Senso da presença de Deus

Santa Isabel foi dotada pelo Espírito Santo de um dom que a fez sentir a presença do Menino Jesus em Nossa Senhora.

Em certa medida, o verdadeiro católico também recebe essa graça, de tal forma que, quando a ela corresponde, ele deve saber discernir onde está e onde não está Deus, não física, mas moral e sobrenaturalmente. Todo autêntico membro da Igreja deve ser munido de um senso tal, que lhe indique quando as coisas são ou não segundo Deus.

Para isso não é preciso ter grande cultura, inteligência ou conhecimento teológico; basta ter este verdadeiro senso católico, privilégio dos que correspondem à graça do batismo. Disto Santa Isabel nos dá um maravilhoso exemplo ao perceber a presença do Menino Jesus no claustro materno de sua Santíssima prima.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 2/7/1970)

Como os encantos do mar…

O mar… Objeto perpétuo de meu enlevo, meu encanto, meu entusiasmo! Eu seria capaz de passar uma  tarde inteira sozinho olhando para o mar, quieto, inteiramente entretido, sem nenhuma outra preocupação que me distraísse desse convívio com as águas do imenso oceano!

No mar sempre me chamou muito a atenção o fato de ele se apresentar variando entre dois pontos  extremos, com todas as gamas intermediárias. É agradável considerar tantas formas de belezas postas por Deus na Criação.

E a magnificência do Altíssimo se reflete de modo especial nessa capacidade que foi dada ao mar de passar do auge da serenidade para o auge da impetuosidade, através de etapas. Se, de repente, a sequência desse processo fosse bruscamente interrompida, saltando de um lado para outro, levaríamos um susto.

O ordenado e o bonito daquelas imensas ondas que avançam em ofensiva para a terra, sem se mostrarem descabeladas nem fazendo tumulto, evocam um ataque em regra de uma cavalaria nobre.

Já a maré montante de certos dias, que vai cobrindo a praia, tem seu esplendor próprio, lembrando uma “bataille rangée”, em fileiras.

É linda, igualmente, a variedade das ondas, porque às vezes algumas não chegam a rebentar: apenas formam aquelas eminências e vão adiante. Outras, pelo contrário, arrebentam e há um gáudio de gotas pelo ar que depois caem e seguem na sua ofensiva, detendo-se um pouco antes de atingir a praia, saltitando, porque vão se entranhar nas profundidades das areias, e terão de esperar um longo tempo até se tornarem água de novo. Elas então bailam pelo ar, jubilosamente, como guerreiros que, antes de desferir o ataque definitivo, entregam-se à dança da vitória.

Agrada-me também considerar o mar quando se acha calmo, quase imóvel. Dir-se-ia que está de tal maneira absorto na contemplação do firmamento, que nem pensa em si. De súbito, percebe-se que de um lugar qualquer virá uma surpresa. Algo começa a se mover, e dentro em pouco forma-se um vagalhão; é uma bagunça aquática, um assalto contra a terra em que os vários elementos do mar não vêm em “bataille rangée”, mas parecem se empurrarem uns aos outros para tomar a dianteira, a fim de conquistar a costa mais depressa. É o esplendor da variedade, do inesperado, do quase susto, do imprevisto, que tem seu encanto próprio. E a sucessão desses aspectos torna o mar muitíssimo entretido.

Esses diversos modos do movimento das águas têm “pulchrum”, porque é belo o mar. Se este fosse feio, suas variações também o seriam. Imagine-se um espetáculo em que aparecesse uma dançarina feia dançando bem. Ninguém quereria assisti-lo, porque a dança é bela quando é belo quem a executa.

Afigurem-se um exército que avança. Será muito bonito quando composto de homens fortes, robustos. Se, pelo contrário, formado de capengas a se arrastarem em certa ordem, não valerá coisa alguma.

Assim também o mar: é belo e a sua movimentação está à altura dele.

Maria… fora de comparação!

“De Maria nunquam satis”. Com esta curta mas expressiva frase, afirma São Bernardo que nunca se louvou, exaltou, honrou, amou e serviu suficientemente a Maria. Dr. Plinio demonstrou sempre grande entusiasmo por esta tese. Apesar de sua imensa capacidade de expressão, gostava ele de reafirmar a insuficiência do vocabulário humano para exaltar convenientemente a Rainha do Céu e da Terra.

 

Neste mês de Maio, mês de Maria, nossos leitores gostarão certamente de conhecer uma significativa amostra dessas manifestações de devoção mariana. Para tanto, transcrevemos um pequeno trecho de seus comentários sobre o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”.

Sendo Deus “Aquele que é”, nunca se passou nada que, de longe, pudesse ser tão importante como a Encarnação do Verbo. Este é um fato relacionado com a própria natureza divina, e tudo que diz respeito a Deus é incomparavelmente mais importante do que tudo que diga respeito ao homem. A Encarnação de Deus a tudo transcende em importância.

Por este motivo, o papel de Nossa Senhora na Encarnação situa bem o papel d’Ela em todos os planos divinos, e precisamente no que eles têm de mais importante e de mais fundamental.

Achamos admirável, por exemplo, Nosso Senhor ter escolhido Constantino para tirar a Igreja das catacumbas. Mas o que é isto, perto de ter escolhido Nossa Senhora para n’Ela ser gerado?  Absolutamente nada! Admiramos muito o Pe. Anchieta, porque ele evangelizou o Brasil. Mas o que é evangelizar um país, em comparação com o cooperar na Encarnação do Verbo? Nada!

Digamos que se tratasse de salvar o mundo de sua crise atual e de restabelecer o reino de Cristo, e suponhamos que Nosso Senhor escolhesse um só homem para esta tarefa. Nós acharíamos esta missão algo de formidável, e com razão. Mas, o que seria isto em comparação com a missão de Nossa Senhora? Nada! Ela situa-se num plano que está fora de comparação com a missão histórica de qualquer homem. A respeito de Nossa Senhora é-se sempre obrigado a repetir a expressão: “fora de comparação”, porque Ela faz estalar todo o vocabulário humano. Há uma tal desproporção entre Ela e todas as demais criaturas, que a única coisa segura que se pode dizer é que é “fora de comparação”…

* * *

Estava já em fase final de preparação este número de nossa Revista quando o Papa João Paulo II presenteou o orbe católico com a encíclica Ecclesia de Eucharistia (A Igreja vive da Eucaristia),  datada de 17 de abril, Quinta-Feira Santa. Nesse luminoso documento,  o Papa ressalta a suprema importância do Sacrifício do Altar, centro e ápice da vida cristã, e incita os fiéis do mundo inteiro  a darem todo o valor devido a este imenso dom de Deus, que é a presença real de Cristo na Eucaristia.

Por uma feliz coincidência, é este o tema da seção “Dr. Plinio comenta”: a grande alegria que dá a Jesus Cristo quem O recebe na Comunhão, ou ao menos faz uma curta visita ao Santíssimo  Sacramento, e a estreitíssima intimidade que Ele estabelece com a alma que O recebe.

Em consonância com os anseios manifestados pelo Santo Padre em sua valiosa encíclica, trataremos mais amplamente do tema da Eucaristia no próximo número, mês da festa do Corpo de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

A mediação universal de Nossa Senhora

O  meio para atingirmos a finalidade de nossas vidas é sermos devotos de Nossa Senhora. Ela é medianeira de todas as graças; todos os nossos pedidos vão a Jesus Cristo, Nosso Senhor, por meio d’Ela.Isso se exprime de um modo característico com um axioma da Teologia: um pedido feito a Deus por todos os anjos e santos, em conjunto, ao qual Nossa Senhora não se associe, não é atendido. Porém, se Ela pedir sozinha será atendida.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 28/10/1990)

Ponde em mim os olhos de Vossa piedade

Minha Mãe, eu sei bem, ou ao menos julgo saber bem, quais são os meus defeitos. Receio, porém, ter uma noção hipertrofiada de minhas qualidades. Vós bem sabeis como é uma coisa e como é outra.

Não me interessa saber até que ponto minhas qualidades podem me obter o que eu preciso; nem me interessa saber até que ponto meus defeitos atraem sobre mim punições que eu poderia não sofrer se eu não os tivesse. Porque Vós vedes tudo isso e Vós rezais por mim com empenho de Mãe de Misericórdia. E onde entram os vossos méritos e a vossa súplica, o contributo de minha súplica é uma gota de água.

Entretanto, Vós quereis a oração de vossos filhos. Olhai, pois, para as minhas necessidades, elas são um bramido que se levanta a Vós, pedindo-Vos aquilo que eu preciso.

Tende pena de mim, ponde em mim os olhos de vossa piedade, e atendei-me.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/11/1988)

Esplendor do Brasil colonial

Creio que mais de um de meus conterrâneos, assim como eu, saciados das largas e movimentadas avenidas, dos viadutos e metrôs que cortam as grandes cidades, sentem uma espécie de nostalgia de antigos tempos, nos quais eles mesmos não viveram, mas onde cresciam, aqui e ali, pequenas cidades com suas ruazinhas estreitas e irregulares, com seus casarios familiarmente abraçados uns aos outros. E para que não fossem apenas conhecidas por sua pequenez, na praça central se erguiam belas construções, já edifícios sacros e eclesiásticos, já prédios consagrados a fins temporais, muitos deles autênticos monumentos, obras-primas de artistas cujo talento ainda estava por ser celebrado.

É o que encontramos, por exemplo, em Ouro Preto, cidade colonial de Minas Gerais. Ruelas e ladeiras povoadas de casas com suas fachadas dos séculos XVII e XVIII, umas mais estreitas, outras mais generosas; essas rústicas, aquelas adornadas, mas todas sérias, como que meditativas, refletindo pensamento, e não uma qualquer coisa do fútil e do leviano próprios a certas produções barrocas.

Dobra-se uma esquina e surge à nossa frente uma igreja de proporções imponentes, traçado majestoso, pórtico emoldurado por esculturas do Aleijadinho, e acolhendo no seu interior uma profusão de imagens e peças artísticas muito valiosas.

As ruazinhas convergem para a praça central, com o feitio característico das praças do Brasil colônia: vasta, ostentando sobras de espaço, rodeada de casarões, casas e casinholas típicas do tempo. No chão estende-se um pavimento de pedras que vão sendo polidas ao trotar das carruagens, das carroças, e sob o vaivém do povo que o palmilha.

No fundo dessa praça se ergue o prédio que eu reputo o mais lindo edifício temporal do Brasil. Enquanto proporções e linhas arquitetônicas, sua beleza é indiscutível.

Outrora sede da Câmara Municipal de Ouro Preto, é uma grande construção baseada nos moldes dos edifícios portugueses daquela época, com sua fachada cortada ao meio pela torre que abriga no alto um campanário. A parte central, revestida de pedra, é arejada por duas janelas no andar de cima, e por duas portas no primeiro piso. De cada lado deste corpo central se vêem, em cima, três janelas com balcões, e embaixo outras tantas.

Todo o esplendor desse monumento reside na proporção entre o prédio e a torre. Trata-se de algo mais ou menos indefinível: a torre possui o grau de saliência perfeito que deve ter em relação ao fundo do edifício; tem a altura exata, que corresponde de modo agradável, sem ser provocante, ao tamanho de cada uma das metades que ela divide. É uma altura normal, comum, e constitui com o conjunto uma harmonia meio inefável, não se tem palavras para explicá-la, mas sabe-se que é de uma extraordinária beleza.

Nesse edifício podemos admirar uma ordenação, seriedade e idoneidade que nos falam da sociedade orgânica existente em alguma medida no Brasil colonial. Nele tudo é tão direito, tão proporcionado, tão conforme à ordem natural criada por Deus, que não será exagero afirmar que a civilização cristã da época se refletia nas suas linhas, paredes e adornos. E ele, reciprocamente, refletia-se na sociedade, salientando o que esta possuía de bom.

Donde, por exemplo, quem conversasse à sombra daquele prédio, sentir-se-ia enriquecido em dignidade, e tonificado no seu próprio espírito com elevadas disposições para considerar as infinitas belezas do Criador. Algo bem diverso do que se experimenta numa grande e agitada cidade moderna…

 

 (Extraído de conferências em 13/3/88 e 26/9/90)

 

Aquela pedra heroica…

Gosto extremamente do Pão de Açúcar; acho-o muito bonito. Tenho por ele uma predileção e uma espécie de simpatia pessoal veemente. Desde que o vi pela primeira vez, quando era pequeno, extasiei-me! E este impacto não desapareceu. Até hoje tenho entusiasmo pelo Pão de Açúcar e pela vista que se tem dele.

Não tenho muito entusiasmo pelo Corcovado, mas o Pão de Açúcar eu acho um colosso. A meu ver, cometeram um erro em colocar o Cristo Redentor no Corcovado. Ele deveria ter sido posto no Pão de Açúcar. Sei perfeitamente que o Corcovado é mais alto do que o Pão de Açúcar — tem o dobro da altura —, mas, enquanto domínio dos mares, o Cristo Redentor ali teria outra perspectiva.

O Pão de Açúcar tem um ar de busto aristocrático dominando a natureza: ele domina com majestade as suas cercanias. E a imagem do Cristo Redentor ali em cima estaria no seu pedestal, comunicaria uma irradiação sacral vinda das graças que a imagem difunde, e se coadunaria perfeitamente com a forma e o estilo do Pão de Açúcar; assim se faria que uma grandeza natural servisse de pedestal para uma grandeza sobrenatural análoga, com uma ordenação muito bonita.

Aquela pedra heroica combina bem com o temperamento do brasileiro? É uma pergunta delicada, mas se poderia dizer o seguinte: se o Pão de Açúcar não reflete o que o brasileiro é, reflete o que ele deveria ser.

Ele tem qualquer coisa de contemplativo. Do alto do Pão de Açúcar vê-se o mar imenso que entra através daquelas ilhas; ele já fica meio à saída e não no fundo da baía, e olha para aquilo tudo de cima, como se fosse feito para ter uma contemplação muito elevada, muito silenciosa das coisas, levando o espírito a considerações tão extraordinárias que só podem ser contadas a poucas pessoas.

O Pão de Açúcar tem qualquer coisa de confidencial, como se ele, nos seus mistérios, estivesse pensando em coisas que são para ser conversadas com Deus. E são coisas colossais.

Por outro lado, ele possui algo de dominador. Porque ele domina toda aquela paisagem pelo seu peso. Tem-se a impressão de que ele tem garras invisíveis com que segura aquilo tudo: “Nada nem ninguém se mexa sem que eu queira, porque tudo depende de mim, e eu dependo do meu pensamento. Estou envolto em considerações com que vocês da planície não entendem. Mas nem foram feitos para me entender… Vocês devem entender meus pés; eu entendo minha cabeça”.

Desse modo sinto o Pão de Açúcar, e assim eu quereria que o brasileiro fosse.  v

 

(Extraído de conferências de 19/12/1988, 3/6/1989 e 7/12/1993)

 

Como nasceu a aristocracia?

Vivendo numa época onde, praticamente, não há mais tradições aristocráticas, o homem contemporâneo não percebe quanto o desaparecimento dos títulos de nobreza concorreu para a banalização do mundo moderno.

 

Nos países da Europa, a aristocracia nasceu da ordem natural dos fatos e depois veio a florescer sem nenhum programa, sem nenhuma intenção, também conforme à ordem natural, como uma planta que nasce da terra: da raiz brota um cabo, deste um bulbo, o  qual dá origem às flores das quais surgem as frutas que serão depois aproveitadas pelos homens.

Desordens morais existentes no Império Romano do Ocidente

A imoralidade produziu estragos incalculáveis entre os romanos. Por isso o castigo de Deus desabou sobre Roma, que foi atacada ao mesmo tempo — como pelos grampos de uma pinça monstruosamente grande — por dois inimigos: os bárbaros, os quais vinham dos territórios que mais ou menos abrangem hoje a Alemanha, a Suíça, a Áustria, a Hungria, e o que fica ao Oriente da Europa; e pelos maometanos, que procediam do sul.

No dia em que os muçulmanos encontrassem os bárbaros, eles teriam achatado o que restava do Império Romano, bem como a Igreja Católica; com isso o mundo civilizado estaria liquidado. Era o castigo completo da Providência sobre aquela humanidade.

Aconteceu, entretanto, que Nossa Senhora teve pena dos restantes deste império em franca degringolada.

Bárbaros e maometanos matavam os católicos

Os bárbaros sentiam muito o frio da Alemanha, então tinham tendência para ir descendo cada vez mais, porque compreenderam que, dirigindo-se para o sul, encontravam clima mais quente; portanto, podiam levar uma vida mais suave. E eles se estabeleceram na Itália, França, Espanha e numa parte de Portugal.

Eles eram tão selvagens que sucedia o seguinte: habitavam as florestas e durante o dia entravam nas cidades para comer, se divertir, ver como eram as coisas, porque tudo lhes parecia novo; e para matar gente, enfim, para encher a vida como faz um bárbaro.

Mas, quando chegava a noite, eles iam dormir no mato, porque diziam que sentiam falta de ar nas cidades, mesmo nas praças públicas, onde naturalmente há mais ar do que nas ruas.

Os maometanos atacavam mais os campos do que as cidades, mas a situação era a mesma. Pois, quando penetravam nas cidades, fechavam as igrejas católicas, perseguiam e matavam os fiéis, mais ou menos como faziam os bárbaros. E o que restava da Igreja estava completamente torcido, esmagado.

Quando os bárbaros ou os maometanos invadiam as cidades, as autoridades civis fugiam e se dirigiam geralmente para a Itália, cujo clima é mais ameno e onde eles esperavam ainda encontrar restos do Império Romano para poder ali viver. Fugindo, eles deixavam o povo abandonado; assim, cada um poderia fazer o que quisesse.

Mas os Papas deram ordem a todos os Bispos e padres para não fugirem e permanecerem nos lugares onde estavam, e procurassem evangelizar o povo. Esse foi o segredo da vitória da Igreja Católica.

Porque dessa forma eles acabaram tomando certo contato com os bárbaros, ensinando-lhes uma espécie de rudimento da Religião, quais eram seus deveres, quem é Jesus Cristo, Nosso Senhor; e assim os bárbaros amansaram um pouco.

Com os árabes foi mais difícil porque eles já tinham uma religião, a maometana, inimicíssima da Religião Católica; os maometanos não queriam abandonar essa religião e nas cidades esmagavam os católicos. Havia uma série de católicos que não lutavam contra os maometanos e se comprometiam a não fazer conversões para a Igreja Católica. A esses os maometanos tratavam mal, mas se criava uma situação onde ainda se podia respirar.

Os católicos que não queriam aceitar isto e realizavam um trabalho para converter os maometanos eram barbaramente trucidados. Então as populações do campo — as da cidade não tinham o que fazer — começaram a usar um sistema que deu origem à nobreza.

Muralhas, portas fortificadas, torres

Em todas as terras cultivadas havia fazendas. Ou seja, uma terra mais ou menos extensa na qual um determinado proprietário plantou, cultivou para produzir certos bens. Nessa terra onde exerciam seus serviços, os trabalhadores manuais naturalmente ganhavam o necessário para viver e, como estavam longe das cidades, gozavam de certa paz, tranquilidade.

Quando os bárbaros ou os maometanos invadiam essas terras, os trabalhadores manuais eram reduzidos a escravos; por isso eles tinham muito medo. Então, quando os adversários começavam a avançar, eles pediam ao patrão para recebê-los em sua casa. E os patrões, de pena deles e achando que era justo protegê-los, pois eram católicos que deveriam ser amparados contra os inimigos, fizeram o seguinte: começaram a construir em torno de suas casas um recinto muito grande, todo cercado de muralhas de pedra, e sobre elas um passadiço por onde os guerreiros podiam ficar andando para ver de longe se os atacantes estavam se aproximando, ou não. Se os avistassem, com muita antecedência eles batiam um sino e todos os homens vinham guarnecer a parte alta das muralhas, as quais às vezes eram tão grossas, que sobre elas dois ou três homens podiam circular ao mesmo tempo.

Do alto das muralhas, eles ou lançavam flechas sobre os atacantes — e eram bons atiradores! — ou esperavam que subissem em escadas. Quando estas estavam cheias de atacantes, eles empurravam as pontas das escadas que estavam apoiadas na muralha; todos naturalmente caíam e muitos se machucavam.

Os defensores tinham também no alto das muralhas água fervente, que jogavam sobre os atacantes. Era uma coisa terrível uma pessoa que estivesse com couraça receber água fervente, porque a água entrava pelo corpo e o queimava; e se tornava muito difícil retirar a couraça, pois ela feria mais o corpo; era um verdadeiro horror.

E os patrões, aos poucos, foram construindo portas fortificadas e torres. As torres eram para se ver mais longe, para saber se o adversário se aproximava. E também para de mais alto jogarem as flechas a fim de atacar os inimigos muito antes de estes chegarem ao pé da muralha.

E as portas eram especialmente preparadas: feitas de pranchas de madeira ligadas entre si por placas de metal parafusadas, de maneira que não pudessem se desconjuntar. E no teto acima das portas, que eram muito grossas, faziam frestas sobre as quais colocavam tachos com óleo ardente; quando os invasores começavam a entrar, dessas frestas caía óleo em ebulição que queimava muito mais do que água fervente; assim eles continham a invasão.

Ao cabo de algum tempo, os patrões construíram grades atrás das portas, que eles faziam descer por máquinas. Os atacantes precisavam serrar, limar as grades para poderem entrar. Mas fazer isto enquanto caía óleo ardente era impraticável, quer dizer, em última análise, a casa do senhor ficava fortificada.

Qual era o interesse dos camponeses e pequenos proprietários de terra com isso?

Patrões e empregados se relacionavam como pais e filhos

Eles tinham um vivo senso dos interesses comuns. Assim, os trabalhadores manuais conseguiram que os patrões fizessem recintos enormes em torno das casas destes últimos, de maneira que, quando viam de longe chegarem os bárbaros ou os mouros, os trabalhadores mandavam trazer rapidamente de suas casas as famílias, o gado, os móveis que eles mais prezavam, e colocavam tudo isto dentro do recinto dos patrões. Dessa forma, quando eles tivessem rechaçado o invasor, o gado, que constituía a fortuna deles, e os móveis, que eram as condições para poderem morar, estavam intactos.

A casa do patrão deixou de ser exclusivamente dele para tornar-se um enorme braço paterno, segurando em torno de si toda a população local.

Evidentemente, para fazer tudo isso era preciso uma cabeça. Quem dirigia a defesa eram os patrões, os quais eram homens de combate, porque em época de paz matavam as feras existentes no mato, para que os camponeses pudessem trabalhar livremente.

Enquanto os patrões viviam em luta contra os javalis e outros animais selvagens, que havia nas florestas profundas da Europa, os empregados não eram homens de guerra, mas de trabalho. E no tempo de guerra os patrões comandavam os empregados, porque aqueles sabiam como dirigir uma guerra e estes não sabiam. Assim, as relações entre patrões e empregados acabaram sendo de pais e filhos. 

Na propriedade do patrão havia a casa dele, armazéns para guardarem as coisas que os empregados traziam e, no centro dessas construções, existiam a joia e o tesouro daquele conjunto: uma capela, onde um capelão e, às vezes, mais dois ou três sacerdotes celebravam Missa todos os dias e davam Comunhão aos que queriam; junto à capela havia uns quartinhos para eles pousarem.

Quando investiam contra os inimigos, os padres não podiam atacar, porque, de acordo com a missão deles, não deviam usar armas, mas estavam junto aos atacantes incitando-os: “Coragem, vamos salvar a Cruz, Deus o quer!”; mostravam um Crucifixo e iam para a frente, seguidos por todos os homens do povo. O senhor feudal, com espada, couraça, elmo, montando um cavalo, ia à dianteira; ele era o chefe e o pai daquele povo.

Assim nasceu a maior parte dos castelos da Europa

Alguém fez um bonito plano para que isso nascesse? Não. Surgiu naturalmente, as circunstâncias obrigaram a que isso fosse assim e dessa forma nasceu a maior parte dos castelos que existem na Europa. Castelos cujos perfis todos conhecem: altas torres e muralhas, lindas portas; no centro do castelo a torre de menagem, mais alta do que todas as outras, de onde podiam soltar pombos-correio para avisar aos aliados: “Estamos sitiados, venham nos ajudar!”

E da torre de menagem partiam túneis subterrâneos para lugares onde os donos e os empregados podiam fugir, caso estivessem perdendo a batalha em cima, porque os túneis percorriam uma zona grande e iam abrir bem longe onde o adversário nem imaginava. Os castelos eram super bem defendidos, tornando-se muito difícil conquistá-los. E os empregados deviam essa defesa aos patrões.

Havia uma coisa mais tremenda: as falsas fugas.

Às vezes os patrões faziam um túnel mais ou menos longo, que acabava dando no mar. Não tinha porta. De maneira que, se os atacantes por ali entrassem, ao final do percurso chegariam a areias lindas, julgando se engajar numa situação cômoda. Mas era uma fraude, um artifício, porque aquele corredor dava em areias movediças, ou seja, que não têm chão firme; o indivíduo que nelas penetra, andando ou parado começa a atolar e não tem saída. Então os adversários que entravam na areia movediça estavam liquidados. O dono do castelo nem mais precisava se preocupar com aqueles inimigos, porque o solo iria comê-los.

Origem da nobreza europeia

Tudo isso fez com que houvesse uma mudança radical nas relações dos patrões com os empregados. Antes das invasões, essas relações eram mais ou menos parecidas com as existentes hoje. Um homem tem a terra, as sementes, sabe plantar. O outro não tem capital, ou seja, a terra, as sementes e nem sabe plantar; ele precisa de alguém que o dirija. Estão aí caracterizados o patrão e o empregado.

Mas quando começaram as invasões, a situação mudou. Porque os empregados ficaram dependendo da direção do patrão para poderem mover uma defesa eficaz. E o patrão ficou conhecendo que ele era o chefe militar e não apenas o chefe econômico daquele grupo e, portanto, muito mais admirado, mais respeitado do que se fosse um simples chefe civil; passou a ser o governador do lugar, quer dizer, em termos mais concretos, tornou-se uma espécie de reizinho, o senhor feudal.

E é natural que o senhor feudal do lugar se traje melhor, adquira uma melhor educação, coma melhor, enfim, se esplendorize e enriqueça. Por essa razão ele passou a ser o lord, o nobre, enquanto que o operário, o trabalhador manual, era o plebeu. A diferença entre as duas classes se fez normalmente.

E alguns nobres se tornaram mais aristocráticos. A pessoa mais pobre, menos capaz, fica com uma educação menos fina, um conhecimento menos aberto; enquanto que o nobre, quando teve mais educação, aprendeu mais trato, tomou ares que eram muito mais finos do que os ares do homem do povo, e a esses ares se chamava nobreza. Quer dizer, o nobre era produto de toda uma germinação local que deu origem à nobreza europeia.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1995)
Revista Dr Plino 170 (Maio de 2012)

 

Divinamente admirável, supremamente admirador!

Nosso Senhor Jesus Cristo deixou-nos, em sua vida terrena, incontáveis exemplos acerca da admiração: repleto de enlevo por seu Divino Pai, Ele também soube admirar, com respeito e ternura, tudo quanto Lhe era inferior.

 

Outro dia, subitamente durante uma reunião, eu tive uma impressão sobre a admiração relacionada com a Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para o meu foro interno, pelo menos, foi uma impressão magnífica que tentarei, de modo improvisado, expor nesta conferência.

Ao analisar certos fatos narrados no Evangelho — os quais têm por característica produzir encanto em todo o mundo —, eu me empolguei pela pessoa de Jesus.

Superior a qualquer cogitação, Nosso Senhor surpreende-nos constantemente por ter feito com simplicidade, dignidade e sobranceria, coisas inimagináveis. Tais são a força e a bondade expressas em suas ações, que o único comentário pertinente cabe em quatro letras: “D”, “E”, “U”, “S”.

Entretanto, eu tinha a sensação de faltar algo; havia alguma coisa que eu não estava conseguindo exprimir bem, e era necessário pô-la à luz para se compreender melhor o Admirável por excelência, o qual era também o Admirador por excelência.

Então, como detectar esse elemento novo que me faltava compreender?

Os reflexos de Nosso Senhor em sua Mãe Santíssima 

Tantas vezes eu tenho falado de castelos refletidos na água; o reflexo é mais belo do que o próprio castelo.

Porém, imaginemos Nosso Senhor refletido nas águas do lago de Tiberíades: Ele era infinitamente mais belo do que o reflexo! Creio que isso aconteceria se Jesus se refletisse em quaisquer águas do mundo, com exceção apenas de um mar, superior a todos os mares da Terra: Maria.

Porque quando Ele olhava para sua Mãe Santíssima, coisas que só Ela compreendia n’Ele se refletiam no rosto d’Ela. E quem olhasse para o celeste rosto de Nossa Senhora teria uma espécie de porta de acesso de ouro para compreender os mistérios da Sagrada Face de Nosso Senhor.

Reportemo-nos à cena da transmutação da água em vinho nas bodas de Caná.

Todos estão encantados com Aquele convidado único que passou a ser a festa de toda a festa quando o arquitriclínio procura o noivo e diz: “Acabou o vinho.”

Empolgados com Nosso Senhor, todos tinham se esquecido de seus próprios egoísmos. Entretanto, alguém não se olvidara daquelas pessoas: com olhar de Mãe, Nossa Senhora velava por todos; ao mesmo tempo em que Ela admirava a Jesus, tinha amor materno por cada um, a ponto de perceber que o vinho acabara.

Jesus olha para sua Mãe e vê nela aquela expressão que procura estimular n’Ele a compaixão. Podemos conceber a compaixão de Nosso Senhor olhando compassivo para Nossa Senhora, e Ela refletindo a Ele em seu sorriso?

Quem seria capaz de compreender, sem olhar para o sorriso de Maria, o que se tinha passado na Alma santíssima de Jesus naquele momento? Absolutamente ninguém. Neste reflexo, de certo modo com lente de aumento e luz incomparável, aparecia mais claramente o Redentor. Ele escolheu as melhores manifestações de Si mesmo para refleti-las na face sagrada de sua Mãe.

Para levar tudo ao último extremo, podemos imaginar a dor de Nossa Senhora vendo a dor de Jesus? E o que São João Evangelista, as santas mulheres, Longinus e outros poucos viram na face d’Ela, no momento em que Ele bradou: “Consummatum est”? A Alma saiu do Corpo, dilacerou-se a humanidade santíssima de Jesus, e Maria Santíssima pôde medir inteiramente o mistério terrível da morte e a coisa tremenda: um Deus que morre!

Se até a natureza material foi sensível a isso, o que pensou Maria! Como era esse reflexo da dor d’Ele n’Ela? O pináculo da tristeza do Calvário podia ser mais bem compreendido olhando-se para Maria, a fim de entender como Jesus sofria.

O esplendor de Jesus refletido no lago de Genesaré

Volto a considerar Nosso Senhor caminhando sobre as águas do lago de Genesaré. Águas que estremeciam inteiras ao serem tocadas pelos divinos pés d’Ele, como se elas não se contivessem de delícia por receberem o peso tão leve daqueles pés sagrados.

Ele ia andando, passo a passo, e dir-se-ia que o lago se tornava vivo; os peixes faziam figuras geométricas, guirlandas, algo de cerimonial, de tal maneira as cerimônias agradam ao Autor de toda beleza.

O ar, completamente diferente e cheio de suavidade, mais do que nunca irmão da água; e nos pontos onde um e outro se tocavam davam a impressão de que um contava para o outro as delícias que possuíam, formando uma espécie de lâmina fina de confidências. O que a água contava se evolava como luz pelo ar, e o que o ar narrava enchia de aroma a água.

Assim Nosso Senhor caminhava sobre as águas.

Ele devia estar inteiramente cônscio de seu próprio esplendor, de sua própria grandeza. De sua pessoa talvez saíssem miríades de virtudes para encherem o ar e a água, a fim de ser visto pelos Apóstolos que lá estavam para terem um tremor de emoção, uma plenitude incalculável de admiração, de veneração, de ternura; algo que a mente humana não sabe exprimir, mas que o Espírito Santo soube descrever.

O Admirado por excelência também admirava

Lembremo-nos d’Ele sentado sobre o monte dizendo: “Bem-aventurados os puros, porque verão a Deus!” Sentimos o timbre de voz e todos os apelos para a pureza existentes em nós fazerem como as águas do lago de Genesaré. Tem-se vontade de ser puro porque Ele disse: “Bem-aventurados os puros, porque verão a Deus!”

E assim, todas as palavras do sermão das bem-aventuranças causam a impressão de que até os passarinhos paravam no ar para ouvir melhor uma música cujo sentido não entendiam!

Vendo outro dia um lírio, lembrei-me da frase “Olhai os lírios do campo…” e percebi, de repente, que Nosso Senhor, quando falava do lírio, o admirava.

Observá-Lo admirar e cantar a glória do menor do que Ele, quando Jesus diz: “Olhai os lírios do campo, eles não tecem nem fiam, entretanto nem Salomão em toda sua glória se vestiu como eles!” A infinitude d’Ele se debruça sobre uma flor. Como seria belo vê-Lo ao pronunciar essas palavras, pegar uma pétala de um lírio e passar seus dedos sobre ela!

Uma cena extraordinária, repleta de lições para nós, diante da qual não temos palavras para qualificar! Vamos procurar os termos, mas o vocabulário estala e ficamos com vontade de apenas dizer: “Onde está esse lírio para eu ficar junto dele até morrer, repetindo ‘olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam, entretanto nem Salomão…’”

Mas, se quando o Redentor disse “olhai os lírios do campo…” se aproximasse o Lírio do Céu, que era Nossa Senhora, como Ele daria esse lírio para Ela? E como Ela o receberia? O olhar d’Ele daria a entender: “Como Vós sois mais magnífica do que esse lírio!”

E Maria Santíssima, naquele olhar de Jesus, contemplaria um “pulchrum” ainda desconhecido, e exclamaria: “Este lírio eu guardo porque é um reflexo do Lírio dos lírios; é o meu Filho virginal, meu Filho unigênito, o Primogênito de Deus em todo o gênero humano!”

Da admiração de Jesus, nascem os guerreiros da Fé

Percebemos, assim, como da análise admirativa de algo pequeno, coisas imensas podem nascer. E como completa o ciclo de Deus Filho admirando o Padre Eterno, Nossa Senhora, os outros homens, enquanto iguais a Ele na natureza humana, mas depois se debruçando sobre os pequenos e olhando as crianças; então se compreende a frase: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o reino dos Céus!”

Jesus diria isso não só com o sentido de proteção, mas também de respeito, de dedicação, de admiração. “Que alma limpa! Que alma pura! Eu, Deus, autor e foco de toda a pureza Me contemplo vendo este menino. E vejo nele um reflexo criado de Mim mesmo. Eu o criei para Me olhar e Me amar.”

O mártir que eu, por feitio pessoal, mais admiro é o grande Santo Inácio de Antioquia. No momento de ser triturado pelos leões, ele exclamou, diante do imperador e da sociedade romana pagã: “Que venham a mim os leões e me triturem a carne como a pedra do moinho tritura o trigo para fazer farinha, na qual depois se possa operar a Transubstanciação e seja o Corpo e Sangue de Cristo. Assim também, eu quero ser triturado, quero ser um mártir de Cristo!”

Alguns autores dizem que aquele menino contemplado por Nosso Senhor, cuja alma puríssima chegou a este píncaro de heroísmo na inocência, foi depois Santo Inácio de Antioquia. A mão divina tinha pousado sobre ele; e, quando disse “deixai vir a Mim os pequeninos”, Jesus o aproximou de Si.

Se o lago de Genesaré estremecia, se o ar se enchia de perfumes, de brisas e de luzes, o que dizer da alma de um menino fiel que Nosso Senhor aproxima de Si?

E Ele, de outro lado, sabia que esse menino seria o grande Inácio de Antioquia. De dentro dessa cena encantadora nós vemos emergir, ensopadas de sangue, duas figuras trágicas: Jesus, o Cordeiro de Deus coberto de sangue, de escarros, alvo de bofetadas, de injúrias durante a Paixão; e o cadáver de Santo Inácio de Antioquia estraçalhado pelas feras! Mas desse sangue, depois, sai um incenso mil vezes mais grato a Deus do que o exalado do sacrifício de Abel. Pelo seu Sangue, Jesus reconciliou Deus com os homens no alto da Cruz, fazendo nascer mártires e guerreiros até o fim da história dos homens.

As Cruzadas não foram senão o mais belo reflexo dos martírios, os quais nasceram — em certo sentido da palavra — de um menino a quem Nosso Senhor agradou numa cena encantadora, dizendo: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus”. E com quanta admiração Ele, nessa hora, olhava para Inácio, tão pequeno, mas no qual o Divino Salvador via o atleta da fidelidade até o fim!

Exercício de maravilhamento

A alma admirativa não se contenta em admirar só o que é superior, mas sabe voltar-se também para o inferior, tomá-lo com respeito e ternura, sem igualitarismo, ver uma figura de Deus nas menores coisas e dar glória a Ele por manifestar-Se nelas.

Era isto propriamente que faltava para eu compreender a admiração. Então, agora eu contemplo Nosso Senhor andando sobre as águas e admirando a água, o ar e sentindo-Se refletido neles, dizendo: “Imita a minha magnificência; como é bela esta água, como é belo este ar que Eu criei!”

Compreendemos assim como o ciclo da admiração se perfaz, e o que é a alma verdadeiramente admirativa.

Imaginemos uma rainha prodigiosamente rica. Ela vê, de repente, rolando sobre uma mesa de seu régio palácio, uma moeda, que é a menor das moedas em circulação no seu reino. Digamos que seja uma moeda de cobre, quer dizer, de um metal não nobre; ou então de níquel. A rainha pega a moedinha, vê nela a efígie de seu filho, o rei, e diz: “Meu filho!”

Admiração e Redenção 

A própria Redenção, vista sob esta perspectiva, ganha em compreensão, pois como poderia haver imolação se não houvesse admiração? Uma pessoa pode ter maior admiração por algo do que resolvendo morrer para salvar esse algo?

Nosso Senhor conheceu individualmente a cada um de nós e, tendo em consideração o que podíamos ter sido, ou poderíamos ser, ou poderemos ser pelos rogos da Mãe d’Ele, nos admirou. E olhando em torno de nós, compreendemos que Deus nos admira, não pelos defeitos que carregamos, mas pelas nossas potencialidades. Entendemos, então, o que há de extraordinário no interior da alma de cada homem e o que é verdadeiramente o apostolado. A conquista das almas para Deus é a grande alegria d’Ele, e eu afirmaria que o Criador tem gratidão quando alguém traz uma pessoa e diz: “Meu Senhor, pelos rogos de vossa Mãe, esta pessoa agora é vossa”. Podemos ter ideia da sublimidade disso?

Através do maravilhamento podemos imaginar as belezas do Paraíso

Entendemos também que o Criador nos pôs numa terra de exílio onde não vemos as belezas que contemplaríamos no Paraíso, mas Ele nos deu imaginação para concebermos como as coisas seriam se fossem paradisíacas. E proporcionou-nos até o meio de conceber como elas seriam no Céu empíreo, porque todas essas coisas de algum modo se refletem na matéria do Céu empíreo, que, por sua vez, não é senão reflexo d’Ele.

Deus quer que imaginemos o maravilhoso, o admirável, a partir das coisas que vemos, mais ou menos como um cego que nunca viu um rosto, mas passa a mão pelo rosto de alguém e recompõe os traços da fisionomia. Assim, nós não vemos o Paraíso, mas dedilhamos o Paraíso, e com o espírito construímos uma imagem dessa realidade. Deus pôs em nós a tendência para nos maravilharmos com tudo aquilo com que tomamos contato. Tudo quanto vemos é, portanto, motivo para exercício de maravilhamento, que em francês se diz “émerveillement”.

Através do exercício de “émerveillement”, o homem é levado a não só imaginar como uma coisa seria no Paraíso, mas imaginar também como ela seria num mundo irreal que Deus não criou, mas gostaria que existisse.

Através da heráldica, de algum modo o homem imita a Deus

Daí vem, por exemplo, a heráldica. As figuras da heráldica não existem daquele modo na natureza, mas formam uma espécie de universo criado pela cultura medieval; pode-se dizer que o homem, pela heráldica, de algum modo até imita a Deus Criador.

É comum encontrarmos certas almofadas estampadas com uma torre dourada sobre um fundo vermelho. Tal vermelho não existe na natureza, como fundo de torre. Nesta nossa pobre Terra, toda torre leva poeira, se encarde e por mais altaneira que ela seja — até a Torre de Belém — tem uma moldura que não vale a torre. O homem imagina um mundo onde há um rubro por detrás de uma torre dourada, e faz na heráldica essa torre.

Deus admira isso. Ao dizer “olhai os lírios do campo; eles não tecem nem fiam…”, Jesus manifestava quanto amará aquilo que o homem compôs num “élan” de alma e no fundo se volta para Ele, porque, de maravilha em maravilha, no alto está Deus! Compreendemos, então, facilmente como esse exemplo de Nosso Senhor admirando as coisas, até as pequenas, e amando-as com uma ternura especial, é uma lição para nós termos a alma propensa à admiração.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1980)

Revista Dr Plinio 170 (Maio de 2012)

Harmonia e sublimidade

A tendência para o sublime é inerente à harmonia, a qual deve ser concebida como algo que convida continuamente para o ápice: Deus, Nosso Senhor.

 

Para entrarmos com o passo certo no assunto, convém não analisarmos a harmonia como fazem certas pessoas que a consideram como algo puramente estético. Para eles, harmonia é a disposição das partes segundo o agradável aos olhos humanos.

Na realidade, a harmonia não é uma coisa puramente subjetiva; ela tem algo de objetivo.

Harmonia transcendente

A harmonia contém uma noção muito mais ampla: é próprio dela — segundo nós a entendemos –– ter uma nota não apenas de proporcionalidade material, mas também uma clara analogia com um significado moral ou ontológico. 

Portanto, a harmonia não pode ser vista como algo fechado; pelo contrário, a transcendência é o suco dela. Tenho a impressão de que isso é característico no vitorinismo(1).

Se essa ideia é verdadeira, nós deveríamos chegar ao seguinte conceito: a suprema harmonia é constituída na ordem do criado pela beleza de cada uma das virtudes, pela coerência delas entre si e com a ordem ontológica, com as propriedades do ser.

Analisando o quadro clássico de todas as virtudes apresentado pelos moralistas, tem-se uma sensação de harmonia. Este quadro harmônico das virtudes tem uma correlação com a natureza da mente humana. Não é uma mera abstração, tirada apenas de uma norma de conduta, mas percebe-se que a mente ganha toda a sua beleza em função daquela harmonia; a ordem mais profunda do ser se espelha nessa harmonia no que tem de melhor.

É uma espécie de harmonia transcendente, porque exprime o “pulchrum” de uma ordem de coisas existente no criado, que é a ordem moral enquanto toca em obscuridades quase inefáveis de ordem ontológica, que, por sua vez, conduz a Deus, como Arquétipo.

Então, a verdadeira harmonia, enquanto considerada nas coisas materiais, é antes de tudo o por onde ela deixa transparecer essas coisas. Portanto, a harmonia de valores simbólicos constitui, em si, um valor artístico maior do que, na linguagem de hoje, se chama comumente valor artístico.

Recentemente, li uma descrição da espada confeccionada para a coroação de Carlos X, Rei de França: de ouro, recamada de brilhantes, obra-prima de joalheiro parisiense. A espada de Carlos X, sob certo ponto de vista artístico, seria incomparavelmente superior à espada medieval; mas, numa concepção vitorinista das coisas, a medieval tem mais valor simbólico.

Dois conceitos de harmonia: naturalista e teocêntrica

O estético que veio depois do vitorinismo é proporcionado ao homem, como se este fosse o ponto terminal e o ápice de tudo.

E, precisamente porque o homem não é o fim de todas as coisas, estas, às vezes, apresentam uma grandeza, uma rudeza, um tamanho que choca um pouco o homem, o qual, numa atitude de alienação, deve aceitar e amar; este é o varão religioso.

A arte não seria a transparência em certas coisas, por onde uma cultura vê essa harmonia superior, previamente à arte? Quer dizer, há uma espécie de visão da harmonia do universo prévia à arte, a partir da qual se modela a arte.

Então a arte não é só o espelho dos valores vitorinistas, mas enquanto passando pelo prisma mental do artista, que é a expressão dessa cultura. Esse seria o itinerário.

De qualquer maneira, eu tenho a impressão de que o elemento fundamental que está sendo focalizado aqui é a diferença entre dois conceitos de harmonia: o conceito naturalista, tendo o homem como centro, não é errado tomá-lo em consideração, até certo ponto; e a harmonia que toma como centro Deus.

Acho que a grande derrapada que houve na arte do Ocidente deu-se quando ela deixou de tomar como centro Deus. O humanismo empurrou a arte para proporções naturais e terrenas.

Fulguração da santidade na Idade Média

Que relação a arte medieval teve com o vitorinismo? É evidente que houve uma relação, pois todas as qualidades vitorinistas estão presentes nela de modo excelente.

Mas, eu seria tendente a achar que há qualquer coisa além disso.

Historicamente falando — quer em termos de exprimir a sociedade espiritual, quer a sociedade temporal —, não houve até nossos dias fulguração mais exata da santidade, do sobrenatural e das virtudes morais do homem e de sua coesão com a ordem ontológica, como na Idade Média.

Síntese de todas as antíteses harmônicas

Na Idade Média, o mundo natural e o sobrenatural se osculavam e constituíam uma única síntese composta de duas antíteses harmônicas.

Ora, a visão conjunta de duas antíteses harmônicas projeta em nosso espírito um espectro maior do que cada uma delas. Isso é propriamente a harmonia. É uma coisa não propriamente real, mas ao mesmo tempo irreal e supra-real, um ponto do meu espírito por onde percebo algo que, para além daquela realidade, une as antíteses harmônicas daquele modo.

Quem sabe se isto é o espectro, na ordem natural, de todas as antíteses harmônicas existentes no universo, vistas no seu ponto de encontro, no seu ponto ápice; e, na ordem sobrenatural, é o mesmo com todas as graças possíveis? Porque entre a síntese de todas as perfeições possíveis na natureza e a síntese de todas as graças, deve haver uma coerência, uma afinidade.

A alma verdadeiramente cristã procura esta síntese. Olhando, por exemplo, para um Crucifixo, se alguém disser “ali está o vosso Rei vitorioso”, parece um escárnio, pois ali está a figura de um derrotado, um fracassado, um esmagado. Porém, podemos afirmar “ali está o Rei glorioso” ou simplesmente “ali está a nossa Vítima”. Porque esta aparente contradição produz no espírito o tal espectro. E esta visão, que é um auge do espírito, fala, entretanto, a respeito de uma realidade inatingível. Então, teríamos assim conquistado o ápice até onde a piedade, a contemplação, o espírito humano podem elevar-se.

Luz da Idade Média

Posta em face disto, a alma humana encontra o exercício próprio, adequado e proporcionado de tudo quanto nela há, com aquele desejo de simultaneidade de exercício, o qual também é uma exigência da alma e que as coisas terrenas nunca saciam completamente. Mais ainda, com uma síntese repouso-atividade, que as coisas desta Terra nunca dão.

Por exemplo, diante da arte gótica eu me sinto num perfeito repouso e numa perfeita atividade, no auge das delícias de meu repouso e no auge da força de minha atividade; como que envolto nos paradoxos harmônicos, estou solucionado. O gótico me soluciona, onde o mais alto de mim mesmo encontra o repouso no mais alto que existe, e a partir disso todo o resto repousa.

Isto é propriamente, creio eu, a nossa escola de piedade, enquanto discernida a obra da graça — de algum modo pelo discernimento dos espíritos —, de maneira que o homem se possa colocar na linha do “pulchrum”.

Então, devemos acrescentar que um fenômeno de discernimento do sobrenatural está presente nessa luz da Idade Média.

Compreende-se que só discernindo a graça desta maneira o homem teria encontrado certas cores, certos sons, certas formas, certas ordens, e assim pôde construir. E o ponto de partida foi uma retidão natural comum e um discernimento da graça inspirando o homem no manipular as coisas da natureza com a avidez de fazer com que elas espelhassem esta graça; donde esse jorro e essa perfeição da coisa medieval, que é verdadeiramente incomparável. Quer dizer, que tem uma abertura para o Absoluto como nada possui.

O espectro majestade-pequenez

Além disso, é preciso dizer o seguinte: a maior das majestades contém também as pequenas, mesmo as menores. O espectro majestade-pequenez deve ser construído a partir disso. Por exemplo: eu compreendo tão bem Carlos Magno no esplendor de seu poder, em traje de coroação, preparando-se para ir ser coroado em Latrão, quanto depois de ter sido coroado pelo Papa, brincando com uma florzinha comum do campo, sorrindo, extasiado com aquilo.

E quem não compreende isto não entendeu nem Carlos Magno, nem a flor, nem a Idade Média, o Menino Jesus na manjedoura, por exemplo, e as ideias mais majestosas de Deus. Quem não tem de cada uma dessas coisas uma impressão, pela qual ela é um espectro que forma uma coerência com a outra, não compreendeu o assunto. 

Um horror, que se opõe ao que explicamos, foi o seguinte. Estando em Paris, quando menino, Mozart quis subir no colo da Du Barry para beijá-la. A Du Barry disse-lhe que não, porque era contra a etiqueta. Mozart afirmou com toda a naturalidade: “Perdão, Madame, como a Imperatriz(2) o faz assim comigo, eu pensei que pudesse fazer com a senhora, mas eu não tive a intenção de ofendê-la…”

Exemplo muito interessante é o relativo a um irmão de leite de Maria Antonieta.

A Imperatriz Maria Teresa deu ordem à ama de leite de Maria Antonieta para vir uma vez por mês visitar a Imperatriz, levando consigo o irmão de leite de Maria Antonieta, porque estava contraído um vínculo que deveria durar a vida inteira. Quando ocorria a visita, o irmão de leite brincava com Maria Antonieta e os arquiduquezinhos. E esse irmão de leite conta em suas memórias que, como eram muito pequeninos, quando chegava a hora de a Imperatriz, a grande Maria Teresa, brincar com Maria Antonieta, ela a colocava numa perna e o menino na outra e, para que este não se sentisse chocado de ver que Maria Antonieta era muito mais agradada do que ele, Maria Teresa fazia exatamente as mesmas carícias para ambos.

Esse menino, tendo se tornado adulto, foi morar na França e acompanhou Maria Antonieta em todos os lances da Revolução Francesa, até o momento em que ela foi presa e ele impedido de entrar na prisão. Combateu nas Tulherias, fez tudo pela Rainha Maria Antonieta e ficou ao lado dela a vida inteira, da grandeza à decadência. Depois escreveu memórias a respeito do convívio dele com ela, nas quais diz coisas de enternecer. Ele descreve Maria Antonieta como sendo uma síntese de grandeza e pequenez, que é uma coisa única.

E essa síntese de Maria Teresa, Maria Antonieta e seu irmão de leite, tem qualquer coisa desse espectro do encontro da majestade e da pequenez; tenho a impressão de que esse espectro, por causa do problema do igualitarismo, fica no ponto central dessa visão. Digo mais: é preciso a graça para se compreender como a pequenez se encaixa na grandeza.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/11/1973)

Revista Dr Plinio 170 (Maio de 2012)

 

 

1) A escola vitorina de filosofia e teologia, que teve como centro de irradiação, no século XII, a Abadia de São Vítor, nos arredores de Paris, seguia o pensamento agostiniano. Seu principal representante, Hugo de São Vítor, voltava-se de modo especial para a contemplação do Ser Absoluto na Criação. Sua ideia básica é de que todas as coisas foram criadas segundo ideias da mente de Deus; de modo que cada coisa tem seu arquétipo na ideia segundo a qual foi modelada. Daí a importância de o homem deitar um olhar contemplativo sobre o universo criado, não se detendo apenas no sinal exterior e material, mas procurando em cada qual seu exemplar.

2) Maria Teresa, Imperatriz da Áustria; mãe de Maria Antonieta.