O mês de maio e o Reino de Maria

No mês de maio, as festas em honra de Maria Santíssima eram celebradas com muito esplendor e deixavam saudades em todos os fiéis. O Reino de Maria será um imenso mês de Nossa Senhora, e em todos os dias se comemorarão as grandezas da Rainha do Universo.

 

Sendo o mês de maio dedicado especialmente à Santíssima Virgem, gostaria de tratar sobre a festa, outrora comemorada no dia 31 de maio, de Nossa Senhora Rainha, que é a festividade do Reino de Maria.

Dar glória a Deus

Este Reino é algo tão transcendental, tão grande, de tal modo ligado à eternidade, que toda borrasca terrena pode ir e vir, desencadear-se e resolver-se, mas o Reino de Maria permanece eternamente, sólido e brilhando na sua glória intrínseca, de maneira tal que todas as injúrias, as propagandas adversas não podem nada contra ele.

O que vem a ser propriamente a Realeza de Maria? E por que a Igreja instituiu esta comemoração? Ela a estabeleceu com duas intenções. A primeira é de dar glória a Deus, por meio de Nossa Senhora, a propósito do assunto da própria festa. Assim, por exemplo, a solenidade de Corpus Christi foi estabelecida para dar glória a Deus — sempre por meio de Maria Santíssima, porque Ela é a Medianeira universal de todas as graças — pela instituição do Santíssimo Sacramento, pelo fato de a Igreja ter sido adornada, enriquecida e vivificada por esse Sacramento admirável, ou seja, a Sagrada Eucaristia.

Assim também a Igreja estabeleceu uma festa para a Realeza de Nossa Senhora porque ela quer dar glória a Deus pelo fato de Maria Santíssima ser Rainha. Então ela festeja, canta, com um ato de amor e de culto, toda essa glória que Deus recebe por essa realeza da Santíssima Virgem. E enquanto católicos, temos que nos associar, evidentemente, a essa atitude da Igreja.

Anteriormente fora escolhido para esta comemoração o dia 31 de maio para, desta forma, fechar com chave de ouro o mês de Maria, completando assim todas as honras que a Santíssima Virgem recebeu durante esse mês, aclamando-A Rainha, depois de terem sido ditas todas as outras maravilhas em louvor a Ela. Isso implica em proclamar a mais alta glória d’Ela, abaixo da honra de ser Mãe de Deus e dos homens: ser a Rainha dos homens e a escrava de Deus Nosso Senhor.

Assim, a festa da Realeza de Maria tem um alcance muito grande. A Igreja espera do interior de nossas almas uma alegria, uma satisfação, uma homenagem, uma honra a Nossa Senhora como Rainha.

Concentrar a atenção na realeza de Maria

Acrescenta-se a isso um segundo objetivo: a cada ano que passa essa festa se repete. Desta maneira, a Igreja — conhecedora da facilidade com que o espírito humano se dispersa e se volta para coisas às quais não deveria se voltar — obtém um meio de concentrar novamente a atenção de seus filhos sobre esta realidade: Nossa Senhora é Rainha.

Eis porque a Igreja organizou, ao longo dos séculos, o calendário litúrgico, consagrando cada dia do ano ao culto de vários Santos, alguns dias a determinados mistérios da Religião Católica, e também a alguns títulos de glória de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora.

Assim, a cada ano que passa, a Igreja pede a todos os seus filhos que se recolham de modo especial e pensem, meditem na realeza de Maria Santíssima.

Esses dois objetivos se ligam, porque ninguém pode amar o que não conhece. Portanto, não pode amar a realeza de Maria quem não a conhece. É preciso pensar nela, refletir a respeito dela, para depois amá-la.

A concentração do espírito, o pensamento, a reflexão antecipam o ato de amor. A Igreja pede que reflitamos, nos concentremos, para depois fazermos um ato de amor, e com isso darmos a Nossa Senhora a glória pelo fato de Ela ser Rainha.

Vemos, assim, como na Santa Igreja tudo é bonito, bem pensado. Quanta harmonia, quanta profundidade, quanta serenidade, quanta nobreza, quanta força há em todas as coisas da Igreja! Mesmo em meio aos terríveis torvelinhos pelos quais a Igreja Católica possa passar, ela é ela, a Igreja imortal. E sempre conservará a santidade que lhe é própria até o fim do mundo, porque ela é indestrutível. Um dos aspectos dessa santidade é exatamente o conservar a festa da Realeza de Maria.

As cerimônias de outrora ao longo do mês de maio

Os que não alcançaram o mês de Maria, como tradicionalmente se realizava até uns quinze anos atrás, não têm ideia de como era uma verdadeira maravilha.

Toda noite, em geral por volta das 7h30 — os horários variavam um pouco —, em todas as igrejas, e mesmo nas capelinhas do campo, realizavam-se cerimônias em honra de Nossa Senhora.

A cerimônia constava fundamentalmente do seguinte: as associações religiosas — filhas de Maria, congregados marianos e outras congregações consagradas a Nossa Senhora — ocupavam inteiramente os bancos da igreja, de um lado e de outro. O sacerdote subia ao púlpito, portando sobre a batina a roquete: aquela espécie de meia túnica branca com rendas, que os padres usavam.

Do alto do púlpito o sacerdote rezava em silêncio, enquanto o coro entoava a “Ave Maria”. O padre mantinha-se ajoelhado no púlpito, e todo o povo, de joelhos também, constituindo uma massa popular enorme que enchia a igreja, ocupando todos os espaços, até para fora dos bancos.

Todos cantavam a “Ave Maria”, pedindo graças para o sacerdote pregar com bastante unção sobre a Santíssima Virgem. Terminado o cântico, ele iniciava o sermão.

Após a prédica, o coro recomeçava a cantar, entoava a ladainha de Nossa Senhora e outras orações em louvor a Ela.

Ao final, era dada a bênção do Santíssimo Sacramento. O momento culminante da cerimônia ocorria quando o sacerdote se voltava para o povo, portando nas mãos o ostensório sob a forma de sol com raios de ouro, dentro do qual estava o Santíssimo Sacramento, e, diante de todo o povo genuflexo, dava a bênção, voltando-se com a Hóstia Sagrada para todos os lados da igreja.

Depois depositava o ostensório novamente sobre o altar, ajoelhava-se, rezava algumas orações e guardava o Santíssimo Sacramento no sacrário.

Em seguida, o sacerdote saía enquanto o coro cantava. A igreja estava tomada pelo perfume do incenso, largamente utilizado durante a bênção do Santíssimo para adorar a Sagrada Hóstia.

Atmosfera abençoada que se difundia

As associações religiosas se retiravam pela sacristia, e as pessoas retornavam para suas casas.

Entretanto, ficavam ainda alguns fiéis rezando na igreja. Era talvez um dos aspectos mais bonitos. Na igreja quase vazia, ouviam-se remanescentes de melodias sacras, sentiam-se restos de incenso flutuando pelo ar, o sacristão ia aos poucos apagando as várias luzes do edifício sagrado, revistando os confessionários, atrás dos altares, para ver se não ficara alguém nesses locais, e ia assim preparando a igreja para ser fechada.

Até esse momento, permaneciam ainda algumas almas aflitas, recolhidas diante deste ou daquele altar: ora era uma velhinha, ora um rapagão imenso, ora um senhor obeso e atingindo largamente os seus 50 ou 60 anos, ora uma mãe de família de meia idade, ora uma criancinha. Todos rezando com afinco junto a uma imagem e pedindo uma graça espiritual ou temporal, de que muito necessitavam.

Por fim, o sacristão aparecia e, para dar a entender que era preciso sair da igreja, ao invés de pôr as pessoas para fora, ele sacudia um molho de chaves. Todos entendiam que era preciso sair, e só então o templo esvaziava. Quer dizer, os filhos da Igreja ficavam dentro dela o tempo que pudessem.

Quando terminava a bênção, eram 9h, às vezes 9h30, hora relativamente tardia para a São Paulo daquele tempo. Nas ruas desertas, podiam-se acompanhar os últimos fiéis que saíam, andando devagarzinho: uma senhora com uma bolsa na mão, mais adiante um homem com ar sofrido, outro que estava alegre, esperançado, dispersavam-se aos poucos como se fossem as últimas bênçãos da igreja que se difundiam para os vários cantos da cidade.

O relógio da torre da igreja: símbolo da relação entre o pensamento da Igreja e o do homem

Ficava aquela torre voltada para o céu, o relógio indicando as horas noite adentro, silêncio em volta, as nuvens, a Lua, o tempo, tudo passando à espera da manhã seguinte, quando o templo abrisse de novo as suas portas, de madrugadinha, e em que se vissem muitas daquelas mesmas pessoas da véspera voltarem, às vezes nas madrugadas frias e ventosas de São Paulo, e entrarem na igreja que representava, ao mesmo tempo, um refúgio para a alma e um abrigo contra as ventanias que sopravam sobre o corpo. Iniciava-se, então, uma cerimônia religiosa ainda mais augusta e mais solene do que a da véspera: a Missa. Era a vida da igreja que recomeçava quando a cidade acordava. Era uma verdadeira beleza!

O simbolismo do relógio na torre das igrejas é lindo! Não é direta e principalmente para que o transeunte o olhe e veja que horas são; tem acidentalmente também essa finalidade, mas o objetivo principal é outro. Os pequenos relógios particulares eram menos pontuais do que os grandes que encimavam as torres. Por isso, estes serviam para que todos acertassem por ele os ponteiros dos relógios cambaios.

Esse era o símbolo da relação entre o pensamento da Igreja e o do homem. O homem acerta o seu pensamento pelo da Igreja — porque a Igreja não erra nunca, e ele pode errar —, assim como acerta o seu relógio pelo relógio estável, que os padres mantinham pontual. Essa era a beleza do relógio da torre da igreja.

A coroação de Nossa Senhora

No encerramento do mês de Maria, no dia 31, em todas as igrejas, Nossa Senhora era coroada Rainha. Colocava-se no presbitério, bem na frente, uma pequena construção artística, de madeira, que variava de acordo com a imaginação e o gosto do vigário e das pessoas da paróquia, mas comportava essencialmente um lugar muito alto onde havia uma imagem da Santíssima Virgem toda cercada de flores, uma escadinha por onde, em geral, uma criança levava uma coroa e com ela coroava Nossa Senhora Rainha.

Todo o povo permanecia genuflexo, o órgão tocando a todo volume, o coro cantando, proclamava-se, assim, a realeza de Maria Santíssima.

Feita a coroação, um grupo de pessoas designadas pelo vigário tomava a imagem de Nossa Senhora e formava um cortejo; o vigário ia atrás com a capa magna, e davam uma volta pelas várias naves da igreja com a imagem coroada. Em seguida, colocavam-na de novo no seu trono. Depois disso vinham diversas orações, e estava terminado o mês de Maria.

O mês de Maria acabava deixando umas saudades enormes! Todo mundo gostaria que o ano litúrgico inteiro fosse um perpétuo mês de Maria.

Eu espero que quando chegar o Reino de Maria isso seja assim, e que da vitória de Nossa Senhora, prevista em Fátima, até o fim do mundo nós tenhamos um imenso mês de Maria, em que todos os dias a Santíssima Virgem seja festejada e se aclame a glória d’Ela, vista como Rainha do Universo.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1975)

Revista Dr Plinio Maio de 2015

Meu primeiro olhar para a Igreja

Desde a infância, Dr. Plinio começou a formar uma ideia da Igreja, vislumbrando sua sublimidade perfeita, que reúne em si todas as qualidades, contém uma dignidade insondável, ao lado de uma Cátedra infalível, bem como sua fortaleza e amor extraordinário à paz. E ele tinha a sensação de que a Igreja o olhava e o analisava.

 

Há um aspecto da alma humana pelo qual o ato de vontade é imediatamente consecutivo ao ato de inteligência e, mais ainda, o ato de vontade ajuda a inteligir, e o ato de inteligência ajuda a querer, que para nós, internamente, são como se fossem uma só coisa.

Interação entre vontade e inteligência

Imaginemos, por exemplo, uma pessoa que nunca tenha ouvido coisa alguma. Eu conheci uma moça completamente surda, e que nunca na vida tinha escutado som nenhum. De repente, apareceram em São Paulo esses aparelhos de audição. O pai dela fez um esforço — porque esses aparelhos no começo eram caríssimos — e comprou um para a filha. Lembro-me dela contar para mim o maravilhamento que teve ao ouvir os primeiros sons; e uma das primeiras coisas que a maravilharam foi quando ela, tendo posto o aparelho nos ouvidos, abriu fortuitamente uma torneira e viu que, ao cair, a água fazia barulho. Ela ficou encantada com o barulho da água, e procurava imitar o ruído.

Suponhamos que ela ouvisse música pela primeira vez e, portanto, se abrisse ao mundo da música. Sua inteligência compreenderia aquilo, mas poderia ser que já nos primeiros acordes, o “dó, mi, sol”, no primeiro toque de órgão ou outro instrumento, ela tivesse um incêndio da vontade, um entusiasmo pela música e se lançasse nesse campo. Quer dizer, a inteligência viu apenas uma pontinha, mas a vontade entrou inteira e impeliu a inteligência a atuar. O ato de vontade ajudou a inteligência a fixar-se e, em certo sentido, até a entender.

Existe algo disso entre nós e a Igreja Católica, em virtude do dom da Fé. Podemos nos dar conta disso ou não, mas somos convidados, em nossos primeiros lances, a ver a Igreja com ênfase: “Então, é isto!” Esta ênfase varia muito de acordo com a pessoa, depende do modo de ser de cada um. Por exemplo, minhas ênfases calmas não são vibráteis e de grande vitalidade. Mas esta ênfase primeira nos é dada junto com a Fé.

Um conjunto de sublimidades perfeitas

Quando comecei a me aproximar e a formar uma ideia da Igreja — eu tinha uns sete ou oito anos de idade —, dizia de mim para comigo o seguinte: “Há aqui um conjunto de sublimidades perfeitas que é o tom de tudo. E a verdade total está nisso. E esse tipo de sublimidade perfeita reúne em si todas as qualidades e contém uma dignidade insondável, inimaginável, ao lado de uma Cátedra infalível, de uma fortaleza inefável, mas de um amor extraordinário à paz”.

Isso tudo está contido nesse primeiro momento em que olhamos a Igreja e temos a impressão de que ela nos olha. Naquela ocasião não formei essa ideia, mas hoje, lembrando-me daquilo, noto que eu tinha a sensação de que a Igreja me olhava, e eu sentia o olhar dela pairando sobre mim, analisando-me. E estava no direito dela… Se a Igreja fosse redutível a uma pessoa, esta como que se perguntaria: “O que vai sair disto: uma via de júbilo ou uma via de dores? De qualquer maneira, vou dar-me inteira a ele”. E eu, submisso, não cabendo em mim de entrega, de entusiasmo, de fervor!

União autêntica nascida do primeiro olhar

Tudo quanto eu via da Revolução e da Contra-Revolução era derivado do fato de ter no fundo da minha alma esse olhar primeiro. E eu quereria que a Igreja recriminasse os erros da Revolução e me repreendesse pelos meus defeitos. Uma Igreja mãe de misericórdia, como Nossa Senhora, mas que soubesse me dizer as verdades.

E pensava: “Analisando a Igreja, vejo que isto está nesse algo celeste que eu vi. É apenas um raio do sol dentro do sol. Não está incidindo no momento, mas tem que ser assim”. E cheguei a explicitar verdades que eu nunca tinha ouvido: “É preciso ser combativo, pois a combatividade é uma virtude católica”. Só muito depois vim a descobrir a virtude da fortaleza. Na época em que eu era menino, a fortaleza era apresentada numa tal banha de modorra e de sono, que não me dei conta do significado dessa virtude.

Vejam o lado interessante: eu não falava em nome da Igreja, mas, baseado na doutrina dela, fazia afirmações que possuíam fundamentos escritos para comprová-las.

E aqui está o que me interessa mostrar: esta forma de união proporcionada por essa espécie de olhar. E, sem ler o que os autores diziam, deduzir. Mas deduzir a partir de um estado de espírito e de uma virtude que eu tinha notado e me encantaram. Isso é realmente uma forma muito autêntica de união. Não quero dizer que seja uma forma excelsa, superexcelente de união, mas é uma forma de união muito autêntica.

No que consistiu esse olhar primeiro? É claro que a palavra “olhar” vai aqui entre aspas; trata-se de uma metáfora. Esse discernimento primeiro, em que consiste e que profundidades ele pode atingir? Nenhuma comparação é inteiramente precisa. Os latinos diziam: “omnia comparatio claudicat”, toda comparação claudica, um pouco ou muito. Eu compreendo que se poderia objetar contra o que estou dizendo, mas seria uma objeção desprovida de sentido, pois a ambição de uma comparação não visa dar uma definição, mas apenas ajudar a esclarecer um tema.

Foco divino da inteligência da Igreja: o Espírito Santo

Podemos demonstrar que a Igreja Católica é a verdadeira Igreja de Deus, através da razão apoiada pela graça. Mas há alguma pessoa que tenha feito, passo a passo, este itinerário inteiro, antes de crer: “Pois bem, depois de dez anos de estudo, está provado que a Revelação é verdadeira e que Nosso Senhor Jesus Cristo foi Homem-Deus. Entretanto, qual das igrejas cristãs é a verdadeira?” Para proceder racionalmente é preciso coletar todos os pontos de divergência, que existem e que existiram, e estudar cada um desses pontos.

Esse olhar primeiro e essa graça nos tocam e nos convencem. Depois, a razão, de cá, de lá, de acolá, de vez em quando faz uma pergunta, e nós, sem duvidar, podemos prestar atenção no que responde a Apologética; e isso nos satisfaz. 

Considerando a História da Igreja, desde a época primitiva até a queda do Império Romano do Ocidente, e detendo a atenção no estudo das heresias, das polêmicas internas — já no tempo das catacumbas e mais tarde —, aparecem os grandes homens daquele período.

Vemos então uma inteligência da Igreja por onde, por mais que apliquemos a nossa inteligência, sentimo-nos umas crianças em comparação com aqueles personagens. Não é apenas porque aqueles doutores tenham sido tão inteligentes. Sem dúvida o foram; contudo, o meu comentário não versa sobre isso, mas sobre outra coisa: o foco de onde tudo isso surgiu é superior a eles todos. E por mais que procuremos compreender esse foco, ele nos compreende, mas nós não o compreendemos. É o Divino Espírito Santo.  v

 

 

Plinio Corrêa de Olveira (Extraído de conferência  de 18/7/1981)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

O órgão, o vitral, a ogiva

Três luzes emanadas da Civilização Cristã que, sendo representações sensíveis de Deus, elevam as almas a uma atmosfera celestial.

 

O órgão tem esta coisa maravilhosa: é uma “penumbra sonora”, feita exatamente de som e silêncio. Porque, ainda que soe com todos os registros, o órgão tem dentro de si qualquer coisa de aveludado e silencioso, que é um dos seus melhores charmes, e que mais casam com a penumbra visível da Igreja. Assim é o misto de silêncio e som que há no órgão.

O instrumento de todas as inocências

Entretanto, o órgão quase não comporta a descontinuidade sonora total. Aquele som vai e vai… Sempre mantendo uma harmoniosa ligação com os sons anteriores.

A pessoa que, a partir de um instrumento rudimentar, deu ao órgão as características que conhecemos hoje, poderia ser chamada de “profeta” em matéria de música.

A meu ver, o órgão tem isto de fabuloso: há nele registros que remetem diretamente para o mais admirável da inocência e que fazem dele, quando bem tocado, o instrumento de todas as inocências.

Se fôssemos falar propriamente da inocência na sua maior abertura de asas, deveríamos imaginá-la como um órgão. Ela transforma a alma do homem num instrumento capaz de tocar todas as músicas, à maneira do órgão.

Assim, enquanto não conseguirmos fazer sair das profundidades de nosso ser, não a catedral “engloutie”(1), mas o órgão “englouti”, não teremos feito nada.

Toda alma tem, com variantes, um “órgão metafísico” para tocar em função do universo, e a descoberta desse “órgão” é o fim da nossa vida. Quando descobrirmos isso, estaremos prontos para o Céu. Isso se refere, inclusive, ao escopo da vida de piedade.

Representações sensíveis de Deus

A Santa Igreja tem algo por onde ela relaciona os homens à maneira dos tubos de um órgão. Por isso, a Igreja Católica, bem constituída e vista na sua inteira normalidade, pode ser comparada a um imenso órgão ou a um imenso vitral, porque o vitral faz com as cores o que o órgão realiza com os sons; é o mesmo princípio aplicado em matéria cromática.

Trata-se, portanto, de formar uma visão da ordem temporal sacral, dentro da ordem do universo na qual o homem se encaixa, iluminado por este “lumen uno” da Igreja, que ela soube exprimir através do órgão e do vitral, mas que é um estado de alma, uma supra virtude, uma superposição de temperamento, que eu tenho a impressão de que é uma das graças, das mais genuínas, do Espírito Santo.

Em Pentecostes uma chama baixou e depois se dividiu em várias línguas de fogo. Assim também, o “unum” dessa graça estaria nessa chama originária, que depois se transformou nos vários tubos de um órgão ou nas várias cores de um vitral. É a regra da reversibilidade entre unidade e variedade que está aqui refletida. Variedade levada até quase ao infinito, partindo de uma unidade que se desdobra em guirlandas sem se depauperar em nada.

E, a bem dizer, com uma semelhança estupenda com Deus, que sem Se empobrecer e sem Se cansar em nada, no fulgor de sua glória, cria. Também esse “unum” não se exaure, não empobrece, até se alegra em emitir de dentro de si as mais valiosas variedades, sem sofrer o menor abalo. Quase o motor imóvel de tudo o que ele mesmo pôs em movimento.

Este é o “unum” do órgão, que é o mesmo do vitral: são representações sensíveis de Deus, motor imóvel.

O órgão tem uma forma de beleza própria à polifonia, diversa da beleza austera do cantochão. Entretanto, o canto gregoriano e o órgão não se contradizem, ambos são sublimes. Enquanto o gregoriano afirma: “vaidade das vaidades, tudo não é senão vaidade”(2), o órgão parece dizer: “harmonia das harmonias, tudo não é senão harmonia”.

Por outro lado, vejo no órgão o mesmo que na ogiva e em outras coisas da Idade Média: uma ordem magnífica.

O sublime, o paradisíaco e o alcandorado

Nem tudo o que é humano, nesta Terra, é sublime, mas o órgão seleciona, dentre os sons humanos e terrenos, os sublimes, procurando elevá-los a um estado paradisíaco. O estilo gótico, por sua vez, busca o mesmo em matéria de arquitetura.

Poderíamos dizer que metade do espaço ocupado pelo gótico e pelo órgão é sublime, e a outra metade é paradisíaca. Na ponta transparece o alcandorado e a esperança do Reino de Maria.

Já a coexistência tão ordenada desses três valores — o sublime, o paradisíaco e o alcandorado — dá uma plenitude muito repousante e que prepara para o alcândor. O gótico é uma espécie de santa preparação para chegar ao alcândor. Reúne tudo quanto nossa natureza é capaz de pegar e vai ordenando para perceber a ponta do sublime, e é nisto que me parece estar o mais belo do gótico.

Vemos, assim, o equilíbrio com que devemos pensar no alcândor do Reino de Maria, que não desprezará nem o sublime nem o paradisíaco. Mas assim como Nosso Senhor subiu, caminhando com seus pés divinos, até o alto do Monte das Oliveiras para ali operar sua Ascensão aos céus(3), na qual já não necessitaria empregar a força de seus membros, também no Reino de Maria se ordenarão esses valores sublimes e paradisíacos para, a partir dessa elevação, ascender-se ao alcandorado.

Lembro-me da primeira vez em que eu vi uma ogiva em estilo gótico “flamboyant”. Exclamei: “Ah, que maravilha! Era o que faltava e que eu não tinha talento para imaginar. Que coisa estupenda, maravilhosa!”

Depois ouvi alguém criticá-la, mostrando o que ali havia de transição revolucionária para a Renascença. Pensei: “Lá vem o famoso mau espírito demolidor, a tal acusação seca e destruidora do bom espírito”. Mas depois compreendi que a pessoa tinha razão, pois no modo daquela chama se agitar já entrava algo da Renascença.

Porém, em si, o princípio de que a ogiva tão bonita floresceria numa ordem que a transcenderia, me encantou. Era algo que subia para o alcandorado, cujo voo a pré-Renascença desfigurava.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/4/1978 e 16/11/1979)

 

1) Do francês: submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.

2) Cf. Ecl 1, 2.

3) Cf. At 1, 12.

O Santíssimo Sacramento e a misericórdia de Nossa Senhora – II

Maria Santíssima é Mãe de misericórdia e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais recebemos forças para sair do pecado e não mais ofender a Deus.

 

Na realidade, o homem encontra-se numa situação tal que lhe convém ser tratado com justiça, e por isso ele deve gostar de um trato que tenha a nota tonificante de justiça. A qualidade que ele tem lhe será reconhecida, e seu defeito também lhe será mostrado; tudo graduado de acordo com o que merece. Isso fortalece, faz bem, eleva o homem.

A importância de um braço amigo que nos sustente durante a prova

Por mais que isto seja assim, entretanto há momentos — e quantos são esses momentos! — em que a fraqueza humana aparece e o homem faz a seguinte reflexão: “Eu sei que deveria agir de tal modo e não fazer outra coisa. Vejo o peso que isto representa, e precisaria realizar um sacrifício. Porém esse sacrifício me dói. Estou disposto a fazê-lo aos poucos, mas como me faria bem se eu notasse que um olhar bondoso participa da minha dor e me diz: ‘É bem verdade, você tem que fazer esse sacrifício e a mim me dói. Eu até tomo sobre mim uma parte de seu sacrifício. Entretanto, meu filho, algo é intransferível e tem de ser feito por você, para sua glória, para seu bem. Você seria roubado se lhe fosse tirada a possibilidade de sacrificar-se. Faça o sacrifício, mas eu o olho com afeto, com compaixão durante esse tempo. Vamos para frente e coragem!’”

O homem, tratado assim durante a prova e na dor, recebe uma comunicação da força do outro. É como uma pessoa sem firmeza para andar, mas que é sustentada pelos braços de outrem. O passo é vacilante, ela anda, mas precisa de um apoio, um braço amigo que a sustente. Como não dizer “muito obrigado”? Como não sentir-se bem junto a esse braço amigo que ajuda? É evidente.

O inesgotável amor materno

Esse é bem o papel de Nossa Senhora. Ela é insondavelmente misericordiosa! Na ladainha ao Sagrado Coração de Jesus, uma das invocações é: “Cor Jesu, patiens et multæ misericordiæ, miserere nobis — Coração de Jesus, paciente e muito misericordioso, tende compaixão de nós”. A fonte de todas as virtudes é Ele. E na misericórdia, como em tudo o mais, Ele está infinitamente acima de Maria Santíssima.

Mas querendo fazer os homens sentirem, ao último ponto, a misericórdia de Nosso Senhor, Deus dispôs que ela fosse representada naquilo que é o amor mais desinteressado de que o homem pode beneficiar-se habitualmente nesta vida.

Nas épocas normais da humanidade, notamos nas relações familiares o seguinte: às vezes, o marido pode romper com sua esposa, o pai com seu filho, o filho com seu pai, os irmãos entre si; quanto aos outros graus de parentesco nem se fala! O filho pode até romper com sua mãe, mas é raríssimo a mãe romper com seu filho.

E esse amor materno vai tão longe, na ordem da natureza, que quando Jesus chorou sobre Jerusalém, antes de chegar ao Horto das Oliveiras, Ele disse: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes Eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas tu não quiseste!”(1). Para exprimir o extremo do seu amor, Ele quis compará-lo ao amor materno, mas neste grau, nesta forma: uma galinha em relação aos seus pintinhos! Ele recorreu a essa figura para nos fazer compreender, de modo tocante, o que há de inesgotável no amor materno.

Mãe das misericórdias insondáveis

Assim, Nosso Senhor dispôs que conhecêssemos e sentíssemos em sua Mãe quintessências de misericórdias que Ele deu a Ela e que nós, simplesmente na consideração do Redentor, não chegaríamos a perceber. Porque Ele é tão alto, tão perfeito, tão divino que nosso olhar não abarca tudo. Convinha, portanto, que a misericórdia d’Ele se fizesse como que outra pessoa para nós a conhecermos bem. Esta é Nossa Senhora.

Maria Santíssima fica tão bem ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ela é Mãe de misericórdia, a nossa advogada. Nosso Senhor Jesus Cristo é nosso Redentor, nosso Mediador. Ele é também nosso Juiz e nos julga. E quando pensamos que Ele é nosso Juiz… Há um salmo que diz: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit? — Se observardes, Senhor, as iniquidades, quem, Senhor, se sustentará diante de Vós?”(2). Agora chegou o justo Juiz, perfeitíssimo, que conhece tudo, cujo olhar pousará sobre mim e verá meus defeitos… Eu adoro a exigência e a intransigência desse olhar. Mas, para usar uma metáfora, eu cambaleio e preciso que alguém me sustente.

Perto de mim tenho uma Mãe que é d’Ele e minha, a Mãe de misericórdia, quer dizer, se toda mãe deve ser misericordiosa por natureza, a Mãe de misericórdia tem misericórdias insondáveis, incontáveis, inenarráveis, a todos os momentos e de todas as formas! Ela é tão perfeita e tão pura, que nunca deu a Ele o menor desagrado, o menor desgosto. Ela é a criatura perfeita em que Ele deitou seu olhar e A amou inteiramente, porque Ela nunca, nunca, nunca fez outra coisa a não ser corresponder à graça de um modo perfeito.

O melhor da misericórdia de Maria Santíssima

Qual a impostação d’Ela a meu respeito? Ela vê meus defeitos, mas não julga. Ela cobre-me com o manto e diz: “Juiz inflexível e divino, Eu vos adoro! Este é meu filho, e ainda vou dar um jeito nele. Ajudai-o, dai-lhe mais graças. Eu o amo e peço por ele. Tenho com ele um vínculo especial. Ó meu Filho, vós sabeis o que é uma mãe, pois Eu sou vossa Mãe! Com o mesmo Coração materno com que Vos amo, Eu amo a ele. Sou Eu que Vos estou pedindo!”

E com estas palavras: “Sou Eu que Vos estou pedindo”, é claro, vem a misericórdia. Quer dizer, Nosso Senhor foi tão misericordioso que, querendo nos conceder uma misericórdia levada a um limite inimaginável, criou a Mãe d’Ele, de tal maneira que Ela pedisse por nós e obtivesse o que nós, sem Ela, não poderíamos obter.

Temos aí o papel de Nossa Senhora, ao lado de todas as inflexibilidades de que falei. E aí encontramos a razão para esperar. Esperar o quê?

Maria Santíssima tem pena de nós e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais nossa alma é tocada especialmente, e recebe forças correspondentes a nossa miséria para não pecar, de maneira que possamos sair do pecado. Aqui está o melhor da misericórdia: Ela, porque tem pena do pecador, dá a ele os meios de se curar. Nossa Senhora é a Rainha e o canal de todas as virtudes, a Medianeira de todas as graças. As virtudes que temos nos foram dadas porque Ela pediu. E as que não possuímos, podemos adquirir se Ela rogar por nós. 

As mil maneiras de Nossa Senhora nos socorrer

E o que a Santíssima Virgem fará? São mil coisas: ora será um apego que Ela faz cessar e a alma encontra o caminho livre diante de si; ora uma má companhia que Ela afasta; ora uma má influência a respeito da qual Ela nos abre os olhos e nós compreendemos que aquilo não serve; ora a nossa moleza contra a qual Ela dá de repente uma força que não supúnhamos ter e fazemos aquilo que não queríamos realizar.

Quer dizer, Nossa Senhora age de mil modos, cada um deles previsto pela sabedoria divina e atuando na alma de uma determinada forma. O fato é que Ela vai atendendo, socorrendo o homem de maneira a torná-lo capaz de cumprir aquele dever magnífico apresentado de um modo tão estupendo pela Moral Católica, mas diante do qual, às vezes, o homem estremece.

Rezem à Mãe de Misericórdia! Ela os ajuda a vencer, e com mérito. Porque em nenhum momento Maria Santíssima tira nossa liberdade. Se quisermos, não correspondemos à graça, mas o caminho está aplainado, o sorriso está dado e Ela chama: “Meu filho, venha!”

Quanta misericórdia entra dentro disso! A misericórdia tem isso de próprio: ela estimula especificamente a gratidão. A quem é misericordioso temos necessidade de tratar com misericórdia. E se algum homem na vida teve misericórdia conosco, um dia em que ele precise de nossa misericórdia, será para nós uma espécie de alívio tratá-lo com misericórdia. Há uma tranquilidade para a nossa alma: encontrei uma oportunidade de ser misericordioso com ele. Os misericordiosos obterão misericórdia. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1981)

 

1) Cf. Mt 23, 37.

2) Sl 130, 3 (Nova Vulgata).

Fontainebleau: esplendor, riqueza e simplicidade – I

Dr. Plinio era muito sensível às cores. Comentando algumas fotografias do castelo de Fontainebleau, ele chama a atenção para a luz que entra pelas janelas, os lustres, os quadros, os painéis, os caixilhos dos tetos, as tapeçarias, os tapetes, tudo constituindo uma prodigiosa policromia. Mostra que tudo visava a beleza a qual, em seu grau extremo, toca a sublimidade.

 

O castelo de Fontainebleau(1) foi construído, no século XVI, pelos reis da dinastia de Valois(2). Quando os Valois se extinguiram, passou para os Bourbons(3) e foi ininterruptamente residência real, até a Revolução Francesa. Depois, sob Napoleão III, mais uma vez se tornou residência real; Napoleão I também habitou Fontainebleau. Depois de Versailles, o mais importante dos castelos franceses é Fontainebleau.

Galeria imponente

Observem a amplitude das dimensões da galeria, que é um corredor, uma comunicação entre dois pontos do castelo. Em galerias como essa se davam festas, faziam-se bailes. Colocava-se, por exemplo, no fundo, os tronos para o rei e a rainha, depois lugares para os personagens principais da família real, e em todo o resto se dançava, havia “buffets” e coisas semelhantes, de tal maneira a galeria era ampla e feita com perspectivas colossais, nobres, imponentes.

Notem a preocupação contínua de elevar a nobreza das coisas, e com a nobreza, a beleza a um grau extremo, que toca a sublimidade. Chamo a atenção, primeiro, para o teto. É todo feito com um jogo de madeiras encaixadas e que formam realces, caixilhos. Esses caixilhos constituem desenhos lindíssimos, num tom marrom.

E esse jogo riquíssimo de caixilhos vai se repetindo, com variedade, de uma ponta até a outra. O que não aparece nessa fotografia é que muitos desses caixilhos são realçados a ouro, de maneira que há um jogo de dourado com marrom.

Do teto pendem lustres que se usavam no tempo, altos e, ao mesmo tempo, muito elegantes, suspensos por grandes correntes, e de pesos leves; não se tem nenhum pouco a impressão de uma massa pesada. Há uma bola, mas depois os braços para cima dão uma impressão de equilíbrio. Tem-se mais a sensação de que o lustre está flutuando no ar, do que preso ao teto e constituindo um peso.

O jogo de luzes e os quadros

A preocupação ornamental é toda estabelecida em processo de jogos de luz. No soalho, notam-se várias zonas claras e escuras, que correspondem às janelas muito altas. Cada uma delas se compõe de duas janelas superpostas, das quais a mais alta é a maior, e com um vidro que não é inteiramente transparente, mas vagamente leitoso.

Assim, a luz que entra na sala é matizada, meio irreal. E bate, então, sobre um soalho todo feito de tacos enormes, formando desenhos, e esplendidamente encerado. De maneira que essa luz especial penetra aqui, reflete lá, com o brilho marrom da madeira esplendidamente envernizada, e joga dentro de toda a galeria. E uma das coisas que esta galeria tem de mais bonito, mas que fica indefinível, é um jogo de luz dentro dela. Num sistema de arte, uma das coisas mais bonitas é exatamente o jogo de luz.

Porque a luz é algo de nobre, uma categoria de espírito, que nos transporta para uma espécie de mundo irreal, superior, diáfano, quase de fadas, em que se movimentava a sublimidade real, o esplendor da aristocracia e coisas do gênero.

E nas paredes, quadros com coloridos muito bonitos, molduras de madeira e de gesso riquíssimas; dir-se-ia que as paredes estão quase empetecadas, mas não estão — o francês evita o empetecamento da Renascença italiana — por causa dessa simplicidade da parte de baixo. O empetecado é bonito desde que contraste com uma zona de muita simplicidade, que o compensa.

Se imaginássemos que houvesse esses quadros na parte inferior das paredes, seria um pesadelo; teríamos vontade de atravessar a galeria correndo. Mas aqui está a nota do equilíbrio francês. Em cima, riquíssimo; embaixo, a madeira muito mais sóbria e com trabalhos discretos, simples, distintos, de maneira que uma coisa compensa a outra, e mais uma vez temos o jogo de claro-escuro.

A luz que penetra pelas janelas também contrasta com o marrom, constituindo um jogo de uma cor meio cinza-pérola, que forma a nota cromática da galeria.

Jogo de painéis, banquetas e, no fundo, o busto do rei

Cada zona dessas — da parte inferior das paredes — é de uma composição muito simples. Porque é feita de um painel central com um escudo e três flores de lis; e, em volta, elementos heráldicos. Ao lado há um painel igual. Mais além há uma espécie de painel extra, que também se repete. Assim, forma-se um jogo de painéis. Enquanto em cima os quadros são muito variados, embaixo os painéis se repetem bastante. E as banquetas repetem-se também, de quando em quando.

De maneira que forma um jogo de unidade na variedade, mas a muitos títulos. Há um contraste entre algumas coisas muito trabalhadas e outras simples. Existem várias unidades e diversas variedades, compondo uma harmonia central. Esta tem por ponto de mira o fundo da galeria, a qual possui duas portas que são apenas o enquadramento do objeto principal: um busto do Rei Francisco I, dominando toda a galeria. A última perspectiva é da majestade real. Olha-se e, no fundo de todas essas distâncias, nimbado de glória, dentro dos jogos de luz etc., está o rei. O que me parece soberanamente bem pensado.

Tão bem pensado que o indivíduo vê isso, gosta e não é capaz de explicitar. É preciso a pessoa ter tido tempo para conseguir explicitar. E o triunfo dessas coisas se dá não quando elas chamam a atenção do homem capaz de explicitar, mas quando encantam o incapaz de fazê-lo. Aqui elas atingem o seu equilíbrio, a plenitude da força convincente. O indivíduo não sabe por que, mas gostou muito.

Por detrás desse esplendor há um princípio de ordem racional

Muitas pessoas que eu conheço, se visitassem esse palácio, diriam que é bonito, mas não teriam a reação de alma que uma coisa dessas deve provocar. Porque eles não procurariam entender que há um princípio de ordem racional por detrás disso; não desejariam ficar nesse local para vê-lo muitas vezes.

Saindo dali, não se lembrariam disso, e não procurariam fazer algo semelhante, a não ser que estivesse na moda e por questão de esnobismo. Nunca por um verdadeiro gosto e entusiasmo. Por quê? Porque há qualquer coisa de encarangado na alma dessas pessoas, por onde esse sentimento de plenitude, ocasionado pela grande beleza, se perde, se restringe, se retrai, se recusa. 

Esplendor e amor a Deus

Imaginemos essa galeria com as danças do tempo em que o castelo foi construído; eram tipos de dança que começaram com a pavana e acabaram com o minueto. Danças que faziam figura e se iniciavam com longas fileiras de senhores e de damas, riquissimamente vestidos e segurando-se pelas mãos, e que entravam de cada lado das duas portas.

Formava-se uma fileira de cada lado e, em alguma tribuna, ou na ponta de entrada, uma orquestra com alguns violinos tocando — porque era só violino. Mais tarde, começaram a usar o cravo para o minueto. Então, as duas fileiras se constituíam, faziam uma reverência ao rei, depois começavam a dançar, atravessando-se umas as outras etc., e enchendo a galeria com suas harmonias, seus perfumes, os reflexos do brilho das roupas, a elegância das pessoas. E dançando havia pessoas famosas: senhores que tinham governado feudos, participado de guerras, diplomatas, militares que estiveram no Oriente, haviam combatido e tinham ganhado guerras, por exemplo, Dom João d’Áustria(4). Entende-se, assim, quem estava reunido ali. Tanto mais que, de noite, a iluminação era escassa e fora havia as trevas exteriores de que fala o Evangelho. De maneira que isso era uma espécie de guia de luz, numa noite escura. Compreendemos, então, todos os contrastes que jogavam a favor disso. Era uma verdadeira maravilha.

Esse era um dos aspectos do esplendor, do estado de alma em que a pessoa é apetente e se torna plena dessas coisas; não fica ressentida, encarangada, dispersa, em presença disso. Eu sustento que quem está apto a amar isso tem muito mais capacidade de ideal, e de amar a Deus, do que quem não é capaz de amar esse esplendor.

A Sala do Conselho

Consideremos a Sala do Conselho. Não se sabe bem o que dizer dela!  É uma tal pluralidade de cores e de coisas bonitas que, no primeiro momento, fica-se aturdido. Mas depois as observações podem começar. A primeira é a seguinte: o teto aqui aparece melhor; não é envernizado, mas inteiramente pintado. É de uma rara beleza, porque tem qualquer coisa da abóboda celeste, a qual é de certo modo feita de caixilhos de estrelas diferentes. Não é como o teto lambido dos prédios de apartamentos de hoje; aqui tem reentrâncias, saliências, ornatos etc., possui algo do princípio ornamental da abóbada celeste noturna, que é o jogo, as massas, os movimentos.

Mas a Sala precisava ter traves de sustentação, e estas foram aproveitadas como elemento de decoração, formando províncias de caixilhos diferentes. Notem como as pinturas realçam as traves: um azul esverdeado muito claro e um ouro morto, com desenhos muito elegantes que exploram o pontudo e o ovalado, num arabesco.

Os lustres pendem das traves. Porque estragaria o jogo dos caixilhos um lustre pendurado num deles. Prestem atenção nos lustres!  É indizível a beleza de um lustre desses. Isso é de conto de fadas! Há uma bola na ponta de cada um dos lustres, que — por uma convenção da qual não me lembro mais qual é — costumava ter água. Quando fabricavam o lustre, colocavam água nessa esfera. E parece que isso aumentava a capacidade de reflexo, porque esta bola tinha uma finalidade útil que era colher as últimas luzes que caem, e refleti-las ainda uma vez para iluminar a sala.

Há um tal escachoar  de cristais diversos, que não se  tem o que dizer, mas é muito interessante porque, pelo efeito de refração, multiplica-se a luz das velas. É altamente funcional.

Chamo a atenção para as tapeçarias. Não são quadros que estão nas paredes, mas tapeçarias, provavelmente de Gobelin(5), como também o tapete. As paisagens das tapeçarias detêm o espírito, de maneira que a pessoa fica olhando muito tempo; importa muito o jogo geral das cores, segundo um princípio a respeito do qual vou falar em breve. Existem várias tapeçarias simétricas, porque a beleza da sala é toda baseada em simetria. Depois vemos a chaminé da lareira, que respeita o princípio daquela galeria que analisamos: ultra-sobrecarregada na parte superior, e na inferior muito simples, de maneira a descansar a pessoa do sobrecarregado que está em cima.  v

 

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/10/1966)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

 

1) Situado a 55 quilômetros do centro de Paris, França.

2) Dinastia que reinou na França de 1328 a 1589.

3) Os Bourbons ocuparam o trono francês de 1589 a 1792, quando Luís XVI foi preso e decapitado pela Revolução Francesa. Restaurada em 1815, esta dinastia reinou até a abdicação de Carlos X durante a Revolução de Julho de 1830.

4) Capitaneou a esquadra que venceu os otomanos na Batalha de Lepanto em 1571.

5) Famosa manufatura de tapeçarias ricamente ilustradas, criada na França em 1667, sob o reinado de Luís XIV.

Inocência e admiração desinteressada – I

Tecendo considerações a respeito da inocência, Dr. Plinio mostra como ela nos incita a admirar tudo quanto é superior a nós, sem procurar nenhuma vantagem pessoal. E para ilustrar seu pensamento, comenta um filme sobre a cerimônia de casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana.

 

O  lado bom da alma pode ser desenvolvido à maneira de uma bobina, de um carretel que é desenrolado, cujo ponto de partida é a inocência. Quer dizer, colocada diante daquilo que Deus fez maior do que nós, a alma inocente se sente integrada. Isto lhe vem com a própria noção do ser, está colado, desdobra-se imediatamente da noção do ser; não é, portanto, uma ideia inata. A noção do ser é inata no homem, mas as outras são deduzidas, chameiam, chispam de dentro da noção do ser.

O homem existe para algo maior do que ele

Uma das noções mais imediatas é a do universo. Ou seja, cada um de nós está relacionado com uma porção de outros seres que formam um todo, e existimos de algum modo para o todo; como também, de certa maneira, existimos para algo que não é esse todo.

E realmente o homem é assim. Ele, de imediato, sente que existe para si, mas, logo no movimento seguinte, percebe — confusamente; só quando ele maturar conseguirá formular — que existe para algo muito maior do que ele: o universo.

Então, quando o homem vê algo tão maior do que ele, com o qual sente não ter proporção, ele se rejubila, de um júbilo análogo ao bem-estar que os pulmões têm quando entra ar fresco. Quer dizer, o bem próprio dos pulmões é receber aquele ar e impregnar o sangue com oxigênio, que se difunde para o corpo. Assim também é o homem: ao perceber algo maior do que ele, o homem todo é levado por um “élan” para aquilo, como quem diz: “Mas esse todo, essa ordem do ser na qual vivo, confere coisas magníficas, e sou maior do que eu suspeitava, vendo que isso é tão grande!”

A criança inocente não age por egoísmo

Considerem uma criancinha deitada no berço e que está apenas tomando os primeiros conhecimentos do mundo externo. Vem alguém e agita diante dela uma esferazinha de vidro com uma cor brilhante, dourada, por exemplo. A criança bate as mãos e, sem pensar ainda, estende os braços.

Por que ela faz isso? Porque a criança sente que ela tem um nexo com aquilo, o qual a enriquece e completa de algum modo; então, ela tende para aquilo.

Aqui está o ponto de partida da inocência, a qual leva a criança a se rejubilar com o que é insignemente maior do que ela. Daí a admiração pelos pais, pelos mais velhos que ela vai conhecendo, pois a criança vê que são uma ampliação dela mesma. E também a admiração por toda forma de maravilhoso, que se põe diante da criança. Mas essa admiração não é egoística; é uma alegria porque aquilo é daquele jeito, e uma consonância: “Como é bom, como me rejubila que haja algo maior do que eu! Eu encontro, na contemplação daquilo, algo que me repousa, me enche de ar!”

O que ela encontra? Alguém dirá: “A vantagem própria”. Afirmo: “Não. É uma coisa muito mais alta: seu fim!”

Aqui está a específica noção que é preciso tomar em consideração. Aplicando o que foi dito a mim mesmo, não é por egoísmo, por vantagem pessoal, que eu vejo aquilo que é meu fim, mas é por mera veneração, por mero entusiasmo.

Porque atingi o meu fim, é claro que me realizo, sou coberto de recompensas, mas há algo de desinteressado, de puro, que vai além do amor que uma pessoa deve ter por si mesma, e nisso está o ponto, digamos, o polo de atração da inocência. É o por onde o homem sente e sabe que não é o fim de si mesmo, mas que ele existe para estar em nexo, em veneração e a serviço de algo maior.

O desejo do gozo

Há na criança outro movimento, que é horizontal: o encanto com as coisas que têm proporção com ela. É um movimento legítimo, mas, integrando-se naquele conjunto, a ideia de fim lhe aparece menos clara do que na consideração do que é mais alto; e a ideia dela mesma surge mais clara: eu, eu, eu. E na relação horizontal a criança começa a querer ter uma série de coisas do seu tamanho, de sua proporção. Por exemplo, não podendo ser dona de uma pessoa, quer ser dona de uma boneca; não sendo possível ter um automóvel, que ela vê passar na rua, a criança quer possuir um automovelzinho. Ela quer ter um mundinho em miniatura com o qual mexa, se entretenha em certas horas, sobretudo deseja ter muitíssimo mais relações com as outras crianças do que com os mais velhos. E acaba havendo uma fase da evolução da criança em que os da mesma idade têm muito mais influência, peso, atrativo do que os pais, os avós, os tios que ficam para o fundo da cena.

Nesse horizontal, a abnegação aparece muito menos, e a criança se dá conta de que, se alguns deleites conduzem à admiração desinteressada, há outros prazeres que levam ao gostoso. E aí muito facilmente — se a primeira parte não está profundamente vincada na alma — a criança começa a conceber a vida como uma sucessão de deleites, e ela só procura prazeres.

A partir deste momento a inocência começou a minguar, a procura do verdadeiro fim desaparece. E o fim passa a ser gozar; a vida é uma oportunidade para gozar.

Alguém lhe dirá:

— Mas você não sabe que um dia vai morrer?

— É verdade, porém leva tanto tempo para eu morrer, que cuidarei disso mais tarde.

— Olhe, você pode falecer de repente!

— São tão poucos, que é melhor deixar isto de lado.

Ela quer gozar, gozar, gozar…

Na bitola do gozo desaparece a inocência, e o gozo traz essa atitude de alma, que Mitterrand(1) assim descreve: “Quero tudo, já e para sempre!” Resultado: começa a inveja e o pesar de que um outro tem o que ela não possui.

Cerimônia de casamento do Príncipe Charles; dois estados de espírito opostos

Todos viram ontem as cenas ocorridas no Buckingam Palace(2), e puderam observar o estado de espírito de entusiasmo que dominava a multidão.

Qual seria o estado de espírito de um revolucionário no meio da multidão? E haveria muitos deles que lá estavam para assistir… Seria o oposto: “Por que eu não estou sendo objeto dessas homenagens? Por que não sou o Charles?” E uma moça revolucionária pensaria: “Por que eu não sou a Diana?”

Porque os revolucionários querem ter aquele gozo só para si e, não sendo isso possível, eles desejam que ninguém tenha. São horizontalizantes. A inveja nasceu do desejo do gozo.

Pelo contrário, os que estão ali aclamando o Charles, a Diana e os outros personagens que estão no balcão do Palácio, pensam de outra maneira: “Como eles são maiores do que nós e simbolizam esse todo que é a Inglaterra! Como é magnífico haver uma nação que se exprime nesses símbolos! Como é magnífico pertencer a essa grande nação! Oh, que alegria! Encontramos algo de mais alto, mas queremos tudo isso já e eternamente!”

Esse sentimento só se justifica diante da ideia de que há um outro Ser, muito acima daquelas pessoas que estão no alto do balcão, e que nos dá tudo que nossa alma ambiciona. Gostaríamos que fosse já, quer dizer, tendo a certeza de que nós cumpriremos nesta vida a nossa missão, que os Céus se abram e desça para a Terra o que esperamos. O maravilhamento dos pastores na noite de Natal, quando apareceram os Anjos, nos dá a ideia dos Céus abertos e desse fim eterno que fala a nós.

Esta é uma festa da tradição. Quantos reis se sucederam; como passam esses homens! Os avós dos reis de hoje foram aclamados pelos meus avós, mas os meus décimos avós — digamos, no século XVI — aclamaram os décimos avós deles. E mais e mais para trás, chega-se ao momento em que eu tenho que imaginar a Inglaterra, ilha onde não morava ninguém, e chegaram os primeiros bretões, os primeiros celtas, e começaram a ocupá-la. E recuando ainda mais, posso pensar naqueles reis primeiros da Bretanha grande, em oposição à Bretanha pequena, reis de clareiras, de bosques, sentados num trono de madeira, presidindo as reuniões de uma tribozinha com cem pessoas no máximo, e venerados como monarcas. Todos eles morreram, meus antepassados morreram; nós que estamos aqui neste auditório morreremos, e também todos os homens.

Em que sentido queremos tudo, já e para sempre?

Mas Deus é eterno; tendo a Ele, eu tenho tudo. O Criador se dá todo a mim, como se só eu existisse. Nesse sentido, queremos tudo, tanto quanto possível já, e eternamente; para lá rumam as nossas almas.

Vê-se que entre a autoridade suprema na ordem temporal e na ordem espiritual, e Deus há uma distância infinita, e essas autoridades apenas educam, ajudam a alma a tender para o que a criança admirou, na inocência primeva, quando pela primeira vez esteve diante de uma bolinha dourada, abriu os braços e sorriu. E quando a pessoa, na hora da morte, fizer seu ato de Fé e se recomendar a Nossa Senhora, terá a certeza de possuir tudo, já e eternamente.

O afundar dentro da morte é o entrar no Céu.

Vistas as coisas com esse estado de espírito, compreendemos que não seja só na Inglaterra — com toda a riqueza, todo o fausto, todo o esplendor, toda a grandeza da cerimônia a cujo filme assistimos ontem — que os súditos sintam isso, mas até nos menores países, e mesmo nas formas de governo mais diversas.  v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 2/10/1981)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

 

1) François Maurice Adrien Marie Mitterrand (* 1916 – † 1996). Foi um dos presidentes da República da França.

2) Dr. Plinio se refere a cenas da cerimônia de casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana, realizada em 29 de julho de 1981.

Os Anjos, o natural e o sobrenatural

No homem, na História, na cultura dos povos, na arte e até mesmo nos panoramas, Dr. Plinio discernia a ação angélica, como se comprova nesta conferência. Fazendo explicitações luminosas sobre os Anjos, ele apresenta exemplos concretos que nos ajudam a compreender esse tema fundamental, bem como seu relacionamento com a Revolução e a Contra-Revolução.

 

Ao criar os Anjos, Deus os dotou de uma capacidade de ação própria à natureza angélica, distinta da capacidade de ação sobrenatural, correspondente aos dons sobrenaturais que Ele haveria de lhes dar, como um acréscimo que teriam futuramente, num outro plano.

Relacionamento entre seres congêneres

O homem é tocável por essa ação natural dos Anjos, portanto tem um espírito sensível para entrar em comércio com eles dessa maneira. E precisaria ter isso porque, uma vez que Deus estabeleceu o universo, todos os seres mais ou menos congêneres, por causa da perfeição do universo, têm necessidade de poderem relacionar-se uns com os outros. Então, seria preciso que, independente de qualquer plano sobrenatural, houvesse toda uma ordem de relacionamento natural possível entre Anjos e homens, muito elevada, e atendendo a certas apetências naturais do homem, que não são iguais às apetências que ele tem do sobrenatural.

Em consequência, este mundo angélico natural teria que ser sensível ao homem. E o homem, com um certo discernimento dos espíritos, poderia até perceber quando está entrando uma ação de caráter angélico natural, e uma ação de caráter angélico sobrenatural. E tornar-se-ia capaz, em tese, com certo esforço, de imaginar como seria um mundo em que houvesse homens e Anjos, e não tivesse sido criado o sobrenatural. E distinguir isso de um mundo onde haja o sobrenatural, para efeito de ele compreender melhor tudo que o sobrenatural acrescentou à ordem natural.

Por isso, todas essas distinções e o estudo dessas correlações, embora possam parecer muito árduos e quase impossíveis de se fazer em tese, são necessários.

Notas angélicas nas culturas da Alemanha e da Áustria

Em certas obras de cultura europeias, sobretudo alemãs e francesas — naturalmente de modos diferentes na Alemanha e na França —, existe uma espécie de necessidade de, às vezes, apresentar um universo com uma perfeição angélica natural, e outras vezes com uma perfeição angélica, que eles podem dizer ou não dizer, mas é sobrenatural. E negar essa possibilidade de apresentar esse aspecto natural, é tapar a alma humana numa das suas manifestações.

Por exemplo, estou lendo o livro no qual uma professora inglesa, governanta da única filha do Kaiser Guilherme II, conta suas memórias da corte da Alemanha, reconhecendo muita coisa bonita, louvável. Percebe-se que, em todo o aparato da corte alemã, havia uma tendência a apresentar o universo com uma beleza grande, verdadeira, apetecível ao homem, mas com uma nota angélica natural na ponta; enquanto que na Áustria, uma nota sobrenatural.

E embora a “res austriaca” me pareça muito superior à “res germanica”(1), esta última tem sua razão de ser, e o meu espírito se alegra em poder contemplar uma coisa distinta da outra. Porque faz parte da perfeição de Deus, enquanto Criador, ter criado as duas coisas distintas.

Acho que era desígnio da Providência que certas partes da Alemanha, na linha da graça, fizessem sentir em harmonia com o sobrenatural um certo “tonus” natural. E que, no mundo germânico, o dom de fazer sentir o “tonus” sobrenatural fosse principalmente da Áustria. Donde as minhas mil predileções enlevadas pela Áustria. Mas um muito grande gosto da “res prussiana”.

As cataratas de Foz do Iguaçu

Andando por panoramas naturais, chega-se, às vezes, a lugares onde se tem a impressão de que aquilo tem uma perfeição muito grande, na ordem própria, evocando certos padrões de sublimidade, que levam o espírito humano quase até a ponta de si mesmo. Não são coisas propriamente sobrenaturais, mas que estão em harmonia com o sobrenatural.

É preciso ver bem o que se entende por sobrenatural aqui. As cataratas de Foz do Iguaçu, por exemplo, têm uma beleza natural própria. Mas nunca vi que alguém notasse ali algo de uma beleza que levasse o homem a dizer: “A graça de Deus está aqui!” A pessoa pode afirmar: “Deus está aqui”, mas “a graça de Deus está aqui” não pode dizer.

Deus está ali enquanto Criador, e um Anjo d’Ele pode estar presidindo aquilo, para manter a coisa em ordem, e deixar sentida a sua presença. Inclusive tenho impressão de que deve existir um Anjo que, por sua natureza espiritual, seja semelhante ao que as cataratas de Foz do Iguaçu são na ordem natural. De onde existe uma ação de presença dele particularmente intensa ali, por causa dessa semelhança. Chega-se lá, sente-se qualquer coisa assim de uma presença angélica, mas que ainda não é uma presença sobrenatural.

Esta eu a sinto muito mais nas coisas da arte do que nas da natureza. Então, por exemplo, na Sainte-Chapelle, Notre-Dame, ou, de um modo bem diverso, Genazzano; é uma presença diferente. Sente-se que alguma coisa, não na última linha do que podemos ver, mas superior a nós, rompe uma distância intransponível e se comunica conosco, elevando-nos ao que nunca poderíamos imaginar. Ali está o sobrenatural.

Muita gente confunde as coisas, e não seria capaz de estar em Foz do Iguaçu olhando o que a Providência quis que se visse, e adorando a Deus nessa perspectiva. Mas pensaria logo: “Renuncie às coisas desta Terra, feche os olhos para essa maravilha de Deus, porque o Céu é muito maior…” O Céu é muito maior, e fechar os olhos para as cataratas do Iguaçu pode ser a via espiritual para alguém. Mas a realidade é esta: um Anjo invisível está ali, e nos fala por sua natureza, não pelo sobrenatural que habita nele.

O Pampa e o panorama do Rio de Janeiro

Eu já notei, da parte de alguns argentinos, uma tentação de menosprezar o Pampa como meio monótono, raso, insípido, porque não acaba mais. Mas não é verdade. Isso significa não ter apanhado aquilo no ponto de vista em que deve ser considerado.

Certa vez, descendo de um avião num aeroportinho feito de terra, de repente encontrei o Pampa, e tive uma impressão de respeito religioso. Aquilo estava plantado, não de trigo, mas de vegetais altos, não sei o que eram, e em quantidade! Planície, planície, planície… com toda aquela vegetação da mesma altura, tudo igual, uma paz, uma tranquilidade! Não tem nenhuma montanha, tudo normal, direito.

Tive vontade de dizer, como São Pedro: “Façamos três tendas, uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias…”(2). Desejei ficar sozinho olhando aquilo.

O panorama do Rio tem muito disso. Mas são desígnios da Providência: no meu modo de sentir, há uns reluzimentos sobrenaturais no píncaro do bonito, do natural. É um natural tão, tão bonito, que extravasa da linha do natural. Percebe-se, de vez em quando, uns reluzimentos divinos.

Meta a ser atingida pela arte

Uma meta a ser atingida pela arte seria de fazer com que, na coisa natural, aparecesse tanto quanto possível a presença do espírito humano. Depois, num segundo grau, surgisse, tanto quanto possível o que há de angélico natural naquilo, e posteriormente o sobrenatural angélico. Esses vários graus de intensidade da natureza, do universo que Deus criou, seriam sucessivos degraus que a arte deveria saber apresentar.

Creio mesmo que na Idade Média quase todas as instituições eram dotadas de uma certa presença angélica, ora natural, ora sobrenatural, que foi se deteriorando no decurso dos tempos modernos. E que a Revolução Francesa quis expulsar completamente, e em parte conseguiu; foi a revolta contra um ambiente todo ele carregado de conotações místicas, ora naturais, ora sobrenaturais, que ajudavam muito a ver a realidade natural e a compreender seu último sentido.

Quando eu vejo uma flor, e sou levado a imaginar o arquétipo dela, não é propriamente um desejo que tenho de conhecê-la melhor, mas sim conhecer, na ordem do possível, uma coisa que seja essa flor na sua perfeição. Ou seja, algo que é meio parecido com a ordem paradisíaca que o homem perdeu, e que, entretanto, o seu senso do ser pede e ele procura quando olha as coisas desta Terra. Esse é, a meu ver, o elemento motor primeiro da arte.

A procura de arquétipos

A procura dessa perfeição leva também o homem a querer conhecer o santo. Porque este é na ordem moral — a que mais importa — o arquétipo do homem. Mas leva a desejar conhecer também um grande homem.

Vou dar um exemplo. Li uma descrição da viagem que o zepelim fez, conduzindo seu inventor, o velho Conde Ferdinand von Zeppelin, para se encontrar com o Kaiser. Eu tinha muita curiosidade de ver como o autor dessas memórias descrevia pormenorizadamente o encontro do Kaiser com o Zeppelin.

Não sei se percebem que se trata de um patamar de relacionamento que não existe mais hoje. É um estilo de vida, uma corte, um balão zepelim que voa, cujo inventor, um grande cientista, vai encontrar-se com o Kaiser. O zepelim pousa, de dentro desce um velhinho prussiano, todo teso, que cumprimenta o Kaiser, os dois se olham nos olhos, sorriem. Depois o Kaiser faz uma saudação militar, ambos se retiram, e o povo todo dando vivas, agitando bandeirolas, etc. Uma espécie de apoteose da Ciência, do êxito do homem que conseguiu voar. E o povo presta homenagem ao Kaiser, referendando o soberano supremo de um grande poder militar.

São valores supremos, quase arquétipos, que se encontram e como que se osculam, num ambiente quase paradisíaco para quem está habituado à vida de hoje. É uma procura de arquétipos que está atrás disso, uma coisa ligada ao senso do ser.

O homem tem saudades do Paraíso que não conheceu

Tenho a impressão de que se a sociedade fosse bem constituída, uma pessoa educada como deve ser — não digo educação no sentido de boas maneiras, mas formação total do ser — desenvolveria uma certa tendência que existe no homem para uma vida terrena de um nível muito superior ao que ele conhece, mas que não é para ele viver dentro dela por vaidade, mas pelo senso do ser que o leva a desejar conhecer até que ponto a vida humana é extensível.

Assim, sem deixar de ser o homem comum, ele tem uma certa participação nessas elevações. E o desejo contínuo de grandes elevações em toda a vida da sociedade, leva-o a querer coisas assim e a sonhar com flores, aves, céus extraordinários etc., porque ele foi criado para o Paraíso, e está exilado. E, sem saber, o homem tem saudades daquele Paraíso que ele não conheceu, mas que está proporcionado à sua natureza.

Essa sensação do exilado que tem vontade de voltar para o lugar que ele não chegou a conhecer, e, portanto, uma espécie de procura do paradisíaco a ser fabricado na Terra — para tanto quanto possível substituir o palácio de que ele foi expulso potencialmente na pessoa dos seus pais — faz dele um ente especial, cujo senso do ser não o leva a procurar apenas a perfeição no Céu e nas coisas sobrenaturais, mas uma perfeição de uma ordem natural, que não o cerca, mas da qual ele tem saudades. E que o homem procura realizar do melhor modo possível na Terra, como meio para chegar mais alto, à experiência mística e ao Céu.

Nesta época de Revolução, é absolutamente necessário para nossa formação proporcionar às pessoas cenas maravilhosas da História, apoiadas por uma ação angélica, de maneira a dar-lhes o desejo do mais alto, que as torna propriamente contrarrevolucionárias.

Porque se não há a inconformidade com a banalidade contemporânea, e o desejo de algo mais alto que o passado conheceu — e que devemos conhecer para depois engendrar um futuro a essa altura —, tenho a impressão de que a nossa própria formação fica padecendo.

Luta contra o mundanismo

Um dos defeitos contra os quais lutamos tanto — e sem o êxito desejado, por não irmos até o fundo do problema —, está exatamente nisto: mundanismo.

Nós batalhamos muito contra o mundanismo. Mas se não tivermos uma formação que nos faça querer um maravilhoso incomparavelmente diferente e maior do que esse mundanismo que está por aí — e perto do qual este último é pé-rapado, casca-grossa —, às vezes, pela própria elevação que possa haver em nossa alma, o indivíduo tem uma escapada da banalidade da vida para dentro do mundanismo, vendo neste uma realização mais alta de alguma coisa que lhe falta.

E o modo de combater esse desvio é precisamente, a meu ver, apresentar como algo foi no passado, mostrando como isto que existe no mundo de hoje é uma revolta, um álibi para não se atingir o que no passado se conseguiu. E criar a nostalgia, não de sermos personagens do passado, mas espectadores admirativos do passado, faz de nós homens capazes de lutar para que o passado seja de novo!

E seria preciso justificar isso na nossa formação, por uma ação angélica natural, e depois por toda a vida sobrenatural.

Convívio entre os Anjos e os homens

A ação angélica natural tem o pressuposto de que há um contato — e um convívio, portanto — normal do Anjo com o homem, que não é o aparecer, nem o conversar com o Anjo como estamos conversando aqui, mas uma ação dele sobre nós, e de algum modo nossa reação pró ou contra, aceitando ou rejeitando, fazendo com que normalmente nós estejamos também em contato com eles. Mas a ideia errada que se nos dá a respeito disso é a seguinte: a ação do Anjo sobre o homem só e unicamente ocorre quando o Anjo aparece para o homem; ou, então, que o Anjo da Guarda pode favorecer o homem em ocasiões muito excepcionais, sem o homem perceber. De maneira que Anjo entra no excepcional, e não no normal, da vida do homem.

Ora, eu considero — salvo melhor juízo, e submetendo-me, é claro, ao ensinamento da Igreja —, que em nossas reuniões, por exemplo, pelo próprio fato da vivacidade, da vida que elas têm, pode-se e deve-se ver uma ação angélica habitual. Entretanto, ninguém a sente. Sente-se uma certa vitalidade, e se percebe que esta não tem uma razão de ser e uma origem exclusivamente natural em nós, nada mais além disso. Mas se fôssemos afirmar ser um Anjo, muita gente se assustaria, pensando haver uma espécie de alumbramento. Isso não tem nada de alumbramento. É a impostação teológica séria e normal das coisas.

Ademais, pode acontecer que uma pessoa seja veículo de graças sobrenaturais específicas, para as quais não é preciso se excogitar uma ação angélica. E pode suceder que a presença de uma pessoa seja ocasião para a presença de um Anjo, que desenvolva uma ação natural angélica. É preciso aí distinguir as várias hipóteses possíveis.

Teoricamente falando, eu penso que o ser humano é capaz de alguns movimentos de alma rumo à arquetipia, que são da natureza dele. Mas acho que esses movimentos seriam inteiramente frustros e de nenhum modo atingiriam o que o homem quer, se não fosse a ajuda dos Anjos.

Arte e arquetipia

Poder-se-ia levantar a seguinte objeção: “O senhor então acha que toda a arte só é digna desse nome quando se constituiu com a ajuda angélica?”

Eu respondo: É preciso não correr. Porque há uma diferença entre arte e arquetipia. Na arte, o homem, muitas vezes, é guiado pelo senso de um prazer hedonista, que não é propriamente o gáudio metafísico que lhe dá a procura da arquetipia. E por causa desse senso hedonista, ele é capaz de fazer alguma coisa acertada, mas que não se encontra numa linha onde entra verdadeiramente o Anjo, ou seja, o desejo de arquetipia.

Considerem, por exemplo, aquele tapete persa que temos na “Sala do Reino de Maria”(3). Eu compreendo que um artista, com a forma de talento necessária para fazer isso, tenha sabido misturar cores, e fazendo coisas que lhe deram um gosto perfeito, onde sua alma não andou à procura de algo arquetípico, mas simplesmente de um deleite excelente dos olhos, o que é diferente.

A Basílica de Santa Sofia — hoje uma mesquita com minaretes —, colocada no Bósforo, de si é um pastelão, e os minaretes têm um formato esguio, leve, distintíssimo, quase que descansa a pessoa do peso da Basílica. Por outro lado, a Basílica torna mais verossímeis os minaretes, que pareceriam quase fumaça de cigarro que se elevou num ambiente onde não há vento.

A justaposição dos minaretes com a Basílica, no quadro do Bósforo, forma uma coisa difícil de imaginar, na qual se pergunta se há uma coincidência, ou realmente um desejo de arquetipia, e se nesse desejo de arquetipia entrou uma ação angélica, quando se tratava de obra de maometanos. É uma questão delicada, e eu mesmo precisaria pensar para dar-lhe uma resposta.

Na arte japonesa, chinesa, e em geral nas artes orientais, chama a atenção que os artistas as realizam à procura do belo, mas essa procura, em certo momento, dá origem ao aparecimento de monstros. Às vezes monstros com caras horríveis, mas com uns fios de barba lindos, e uns dragões que têm umas orelhas de ouro fantásticas! Mas são monstros.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4 e 11/2/1990)

1) Do latim: coisa austríaca e coisa germânica. Aqui Dr. Plinio se refere ao conjunto de predicados dessas nações.
2) Lc 9, 33.
3) Sala nobre da sede social do Movimento fundado por Dr. Plinio.

Maria Santíssima: Rainha a dois títulos

Nossa Senhora é Rainha porque é Mãe de Deus. Ninguém teve, nem pode ter, com a Santíssima Trindade uma união mais estreita do que Ela. A Santíssima Virgem é, por excelência, a Filha do Padre Eterno, a Mãe do Verbo Encarnado e a Esposa do Espírito Santo, que gerou n’Ela Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além disso, Ela é Rainha porque a Providência colocou o governo de todas as criaturas nas mãos d’Ela. Quer dizer, sendo a Medianeira de todas as graças, as orações que sobem a Deus devem passar por Ela. Se o Céu inteiro pedisse algum favor sem Ela, não obteria. Maria Santíssima pedindo sozinha obtém. Isto é ser Rainha, na maior força do termo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1969)

Revista Dr Plinio 208 (Maio de 2016)

Majestade multissecular de um palácio

Analisando a Praça do Campidoglio, Dr. Plinio aponta graves defeitos na urbanização de grandes cidades brasileiras.

 

Esta é a bonita Igreja de Trinità dei Monti, construída em louvor da Santíssima Trindade.

Agradável contraste entre três palácios

Nota-se uma elevação de terreno e, em baixo, um ajardinamento e uma escada muito bonita que, através de vários lances desde a igreja, desce até uma praça onde se ergue uma coluna no alto da qual está a Imagem da Imaculada Conceição, construída no tempo de Pio IX para celebrar a promulgação do dogma da Imaculada Conceição.

Em outra foto, vemos uma das coisas mais bonitas que conheci em minha vida: a Praça do Campidoglio, em Roma, no centro da qual se encontra uma estátua do Imperador Marco Aurélio. Trata-se de uma réplica, pois a figura original estava se deteriorando por causa da poluição; então, fizeram esta cópia e puseram a escultura original numa sala, onde não sofresse a deterioração.

Três palácios circundam a praça: um ao fundo e dois frente a frente. Há um contraste agradabilíssimo entre esses palácios, pois o do fundo, com um aspecto completamente distinto dos outros, forma uma dissonância harmônica com a perfeita identidade dos dois palácios laterais.

Considerando este palácio do fundo, vemos como ele é de uma altura muito formosa. A proporção das janelas e das portas é também muito bonita. O palácio é de uma cor um tanto avermelhada e tem no alto uma balaustrada branca. Ao fundo vê-se uma torre e um relógio.

Considerem a distinção e — eu não recuo diante da palavra — a majestade multissecular desse palácio! É uma verdadeira beleza, e pode-se ficar aqui horas contemplando.

Vejam os bonitos desenhos do chão, a aplicação de pedra sobre pedra, sem o que esse espaço, permanecendo de uma só cor, ficaria vazio e a harmonia da praça desapareceria.

Chamo a atenção para o fato de que, por toda parte, o europeu se empenha em plantar bonitas árvores e colocar fontes, o que não é tão frequente encontrarmos em grandes cidades brasileiras, como São Paulo, por exemplo.

Síntese entre a cidade e o mato

Por que faço comparações como essa? Não é antipático? Não se diria que essas comparações, necessariamente desfavoráveis a nós, melhor seria que não fossem feitas? Quem levantasse tal objeção diria uma coisa caracteristicamente desprovida de inteligência, porque a pessoa criteriosa quer conhecer os seus defeitos para corrigi-los. E se foram cometidos erros no urbanismo de São Paulo, como no de outras grandes cidades do Brasil, é preciso conhecê-los e criar um estado de espírito por onde esses erros não se repitam.

Assim, a perpétua linha reta que não acaba mais; a ausência de arborização, ou uma arborização raquítica, pobre, retorcida, que se prefere nem ver, são defeitos gravíssimos que a cidade apresenta, e contra os quais quase ninguém faz objeções, porque não há muita apetência de nosso povo por essas coisas.

Talvez isto se deva, um pouco, à fobia do mato, própria ao desbravador. Este chega onde há mato e tem uma enorme vontade de estar na cidade; então procura, dentro do mato, construir a cidade. E como, segundo uma concepção simplista, o mato é o contrário da cidade, a primeira providência para urbanizar é derrubar as árvores. Ora, é propriamente uma síntese entre a cidade e o mato que convém fazer! As grandes capitais da Europa são construídas com essa ideia.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/11/1988)

Revista Dr Plinio 218 (Maio de 2016)

Castidade e coragem

O homem casto é forte e corajoso. Mas aquele que brinca com a tentação, começa a subir em seu interior — turva, mole, viscosa — a sensualidade, e ele cai. Essa queda introduz nele uma moleza, que o conduzirá à covardia na hora do perigo.

 

A Ordem do Templo nasceu em Jerusalém, em 1118, do desejo de um piedoso cavaleiro de Champagne, Hugues de Payens, a fim de proporcionar ajuda e proteção aos peregrinos que afluíam de toda a Europa para o Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os “Pobres Cavaleiros de Cristo”

A primeira Cruzada não lhes abriu caminho de facilidades. Eles eram continuamente atacados pelos turcos, destroçados, extorquidos, escravizados ou mortos. Os cruzados que se estabeleceram no país constituíram, no próprio reino franco do Oriente, colônias que era necessário proteger. Faltava-lhes uma proteção armada, porque as tropas do reino franco não eram suficientes.

Foi com essa intenção que Hugues de Payens congregou um punhado de homens. Não eram mais do que nove no início, dos quais não conhecemos os nomes, e que se agruparam sob o título de “Pobres Cavaleiros de Cristo”. Foi por causa deles que se reuniu, em 1128, o Concílio de Troyes, onde os “Pobres Cavaleiros de Cristo” receberam de São Bernardo, na presença do Legado Pontifício, de dois arcebispos e dez bispos, suas cartas de Cavalaria.

O novo Rei de Jerusalém, Balduíno II, os alojou em seu palácio, perto do Templo de Salomão, de onde o seu nome. Com suas cartas de Cavalaria, eles recebiam também sua Regra, pois se comprometeram pelos votos a observar a pobreza, a obediência e a castidade, sem a qual não teria existido a Ordem do Templo. “Castidade é a segurança da coragem”, lê-se na Regra.

Não citarei senão a página(1) que me pareceu mais bela, porque ela contém toda a renúncia que a Ordem exigia e a grandeza que ela dava em troca. Os que desejassem ser cavaleiros, no dia em que seriam revestidos, viam entreabrir-se diante deles a porta do Templo.

Eis um trecho da Regra:

Vós renunciareis — dizia-lhes o mestre — a vossas próprias vontades e ao serviço do rei, pela salvação de vossas almas e para rezar, segundo o estabelecido pelas regras e o costume dos mestres reconhecidos na cidade santa de Jerusalém. Em troca, Deus será vosso, se prometeis desprezar o mundo enganador, pelo amor eterno de Deus, e desprezar todos os tormentos de vossos corações. Fartos pelo alimento de Deus, embriagados pelos mandamentos de Nosso Senhor, não recearemos ir à batalha, pois é ir em direção à coroa.

Coragem: firmeza de princípios e o ardor de ideais

Destacamos deste histórico alguns pensamentos, dos quais o primeiro é este: “A castidade é a segurança da coragem”. O que está afirmado aqui é que o homem casto tem uma força e coragem que o homem não casto não possui.

Quase se diria que isso é mentira, porque o mundo de hoje costuma afirmar e proclamar o oposto: que o homem casto é medroso, enquanto, pelo contrário, o que não tem pureza atira-se a todas as aventuras e por essa razão é propriamente o homem forte. Então, trata-se de provar que essa segunda opinião — que é a opinião pagã — é falsa, e que a primeira é a verdadeira.

Como se prova que a primeira opinião é a verdadeira? A prova é simples. O que vem a ser, em última análise, a coragem? É a firmeza de princípios e o ardor de ideais pelos quais nós freamos o medo e sacrificamos nossa integridade física, nossa vida, e corremos qualquer outro perigo, de ordem intelectual ou moral, em benefício de nossos ideais.

Em termos mais simples: se uma pessoa tem um determinado ideal, com princípios bastante firmes para estar convencida dele de fato, e o tem como verdadeiro, ela possui uma vontade ardorosa, por onde ama esse ideal mais do que sua própria vida. Se isso se dá, na hora em que a pessoa sentir medo de ser morta, ferida, caluniada, desprezada, perseguida, etc., ela é capaz de frear esse medo em holocausto a seus ideais.

Quer dizer, fundamentalmente, a coragem se define como uma firmeza no pensar, no querer, no frear.

A castidade é por excelência uma firmeza; a impureza, uma covardia

Ora, a castidade é por excelência uma firmeza. É exatamente aquele alto grau de firmeza e de coragem por onde, quando está convicto de que deve ser puro, o homem compreende a beleza e a nobreza incomparáveis do ideal de pureza. Quando ele compreende ser essa a vontade de Deus, e que assim deve ser; quando tem amor a essa pureza por amor à vontade do Criador, ainda que seja tentado, ele recusa a sugestão da tentação e se mantém puro. O ato de fidelidade na pureza é, por definição e na sua substância, um ato de coragem. De maneira que o puro é um corajoso, o corajoso é um puro. As duas coisas são reversíveis como uma parte num todo e um todo na parte.

Pelo contrário, imaginemos o indivíduo que cede aos instintos da carne. Aparece a ocasião, ele fica aliciado por aquilo; embora sua consciência lhe diga que é mau, e na sua vontade haja algo que rejeita aquilo, ele começa a brincar com a tentação: pensa, não pensa; olha, não olha; aceita, não aceita. Começa, então, a subir dentro dele — turva, mole, viscosa por natureza e por definição — a sensualidade. Finalmente ele cai. Essa queda não prepara nele uma moleza? E essa moleza não preparará outra moleza na hora do perigo? É evidente que sim.

De maneira que o homem puro é o verdadeiro corajoso. O homem impuro tem na impureza um fator para não ser corajoso, um elemento de covardia, de medo.

Alguém dirá: nós vemos na História legiões inteiras de homens impuros que se portam com muita coragem.

Quando constatamos, numa narração histórica, por exemplo, que mil, dois mil maometanos se atiraram contra católicos para derrotá-los, é bem verdade que os mouros avançam com verdadeira coragem? São fanáticos. Eles avançam num torvelinho de indignação e de fúria que, de momento, sobe neles. São naturalmente muito inflamáveis.

Mas quando passa o ímpeto, aquele impulso, e começa a reflexão, então é a hora da coragem. Porque não é verdadeira coragem a do indivíduo que ataca cego de furor, sem medir sequer seus atos. Esse é um estourado, um louco, que perdeu o senso de conservação, um imbecil, não um corajoso. Ele faz isso como qualquer briguento na rua poderia fazer; como um bêbado, por exemplo, pode provocar alguém e até arriscar a vida. Mas não é a verdadeira coragem, que consiste em uma diretriz, um freio, uma norma. É apenas um extravasamento irregular e inconstante, como todos os extravasamentos.

Essa é uma das razões pelas quais, nas guerras da Reconquista, os católicos de Portugal e da Espanha acabaram vencendo os mouros: exatamente porque eram puros e corajosos. Os mouros eram muito mais numerosos; os nossos tiveram, durante quase todo o tempo, tropas muito superiores para enfrentar. E os maometanos foram recuando porque vinham naquele furor, mas se não quebrassem o ímpeto do católico fugiam. Eles não tinham o estofo necessário para uma prolongada resistência.

A castidade é uma dedicação…

Outro objetará: “Mas eu conheço muitos puros que são medrosos”.

Isso pode acontecer. É um puro que não levou a sua pureza até às últimas consequências. Porém, de si, a pureza tende a fazer do homem um corajoso. O mesmo homem que tem uma coragem igual a cinco e é puro, se fosse inteiramente puro teria uma coragem igual a dez; e se ele fosse impuro, teria uma coragem igual a zero. De si, uma virtude convida a outra.

Portanto, a Regra dos Templários dizia uma coisa perfeitamente verdadeira: a pureza é a guarda da coragem. O verdadeiro cavaleiro tem de ser casto.

Isso tem uma aplicação eminente para nós, porque se desejamos ser verdadeiros cavaleiros, se queremos enfrentar todos os riscos inerentes a quem se mete na nossa grande luta pela Civilização Cristã, devemos ser castos e puros. Precisamos recear não termos a inteira coragem por não possuirmos a plena castidade.

Ademais, Deus abençoa o varão casto e está com ele. O auxílio para o varão casto em toda espécie de luta é a proteção de Deus, que ama o casto de modo especial.

Da castidade não há louvor que não se possa fazer. Ela é por excelência uma dedicação, porque um homem verdadeiramente casto renuncia a uma porção de coisas a fim de viver para um ideal mais alto. Um ideal que tem isso de específico: não nos dá recompensas na Terra, mas sim no Céu, e por isso é o auge da dedicação voltada propriamente para Deus, porque o ideal católico é o mais puro, o mais próximo reflexo de Deus.

…e uma grandeza por excelência

A castidade é uma grandeza? A meu ver, é a grandeza por excelência. Entre um rei não casto e o último lixeiro casto, é mais o lixeiro casto do que o rei não casto.

É a virtude que acentua mais no homem a nota espiritual. Ora, como o homem é espírito e matéria, e a grandeza dele consiste principalmente no espírito, quanto mais ele for puro, mais nele o fator espírito domina e mais ele se eleva com a verdadeira e pura grandeza do homem. A castidade é, portanto, uma grandeza.

Outro ensinamento que haurimos do trecho lido acima está expresso nesta ideia: se o Templário se dedica inteiramente, receberá como prêmio a grandeza.

O mundo pensa o contrário: aqueles que se dedicam são pequenos; grandes são aqueles que recebem a dedicação. Por exemplo, um discípulo que se dedica ao seu mestre. O discípulo é menor do que o mestre. Então, é desprezível ser dedicado, e extraordinário ser objeto de uma dedicação. O homem verdadeiramente grande não se dedica, ele desperta dedicação. A imagem do ditador é esta: um homem levando atrás de si milhares que se dedicam a ele, mas ele não se dedica a ninguém.

A Doutrina Católica ensina o contrário. A razão de ser dos grandes está em serem dedicados, pois sem a dedicação não existe verdadeira grandeza. Todo homem constituído numa situação elevada, seja qual for, está posto ali para se dedicar. Ele é o pai, o pastor e deve, portanto, dar a sua vida por todos. Precisa exercer todos os seus atos para o bem daqueles em quem ele manda. Ele não foi feito para tirar vantagens do cargo, mas para servir. Foi o que disse Nosso Senhor: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate por muitos” (Mt 20, 28).

Admiração e grandeza

Esta verdade tem, à maneira de uma medalha, o seu reverso: Aquele que é pequeno e serve com satisfação recebe a grandeza.

Admirar consiste em olhar para algo com entusiasmo, entendendo a grandeza daquilo e amando-a. Quando compreendemos e amamos a grandeza de alguém, tendemos normalmente a nos dedicar a ele, a servi-lo. Portanto, as almas capazes de admirar são também capazes de se dedicar e de servir.

A admiração é a porta de toda grandeza e é impossível eu admirar algo sem que a grandeza daquilo que admirei, de algum modo, penetre em mim. Por isso, a grandeza é dada aos que admiram e se dedicam ao objeto de sua admiração. Aqueles que são grandes, esses devem ser dedicados. Neste sentido poder-se-ia interpretar o versículo do Magnificat que diz “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1, 52) como um convite feito aos poderosos para descerem de sua sede e servirem os pequenos; e a estes a se elevarem pela admiração e se encherem da grandeza dos poderosos. Temos, assim, a admirável harmonia do universo, onde grandes e pequenos coexistem uns para os outros, segundo a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Isso deve incutir em nós uma admiração cada vez maior pela Civilização Cristã com sua ordem, sua sabedoria profunda, sua harmonia extraordinária, seu espírito intrínseca e substancialmente anti-igualitário, que nos mostra a desigualdade como uma coisa digna de amor, de entusiasmo.

De outro lado, deve nos inspirar a ideia de que a Civilização Cristã, tão alta e extraordinária, precisa ser defendida com toda a coragem, e que essa coragem terão os puros.

“Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Esses não verão a Deus apenas no Céu. Os puros têm o olhar límpido para ver, nesta Terra, a conformidade das coisas boas com Deus, e ser corajosos para lutar até a última gota de seu sangue em defesa daquilo que é segundo Deus.

Compreendemos melhor, assim, as molas profundas da coragem dos Templários. Esses cavaleiros, que na sua época de ouro foram extraordinários e serviram de muralha para a Civilização Cristã, definiram o tipo perfeito do cavaleiro católico.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/2/1973)

Revista Dr Plinio 218 (Maio de 2016)

 

1) Não temos indicação da obra na qual Dr. Plinio se baseou.