa. Mas, se, de tanto lavar, o traje acabasse ficando inteiramente limpo, eu me pergunto se aquela pessoa, vestindo-o, não sentiria um bem-estar diferente desse bem-estar de deboche, de sujeira e de desordem que ela está sentindo agora”. E cheguei à conclusão: sentiria.

Depois veio ao meu espírito esta ideia: “Assim é a alma que chegou a se lavar inteira, porque viu totalmente a sua sujeira e não se contentou enquanto não se lavou por completo”. A alma, quando se lava a si própria e tem a sua túnica limpa, sente um bem-estar que nenhuma outra forma de conforto dá. Por causa disso, se um homem nesta Terra quer a verdadeira felicidade, deve ir à busca da retidão. Porque não há nada comparável ao bem-estar interior que a retidão proporciona.

Portanto, se alguém quer levar uma vida agradável e depois ir para Céu, seja reto! Vai ser duro, mas magnífico, porque ele se sentirá mais ou menos como quem escalou montanhas vertiginosas e vê depois panoramas extraordinários. Embaixo pode haver até poeira levantada pelo vento, mas na altura em que ele está o pó não chega; tudo ali está limpo.

Ainda há pouco eu estava vendo uma paisagem alpina. Que limpeza! A alma de um santo seria dessa maneira. É esta felicidade que cada um deveria desejar para si.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Dar muito não basta, é preciso dar tudo!

Nosso Senhor Jesus Cristo não deu muito por nós, mas deu tudo, e de um modo inimaginável!

Depois de estendido na Cruz, Ele morreu. Dir-se-ia que estava completo o sacrifício.

Não! Ele quis que um resto de água com sangue que havia no seu Corpo ainda fosse derramado por nós.

Veio, então, o soldado Longinus com a lança e transpassou o Coração d’Ele. O Redentor quis, portanto, que o seu Coração, símbolo do amor d’Ele por nós, ainda fosse transpassado por uma lança, símbolo dos pecados dos homens.

Uma oração que eu recomendo muito a vocês rezarem é “Anima Christi”. Há nessa oração uma invocação muito bonita: “Aqua lateris Christi, lava me”. Água que jorrou do lado de Cristo, lava-me. Quer dizer, todos nós temos defeitos e pecados. Essa água que jorrou do lado sacratíssimo de Jesus, água misturada com sangue, derradeiro tributo dado por Ele para a salvação dos homens, que essa água seja capaz de vencer as nossas últimas infidelidades e nos desapegar dos últimos falsos tesouros a que nosso egoísmo se agarra.

Eu gosto muito dessa invocação: “Aqua lateris Christi, lava me”. Jesus Cristo, que com tanta propriedade é chamado o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, quando deu tudo, brotou de seu flanco sagrado uma água que limpa os homens!

Nosso Senhor Jesus Cristo deu tudo! E a Quem deu tudo por nós, ou damos tudo por Ele ou não valemos nada!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1986)

Paixão – O mais doloroso adeus

Quando Maria Santíssima levou o Menino Jesus ao Templo a fim de apresentá-lo ao Senhor, Simeão, dirigindo-se a Ela, profetizou que um gládio de dor Lhe transpassaria a alma.
Ao meditar na Paixão de Cristo, Dr. Plinio contempla o cumprimento deste prenúncio e a extrema angústia de Maria ao ver o padecimento de seu Divino Filho.

 

A Lei do Antigo Testamento estabelecia que, completados quarenta dias do nascimento de um filho primogênito, este deveria ser levado ao Templo a fim de ser resgatado; também a mãe da criança deveria ser purificada na mesma ocasião.

Apesar de ser Mãe do Homem-Deus e concebida sem o pecado original — portanto, isenta de tal obrigação —, Nossa Senhora, por respeito à Lei e à tradição, desejou apresentar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade no Templo de Jerusalém.

A apresentação do Menino Jesus no Templo

Lá se deu o episódio mais marcante da história do Templo: o próprio Deus encarnado visita aquele ambiente de oração e recolhimento. Naquele instante, os anjos, cheios de alegria, pervadiram o edifício sagrado.

Porém, Nossa Senhora ali entrou sem que ninguém notasse tão grande presença.

Simeão, o Profeta escolhido por Deus para esta ocasião, recebendo o Menino nos braços, louvou a Deus, dizendo: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos”.

Maria Santíssima ouvia as palavras daquele ancião que, profetizando o futuro do Menino, acrescentou: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”.

Também Ana, a Profetisa, cantara as glórias do Divino-Menino. Por inspiração, ambos souberam o que somente São José e a Virgem Maria sabiam: o Menino era o Filho de Deus.

Coração de Maria, transpassado por um gládio de dor!

Pois bem, passaram-se os anos e o cumprimento da profecia de Simeão se aproximava — “uma espada transpassará a tua alma”…

Chegou, enfim, o momento em que Ele — já homem maduro, aos trinta anos de idade — despediu-se de sua Mãe e partiu para pregar a bondade, maravilhar os homens, e… por eles ser crucificado! Era o doloroso adeus!

Pode-se imaginar o que foi esse adeus: Nossa Senhora, indo à porta da casa e fitando-O; com o olhar, Ela acompanha seu Filho afastar-Se pela estrada.

A partir daquele instante Ela permaneceu sozinha. Para consolá-La, os anjos cantavam. Mas, de que valiam essas canções em comparação com um olhar ou uma manifestação do carinho de Jesus por sua Mãe? Ouvir o eco de seus pés divinos sobre o pobre assoalho da casa santa enchia a alma de Maria de contentamento mais do que qualquer concerto angélico!

Quem haveria de remediar essa ausência?

A criatura zelando pelo Criador

Outro episódio doloroso ainda se daria: o encontro de Maria com Jesus no caminho do Calvário. Apesar de não ser narrado pelos Evangelistas, creio ser o mais pungente que houve na Terra! A vocação de ser a Mãe do Verbo encarnado, pedia de Nossa Senhora uma perfeita aceitação das dores e angústias como as que Ela sofreu nesse doloroso encontro.

Maria Santíssima recebeu do Padre Eterno a missão de conceber o Verbo de Deus — o que Ela realizou esplendidamente. Porém, a missão de concebê-Lo compreendia também a de gestá-Lo. E grande foi o cuidado que Ela dispensou a seu Divino Filho, para que tudo se realizasse de forma adequada, conveniente e santa.

Pode-se imaginar o gáudio de Maria Santíssima ao sentir em Si mesma o Filho de Deus que se movimentava ainda antes de nascer; a santa comunicação existente entre ambos realizava-se através das inúmeras orações e meditações feitas por Ela, incessantemente. Nosso Senhor estava no interior d’Ela assim como está em alguém que O recebe condignamente no Santíssimo Sacramento.

O período iniciado pela primeira reflexão de Nossa Senhora a respeito do Salvador, chegou a seu termo no momento em que Ele nasceu e, pela primeira vez, os olhares d’Eles se cruzaram. O rosto d’Ele era ainda pequeno, cheio de inocência, mas já com semblante de Rei e Mestre. Tal era a intensidade de sobrenatural que se irradiava ao seu redor, que à sua proximidade qualquer enfermo de corpo ou de alma poderia sanar-se imediatamente.

Quando Adão e Eva pecaram, comendo o fruto proibido, seus olhos se abriram e Deus teve de confeccionar para eles os primeiros trajes. Entretanto, quando o Menino Jesus nasceu, Maria Santíssima vestiu o Criador: agora, era a criatura humana quem vestia o próprio Deus!

Por que me abandonaste?

Após o nascimento do Menino-Deus, Nossa Senhora tinha como missão educá-Lo e formá-Lo até que Ele chegasse à maturidade. Mas isto não bastava: quando Jesus atingiu a idade perfeita, Ela teve de acompanhá-Lo ao Calvário para, aos pés da Cruz, receber o último olhar d’Ele.

Ao cabo dos trinta e três anos de maravilhamento de Maria por seu Divino Filho, e de adoração cada vez mais ardorosa e incessante, tudo desfechou na paixão e morte d’Ele.

No momento em que Nosso Senhor rendeu seu espírito ao Padre Eterno, dizendo “meus Deus, meus Deus, por que me abandonaste?”, Maria, estando presente, certamente O ouviu. Qual não terá sido a repercussão desse sofrimento no coração de uma mãe? Sobretudo, d’Aquela Mãe para com Aquele Filho. Momentos depois, Ele inclinou a cabeça e rendeu seu espírito.

Nossa Senhora viu o Corpo de seu Filho repleto de feridas, já não mais trajando aquela túnica inocentíssima — que se diria feita de raios de luz — que Ela mesma confeccionara. Imaginemos a dor da Mãe contemplando o Filho que sofria tão grande despojamento!

Enquanto José de Arimateia e Nicodemos preparavam os bálsamos para cobrir as feridas do Divino Mestre, Maria Santíssima O sustentava em seus braços virginais.

Paz em meio à amargura

Ela viu a realização do desejo de Jesus de entregar a última gota de seu Sangue pela humanidade, quando a lança de Longinos penetrou o lado do Salvador. Nossa Senhora contemplou aquele flanco ferido e, certamente, rezou: “Coração de Jesus perfurado pela lança, tende piedade e nós!”

Como era costume entre os judeus, envolveram o Corpo Sagrado de Jesus num sudário. Finda a preparação do cadáver, aquele divino Corpo foi depositado na sepultura. Rolaram a lápide que fechava a sepultura; tudo estava acabado, a morte reinava!

Após esses momentos de extrema dor, Nossa Senhora voltou para casa acompanhada por seu novo filho, o Apóstolo virgem. As santas mulheres que A seguiam não se continham em prantos, e Ela, ao invés de ser consolada, precisava consolá-las.

Imagino que, acompanhados por Nossa Senhora, os Apóstolos e discípulos dirigiram-se para o cenáculo. Lá rezavam e choravam. Maria Santíssima deve ter permanecido em silêncio, pacífica e serenamente lembrando-se dos fatos ocorridos. Assim se cumpriam as palavras proféticas do livro de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amaríssima — Eis na paz a minha amargura enormemente amarga”.

Comparados com o tamanho da amargura de Maria, os oceanos são pequenos, o suficiente para caberem na concha de uma mão!

Para que se faça a vossa Vontade

Em meio a tantas dores pelas quais Ela passava, havia uma consolação: Quem obteve a redenção para o gênero humano senão o Filho que Ela concebeu? Ele — o Redentor e fonte de toda Graça — caso não tivesse morrido na Cruz, não redimiria a pobre humanidade pecadora.

Essa torrente de Graças que jorra sobre a humanidade abriu-se para os homens a partir do momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!”; e abundou sobre o mundo quando Maria deu seu consentimento a fim de que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Revista Dr Plinio (Março de 2010)

 

Nós também

Em nosso último artigo, mostramos que as meditações que tão freqüentemente se fazem a respeito da ingratidão, da covardia e da cegueira dos Apóstolos, durante a Paixão, não devem ter, para  nós, interesse meramente especulativo. Também nós temos, para com Nosso Senhor, ingratidões, covardias e cegueiras muito parecidas com as dos Apóstolos, e seria ridículo pensar apenas nos  defeitos deles, sem tomarmos também em consideração a “trave que está em nosso próprio olho”. Ninguém se santifica pela meditação sobre as virtudes ou defeitos alheios, se não o fizer de modo   a acrescer suas próprias virtudes, ou combater seus próprios defeitos.

Assim, pois, olhos postos na Paixão de Nosso Senhor, não devemos por isto nos esquecer de nós mesmos, pois que Nosso Senhor nos pede, não tanto que choremos com Nossa Senhora os  padecimentos do Cordeiro de Deus, mas que cuidemos de não transformar nossa própria alma em uma segunda edição dos que O imolaram. Essa reflexão, absolutamente verdadeira no que diz respeito às suaves tristezas da Semana Santa, também se aplica, ponto por ponto, às austeras alegrias da Ressurreição.

Tanta gente se admira e se indigna com a perturbação cheia de abatimento, e a vacilação de espírito manifestada depois da morte de Nosso Senhor, pelos Apóstolos, a propósito da Ressurreição. O  Redentor tinha predito de modo positivo que ressurgiria dos mortos.

Entretanto, tendo Ele expirado na cruz, os Apóstolos se deixaram dominar por um abatimento que fazia transparecer claramente toda a vacilação que lhes ia na alma. E São Tomé quis tocar com os dedos o Salvador, para crer na objetividade da Ressurreição.

Ora, a realidade é que também nós estamos sujeitos à mesma fraqueza e não raramente ela vence em nós, contando com nosso próprio consentimento. Certamente, todos nós cremos, graças a  Deus, com toda a firmeza e sem a menor vacilação, na objetividade da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas há uma outra verdade, que sem dúvida admitimos, mas que admitimos às  vezes com tanto temor, que lhe damos um  sentido quase puramente especulativo e tão restrito, que nos tornamos perfeitamente merecedores da censura do Espírito Santo: “Estão diminuídas as  verdades entre os filhos dos homens”. Não se trata de uma verdade posta em dúvida, mas sobre a qual temos, em nosso espírito, uma noção diminuída. Entretanto, quantos e quantos erros daí  decorrem!

Essa verdade que Nosso Senhor afirmou de modo insofismável, e a respeito da qual sua palavra não é menos infalível do que quando predisse sua ressurreição, é a fecundidade sobrenatural da  Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que permanecerá de pé, sobranceira em relação às investidas de todos os seus inimigos, até a consumação dos séculos, sempre capaz de atrair pela graça   os homens de boa vontade.

Todos os católicos, evidentemente, estão obrigados a crer nessa verdade. A Igreja jamais perderá esse dom de atrair as almas. Negá-lo implica em negar que Jesus Cristo é Deus, ou que os  Evangelhos são livros inspirados. Negá-lo é, pois, negar a própria Religião. Mas essa verdade, que todos aceitam, todos a possuem em igual extensão? Todos vêem com igual clareza? Todos tiram dela as mesmas conclusões?

Nos dias torvos que atravessamos, quando vemos a heresia se dilatar por toda a Europa, e ameaçar o mundo inteiro, quanta gente há que julga a Igreja tão ameaçada, que se sente inclinada a  concessões doutrinárias perante os atuais dominadores do mundo? Hoje em dia, a paganização geral dos costumes penetrou em todas as esferas da sociedade, e cavou um abismo que se vai tornando cada vez mais profundo, entre o espírito da Igreja e o espírito da época. À vista disto, quanta gente aconselha concessões morais capazes de a reconciliar com esta sociedade sem cujo  apoio se receia, no mundo, que ela venha a sofrer um colapso que, se não fosse a morte, seria ao menos um prolongado desmaio? À vista da formação de correntes pseudo-científicas cada vez mais  contrárias aos ensinamentos infalíveis da Igreja, quanta gente desejaria que a Igreja, se não alterasse as verdades já definidas, ao menos não explicitasse sua doutrina em pontos ainda controversíveis, em que qualquer definição por parte do Catolicismo poderia tornar as divergências com a nossa época ainda maiores?

Evidentemente, todos estes erros procedem de um temor mais ou menos inconsciente quanto à fecundidade da Igreja.

De fato, o que é a doutrina católica? É um conjunto de verdades. Desde que, nesse conjunto, uma só verdade fosse adulterada, a doutrina católica já não seria ela mesma. Assim, tentar acomodá-la, adaptá-la, ajeitá-la, é trabalhar para que ela perca sua identidade consigo mesma: em outros termos, é tentar matá-la. E achar que o apostolado não é possível sem essa adaptação é achar que a  Igreja só pode vencer morrendo!

Evidentemente, essa vacilação, em um verdadeiro católico, não se pode referir a certas verdades já irretorquivelmente definidas pela Igreja. Mas há um sem número de aplicações práticas de  princípios, ou de deduções doutrinárias a respeito de princípios já definidos, em que essa fraqueza se manifesta. Em lugar de se procurar, na utilização doutrinária ou prática dos princípios, a  verdade, toda a verdade, e só a verdade, as reflexões feitas a este respeito se deixam imbuir mais ou menos pela preocupação de condescender com os erros do século. E, assim, em vez de procurar  tirar do tesouro das verdades católicas todos os frutos de ordem intelectual e moral que contêm, procura-se saber mais o que pode ser rotulado como discutível, e portanto como matéria livre, do  que o que pode ser rotulado como verdadeiro, e portanto como matéria certa.

Em outros termos, a mania invariável de condescender leva muita gente a procurar dilatar os espaços intelectuais reservados à dúvida. Em presença de uma afirmação deduzida da doutrina  católica, a pergunta deveria ser esta: posso incorporar mais esta riqueza ao patrimônio de minhas convicções? Mas, em geral é esta outra: que razões posso descobrir, para duvidar também disto?

Pio XI, recebendo em audiência o Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo de Cuiabá, lhe deu como palavra de ordem para os jornalistas católicos do Brasil: “Dilatate spatia veritatis”. [Dilatai os espaços da  verdade.] Muita gente gosta de fazer o contrário: em lugar de se esforçar por descobrir novas verdades doutrinárias deduzidas das já conhecidas, ou de estender o mais possível a aplicação dessas  verdades na prática, todo seu esforço vai em negar o mais possível qualquer coisa de positivo que se faça neste caminho. Em suma, isto é exatamente o oposto do verdadeiro espírito construtivo, é  dilatar espaços, não da verdade, mas da dúvida.

Se a Revelação é um tesouro, e a difusão do Evangelho um bem, quanto mais esse tesouro se espalha e esse bem se distribui, tanto mais contentes devemos ficar. Muita gente, entretanto, acha que  é o contrário.

Quanto mais se ocultam os desdobramentos lógicos da Revelação e se encurtam as conseqüências do que está no Evangelho, tanto mais caridoso se é! Como Deus teria sido caridoso, se tivesse   imposto uma moral menos severa! Por que não previu Ele que no século XX, essa moral seria um trambolho indifusível? Corrijamos a obra de Deus: encurtemos o que na sua obra está por demais  longo, empanemos a luz do que brilha demais, e assim teremos beneficiado largamente a humanidade. Quanta gente, na prática, raciocina assim!

Ora, proceder assim não reflete o receio de que a Igreja já não conte com o apoio de Deus, e, se não se baratear, já não possa arrastar as turbas? E essa dúvida  sobre o auxílio sobrenatural que  Deus dá à Igreja, não se parece muito com a dúvida que, antes da Ressurreição, se sentiu a respeito deste fato? Reflitamos nisto. E peçamos a Nosso Senhor que, fazendo ressuscitar em nós os  tesouros das graças que rejeitamos, voltemos novamente àquela ortodoxia virginal da Fé, e àquela perfeição de vida, que talvez o pecado, por nossa máxima culpa, nos tenha roubado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado no “Legionário”, nº 448, 13/4/1941)

MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTES?

Causa-me assombro como essa fisionomia expressa uma forma de sofrimento de Nosso Senhor que não me lembro de ter visto representado, de modo tão preciso e extremo, em nenhum outro crucifixo.

Olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço dão a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal estar.

Um mal-estar terrível, pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no alto da Cruz. Dir-se-ia que, nessa posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estava distante de dar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Tudo n’Ele está  prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima.

Sofrimento indizível, cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades  aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.

 

Comentários de Dr. Plinio sobre o milagroso crucifixo que se encontra no altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rey, MG (foto acima).

 

O ímpio entregou Jesus

Ao lermos a letra do belo responsório “Jesum tradidit”, devemos fazê-lo em espírito de oração, pensando não apenas na traição de Judas e na tibieza de Pedro, mas na imensa prevaricação que hoje assistimos. E pedir a Maria Santíssima forças para não pactuarmos com a Revolução, a fim de sermos inteiramente fiéis a Nosso Senhor.

 

Comentarei a música “Jesum tradidit”, de Victoria(1), cujo texto em latim é o seguinte:
“Jesum tradidit impius summis principibus sacerdotum et senioribus populi. Petrus autem sequebatur eum a longe, ut videret finem. Adduxerunt autem eum ad Caipham principem sacerdotum, ubi scribæ et pharisæi convenerant”.

Judas causa horror à própria impiedade

Em Português isto quer dizer:
“O ímpio entregou Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo. E Pedro O seguia de longe para ver o fim. Conduziram-No a Caifás, príncipe dos sacerdotes, onde os escribas e fariseus se haviam congregado.”

Está cantada aqui a traição de que Nosso Senhor Jesus Cristo foi objeto da parte de um homem que, merecidamente, é qualificado apenas com esta palavra: “o ímpio”; quer dizer, o ímpio por excelência, em todas as formas, graus e modos possíveis de impiedade. Em todas as abominações de impiedade já perpetradas não se chegou até a impiedade de Judas. Este é o ímpio, de tal maneira que os ímpios estão para ele como os pios estão para os ímpios. Ele causa horror à própria impiedade. Este é Judas.

Para compreendermos esta música, é muito bonito considerar o que o canto gregoriano ou o polifônico visam. Eles têm por objetivo exprimir uma meditação do fiel e da Igreja a respeito do sentido do texto cantado; quer dizer, esta música é profundamente meditada, vivida, sentida.

Um princípio que está subjacente a isto é o seguinte: quando um homem narra algo, no seu timbre de voz ele de algum modo musica aquilo que conta. Quer dizer, comunica uma modulação, uma inflexão de acordo com o que ele sente a respeito daquilo que está narrando e, portanto, faz acompanhar a narração de uma certa musicalização.

Contra Aquele que é perfeito foi feita a pior infâmia

E este tipo de música visa exatamente isto: por meio das inflexões da voz, fazer sentir o que a Igreja pensa a respeito daquela infâmia, o horror que ela tem daquela miséria, e sua adoração transida de veneração e de ternura a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Sacrossanto por excelência, Divino, inefavelmente perfeito, que é objeto daquele crime nefando. Eis o contraste.

Assim, alguém procura modelar de tal maneira sua voz que narra cantando, em vez de narrar falando, tudo quanto sentiu a respeito de cada palavra. Então, cada tom da música é uma manifestação de uma atitude de alma perante o sentido contido naquela palavra. É por esta forma que é bonito acompanhar o canto gregoriano e, sobretudo, o polifônico, que é muito mais modulado.

Neste responsório, cada palavra tem o seu sentido. Em primeiro lugar, fala do ímpio; é um ímpio horroroso. Mas em latim assim se inicia: “Jesum tradidit impius”, que poderia ser traduzido por “a Jesus o ímpio traiu”. Nesse “a Jesus” o autor põe uma inflexão como quem exclama: “A quem? Coisa incrível: Jesus!” Então o objeto da traição foi Jesus! O que fez esse ímpio? Ele traiu. Ou seja, contra Aquele que é perfeito foi feita a ação infame por excelência, porque a traição é a substância da infâmia.

Quem fez isso? O ímpio. De que maneira? Entregando Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo, isto é, aos seus piores inimigos.

A atitude de Pedro…

Ao Santíssimo foi feita a pior das coisas pelo pior dos homens, entregando-O aos seus piores inimigos. É uma ação que consterna e, por causa disso, a música tem uma espécie de consternação em que não se nota tanto o ódio a Judas, quanto uma espécie de ternura por aquilo que Jesus sofreu. Ele, nosso Senhor e nosso Deus, teve de passar por isso! Então, é cantado com ternura.

Depois continua e é outro horror: o príncipe dos seus discípulos, o príncipe do novo sacerdócio o que estava fazendo? Acompanhava-O de longe, medroso, incapaz de ter a resolução verdadeira de se associar ao Mestre.

O cântico diz: “E Pedro O seguia de longe, para ver o fim”. Nota-se que nem era um movimento de pura adoração. Tinha algo de amor, embora o amor do poltrão, mas com grande curiosidade para ver no que iam dar as coisas.

Nossa Senhora e as santas mulheres seguiram a Nosso Senhor para ver no que daria? Muito mais do que isso, foi para estar ao lado d’Ele, sofrer com Ele, participar do opróbrio que Ele teve.

Eis, portanto, outra aflição para Nosso Senhor. Enquanto Ele era traído por um apóstolo, o Príncipe dos Apóstolos tomava essa atitude… Era a desintegração da obra d’Ele. Vejam quanta razão para consternação e para o tom tão triste dessa melodia.

Jesus foi tratado como celerado pelos celerados

A letra continua: “Conduziram-No a Caifás, príncipe dos sacerdotes, onde os escribas e os fariseus se haviam congregado”.

Jesus teve que passar por esta humilhação horrorosa: comparecer como réu perante seus piores e mais vigorosos adversários, e aí ouvir desaforos, receber maus tratos, como um celerado. Ele, que era a própria Perfeição, foi tratado como um celerado pelos celerados. E o pior: celerados revestidos do poder sagrado, pois o poder da Sinagoga vinha do próprio Deus que Se deixava julgar pela Sinagoga.

A seguir, como que impressionado pela mais triste das ideias, o cântico volta à afirmação: “E Pedro O seguia de longe para ver o fim.” Como a dizer: “Veja só… Pedro, hein!” Depois de falar da Sinagoga, da traição, do ímpio, a única dor que se repete é esta: “Pedro O seguia de longe para ver o fim…” E com isso termina a canção enternecida.

É muito bonito acompanhar o texto latino e ouvir o tom, a inflexão de voz com que é cantado, para compreender o modo pelo qual cada frase e, às vezes, cada palavra musicada exprime uma dor, um pensamento anexo ou conexo com o fato narrado.

Isso corresponde a um verdadeiro reviver das disposições que deveríamos ter. Minha alma revive tudo isso? Tenho em mim todas as dores que gemem neste canto? Todas as tristezas que pranteiam nesta música, eu as revivo em cada palavra?

Que Nossa Senhora aceite a minha dor, que Ela a apresente a Nosso Senhor — purificada por Ela, sem cujo intermédio nada é digno de ser apresentado a Ele — como uma expressão da minha tristeza, pelo que se passou naquele tempo.

Devemos, pois, ler isso como quem lê um fato análogo a um acontecimento contemporâneo, pensar nessa imensa prevaricação que assistimos, para que não sejamos como um “Pedro” qualquer, que de longe anda para ver no que dá, mas sejamos como um apóstolo fiel junto a Nossa Senhora aos pés da Cruz, chorando, participando de toda a tormenta, a fim de que sobre nós caia o Sangue redentor que de fato salva os inocentes, salva aqueles que não pactuaram nem com o deicídio, nem com a Revolução, nem com a traição. Este é o pensamento com que nós precisamos acompanhar esse cântico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/4/1967)

1) Tomás Luís de Victoria, compositor sacro espanhol (*1548 –
†1611).

Nosso Senhor Crucificado

Nosso Senhor, indubitavelmente, é muito ultrajado em nossos dias. Sejamos nós algumas daquelas almas reparadoras, que, se não pelo brilho de nossa virtude, ao menos pela sinceridade de nossa humildade — humildade inteligente, razoável, sólida, e não apenas humildade de palavrório sonoro e pescoço torto — reparemos nestes dias santos, junto ao trono de Deus, tantos ultrajes que, incessantemente, Lhe são feitos.