O bom conselho para o mundo

No momento em que a humanidade chega a uma encruzilhada, na qual se coloca para ela uma opção ineludível, é hora de pedir à Mãe do Céu seus sapienciais conselhos.

 

A opção para o mundo moderno é entre um porvir tenebroso, feito das últimas capitulações ante os extremos do erro e do mal, e o abraçar entusiástico da plenitude da verdade e do bem.

Como mover a humanidade – de tal maneira atolada no processo histórico que a vem impelindo há tantos séculos – a empreender a trajetória do filho pródigo rumo à casa paterna? Sem um possante auxílio da graça, a falar no interior de incontáveis almas, isto não se pode conseguir.

Esse bom conselho a ser proferido no íntimo de cada coração para a salvação da humanidade, que melhor modo há de obtê-lo senão implorando-se à Mãe do Bom Conselho que, por uma graça nova, converta o bárbaro supercivilizado do século XX?

Só assim poderá este, à maneira do bárbaro sub civilizado do século V, “queimar o que adorou e adorar o que queimou”. E só assim poderá ter origem uma nova e ainda mais esplendorosa era de fé.

Esse é o bom conselho por excelência que os devotos de Maria devem pedir para si e para todos os homens nos dias que correm.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado na “Última Hora”, de 14/5/1984. Título nosso.)

Como celebrar o mês de maio

Para ajudar nos a louvar devidamente a Mãe do Céu, no mês especialmente consagrado a Ela, Dr. Plinio nos sugere uma oração, diversas reflexões e uma conveniente atitude de alma.

 

Segundo a bela tradição católica, o mês de maio é dedicado a Nossa Senhora, e nada de mais próprio do que seus filhos e devotos festejarem-Na. É a ocasião de Lhe tributarem, de modo especial, toda a veneração, amor e carinho que lhes inunda o coração. É também a época de se solidarizarem de maneira mais profunda com Ela em suas apreensões de Mãe pela salvação das almas e pelo bem da Santa Igreja.

Provas de nosso amor

Para Lhe render essa homenagem, devemos começar por dizer a Nossa Senhora que reconhecemos ser Ela uma razão constante de alegria para os católicos, em todas as circunstâncias. Maria Santíssima é de tal maneira a “Causa nostrae laetitiae –  causa de nossa alegria”, como A invoca a Ladainha Lauretana -, que o foi até mesmo na mais triste das situações, ou seja, quando seu Divino Filho padeceu e morreu pela redenção do gênero humano. Durante a Paixão, a presença d’Ela era um elemento de alegria e de satisfação para nós.

Devemos compreender, além disso, que o nosso preito filial não pode consistir meramente em comemorar as alegrias que Nossa Senhora nos dá, mas tem de comportar igualmente a consideração do que Ela sente ao ver as almas em perigo, ao ver a imensidão dos pecados que se alastram sobre a face da terra, ao ver filhos que Ela tanto ama, extraviados nos caminhos da perdição. Daí a nossa repulsa vigorosa ao mal que A entristece, e o nosso desejo de repará-La, e a seu adorável Filho, ser o termômetro de nossa entranhada veneração a Ela.

Pedir as graças que os outros recusam

Se, porventura, tomamos consciência de que esse nosso amor mariano é débil e fraco, devemos fazer um pedido a Nossa Senhora.

Por sua onipotente intercessão, a Santíssima Virgem faz chover de modo contínuo sobre o mundo graças de devoção e de fidelidade a Ela, assim como graças de repúdio ao mal e às tentações do demônio. E, infelizmente, essas graças não são recolhidas nem correspondidas da maneira tão ampla como deveriam ser. Muitas delas caem em chão arenoso ou em pedras onde não desabrocham. Devemos, então, ser sensíveis a essa prodigalidade de dons celestiais, não permitir que se desperdicem, e dirigir a Nossa Senhora esta súplica:

“Ó minha Mãe, por vossa insondável misericórdia, concedei-me todas as graças que os outros não aproveitam. Enchei minha alma com as dádivas divinas que reservastes para terceiros e que foram recusadas. Desse modo, correspondendo eu, amparado por vosso maternal auxílio, poderei reparar em algo a tristeza que representa para Vós a visão dessa caudal de graças sem aproveitamento. E que assim, ao menos neste vosso mísero escravo, resplandeça o dom feito aos homens. Amém.”

É uma prece a ser feita em todos os dias do mês de maio, por aqueles que se sentirem movidos interiormente a isso. Por exemplo, ao recebermos a Sagrada Eucaristia, expressemos a Nosso Senhor, por meio de sua Mãe Santíssima, o nosso desejo de que essas graças se recolham em nossa alma, que sejamos tochas ardentes de amor a Eles, e o receptáculo de todo espírito de incompatibilidade com o pecado e o mal, que devem caracterizar o verdadeiro católico.

Maria jamais nos abandona

Para aproveitarmos de modo útil o mês de maio, além de conservar essas intenções, seria interessante dedicar cada dia a alguma reflexão sobre Nossa Senhora, que alimente nosso Rosário e nossa piedade.

Nesse sentido, evoco aqui um fato passado numa antiga cidade polonesa, na ocasião em que estava sendo invadida por cruéis inimigos da religião católica.

Não podendo mais resistir, os habitantes fugiram, abandonando tudo. Ali vivia São Jacinto, digno filho de São Domingos de Gusmão e ardentíssimo devoto de Nossa Senhora. Antes de escapar dos agressores, foi se despedir da Padroeira da cidade, uma bela imagem da Virgem Santíssima, talhada em alabastro. Enquanto se recomendava a ela, ouviu-a distintamente murmurar: “E eu? Tu me abandonas? Leva-me contigo!”

O santo não sabia o que fazer. A imagem era muito pesada, não a podia carregar sozinho. Porém, apenas a tentou tomar em seus braços, sentiu-a leve como uma pena. A imagem perdeu todo o seu peso, por um milagre da poderosíssima Mãe de Deus. Surpreso e admirado, São Jacinto a estreitou devotamente e tomou com ela o caminho da fuga.

Este episódio nos mostra como Nossa Senhora preza suas imagens, como se sente representada dignamente por elas, e como não deseja que se faça a elas o que não é respeitoso nem correto fazer a Ela mesma. Maria obrou um prodígio para que sua imagem fosse levada embora de um local onde provavelmente seria profanada pelos que ameaçavam a cidade.

Por outro lado, vemos como Nossa Senhora se compraz em nos acompanhar através de suas imagens, e quer que as imagens d’Ela nos acompanhem. E assim operou um verdadeiro milagre para que a Padroeira acompanhasse seus filhos ao longo do êxodo que se viram obrigados a empreender. Uma imagem de alabastro, pesadíssima, além de se fazer ouvir pelo santo, torna-se leve e facilmente transportável. É um modo de Nossa Senhora nos dar a entender como deseja estar presente no meio de seus filhos.

Que aplicação colhermos desse fato para a nossa vida cotidiana?

Manifestando esse desejo de que suas imagens sejam de seus filhos, Nossa Senhora quer fazer notar quanto nos acompanha em todas as vicissitudes e em todas as circunstâncias de nossa existência. Se um símbolo d’Ela não nos abandona, quanto menos nos abandonará a própria Simbolizada!

Quer dizer, em qualquer situação em que estejamos, em todas as latitudes, em todas as longitudes, nas maiores elevações como também nos períodos mais tristes de nossa vida espiritual, há um olhar de Nossa Senhora que nos segue. Há uma proteção e uma providência particular de Maria Santíssima que nunca nos perde de vista e jamais nos abandona.

E essa certeza nos deve dar exatamente uma sensação de tranqüilidade em relação às vicissitudes desta vida. E o pensamento que deve nortear nossos dias, especialmente ao longo do mês de maio, é este: Nossa Senhora é minha Mãe e não me deixará sozinho. Ela nunca desvia de mim seu olhar maternal, sobretudo naqueles momentos em que tanto preciso das graças que Ela alcança, para progredir ou para não regredir na minha piedade, ou para qualquer outra necessidade, seja espiritual, seja temporal.

Cumpre insistir, a Virgem jamais nos desampara. Pois se uma imagem de alabastro – que, afinal, não é senão alabastro – vai ao encalço dos devotos dela, mais ainda velará Maria, em pessoa, por todos e cada um de seus filhos. Nossa Senhora irá ao meu encalço como a divina Pastora que Ela é. E posso ter, portanto, essa serenidade e essa segurança no transcurso de minha vida: a todo instante pairam sobre mim a proteção e o olhar de nossa Mãe Santíssima.

Santo Atanásio, gigante contra o arianismo

Batalhador incansável contra uma das maiores heresias de todos os tempos, Santo Atanásio sofreu atrozes perseguições promovidas pelos inimigos da Igreja. Mas as enfrentou com coragem, dignidade e ufania. Foi um dos maiores santos de toda a História, um lutador contra a heresia, como talvez a Esposa de Cristo não tenha tido nem antes nem depois dele.

 

Estive lendo, antes de vir para cá, um resumo biográfico muito condensado da vida de um dos maiores santos da Igreja, que foi Santo Atanásio. E alguns dos aspectos da biografia desse grande santo, que eu não conhecia, me chamaram a atenção, e me pareceu bem comentá-los.

Uma das maiores heresias da História

Santo Atanásio(1) viveu no tempo do Imperador Constantino e de seus sucessores imediatos. Quer dizer, quando a Igreja estava saindo das catacumbas e se organizando à luz do dia. Nessa época, ao mesmo tempo em que as perseguições promovidas pelos pagãos estavam em declínio, a Esposa de Cristo sofria um outro flagelo, certamente pior do que a perseguição dos pagãos, e que nós conhecemos muito bem: as heresias e as divisões internas.

Uma das maiores heresias de toda a História grassou exatamente no tempo de Santo Atanásio e Constantino, a dos arianos. Estes afirmavam que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma natureza apenas humana; não era Deus, era um grande homem, um homem extraordinário. E essa heresia, como percebem, importava na negação completa da Religião Católica. Reduzir Nosso Senhor Jesus Cristo a um puro homem é negar a Doutrina da Igreja por inteiro.

Os arianos eram muito poderosos, espalharam-se rapidamente por todo o Império Romano — que se localizava mais ou menos em torno da bacia do Mediterrâneo — e, por serem exímios em toda espécie de difamação, obtiveram influência na corte imperial; arrastaram atrás de si tal número de fiéis, mesmo sacerdotes e bispos, que Santo Atanásio declarou que um belo dia o mundo inteiro gemeu porque, ao amanhecer, deu-se conta de que era ariano. Quer dizer, de um momento para outro essa heresia grassou por toda parte e, como que, todo o mundo se tinha tornado ariano.  

Nesta luta contra o arianismo, o gigante foi Santo Atanásio, Patriarca — quer dizer, mais do que um arcebispo — de Alexandria, que era uma das grandes sedes episcopais da antiguidade.

Seis anos no fundo de um poço

Santo Atanásio foi, não me lembro se quatro ou seis vezes, obrigado a fugir da cidade de Alexandria, por causa das conspirações dos arianos, os quais conseguiram vários decretos imperiais expulsando-o para esta ou aquela parte do Império Romano, e muitas vezes sendo perseguido de morte; e, ao longo dessas perseguições e dessa luta tremenda que ele travou, alguns fatos não são tão conhecidos.

Conhece-se a história da querela dele com os arianos no terreno doutrinário, mas sabe-se menos a respeito dos episódios policialescos de sua luta com os arianos. Parece-me, entretanto, que na vida de um santo, mesmo alguns fatos menores têm muito de edificante, e que valeria a pena referir aqui alguns desses episódios.

Para terem ideia do quanto importava, muitas vezes, a resistência a favor da ortodoxia contra a heresia, basta dizer o seguinte: Santo Atanásio, num lance de sua luta, para fugir aos hereges passou seis anos no fundo de um poço! Não sei se os aqui presentes se dão bem conta do que significa isso: sem ver sequer a luz do dia! Havia apenas um católico fiel o qual, na hora em que o poço estava abandonado, lhe jogava o necessário para viver. O poço, ao menos água lhe fornecia…  E ele ficava ali lendo, refletindo, rezando, de maneira que Deus, no mais alto dos Céus, recebeu durante seis anos o louvor perfeito que um santo lhe enviava do fundo de um poço. Sempre confiando na Providência, disposto a lutar, inquebrantável no seu propósito, de maneira que, ao cabo de seis anos, a perseguição se amainou e o amigo dele lhe avisou do alto do poço. Ele, então, saiu e continuou sua luta contra o arianismo.

Numa outra ocasião — a provação foi menor, mas não deixou de ser também impressionante — ele teve que fugir pelos desertos do Egito, e não encontrou lugar para se refugiar a não ser a sepultura do próprio pai. E passou ali dentro durante quatro meses! Lúgubre é, não para a alma de um grande santo, mas, em todo caso, para a sensibilidade humana. De lá ele saiu e conseguiu retomar a luta contra o arianismo. E fazia isso por meio de sermões extraordinários, que eram anotados, e as cópias transmitidas de católico para católico, por toda a extensão do Império Romano.

Um conciliábulo de arianos

Certa vez, Santo Atanásio foi intimado a comparecer a um grande concílio de bispos arianos. Ele declarou que não iria porque eram bispos hereges, não os reconhecia como verdadeiros católicos e não tinha comunhão com aquela gente. Mas o santo recebeu do Imperador Constantino um decreto, obrigando-o comparecer para discutir com os hereges. Aí mudava a situação. Não era mais aceitar o concílio como uma assembleia legítima, da qual ele participaria, mas ir lutar contra o pseudo concílio, aliás, um conciliábulo de hereges.

Ele, então, foi; estavam presentes cento e tantos bispos, o que para aquele tempo era muita coisa, e com os hábitos de seriedade e solenidade daquela época. Acompanhado de um sacerdote que lhe era fiel, Santo Atanásio entra na assembleia, onde todos os bispos paramentados o recebem. Não lhe destinam lugar para sentar-se; ele fica em pé e percebe logo que os arianos não queriam discutir doutrina — porque os hereges não gostam de discutir doutrina, eles vão fazendo afirmações e depois caluniam.

Santo Atanásio percebeu que se tratava de uma acusação; ele ia ser julgado, numa atmosfera de calúnia e de ódio tal que nem se constituía um tribunal regular, o qual ele recusaria. Foi um puro vozeiro contra ele. E a primeira investida foi essa: uma mulher de má vida levantou-se e disse que ela estava rica devido ao dinheiro que Santo Atanásio lhe dava; tinha presenciado, durante os períodos em que ele passava em lugares que não se sabia onde, tais e tais abominações; e que podia dar provas disso porque ela era testemunha.

Então, à medida que ela falava, os bispos arianos bramiam que ele precisava ser deposto, condenado etc. — porque não há como um herege para se fingir de zelador dos bons costumes, quando se trata de perseguir um verdadeiro católico. Santo Atanásio, com uma inteligência extraordinária, sutil, não disse nada. Conservou-se sereno e deixou o pessoal vociferar. Apenas ele soltou um cochicho no ouvido do padre que o acompanhava. Quando o sacerdote pôde cortar a palavra da meretriz, ele lhe disse, fingindo que era Santo Atanásio: “Então, você afirma realmente que me conheceu, que me viu etc.?” A tonta pensou que aquele fosse Santo Atanásio, o qual ela nunca tinha visto. Então, declarou: “Afirmo.” “Jura?” “Juro.” Notem com que superior inteligência ele decidiu a situação!

Deu-se, então, na assembleia o que ocorreu aqui com os presentes: os próprios hereges estalaram na gargalhada. Porque a farsa ficou de tal maneira evidente, que não era mais possível continuar. E houve um movimento para dissolver todo mundo, porque a coisa tinha terminado em chanchada.

Acusado de ter decepado a mão de um bispo

Aí, alguns mais fanáticos dentre os arianos começaram a exclamar: “Tem mais essa acusação, que é gravíssima!” É tal a má-fé dessa gente que voltaram para ouvir a segunda acusação. Depois de se ver que a primeira era uma chanchada, do que valeria a autoridade desses mesmos homens para levantarem outra acusação?

E Santo Atanásio foi mais uma vez extraordinariamente servido pela Providência. Levantou-se um bispo herético, tirou de uma caixa uma mão ressequida de um morto, e disse: “Aqui está a mão de tal bispo meleciano — havia uma heresia colateral, meio metida com a dos arianos, chamada dos melecianos(2) —, morto por Atanásio em tal ocasião. E isso foi um crime nefando. Para provar que ele realmente foi morto, aqui está a mão desse venerável homem de Deus, que se afundou no deserto — era o mesmo deserto onde estava Santo Atanásio. Quem é que poderia ter cometido esse assassinato senão Atanásio?” Santo Atanásio ouviu isso também com toda a serenidade possível.

Entre os assistentes — é uma coisa que só se explica por intervenção divina — havia um homem de cabeça baixa e recoberto com aqueles panos do Oriente. Santo Atanásio foi até ele e perguntou aos arianos: “O bispo tal morreu? Vocês têm certeza?” “Temos”. O santo puxou o pano e disse: “Olhem, aqui está ele”. Era o próprio bispo meleciano…

Então, Santo Atanásio, gracejando, disse o seguinte: “Deus não deu a cada um de nós mais do que duas mãos; levante uma mão!” Ele levantou. “Agora levante a outra”. Ele o fez e o santo concluiu: “Bem, compete a vocês explicar em que parte do corpo dele se encaixava outra mão”. Cumprimentos… e o caso estava liquidado.

Os arianos desarmaram? Não. Começaram a gritar atrás de Santo Atanásio: “Mágico, praticou crime de magia! Não se pode explicar, a não ser por magia, que esse homem estivesse aqui presente nesta hora!” Essa é a psicologia do herege. Diante das provas mais capazes de cegar, mais deslumbrantes de que estão com má-fé, eles não desanimam; encontram outra calúnia e mais outra, e vão sempre para a frente. Mas a coisa ficou tão desmoralizada que acabou.

Sagacidade de Santo Atanásio

Santo Atanásio, como verdadeiro santo, tinha horror à mentira. Evidentemente, não mentia nunca, nem em matéria leve. Certa vez, ele estava andando pelo deserto e, em determinado momento, apareceram tropas imperiais à procura dele, e alguém lhe perguntou: “Sabes onde está Atanásio?” Não o reconheceram. Diz o santo: “Sei sim, ele não está longe daqui”. Os militares foram à sua procura, e ele desviou…

Da parte de um Doutor da Igreja, exímio teólogo com profundidade de espírito, herói de grande sisudez, esses traços enriquecem a fisionomia dele, mostrando a pluralidade e a riqueza de aspectos que tem a alma de um verdadeiro santo. Sobretudo, destroçando um pouco a ideia sentimental que certas imagens projetam sobre o fiel a respeito do santo. Não me refiro às imagens monstruosas da “arte” moderna, mas a certas imagens que apresentam o santo com uma carinha muito bem-feitinha, sem barba, com um sorrisinho de quem não compreendeu nada.

Não é isso de nenhum modo um Doutor da Igreja, sobretudo um Santo Atanásio, um dos maiores santos de toda a História, e ele sozinho um lutador contra a heresia, como talvez a Igreja não tenha tido nem antes nem depois dele.

Horrível morte de Ario

Para conhecerem os lados dramáticos da vida dele, menciono apenas um episódio, e com isso encerro este comentário sobre Santo Atanásio.

Constantino, o Grande, que libertou a Igreja, foi enredado pelas intrigas dos arianos. Aliás, a vida post-conversão de Constantino é um tanto discutida. Em certo momento, ele tomou partido decidido por Ario, chamou Santo Atanásio e o expulsou para a Gália. O santo lhe disse: “Vós me proibis de voltar para meu trono patriarcal e apoiais os hereges. Prestareis em breve contas a Deus por isso!”

 E dirigiu-se para a Gália, onde foi recebido, aliás, com todas as atenções e toda a cortesia por Constâncio, filho de Constantino, o Grande. E ali esteve durante algum tempo. Depois foi para Roma, e justificou-se perante o Papa, que lhe deu toda a razão. E aproveitou a ocasião — assim são os santos: eles são expulsos de um lado e aproveitam para fazer maravilhas de outro; ninguém consegue tolher sua capacidade de ação — para fundar o estado monástico em Roma, diz seu biógrafo.

Posteriormente, chegou a notícia de que Constantino tinha morrido, e ao mesmo tempo a informação de que também Ario falecera. Este havia sido colocado por Constantino no trono patriarcal, onde ele era um arcebispo usurpador, não o patriarca legítimo. No ato de sua posse, Ario organizou a procissão com aquela solenidade que se fazia antigamente para a posse de um bispo; e quando a procissão transcorria, ele, em determinado momento, estando perto de instalações sanitárias públicas, sentiu-se mal. Então desceu do animal em que montava e entrou numa dessas instalações, e ali morreu do modo mais horrível que possa haver: parece que o abdome dele se rompeu e suas vísceras se derramaram no chão. Assim, em pouco tempo, morreram Constantino e também Ario; e Santo Atanásio ficou senhor da diocese.

Acolhido triunfalmente em Alexandria

Mas pouco tempo depois recomeçaram as perseguições; ele levou sua vida, quase até o fim, de perseguição em perseguição.

O povo de Alexandria gostava muito dele e, em geral, quem o perseguia eram pessoas corrompidas das classes dirigentes. Numa das ocasiões em que voltou para essa cidade, ele foi reempossado na Arquidiocese como legítimo pastor. A população preparou-lhe uma grande recepção, tão afetuosa e extraordinária, que passou como provérbio, em Alexandria e naquelas partes do Egito, a seguinte expressão, quando se queria dizer que alguém foi muito bem acolhido: “Foi recebido como Santo Atanásio”. Era o último grau da popularidade, da acolhida respeitosa, cheia de veneração, filial e, ao mesmo tempo, plena de entusiasmo.

Há um outro aspecto da vida de tantos santos perseguidos. As cúpulas corrompidas organizam contra eles toda espécie de difamação. Mas o Espírito Santo sopra onde quer e previne a opinião pública a respeito da realidade das coisas. De maneira que, de um modo ou de outro, acontece com frequência — não é uma regra absolutamente geral, pois nessa matéria não há regras absolutamente gerais — que o povo vê claro e faz justiça àquele que os poderosos estão perseguindo.

Essas são as notas mais interessantes, que me pareceu conveniente apresentar a respeito do grande Santo Atanásio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 20/2/1971)

Santo Antonino de Florença

Arcebispo de Florença e grande amigo do Beato Angélico, Santo Antonino lutou contra os desvios da Renascença.

 

A partir do momento em que foi eleito Arcebispo de Florença, Santo Antonino lutou acirradamente contra os desvios propagados pelos renascentistas. Acompanhemos a descrição de sua vida feita pelo Pe. Rohrbacher:

“Antônio, que por sua pequena estatura foi chamado Antonino, nasceu em 1389, sendo filho de um notável homem de Florença. Destacou-se desde cedo nos estudos por sua invulgar inteligência”.

Florença foi uma das grandes cidades que iluminaram a História, com seu especial modo de ser. Florença — ela é a cidade das flores — floresceu precisamente numa época na qual a História italiana encontrava-se em um “tournant”, como denominam os franceses, no  momento em que novos rumos se constituíam e tudo se transformava.

Configurava-se um conflito entre a tradição medieval e os fortes ventos da Renascença que ameaçavam tudo destruir. Entretanto, havia ainda possibilidades de sensibilizar a opinião italiana, caso grandes santos combatessem de frente a Renascença então vicejante.

Florença era propriamente o foco da Renascença. Encontravam-se lá, então, os maiores talentos renascentistas, capazes de irradiar sobre a Itália o seu novo estilo, e que realizavam, na própria cidade, obras de arte de um valor extraordinário. Florença tinha grande importância para aquele tempo. Sendo metrópole do Grão-ducado de Toscana, possuía uma dinastia que haveria de ligar-se por vários laços de casamento com a Casa da França, e haveria de dar mais de um Papa ao sólio pontifício: os Médici, uma das famílias mais poderosas e importantes da Europa. Florença era então um luzeiro do mundo, nutrindo de especial significado, realce e importância, a tudo quanto se passava em seu meio.

A resposta da Providência não haveria de tardar…

“Muito cedo desejou entrar na Ordem Dominicana, pela santidade dos seus membros e pela influência das pregações do Beato João Dominichi. A este pregador dirigiu-se Antonino pedindo o hábito. Mas Dominichi, achando-o muito débil e frágil, prometeu atendê-lo quando houvesse decorado a obra “Decretos de Graciano”. Antes de um ano, para pasmo do dominicano, voltou o menino. Decorara a obra e foi admitido aos dezesseis anos somente.

“Religioso exemplar, foi mais tarde Prior dos dominicanos de Toscana e Nápoles.

“Em 1445 o Papa Eugênio IV procurava um arcebispo para Florença. Um frade dominicano pintor, que mais tarde seria conhecido como Fra Angélico, indicou Antonino como modelo de virtudes. O Papa acedeu à sugestão e, nomeando-o arcebispo, o santo entrou em Florença com pompa magnífica, segundo o costume, mas suprimindo o que havia de secular nessa solenidade…”

Nessa situação, a Providência designou um santo recolhido, diáfano e robusto na Fé: Fra Angélico de Fiesole. Possuindo um talento artístico repleto de delicadeza, candura e, quase se afirmaria, santa ingenuidade, não obstante demonstrou sagacidade e perspicácia, quando se tornou necessário indicar quem deveria assumir o Arcebispado de Florença. O homem a quem indicara foi Santo Antonino.

Ao mesmo tempo em que permitia que as hidras da Renascença deitassem ali todo o seu calor, a Providência fazia florescer santos e gênios naquele mesmo ambiente, para disputar influência e combater o fogo das novas tendências.

Surge então Antonino como Bispo de Florença. Podem-se imaginar os magníficos veludos e damascos com os quais foram confeccionadas as roupagens dos personagens que tomaram parte no cortejo de Santo Antonino, na ocasião em que tomou posse da Sé Arquiepiscopal da cidade. Dessa pompa, ele retirou sabiamente tudo quanto havia de profano…

O poder da santidade

“No trono episcopal, mostrou todas as virtudes de um verdadeiro pastor. Trabalhou com tanto zelo para reformar os escândalos públicos, que o Papa Pio II o escolheu para a reforma da Cúria Romana. Mas antes que pudesse iniciar este grande mister, Deus chamou-o a Si. Era o ano de 1459. Grande orador foi o Arcebispo de Florença. Sua santidade e cultura levaram-no a ser consultado pelos grandes da época, o que lhe valeu o apelido de “Antonino, o Conselheiro”. Seu lema de vida era “Servir a Deus é reina”. Cosme de Médici o tinha em tão alta consideração, que afirmava que a cidade de Florença tudo devia às orações do santo arcebispo.”

A história pouco conta sobre a ação desenvolvida por ele a favor da austeridade de costumes, como também o combate frontal às influências maléficas da Renascença. Dos historiadores renascentistas, vários reconhecem que pela presença de Santo Antonino na Sé de Florença, o movimento da Renascença perdeu em algo seu vigor e sua velocidade em contagiar a cidade e, consequentemente, toda a Itália.

Conclui-se a partir disso quanto é grande o poder de um santo, ao ponto de uma das figuras mais eminentes e talvez mais condenáveis do Renascentismo, Cosme de Médici, afirmar que a cidade devia tudo às orações de Santo Antonino. Vê-se o quanto este santo podia realizar, e quanta receptividade ainda havia em relação a ele.

Poderia alguém indagar-se: “Qual o sentido dessa obra da Providência? Um santo que passa como um meteoro que brilha, detém um pouco o curso das coisas, mas cuja obra não consegue evitar o avanço do Renascimento. Qual é o alcance histórico do fato de a Providência ter colocado Santo Antonino em Florença?”

Uma alma zelosa nunca poderia colocar-se essa pergunta, porque basta ter contido a onda renascentista durante algum tempo, para contribuir em alto grau à glória de Deus. Como Santo Inácio de Loyola que afirmava ter sido bem empregada por amor à glória de Deus uma vida inteira de lutas e padecimentos, a fim de que um grande pecador deixasse de cometer um pecado mortal.

Corresponder é vencer!

Compreende-se, por isso, que deter por pouco que seja a imensa onda de pecados provenientes da Renascença, é evidentemente algo que possui muito significado para quem almeja a glória de Deus.

Há um outro aspecto digno de consideração, que se centra na continuação da obra iniciada por Santo Antonino e pelo Beato Angélico. Deveriam haver almas que eram raízes de bem, aptas a dar continuidade ao trabalho por eles iniciado, e naturalmente apoiadas pelo Papado, e que prosseguissem a ofensiva contra a Renascença.

E com pesar pode-se constatar que a obra da Providência não foi completada pela obra dos homens. E as almas chamadas por Santo Antonino a continuarem sua obra, não corresponderam ou não obtiveram o apoio necessário, e então a obra ruiu.

Deduz-se, então, quão importante é o papel da história de uma alma. Deparamo-nos com uma cidade que irradiava a intemperança para o mundo inteiro, mas que de tal forma era tocada por talentos e dons, que caso as almas eleitas para empunhar a tocha da reação anti renascentista fossem fiéis, possivelmente a cidade inteira teria se convertido. Uma vez convertida a cidade, era bem possível que a história do mundo fosse completamente diversa.

Florença podia ter alterado a história do mundo se, por seu lado, algumas almas próximas de Santo Antonino houvessem modificado a história de Florença. Portanto, se a história do mundo não se alterou, e o mundo desceu pelo despenhadeiro da Renascença — sucessivamente à Revolução Francesa e ao Comunismo — isto se deve a algumas almas que foram fracas e não tiveram generosidade. Disseram “não”, ou disseram um “sim” incompleto ao convite da Providência. Por causa dessas almas, a História não mudou.

Não é devido ao grande talento de algum renascentista que a obra de Santo Antonino não vingou. A dificuldade é que a Providência encontre sempre fiéis os homens que Ela suscitou para serem seus instrumentos. Se todos os eleitos por Deus fossem de fato fiéis, não haveria quem impedisse os planos da Providência de se executarem.

“Vae mihi!”

Surge então uma aplicação para cada alma individualmente: “Não serei também uma alma destas? Não fui chamado a ter uma fidelidade ilibada? Não será que uma pequena falta de generosidade de minha parte determinará um recuo notável nos planos da Providência?”

Quantas vezes não temos a possibilidade de fazer bem a uma alma, que por sua vez faria o bem a inúmeras outras almas! Não poderia resultar dessa atitude uma reação boa que fosse, sob diversos aspectos, um golpe no adversário? Entretanto, por falta de paciência, quantas não foram as ocasiões em que rejeitamos o apelo de Deus, no zelo pelas almas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 9/5/1968)

 

Mistérios e encantos do passado…

Atrás de majestosos portais, escadas que ao subir se perdem na penumbra, no mistério. A escadaria cambaia e meio inclinada, cujos degraus cansados e enfraquecidos certamente rangem quando neles se pisa, a escadaria que há muito não vê vassoura e não recebe o adorno de uma prestigiosa passadeira vermelha, fala entretanto de um passado longínquo, lamenta saudosas glórias.

Tem-se a impressão de que, a qualquer momento, durante a noite, Igrejas-palácios, palácios-igrejas que conservam restos de dignidade e pulcritude; casas “delabrées”, escalavradas pelas injúrias do tempo, mas cujos antigos esplendores ainda se ufanam de se manifestar. Paredes que perderam o revestimento, velhos tijolos aparentes, emoldurados por colunas e esculturas que lhes emprestam uma nota de seriedade, de gravidade e de nobreza.

descerão por ela num conciliábulo profundo as pessoas que aí viviam, para saírem correndo e tomarem gôndolas, depois de transmitida uma palavra de ordem e de executada uma conspiração.

Nas entradas dos canais, gôndolas vazias parecem dormitar à espera de tripulação, amarradas a estacas de formas incertas, fincadas no fundo do mar raso, à maneira de uma floresta de linhas e silhuetas que querem exprimir não se sabe o quê. No topo de algumas delas vêem-se lampadários de vidros policromados, cintilantes durante a noite para sinalizar que não esbarrem, porque ali estão algumas das gôndolas de Veneza!

E as cúpulas da gloriosa Catedral de São Marcos, encimadas por cruzes de uma fantasia magnífica, leves e poéticas a ponto de darem a impressão de que, ao bater o vento, seus adereços de metal começarão a se agitar e a tocar música pelos ares!

E o célebre Palácio dos Doges, com seu estilo ogival caracteristicamente veneziano, apoiado sobre um leve rendilhado de pedras que confere ao conjunto um efeito de agradável distensão. Ele é frágil, delicado, maravilhoso, e pode perdurar pelos séculos afora, do mesmo modo como tem se sustentado há centenas e centenas de anos, sem o menor perigo.

Veneza, um extraordinário exemplo dos mistérios, atrativos e encantos do passado…      

Auxílio Celestial

É próprio de Nossa Senhora Auxiliadora, ao considerar as necessidades de uma alma, nela despertar o desejo de rezar. Será uma prece voltada para a própria Mãe de Deus, rogando as graças de que necessita, o consolo para enfrentar os sacrifícios, a força para aceitar com confiança e resignação as dores desta vida.

Com efeito, a invocação Auxílio dos Cristãos é muito adequada para atrair a benevolência de Nossa Senhora. Ao ser invocada sob esse título, Ela certamente nos atenderá e nos dará muito mais do que pedimos.

Pelas suas preces, de longe o Céu abrirá em sua porta uma fresta, e a voz da graça nos incentivará a pedir ainda mais: “Repita essa oração! Repita e repita, pois, pela insondável bondade de Maria,  ou você caminhará até essas portas, ou, de um modo maravilhoso, elas se lhe abrirão inteiramente, atraindo-o para o interior do celeste paraíso…”

Plinio Corrêa de Oliveira

Intimidade com Jesus na Eucaristia

A Sagrada Eucaristia era freqüentemente tema das conferências de Dr. Plinio. No trecho transcrito abaixo, podemos ver como ele insiste num ponto enormemente importante: a grande alegria que dá a Jesus Cristo quem O recebe na Comunhão, ou ao menos faz uma curta visita ao Santíssimo Sacramento.

 

Nunca seremos tão íntimos de alguém quanto de Nosso Senhor na Sagrada Eucaristia. A Fé nos ensina que todos os Anjos e Santos do Céu adoram cada partícula do Santíssimo Sacramento exis- tente na Terra e que presenciam, portanto, nossas comunhões cantando e louvando a Jesus Cristo. Maria Santíssima, por sua vez, louva a Seu Filho porque Ele está se dando a este, àquele e àquele outro. De maneira que o Céu inteiro olha para essa cena, o Céu inteiro pede a Nosso Senhor misericórdia para aquele que está recebendo a Eucaristia.

Nem os mais altos Anjos do Céu têm com Nosso Senhor a forma de união que nós, homens, temos ao receber o Santíssimo Sacramento. O Anjo não tem corpo. Ele vive na visão beatífica, vê a Deus face a face, está inundado de todas as graças do Céu, mas ele não pode comungar. Ele nos olha como que invejando esta graça.

Aquele que é a Santidade condescende em vir até mim… Que dom formidável é Ele ficar no Sacrário, trancado, até o hora em que chego! Numa hora por mim escolhida, do modo como quero, Ele vem e me visita. E mais intimamente do que visitava Lázaro e Maria enquanto estava vivo na Terra, porque naquela ocasião Nosso Senhor não entrava em Lázaro nem em Maria. Na Comunhão, Ele entra em nós.

Devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo entrando em nós da mesma forma como Ele entrava na casa dos doentes que ia curar: ele ingressava com afeto e com vontade de curar; com semblante sereno, ar bondoso, disposto a ouvir; e depois concedia a graça. Nós de- vemos imaginar Nosso Senhor transbordante dessa bondade.

Os Apóstolos, a quem Ele se deu pela primeira vez, estavam tão tíbios, que naquela mesma noite iriam abandoná-Lo, praticar toda aquela ingratidão. E Ele sabia… No entanto, deu com alegria essa prova suprema de amor e disse ainda: “Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa” (Lc 22, 15).

Então, quando formos comungar, devemos pensar: “Nosso Senhor está ali dentro do sacrário, desejando ardentemente ser recebido por minha alma, com todas as imperfeições dela. Com confiança, irei para a comunhão”.

Consideremos a mais santa das comunhões havida sobre a face da Terra, a Comunhão de Nossa Senhora. Ela estava abrasada no desejo de comungar. No entanto, seu desejo de receber Nosso Senhor era infinitamente menor do que o desejo de Nosso Senhor de ser recebido por Ela. De tal maneira o amor d’Ele é maior do que o de qualquer criatura. E aqui podemos, então, avaliar o amor com que Ele espera que nós O recebamos.

Portanto, não devemos ir à Comunhão como quem vai submeter Nosso Senhor a um tormento: “Oh! Ele vai entrar na minha alma indigna!” De fato é indigna, e eu me confundo. Mas, de outro lado, maravilho-me pensando que, dentro do sacrário, Ele está à minha espera com um sorriso, e que na minha alma indigna, na minha alma que está em estado de graça — mas só isso — Ele entra com verdadeira delícia.

Diz a Escritura, e a Igreja põe a frase nos lábios de Jesus Cristo: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens” (Prov. VIII, 31). A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, no gáudio eterno de perfeição completa, tem a delícia de estar na Santíssimo Sacra mento, isolado, à nossa espera, à espera de chegar a hora de comungarmos!

Com que grau de amor iremos nós até Ele? Com que grau de atenção, com que grau de humildade? Sirva-nos isso de lembrança para quando comungarmos.

E ao entrar na capela para fazer uma rápida visita, lembremo-nos: “Ele está aqui, Ele tem suas delícias em estar à espera desta hora em que entro para fazer esta oraçãozinha pardacenta. Ele sorri, tem pena, porque Nossa Senhora rezou por mim e, a pedido d’Ela, Ele me abençoa”. Fazemos o sinal da cruz e saímos.

É muito bonito fazer longas adorações diante do Santíssimo Sacramento. Mas, nem todo mundo dispõe de longas horas. E, sobretudo — é uma pena! — nem todo mundo dispõe do grande fervor que isso supõe.

Lembremo-nos de que temos a felicidade sem nome de ter Nosso Senhor Jesus Cristo realmente presente, co- mo estava na Judeia ou na Galileia, sob nosso teto. Uma visitinha rápida, uma entrada na capela, com uma genuflexão, um sinal da cruz, um olhar para a imagem de Nossa Senhora e uma oração para Ele — ao todo, um minuto ou dois — já são as delícias d’Ele.

E, ao passar diante da capela do Santíssimo Sacramento, pensemos: “Lá está Ele preso. Ele sujeitou-se a esta prisão porque quis, para ter a delícia de que eu fizesse diante d’Ele uma genuflexão dizendo, por exemplo, “Coração Eucarístico de Jesus, tende piedade de nós”.

Eu gostaria de que todos fossem insaciáveis de entrar na capela, e procuro dar exemplo disso: nunca me viram entrar num lugar onde há capela, sem ir  primeiro a ela fazer uma oração. Nunca! Posso estar ocupado, o que for!… Entrei no prédio, e a primeira coisa — não é a segunda, nem a terceira, mas a primeira, diretamente — é ir ao Santíssimo Sacramento e fazer uma pequena adoração.

Pensemos nessa reflexão magnífica de Santo Agostinho: Nosso Senhor é tão misericordioso que no Santíssimo Sacramento estremeceu de alegria, porque eu entrei. É incalculável, mas é assim. Ainda que alguém estivesse em estado de pecado, Ele gostaria de receber sua visita. Deus gosta de receber até a adoração do pecador. Evidentemente, não por uma condescendência para com o pecado, mas porque Deus quer atrair o pecador a Si.

Plinio Corrêa de Oliveira

ESPLENDOR DE SABEDORIA

Nossa Senhora é o vaso sagrado que recolheu todas as ações, palavras e ensinamentos de Jesus, para distribui-los, como foco de luz celeste, a toda a Igreja nascente. Por isso, afirma Santo Agostinho, que nenhuma criatura jamais possuiu um conhecimento das coisas divinas e do que se relaciona com a salvação, como a Virgem Bendita. Ela mereceu ser mestra dos apóstolos, e transmitiu aos evangelistas fatos — que só Ela conhecia — a respeito da vida de seu Filho.

Compreende-se, então, o esplendor da alma santíssima de Nossa Senhora, bem como o papel fundamental da sua ortodoxia e da sua sabedoria, que exercerão sobre a Igreja uma influência que se estenderá até o fim dos tempos!

Plinio Corrêa de Oliveira

Encanto sem medida pelo mar

Idas a Santos

Durante as férias, todo mundo de São Paulo que tinha alguma representação ia para o litoral. Mais raramente, ia para uma fazenda. Em Santos, o ponto de reunião era o Hotel Parque Balneário, o melhor da cidade, e ali estive inúmeras vezes.

A Santos de outrora era muito diferente da Santos de hoje! Praias grandes, com gente pundonorosa, o mar que entra naquela baía de um tipo muito convencional e comum. Eu praticamente não conhecia outro tipo de mar.

Ali olfateava e olhava todas as belezas possíveis do mar, gostava até do cheiro da areia molhada e do cheiro de maresia que o mar trazia. Encantava-me ficar olhava para o mar que entrava em ordem dentro daqueles dois blocos de montanhas nas pontas da baía e depois aquele rumor, aquelas ondas, etc.

Praia deserta, o alarido do mundo moderno longe. E, de outro lado, a obra de Deus. Na praia, um menino que pensa… e sente a contradição daquele aspecto do mar, e do mar em si, com a vida agitada que vinha se desenvolvendo.

“Embriagado” de maravilhamento

Também costumava hospedar-me na casa de um tio. Em pequeno, quando estava nessa casa, às vezes levantava-me à noite e ia até o terraço, na esperança de que o sol já tivesse aparecido, para tentar ver o mar, que ficava a 300 ou 400 metros dali. Tal era a minha paixão de o ver!

Se o mar de Santos fica encerrado naquelas tenazes da baiazinha, em Guarujá vê-se o mar aberto. Lembro-me de quando o contemplei pela primeira vez.

Ia-se muito mais a Santos que a Guarujá. Mas um dia, para passear, meus parentes foram todos a Guarujá e me levaram. Descemos do trenzinho na estação, que não dava diretamente no mar, e fomos a pé, um quarteirão ou dois, até o hotel, que tinha nome francês, como tudo naquele tempo: “Grand Hôtel de la Plage”.

Ali senti o mar alto. Aquelas ondas grossas; depois, uns pássaros que quase tocavam com a asa na água; e areia a perder de vista. E, sobretudo, uma invasão da atmosfera marítima até dentro da sala de jantar do hotel. Essa sensação do mar alto me tocou tanto nessa primeira vez, que cheguei a ter alívio quando fui embora. Estava me tomando demais, eu estava embriagado com aquilo, e queria

sossegar de tanto maravilhamento. Vejo que sensações dessas a Providência vai pondo, na hora adequada, na vida de cada um, de acordo com um plano de sabedoria, e de acordo com a estrutura interna da psicologia do indivíduo. Tenho a impressão de que, sucessivamente, a graça ilumina no espírito um mundo de dados metafísicos.

Pequeno contemplativo à procura da sublimidade

Em Santos, eu saía sempre, sob a vigilante tutela da “Fraulein” (a governanta), com minha irmã e uma primazinha que era educada conosco. De manhã tínhamos o banho de mar e, à tarde, passeio pela praia.

No passeio vespertino, eu encontrava buraquinhos na praia. Metia o dedo nos furos e, em geral, saíam de dentro caramujos. Suas conchas eram de belezas variadas: algumas muito comuns, outras bonitas, uma ou outra linda. Eu gostava de abrir aqueles buraquinhos para ver se encontrava o caramujo de concha linda. Quando achava, levava para casa e guardava. Por quê? Porque era linda.

Às vezes, trazidas pelas águas, havia conchas de duas placas, com formato um pouco difícil de descrever. Não eram bonitas, eram comuns, mas, ao serem abertas, o lado de dentro se mostrava de um cor de rosa quase vermelho esmaltado. Quando encontrava uma delas, eu, que sempre gostei muito do vermelho, ficava encantado. Passava a mão pela parte esmaltada, mexia e fazia rutilar aquela cor à luz do sol. E a levava para casa. Por quê? Porque Nossa Senhora me fazia ver naquilo, de um modo implícito, uma maravilha pequena à altura de uma criança. Sem valor econômico nenhum, mas uma maravilha que me fazia perceber, de algum modo, algo do Céu. Eu imaginava que o Céu estivesse além da massa de ar azul que paira sobre nossas cabeças. Bastava furar essa capa azul para encontrá-lo. Quando um raio de sol batia sobre a concha, produzindo um bonito efeito, eu pensava que em algum lugar do Céu haveria uns vermelhidões mais bonitos do que esses, e como seria Deus, autor de todas essas coisas.

Eu deixava tudo para analisar a rutilância daquele vermelho, ou desta ou daquela outra coisa que o mar oferecia à minha contemplação, ou simplesmente para admirar as águas, com seu característico rumorejar, que me extasiava.

Um arrebatamento sempre renovado, porque aquilo era muito maior do que eu, de uma beleza maior do que as proporções que havia em meu espírito, enquanto capacidade de apreender. Eu me regalava de me encontrar com o que era superior a mim, de admirar, de me sentir pequeno e de dar glória a Deus, Criador de tudo aquilo.

A primeira tentação na praia

Quando eu tinha uns quatro ou cinco anos, deram-me uma roupa de um tecido fino, chamado palha de seda, que se usava folgada e era muito agradável ao tato.

Certa vez, eu estava vestido com ela na praia quase deserta de Santos, andando com duas ou três pessoas. O vento batia e entrava pela minha roupa, enchendo-a toda de ar. Isso me causava um grande bem-estar, que chegava a ser meio inebriante.

E senti que havia ali uma espécie de convite para um padrão, um modelo, um estilo de vida que era o contrário da atmosfera cerimoniosa com a qual estava habituado. A solicitação parecia dizer: “Por que não ser assim, como muitas pessoas que você conhece? Viver verdadeiramente é isso!”

Tive de fazer um esforço sobre mim, pois percebi que, se cedesse a esse convite, algo de minha integridade ficaria manchado, e eu começaria a ter atrações mais fortes por coisas mundanas.

Ato de virtude decisivo

Uma vez fui tomar banho de mar em Santos, bem longe do Parque Balneário. Umas irmãs de vovó haviam alugado uma casa em frente à praia. Vovó e mamãe também se hospedaram lá.

Era desses casarões antigos, com mobiliário improvisado, tudo arranjado mais ou menos. E um dos sabores da coisa estava nisto: um certo relax do “pulchrum”, tipo um gênero de férias dentro de uma semi-vulgaridade. Eu tinha uns sete ou oito anos.

Sempre sensível a matéria culinária, ouvi dizer que para a noite preparavam um risoto de siri. E eu me fazia uma ideia mítica desse prato, uma coisa veemente, e me propunha a comer uma tonelada daquilo.

Trocamos de roupa e fomos para o mar. Era tardinha e o mar estava muito temperado. O doce mar do Atlântico, diferente das ondas e dos vagalhões de mares que nos jogam contra as paredes. Muito pacífico, eu me regalava com aquele mar, aquelas ondas que vinham suaves. Eu tinha verdadeira loucura por banho de mar. Era louco pelo banho e louco pelo mar. A água que tocava no corpo inteiro me encantava. Sobretudo quando eu conseguia pegar uma onda antes de ela quebrar, deixar-me levantar pacificamente e abaixar de novo, parecia-me uma delícia.

Do mar, eu olhava a cidadezinha, via aquelas casas todas com as luzinhas que estavam se acendendo, e me dava a impressão de que em todas elas se preparava risoto de siri, e que, como eu, havia meninos dispostos a comer risoto de siri. E a vida me parecia uma coisa maravilhosa.

No meio daquilo tive uma tentação, que era a seguinte: “Eu tenho aqui absolutamente tudo quanto basta para uma felicidade perfeita. Se, dando-me conta disso agora, puser-me a haurir a alegria que tenho aqui, sinto-me perfeitamente feliz. E se a vida me der só isto, deu-me inteiramente tudo quanto quero dela. Sinto-me penetrado pela felicidade, pelo bem-estar, por tudo o mais”. Entrava como um componente do raciocínio a alegria da inocência. As louçanias da inocência é que faziam degustar o mar.

Comecei a notar esse pensamento produzindo-se em mim, e a haurir e a julgar, sem dar um consentimento inteiro. Em certo momento, percebi que se gostasse inteiramente daquilo, passaria a gostar só de coisas como aquelas. E que havia valores mais elevados, que eu não sabia ainda quais eram, mas até os quais deveria chegar, e que eu pecaria (notava isso confusamente) contra a boa ordem das coisas se renunciasse a eles. Era preciso escolher entre haurir aquela felicidade de momento, ou reprimi-la por fidelidade a algo de mais alto, que se apresentava a mim, naquele momento, mais como uma privação e sacrifício, do que como um prazer. Qual era o ponto mais alto? Eu percebia que em mim havia capacidade de ver mais do que eu estava vendo e de amar algo mais elevado. Eu não vinculava isso com Deus, mas era evidente que havia essa vinculação.

Qual foi o sofrimento que me foi pedido naquela hora, na água? O de privar-me da atração de querer só aquilo que estava ali, e que me dava a ilusão de que me bastaria. Então pensei: “Não, não pode ser! Tenho de me privar disso, e fazer coisas desagradáveis. Se eu ficar só no siri e no mar, gostosos como são, não aguento a expectativa do que me aguarda mais alto”. Tomei então uma medida interna pela qual dei uma freada desagradável na minha alma e passei um arranhão na alegria. Resolvi levar a vida inteira esse arranhão, para não sucumbir a essa totalidade de gáudio que tinha diante de mim.

Hoje percebo que, se tivesse cedido nesse momento, teria me tornado um desenfreado gozador da vida. Foi uma hora muito decisiva para mim. Agradeço a Nossa Senhora por ter resistido, porque depois várias vezes essa tentação se apresentou de outras formas, mas já vinha enfraquecida pelo arranhão.

No que consistiu o arranhão? Num ato de vontade que tornou desagradáveis para mim aquelas delícias. Eu o fiz, porque a graça me auxiliou. E a vida inteira me mantive nesta posição meio recusante das coisas em extremo agradáveis.

Outra tentação durante um banho de mar

Tive outra tentação muito tempo depois com uns 15 ou 16 anos no mar também.

Estávamos vários moços brincando dentro d’água, em frente ao Parque Balneário. Era um dia de sol muito bonito. Uma onda me submergiu e, não sei como, fui para o fundo. Cheguei a tocar com os pés no fundo do mar, e senti aquela areia sedosa, agradável. Conservei os olhos abertos e a cor da água me pareceu magnífica. Não senti nenhuma vontade de respirar.

Pensei o seguinte: “Aqui estou num pináculo de bem-estar total, num ambiente maravilhoso. Se eu me deixar ficar aqui” veio-me à mente meio confusamente -, “fico com isso para toda a eternidade. Se eu morrer afogado, de algum modo engulo tudo quanto está aqui e realizo um deleite perfeito que a vida não me dará. Não é melhor eu não expirar, mas segurar a respiração e deixar-me morrer?”

Mas veio-me logo ao espírito o seguinte: “O que você fará é uma coisa malfeita. Você sacrifica algo de muito mais alto e que vale muito mais do que o que você tem aqui”. E interveio logo a ideia religiosa: “Suicídio é pecado, você não pode consentir”. No mesmo instante, decidi: “Isso eu não posso fazer, deixe-me respirar”. Subi e a tentação tinha passado.

A renúncia aos banhos de mar

Lembro-me de que, andando pela praia, encontrava de vez em quando uns pedaços de uma pedra que parecia um granito meio rosado. Eu gostava debandadamente da cor que aquele granito teria se fosse inteiramente rosado. Vinha embrulhado numas tantas algas cheirando a mar. Tudo me levava impressões como esta: se meus compatriotas desistissem das vidas que levam e se metessem numa existência voltada para o mar, muito mais simples, mas contemplativa das delícias do mar, lucrariam muito mais do que com esses automóveis e com todo o resto!

A esse ponto chegava minha atração pelo mar. Sempre pelo manso mar do Brasil, o nosso pequeno mar. Por detrás dessas impressões vinha a ideia de que, em contato com as coisas do mar, tem-se um “plenum” de fruição a bem dizer metafísica. Mas essa fruição representava a desistência de uma coisa mais alta. Daí ter sido preciso riscar as delícias do mar.

Bom tempo depois, precisei muito obter uma graça. Fiz a Nossa Senhora a promessa de renunciar ao banho de mar, caso Ela me obtivesse. Obteve-me, e eu renunciei.

Santa Catarina de Siena e o zelo pela causa da Igreja

Sobressaindo na fé, esperança e caridade numa época semeada de provações para a Igreja, Santa Catarina de Siena tornou-se modelo de alma fervorosa e batalhadora, envidando todos os esforços para ver a Esposa Mística de Cristo triunfar sobre suas adversidades. Razão pela qual Dr. Plinio no-la apresenta como a padroeira de todos aqueles que trabalham e lutam pela causa católica.

 

Ao celebrarmos a memória de Santa Catarina de Siena, virgem e Doutora da Igreja, cuja festa transcorre no dia 29 de abril, parece-me oportuno evocarmos a seguinte passagem de sua vida, narrada por um biógrafo:

Aproximava-se o Natal, primeiro que Catarina passava em Roma. Quando menina, sempre gostara de presentear seus amigos nessa santa comemoração, com flores e cruzes. Agora, porém, que dispunha de prestígio, era conseguindo indulgências e concessões da Igreja que proporcionava alegria aos amigos.

Cinco laranjas para o Papa

Não se esqueceu do Papa, e enviou-lhe cinco laranjas que ela mesma dourara, acompanhando o presente com essas linhas expressivas: “Sede uma árvore de amor enxertada sobre a árvore da Vida, Cristo, o doce Jesus. Desta árvore nascerá uma flor brotada de vossa vontade, o pensamento das virtudes e os seus frutos amadurecerão para a maior honra de Deus e salvação de vosso rebanho. Esse fruto parece amargo a princípio, ao ser mordido pela boca do santo desejo, mas tornar-se-á doce, desde que a alma se resolva a sofrer até a morte pelo Cristo crucificado e pelo amor do bem.

“Assim se dá com a laranja, que se põe na água a fim de lhe retirar o amargor, açucarando-a em seguida e dourando-a por fora. E agora, onde lhe ficou o azedume? Na água e no fogo. O mesmo se passa, Santíssimo Padre, com a alma que concebe o amor da virtude. O que a princípio lhe parece amargo, provém de sua imperfeição. O remédio está no sangue de Cristo crucificado, que proporciona a água da graça, purificando-a do amor próprio e sensual, que enche a alma de tristeza.

“E como o sangue está ligado ao fogo, pois que foi derramado com o fogo do amor, podemos dizer, na verdade, que o fogo e a água purificam a alma do amor próprio e dela extraem o azedume [das ofensas feitas a Deus] que a princípio continha, enchendo-a de força pela perseverança e paciência, e adocicando-a pelo mel de uma humildade profunda.

“Assim preparado o fruto, este é então dourado, simbolizando o ouro da pureza e o ouro reluzente da caridade, que se manifesta por uma verdadeira paciência no serviço do próximo, suportado com imensa ternura de coração.

Suscitada para servir a Igreja numa difícil conjuntura

Florido, rico em idéias e simbolismos, esse texto sobre Santa Catarina de Siena nos remete à época em que ela viveu, marcada por graves acontecimentos na história da Igreja.

Santa Catarina de Siena pertenceu à Ordem Terceira dominicana, e desde seus 15 anos de idade consagrou-se às obras de caridade, a uma intensa vida de piedade e mortificação. Distribuía abundantes esmolas aos pobres, servia os doentes, visitava os prisioneiros e consolava os desafortunados. Como sói acontecer com as almas particularmente queridas por Deus, a Providência permitiu que fosse afligida desde cedo por doenças crônicas, que não fizeram senão se agravar no decorrer de sua breve existência, vindo a falecer aos 33 anos, em Roma.

Dirigida pelo bem-aventurado Raimundo de Cápua — que, além de seu confessor, foi também seu biógrafo, autorizado por ela a publicar o conteúdo de suas visões e revelações — Catarina de Siena se santificou e se tornou um dos mais luminosos florões do catolicismo no século XIV.

Porém, como dissemos, nessa época a situação da Igreja não era o que se poderia desejar como ideal. Pelo contrário, a barca de Pedro era então ameaçada por toda espécie de ondas nefastas que procuravam pô-la a fundo. Sinais de decadência da fé e de relaxamento dos costumes se faziam notar um pouco por toda a parte, nos mais variados ambientes católicos. Até mesmo nos mosteiros e conventos, que deviam proporcionar aos seus religiosos a tranqüilidade e a estabilidade que trazem o desapego dos bens terrenos, instalara-se um desejo de luxo e opulência oposto aos ideais evangélicos.

Como se tal não bastasse, a sede do Papado se transferira de Roma para Avignon, feudo que os Pontífices romanos possuíam na França, e ali viviam sobre o domínio dos soberanos franceses. Ora, aqueles germens de decomposição moral atingiram também as fileiras do clero secular, disseminando um espírito de revolta contra a autoridade do Vigário de Cristo e outros desmandos. Donde se estabelecer, por volta de 1378, uma situação de cisma dentro da Igreja, com o Papa legítimo, Urbano VI,  e um ilegítimo eleito apenas por cardeais franceses.

Em meio a essa confusão, as almas retas lamentavam a ausência dos Papas de Roma, e desejavam ardentemente que a Cidade Eterna voltasse a ser o centro da Cristandade, e a paz, a dignidade da fé e o bom aroma da virtude reinasse novamente no orbe católico.

Uma dessas almas foi Santa Catarina de Siena, suscitada por Deus para, através de suas célebres cartas e admoestações dirigidas às autoridades eclesiásticas — sobretudo à maior delas, o próprio Papa — reconduzir as ovelhas de Cristo a serem outra vez um só rebanho sob a égide de um só pastor. Grande mística, favorecida por visões de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela escrevia essas missivas inspirada por tais revelações, e acabou granjeando influência e admiração entre os que aceitavam seus conselhos. Contribuiu, dessa forma, para sustentar a nau da Igreja em sua conturbada trajetória, embora não chegasse a presenciar em vida o fim do chamado grande cisma do Ocidente, que se deu trinta anos depois de sua morte.

Seja como for, confiante na infinita solicitude de Nosso Senhor Jesus Cristo por sua Esposa Mística, Santa Catarina rezou e se sacrificou até o derradeiro suspiro pela salvação e reunificação da Igreja. Nessas disposições entregou a alma a Deus, no dia 27 de abril de 1380.

Não há flores sem cruzes, nem cruzes sem flores

É essa Santa Catarina que se comprazia em dar presentes de Natal aos seus amigos. Percebe-se nessa peculiaridade o espírito ameno, alegre (no bom sentido da palavra) e afável de uma religiosa tão penitente e mortificada. Mas, os presentes que ela oferecia eram simbólicos. Quando menina, ela dava flores, de que o solo italiano é fecundo, e cruzes, de que a vida do católico é também fecunda.

Essa ideia de oferecer flores e cruzes parece-me muito equilibrada, pois o Natal é uma época de felicidade e convém externar esse júbilo por meio do colorido das flores. Contudo, para o católico não há flores sem cruzes, e por isso sempre será oportuno, na hora do júbilo florido, lembrar a alma que ela deve se preparar para os sofrimentos.

Eu diria mais: também não há cruzes sem flores. Pois o católico sabe aceitar as provações como algo valioso para a sua santificação e para uni-lo a Nosso Senhor e Nossa Senhora. Razão pela qual a cruz é por ele recebida com alegria, como se adornada de flores, a exemplo de Nosso Senhor ao abraçar a cruz que Ele deveria levar até o alto do Calvário. Segundo piedosa crença, no momento em que Lhe impingiram o instrumento de seu suplício, o Divino Redentor o osculou afetuosamente antes de carregá-lo nos ombros, porque era o meio para a realização da missão que O trouxera ao mundo, isto é, a redenção do gênero humano.

Advertências salutares

Quando alcançou notoriedade, dotada de prestígio junto aos Papas, Santa Catarina de Siena passou a dar presentes mais elevados, quer dizer, obtinha para seus favorecidos certas indulgências concedidas pelo Pontífice e outros dons espirituais.

Para compreendermos o valor de uma indulgência cumpre considerar que as almas de quase todos os fiéis defuntos passam pelo Purgatório, onde se purificam e expiam as penas devidas às faltas cometidas nesta vida.

Ora, pelos méritos das indulgências, uma alma consegue abreviar seu período de expiação no Purgatório, ou até mesmo eliminá-lo de todo.

Podemos imaginar, então, com que felicidade os amigos de Santa Catarina de Siena recebiam, mandado por ela na noite de Natal, um documento do Papa concedendo tais e tais indulgências. Com um detalhe interessante de notar. É que por meio dessa forma amena de agradar o próximo, envolta no bimbalhar dos sinos natalinos e sob o invólucro do perdão, Santa Catarina não deixava de lhe dizer uma importante verdade: “Não se esqueça de que você tem contas a pagar. Essas indulgências serão suficientes para cobri-las? Examine sua alma, abra os olhos e pense em como se comportará doravante”.

Havia, portanto, subjacente ao gesto de afeto e amizade, uma salutar advertência para a vida espiritual do seu conhecido.

Um lindo modo de estimular o Papa à prática da virtude

Há ainda o pitoresco fato de ela ter mandado cinco laranjas de presente para o Papa. Entende-se que Santa Catarina fez uma compota, “dourando” os frutos no açúcar e no fogo, o que lhe inspirou a bela comparação que expressou nas linhas dirigidas ao Vigário de Cristo.

Na verdade, encontrara um modo gracioso e igualmente ameno de estimular o Pontífice à prática da virtude, à paciência, ao desapego das coisas materiais, ao amor à cruz e ao espírito de penitência, quão mais necessários naquele que era o guia e modelo de todos os católicos do mundo. Então se refere ao amargor que a fruta apresenta num primeiro momento, para depois tornar-se doce e agradável ao paladar: assim como a virtude, a princípio amarga para o homem ainda presa de suas imperfeições e apegos; em seguida suave e deleitosa, pelo sofrimento unido ao de Cristo e abraçado com perseverança e humildade

Padroeira dos que trabalham e lutam pela Igreja

Concluo esses comentários salientando um ponto que me parece muito oportuno. Uma vez que Santa Catarina de Siena distinguiu-se por seu zelo e fervor no serviço da Esposa Mística de Cristo, posto que ela tanto trabalhou para reerguer a Igreja no tempo dela, não será despropositado tomá-la como padroeira de todos aqueles que igualmente trabalham e lutam pelos interesses católicos.

E, portanto, é de extrema conveniência que a ela elevemos nossas preces, rogando seu auxílio e sua intercessão junto a Maria Santíssima e ao Sagrado Coração de Jesus, a fim de que possamos, nós também, conquistarmos em nossa época grandes vitórias para a Igreja.

 

(Extraído de conferência em 30/4/1971)