Como um relógio…

A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago de sua alma, e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural — a Igreja — estendeu assim sobre toda a Europa sua contextura hierárquica, e desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio foram florindo as dioceses, os mosteiros, as igrejas, catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo.

Esta florescência religiosa projetou‑se sobre a sociedade civil: organizada com fundamento na Lei de Deus, ordenou‑se segundo a vontade de Deus, e segundo a ordem natural por Deus estabelecida quando criou o universo, o mundo e o homem. Formou‑se assim uma sociedade temporal estabelecida sob o signo de Cristo, segundo a lei de Cristo e conforme a ordem e a natureza própria de cada coisa criada por Deus.

Tudo isto está longe de ser uma vã fraseologia. Exemplifiquemos com um relógio. O relojoeiro tem em vista fazer um instrumento para a marcação do tempo. Para isto, estabelece um plano em que se conjugam várias peças, trabalhando cada qual segundo seu feitio e natureza própria, para o fim visado pelo relojoeiro. Ora, a família é o instrumento humano [com o qual] Deus deseja a perpetuação da espécie. No caso do relógio, cada peça realiza o seu trabalho, atuando segundo a natureza e feitio com que a quis o relojoeiro. Se ela trabalhar segundo essa natureza e feitio terá feito tudo quanto dela desejava seu autor, e tudo quanto era necessário de sua parte para o bom funcionamento do relógio. Assim também na sociedade doméstica: se cada membro agir retamente segundo sua situação e seu papel, terá feito tudo quanto era necessário para que a família funcione bem. E se todos os membros agirem com igual retidão, a vida doméstica terá chegado à sua perfeição própria: precisamente como o relógio atinge sua própria perfeição pelo perfeito funcionamento de cada uma de suas peças.

Ora, o mesmo que se diz do relógio ou da família pode dizer‑se da sociedade civil. A sua grandeza própria, enquanto sociedade civil, resultará de que cada um dos elementos que a compõem, isto é, família, classe, associação, pessoa, atue retamente segundo seu feitio e natureza próprios. E é este, e só este, o modo por que a sociedade civil chegará à sua grandeza.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Cf. Legionário, n. 666, de 13/5/1945)

Revista Dr Plinio 110 (Maio de 2007)

O vigor da vida espiritual

Transcrevemos em seguida a parte final do memorando redigido por Dr. Plinio, em 1940, a pedido de um sacerdote vinculado à Ação Católica, para mostrar a necessidade de se utilizarem as práticas consagradas pela ascese cristã.

 

Meditar é aplicar a intelinas, para sempre melhor conhecê-las. Aplicá-la, também, ao conhecimento quanto possível exato de nós mesmos, para verificar o grau de correspondência entre aquilo que há em nós e aquelas verdades eternas, e, por aí, deduzir os meios práticos para atingir essa correspondência. Para este último fim é necessária uma aplicação da vontade sobre todo o já meditado, para que se fortaleça no amor do bem e no ódio ao mal, e se proponha a aperfeiçoar-se.

Há vários métodos de meditação, mas entre todos se salientam os que se contêm nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Aliás, o Santo Padre Pio XI recomendou expressamente estes Exercícios aos membros da Ação Católica na Encíclica já citada, nos seguintes termos: “Vivamente desejamos, Veneráveis Irmãos, que se formem pelos Exercícios Espirituais numerosas coortes da Ação Católica. Não achamos palavras para exprimir toda a alegria que sentimos vendo organizarem-se por toda a parte cursos de exercícios particularmente reservados às pacíficas fileiras dos valorosos soldados de Cristo, especialmente aos mais jovens, que numerosos acorrem para travar os santos combates do Senhor, e ali encontram não só a força para melhorar a própria vida, mas bem depressa sentem no coração a voz misteriosa que os chama para o apostolado em toda a sua magnifica significação”.

Necessidade da leitura espiritual e modo de fazê-la

Para bem meditar é quase sempre necessária a leitura espiritual, isto é, a leitura atenta e devota de algum livro de piedade, devidamente aprovado pela autoridade eclesiástica.

A leitura espiritual recorda-nos nosso destino eterno em meio às atividades deste mundo, que nos distraem pela sua multiplicidade e urgência; desapega-nos a inteligência e a vontade das coisas terrenas e eleva-nos a sensibilidade, já mostrando-nos as misteriosas belezas da Fé, já movendo-nos pelos exemplos de santidade, ou ainda, dando-nos regras práticas de vida e de devoção. Desta forma, a leitura espiritual deposita em nós

os gérmens da perfeição cristã, que hão de ser desenvolvidos e amadurecidos pela meditação, a qual encontra neles seus elementos vitais. Mais explicitamente, é a leitura espiritual que fornece a matéria de nossa meditação.

Entretanto, para ser proveitosa, esta leitura deve ser periódica e freqüente, e cuidadosamente proporcionada aos interesses especiais de cada um, porque do contrário a sua influência fragmentária e esparsa facilmente seria delida pelos agentes mundanos, que atuam quase sem cessar.

Obrigação de estudar a doutrina católica

Para bem meditar é ainda necessário o conhecimento claro da doutrina da Igreja.

Vimos que a meditação versa sobre as verdades eternas. Ora, estas verdades estão contidas na doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, sem a instrução religiosa que nos dê o seu conhecimento claro, não só se poderão perder os frutos da meditação e da leitura espiritual, como também poderá acontecer muito provavelmente que o espírito se ponha a divagar por caminhos escusos, que levam a ilusões perigosas e a erros funestos, com suas conseqüências imprevisíveis sobre a sensibilidade.

Além disso, na doutrina da Igreja se contêm as verdades que são o objeto da Fé. Ora, desde que é a Fé o que caracteriza a nossa profissão de católicos, todos estamos obrigados a conhecer tais verdades em toda a medida de nossa condição e capacidade, pois que ninguém pode crer sem saber no que crê. E será suma ingratidão para com Deus, que nos revelou estas verdades para nossa salvação, não nos aplicarmos a conhecê-las quanto nos for possível.

Este conhecimento deve ser haurido num catecismo mais ou menos desenvolvido segundo a inteligência e o estado de cada um, pois que o catecismo é a fonte autêntica.

Fazer em tudo a vontade de Deus

O fruto próximo da vida espiritual, segundo vimos indicando, deve ser o firme propósito, isto é, o desejo cada vez mais vivo e ardente de servir a Deus e de desapegar-se inteiramente das coisas do mundo. Desejo vivo, porque se propõe empregar todos os meios conducentes a este fim e não desfalece ante as dificuldades e a vista

da própria fraqueza, mas está cônscio de seu livre arbítrio, e confia humilde e ativamente na Providência. Ardente, porque se consome no zelo pela glória de Deus. O firme propósito não quer dizer a promessa de sempre, em tudo, e nas mínimas coisas realizar a vontade de Deus, porque tal promessa não se pode fazer sem uma vocação especial ou graça toda particular, e, assim mesmo, em relação a certos fatos determinados. Mas é a vontade intensa de que isso aconteça o mais breve e perfeitamente.

Exame de consciência: a chave da vida espiritual

Para evitarmos surpresas e auferirmos os resultados positivos da vida espiritual, e, por aí, adotarmos os métodos sempre mais adequados de procedermos para com nós mesmos, é necessário o exame de consciência pelo menos quotidiano.

O exame consiste na inspeção cuidadosa de nossos pensamentos, palavras e obras, dentro de um período de tempo determinado, e na investigação dos motivos e circunstâncias desse nosso comportamento. No exame assim feito está a chave da vida espiritual, pois é pela apreciação concreta do que se passa em nós que se pode atingir a atividade superior e geral de ver, julgar e agir em si mesmo. Além disso, o exame de consciência ajuda-nos a desfazer falsas idéias sobre nós mesmos, leva-nos à humildade e excita-nos o arrependimento.

Também é necessário o exame de consciência para a confissão. Neste particular todos devem ter o seu diretor espiritual, que é a cúpula de tudo quanto se tem dito em matéria de vida de piedade. De fato, praticamente de nada adiantariam todas as recomendações que se vêm fazendo sem a direção de um sacerdote que, por estar muito mais aparelhado pelos seus conhecimentos e graças especiais, sabe indicar os caminhos que seus penitentes poderão seguir com segurança. Se não fosse pela inexperiência dos que se iniciam nas vias da perfeição inexperiência que os fará certamente errar se não tiverem um guia -, bastaria considerar que a vida espiritual exige que cada um se julgue a si mesmo. Ora, ninguém pode ser juiz, não diremos imparcial, mas objetivo de si mesmo. É preciso, portanto, uma terceira pessoa de grande sabedoria e de virtude inconteste.

Devoção à Santíssima Virgem e à Sagrada Eucaristia

A vida espiritual exige a mortificação, isto é, a guarda cuidadosa dos sentidos, ou não será vida espiritual. A verdadeira mortificação não consiste apenas em nos privarmos dos prazeres

ilícitos ou perigosos, mas também daqueles prazeres lícitos que, pelas circunstâncias de fato, variáveis no tempo e no espaço, têm uma certa conexão com a mundanidade. É necessário, ainda, a abstinência dos prazeres, também lícitos, que podem lisonjear as más disposições e tendências desregradas de cada um.

Enfim, todas estas regras de vida espiritual devem encontrar seu complemento indispensável numa dupla devoção, sem a qual nenhum fruto se colheria: a devoção a Nossa Senhora e à Santíssima Eucaristia. Não basta uma só delas, mesmo porque não é possível separá-las, ou já não serão verdadeiras. A Santíssima Virgem é a Rainha da bem-aventurança e dos bem-aventurados, e a devoção a Ela é considerada sinal certo de predestinação. Só há um caminho para Deus, que é Nosso Senhor Jesus Cristo; mas só há um caminho para Nosso Senhor Jesus Cristo, que é Nossa Senhora, a medianeira de todas as Graças.

Onde está Maria, não há temer ilusões, extravios, erros, porque Ela é a inimiga, assim constituída por Deus, do demônio e de suas fraudes (Gen. 3, 15). A devoção a Maria é, ainda, uma conseqüência necessária do Corpo Místico. Pois, “se Jesus Cristo, o chefe dos homens, nasce d’Ela, os predestinados, que são os membros deste chefe, também devem nascer d’Ela inelutavelmente. Uma mesma mãe não dá ao mundo a cabeça ou o chefe sem os membros, nem os membros sem a cabeça; isto seria um monstro da natureza. Igualmente, na ordem da Graça, o chefe e os membros nascem da mesma mãe. E se um membro do Corpo Místico de Jesus Cristo, quer dizer, um predestinado, nascesse de outra mãe que não fosse Maria que produziu o chefe, não seria um predestinado, nem um membro de Jesus Cristo, mas um monstro na ordem da graça” (São Luís Maria Grignion de Montfort, La vraie dévotion, cap. 1, art. 1º, § 32).

Assim, o devoto da Santíssima Virgem encontrará no Coração de Maria o próprio Coração de Jesus, naquilo que este Coração tem de mais amoroso, mais terno e mais compassivo. Ora, onde mais se manifestam as finezas do Coração de Jesus é na Santíssima Eucaristia. Desse modo, a devoção a Nossa Senhora leva natural e espontaneamente à devoção eucarística. E é aí que os membros da Ação Católica encontrarão o alimento de sua vida espiritual, em primeiro lugar na freqüência assídua à Santa Comunhão, depois na adoração também assídua ao Santíssimo Sacramento.

Sem este culto fervoroso à Eucaristia que só pode ser verdadeiro com o culto mariano, pelo culto mariano e no culto mariano não é possível a vida espiritual, pois que esta é a assimilação deste sublime alimento, segundo as recomendações dadas. É no Santíssimo Sacramento que reside não só a Graça, mas o Autor de toda Graça, à cuja semelhança se fazem os eleitos, porque fora d’Ele não há bênção nem fruto, nem ressurreição bem-aventurada. A Ele, pois, sejam dadas honra, glória, louvor, adoração, ação de graças, por todos os séculos. Amém.

Dizei uma só palavra…

Na Visitação de Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel, vemos o poder da Mãe do Redentor: o eco de sua voz santifica um homem de um momento para o outro. É isto que devemos esperar de Nossa Senhora e pedir a Ela: que sua voz fale no íntimo de nossas almas e nos santifique, concedendo-nos uma virtude que às vezes anos de lutas e trabalhos não nos proporcionaram.

Todos aqueles que tenham algum desânimo, tristeza ou perplexidade na vida espiritual podem dizer a Maria Santíssima: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma será transmudada de um momento para o outro se Vós assim o quiserdes”.

Eis uma graça a pedir à Santíssima Virgem no dia da Visitação: que Ela fale em nossas almas e estas estremeçam de júbilo como estremeceu o Precursor no ventre materno, e que elas se santifiquem num instante, como a alma de São João Batista.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1970)

Princípios da unidade

Na segunda parte da conferência, cujo início transcrevemos no último número, Dr. Plinio continua a tratar de um princípio da escolástica, segundo o qual a beleza consiste na unidade posta na variedade. É fundamental para se compreender por que Deus imprimiu no universo um caráter hierárquico, com graus diversos de perfeição. Após haver estudado as leis da variedade, Dr. Plinio examina as da unidade.

 

A unidade supõe uma ausência de interrupção que se pode verificar de duas maneiras: pela continuidade ou pela coesão.

A continuidade é a simples ausência de vazios, para que, no ser uno, não haja hiatos.

Muito mais profunda é a unidade que se verifica pela coesão: neste caso há uma articulação interna entre os elementos, de modo que eles ficam presos uns aos outros por vínculos íntimos e poderosos.

Entre as classes sociais, numa civilização cristã, deve haver continuidade e coesão. Embora numerosas, e profundamente diferentes entre si, o todo que elas constituem é contínuo e coeso. É contínuo porque umas se explicam pelas outras, auxiliam-se mutuamente e formam um conjunto sem os hiatos que caracterizam a sociedade revolucionária. E é coeso porque as classes, embora distintas, estimam-se, defendem-se umas às outras, não se consideram estranhas ou inimigas entre si, mas se amam com o verdadeiro espírito de Nosso Senhor, que foi Príncipe e, ao mesmo tempo, artesão. Como tudo isso é diferente da luta de classes do mundo moderno!

Transição harmônica, como as cores de um arco-íris

Ao tratarmos das leis da variedade e ao examinarmos a lei da gradação, vimos que deve haver hierarquia na Criação.

Estudando agora as leis da unidade, veremos que essa hierarquia, para ser autêntica, deve compor-se de graus que se sobreponham uns aos outros harmonicamente, e não de qualquer modo.

Na hierarquia, a variedade se assegura pela multiplicidade dos graus intermediários, ao passo que a unidade se assegura pela suavidade da transição entre esses graus.

É o que acontece com o arco-íris: as cores que o compõem se ordenam em uma transição suave. Vemos nisto a sabedoria de Deus, que criou o Universo com uma magnífica unidade, expressão de uma grande força, e ao mesmo tempo com uma magnifica variedade, expressão de um grande poder.

Pensemos na coroação de um Imperador do Sacro Império Romano Alemão. No momento em que o Imperador recebia a coroa, bimbalhavam os sinos da capital do Império. Logo repicavam os sinos das cidades mais próximas; a seguir, os das cidades mais longínquas; e por fim, os de todas as Igrejas da Alemanha. Durante dias e dias os sinos repicavam, anunciando, de campanário em campanário, que o Imperador havia sido coroado.

Consideremos esse tocar de sinos que se estendia por todas as Alemanhas: a Alemanha da Baviera, a da Saxônia, a de Dresden, a de todos os tipos de alemães, desde o tipicamente militar, até o burguês bonachão. Essa amplitude de repercussões da notícia da coroação do Imperador por vários mundos dá a impressão de algo forte e suave ao mesmo tempo. Que poder imenso é o do Imperador! Mas, ao mesmo tempo, quanta doçura há nesse Império! Como a força e a suavidade nele coexistem harmonicamente!

São bem esses os valores que devemos amar do fundo de nossa alma, pois se relacionam com uma perfeição a perfeição da hierarquia em que a variedade e a unidade se encontram num grau excelente.

Proporção: tudo feito com número, peso e medida

A Sagrada Escritura nos diz que todas as coisas foram criadas por Deus com número, peso e medida. Vemos, com efeito, que em todos os corpos, a natureza, o movimento e a massa são proporcionais.

Temos um expressivo exemplo dessa proporção na Igreja Católica. Sendo uma organização imensa, riquíssima e belíssima, Ela se personifica, por excelência, na pessoa do Papa. A pompa e a dignidade papais, a beleza de sua corte, enchem a todos de admiração. Mas, ao mesmo tempo, achamos tocante que a Igreja Católica também se personifique num pequeno cura de aldeia. Essa personificação é a mais proporcionada aos camponeses, está bem ao nível das suas almas, não os intimida nem os constrange. A representação do Sacerdócio de Nosso Senhor tem, nesses curas de aldeia, como que uma condição pequena, proporcionada àquela gente também pequena.

Imaginemos agora um estadista coberto de glórias, que chega à velhice, e suponhamos que a Igreja, para cuidar de sua alma, delegue um monsenhor. É um fato que, aliás, tem se dado na História. Contemplemos o velho estadista e o monsenhor conversando de forma amena e respeitosa. Não agiu bem a Igreja Católica, reconhecendo e honrando a dignidade desse homem? É que a Igreja procura proporcionar a sua hierarquia à hierarquia civil. Seu amor é semelhante ao materno, pois uma mãe sabe dosar como ninguém a energia e a suavidade. Assim faz a Igreja.

A proporção existia em grau excelente na hierarquia feudal. A nação, que se personificava no rei, também se personificava no pequeno senhor feudal, colocado junto ao povinho miúdo. Ele, o menor grau da aristocracia, iluminava com a transcendentalidade da nobreza o último grau da escala social.

Até com relação às bebidas podemos contemplar a proporção. Ao lado de vinhos do mais alto requinte, existem boas bebidas populares, feitas exatamente para o pequeno povo. Essa é a proporcionalidade das coisas boas. Na casa do rei, há móveis dourados; na do camponês, os há de carvalho trabalhado, como em algumas regiões da Europa. Na casa do rei, há ouro e prata; na do camponês, objetos toscos, mas que, por serem dignos e artísticos, às vezes valem o ouro e a prata.

Esta é a proporção bela, leve, suave, razoável, que devemos, amar com todas as nossas forças.

Simetria: não pode haver o risco de se perder a unidade

Imaginemos um edifício com uma fachada tão extensa que corra o risco de perder a unidade. Se, entretanto, ele tiver nos dois extremos duas torres iguais, sua unidade estará, pela simetria, reconstituída.

Na História do século XVI vamos encontrar uma cena que ilustra bem isso. Francisco I, rei da França, e Henrique VIII que ainda não se tinha feito protestante decidiram encontrar-se em Cambrai, no lugar que depois foi chamado “camp du drap d’or”, tal o luxo, tal a magnificência de que se revestiu o fato. Basta dizer que, no campo de Francisco I, as tendas eram douradas. O encontro entre os reis realizou-se em uma ponte. Imaginemos a beleza do encontro dos dois soberanos, e das duas cortes que chegavam. Na ponte inteiramente coberta de tapetes, um rei se inclina diante do outro rei, cumprimentando-se assim mutuamente, enquanto as trombetas soam. Quando os franceses querem descrever a atitude dominadora de um homem, dizem que ele tem o ar de um rei que recebe outro rei “l’air d’un roi recevant un roi”. Em que consiste a beleza de um soberano que recebe outro rei? É exatamente a beleza da simetria, em que dois princípios iguais se contemplam um ao outro e, de certo modo, se multiplicam um pelo outro.

Na cristandade, a existência de muitos reis iguais em força, glória e poder, era exatamente uma expressão do princípio da simetria.

Tudo se ordena em torno de um elemento supremo

A quinta lei da unidade é a da monarquia. Ela é indispensável para a beleza da vida humana. Todas as coisas, para serem reduzidas à sua unidade, devem tender a se ordenar em torno de um elemento supremo, que será um símbolo, uma como que personificação do conjunto. E é esta personificação que dá perfeição à unidade

A monarquia não é, como poderia talvez parecer, o oposto da hierarquia, mas, pelo contrário, é a sua consumação. Nela, a beleza de todas as diversas perspectivas como que se concentra.

Ao lado da lei da monarquia, há a lei da sociedade. Ela consiste em que as coisas, postas juntas, se completam e se embelezam mutuamente.

Analisamos embora de forma muito sucinta as leis da estética do Universo. Trataremos de mais um ponto, muito relacionado com este assunto.

Atração pelo que melhor espelha a perfeição de Deus

Tomemos as palavras: decente, excelente, nobre, majestoso, sagrado. Elas constituem uma gradação ascendente.

De um determinado objeto, pode-se dizer primeiro, que ele é decente, o que significa que não tem nenhuma nódoa de vergonha. Além de decente, podemos dizer que ele é ótimo, excelente. Excelente já é mais que decente.

Poder-se-ia, prosseguindo, apôr o adjetivo nobre, que é especificamente mais do que excelente e decente. Mais do que nobre, poderemos dizer que o objeto é majestoso, adjetivo que, não é, entretanto, especificamente diferente de nobre, pois dele difere somente em grau. Por fim, poderemos acrescentar que o objeto é sagrado, quando contém valores que superam a majestade humana.

Nessa gradação de valores, um espírito muito religioso será atraído por aquilo que melhor espelha a perfeição de Deus: o majestoso e o sagrado. Ele procurará, em tudo, esses supremos valores, e terá sede deles.

Tendo esse espírito, o homem desejará uma sociedade em que, ao lado de muitas coisas decentes, haja várias excelentes, nobres, majestosas, e sagradas.

E então esse homem criará naturalmente uma sociedade que realiza, dentro dessa ordem quase fluida de coisas, uma admirável variedade e uma perfeita unidade

Compreendemos, pois, que quando uma pessoa conhece e ama os princípios da variedade e da unidade do Universo, e quando essa pessoa é católica pois só o católico já tem os pressupostos para compreender inteiramente esses princípios , ela é de fato profundamente religiosa, no sentido mais verdadeiro da palavra.

Este quadro que descrevemos da estética do Universo, com suas leis, os reflexos divinos colocados pelo Criador em todas as coisas, em última análise, tudo o que os católicos fervorosos amam, tudo aquilo de que têm sede, tudo isto a Revolução quer destruir, eliminar, apagar.

E é nisso que consiste a questão religiosa, que não se restringe ao problema do laicismo. É uma questão que não se resolve fazendo uma concordata e declarando que a Igreja Católica é a oficial no país. Está em cena toda uma concepção da vida, todo um modo de ser do pensamento humano.

Como católicos, pois, devemos amar profundamente a face de Deus refletida na ordem verdadeira das coisas. Mas, para que nosso amor chegue até onde deve ir, aprendamos a aplicar essas leis da variedade e da unidade.

Assim, sempre que algo nos causar admiração e nos deleitar, saibamos perceber qual das leis da estética do Universo está aí aplicada. Agindo desse modo, faremos algo imensamente agradável a Nossa Senhora.

Prêmio à altura do afeto

Mãe de Misericórdia, Nossa Senhora às vezes concede graças a pedido de quem não merece, como reza o “Lembrai-Vos”.

Mas, Ela é também Mãe de Justiça. E a todo bem realizado por seus filhos, com quanta alegria Ela os favorece com uma justa recompensa! Como se dissesse a cada um deles: “Meu filho, a ti não darei uma graça porque te perdôo, e sim porque te premio.

Que felicidade tu me proporcionas pelo fato de mereceres esse prêmio! Ei-lo, não à altura, mas muito maior do que teu mérito: à altura de meu maternal afeto…”

Auxiliadora onipotente

A Santíssima Virgem segura no braço esquerdo o Menino Jesus, e na mão direita um cetro. Isso quer indicar que, pelo poder que Ela tem sobre seu Divino Filho, possui a onipotência sobre todo o universo. E por essa razão tem o poder de nos auxiliar em tudo quanto necessitarmos. É uma auxiliadora onipotente.

Por outro lado, o semblante risonho e amável d’Ela nos fala da sua misericórdia.

Estão presentes, portanto, os dois fatores para confiarmos no auxílio de Maria Santíssima, que quer e pode socorrer-nos inesgotavelmente, em tudo. Logo, se pedirmos, Ela socorrerá.

Nossa Senhora Auxiliadora poder-se-ia chamar, debaixo de certo ponto de vista, Nossa Senhora dos Pedidos. Ela não nos auxilia só quando pedimos, mas sempre que o fazemos, Ela nos ajuda. Por causa disso, é invocada sob o título de “Auxílio dos Cristãos”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/5/1968)

Poderoso auxílio em todas as dificuldades

Continuamente devemos recorrer a Nossa Senhora, especialmente quando passamos por dificuldades. Ela sempre nos acolhe, pois nunca se ouviu dizer que a Mãe de Deus tenha abandonado alguém que pede seu socorro. Entretanto, às vezes nossa prece demora em ser atendida; isso significa que Ela nos dará graças com extraordinária abundância.

 

Eu gostaria de dizer uma palavra mais especialmente quanto a Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos nas dificuldades da vida espiritual. Estas costumam ser de duas ordens. Umas dificuldades são as crises breves da vida espiritual, quando a pessoa se sente tentada e, portanto, hesitante ou abalada entre o bem e o mal, e com a possibilidade de ser arrojada no precipício do mal de um momento para o outro.

As dificuldades do tipo clássico

Essas são as dificuldades do tipo clássico, e quando falamos a respeito de dificuldade, naturalmente pensamos primeiro na do tipo clássico, quer dizer, no grande apuro da vida espiritual. Evidentemente Nossa Senhora é auxílio nessas circunstâncias. Não teria sentido Ela ser Auxílio dos Cristãos se não o fosse, sobretudo, para a vida espiritual, e é claro que o auxílio é principalmente para os mais necessitados. Então, para as pessoas que estão em crises agudas da vida espiritual e gravemente necessitadas, Maria Santíssima, na plenitude do termo, é o auxílio.

Sendo Ela Mãe de Misericórdia, seu auxílio não é dado apenas para uma pessoa que diga: “Eu vou perfeitamente bem na vida espiritual, estou muito tentado, porém não cedi em nada. Tenho direito ao vosso auxílio; vinde e auxiliai-me!” Mas também para aquele que se encontre numa situação pior, e de apuro muito mais grave, e reze: “Eu estou muito tentado, pequei, andei mal. Receio me embrutecer no pecado, de me habituar a ele, de não sair da vida de pecado, e tenho uma vontade imensa de me regenerar. Não mereço vosso auxílio, mas porque sois Auxiliadora de todos os cristãos, até dos mais miseráveis e não apenas dos cristãos bons,  então Vos peço: vinde auxiliar-me!”

Quer dizer, nessa visualização é a miséria da pessoa, o próprio fato de ela ter caído em pecado que é alegado diante de Nossa Senhora, como uma razão para obter o auxílio. É mais ou menos como quem se coloca diante da mãe e diz o seguinte: “Estou tão necessitado que até me aconteceu o pior. É verdade que foi por minha culpa. Pequei. E porque estou exatamente no sumo do desamparo, por ser um pecador, eu, enquanto abandonado, encontro no desamparo a razão pela qual primeiro devo pedir a vossa misericórdia.” Quer dizer, esta é uma consideração de fundo, que não fecha nunca as portas da esperança na vida espiritual, porque a Virgem Santíssima, sendo nossa Auxiliadora, é próprio,  inerente a Ela, é movimento profundo n’Ela, correspondente à sua missão, ao amor insondável que Ela tem a Deus, de nos auxiliar por esta forma.

Há aqui uma esperança, um recomeçar sem fim de novos propósitos de emenda, que deve ser o fundo de nossa vida espiritual.

Uma das crises da vida espiritual apresenta-se à maneira de alguém que, estando numa escada, encontra-se em perigo de cair em cima de uma fogueira: cai, não cai.

Os que se atolam em alguma etapa da vida espiritual

Existe um outro sistema de crise espiritual. É o da pessoa que está subindo uma escada e, no lugar onde deveria haver um patamar, tem o vazio, e mais adiante continuam outros degraus; de maneira que o indivíduo não sabe como faz para pular aquele vácuo. São as tais almas que atolam a alturas diferentes da vida espiritual.

Há uns que atolam, por exemplo, num estado assim: levam anos no meio-termo entre a virtude e o pecado, ora no estado de graça, ora fora do estado de graça, e ficam naquele pêndulo do Inferno para o Céu e do Céu para o Inferno.

Outros atolam numa espécie de mediocridade do estado de graça; não pecam mortalmente, mas cometem torrentes de pecados veniais — por exemplo, as tais mentirinhas ditas “inocentes” — à vontade.

Existem ainda aqueles que vencem as tais mentirinhas, mas se atolam numa outra coisa. Quem está nessa situação diz: “Combati todos os pecados que eu tinha — os leves e os graves —, e percebo que não estou valendo grande coisa. Há algo que falta, mas não sei o que é. Só sinto que eu, apesar de toda a profilaxia, não valho nada. Pior seria se eu não tivesse feito a profilaxia… Eu, antes, estava sujo; agora fiquei vazio. Mas, daí para diante, como encher isto? Também não sei.” E fica parado nesse estado.

Há outros que adquirem virtudes, progridem, e param já num certo grau de virtude, mas, de vez em quando, o carro encalha e não há meio de galgar o patamar de cima. O indivíduo fica assim um tempo enorme. Isso corresponde, em qualquer altura da escada, sempre a um ponto: é algo de que a pessoa deveria se desapegar e que, ao mesmo tempo, é a coisa mais clara e a mais confusa do mundo. Ela vê com toda a clareza que devia deixar aquilo, mas, concomitantemente, não vê de nenhum modo que é aquilo que ela precisaria abandonar.

A necessidade de uma graça extraordinária

E a Providência fica provando aquela pessoa até criar um momento em que haja um estalo em sua cabeça, o qual, em geral, representa uma graça grande que ela recebe, fazendo-a pensar: “Ah! Eu agora vejo, tem isto, aquilo e mais tal outra consequência. Estou compreendendo”. Então começa uma emenda, e ela vai mais um pouco para diante. Um, dois, três anos depois para de novo. Cada solução de um encalhe destes equivale verdadeiramente a uma espécie de conversão. E tanto é conversão — neste sentido da palavra — do indivíduo que deixa o zigue-zague entre o estado de pecado mortal e o estado de graça, como daquele que está vazio, embora não sujo, e sente a necessidade de se encher de virtudes que não possui.

Então, no caso de quem estacionou a certa altura da vida espiritual, é mais uma conversão neste sentido: é preciso uma graça extraordinária, como Nosso Senhor dava a um paralítico que, de repente, começava a andar. Essa graça precisa ser pedida, e ela representa o desapego de algo de muito claro e muito obscuro, ao qual a pessoa estava apegada.

É evidente que não podemos produzir essa graça por nosso próprio esforço, porque a graça é um dom criado e concedido por Deus, e não obtido por nós, mais ou menos como um isqueiro que tira de si mesmo a sua própria chama.

É preciso pedir que Maria Santíssima nos obtenha de Nosso Senhor essa graça. Portanto, nesses estados Nossa Senhora quer deixar bem clara a necessidade do sobrenatural.

Durante muito tempo, por nós mesmos, nada conseguimos. Pedimos para Ela e, de repente, obtemos. Quer dizer, Ela pode levar mais tempo ou menos para dar, mas quando Ela concede, o faz de uma vez, rapidamente, de um modo impressionante.

Esse tipo de graça, como a cura que Nosso Senhor realizava nos paralíticos, ao dizer a um homem “levanta-te e anda”, e ele saía caminhando, Nossa Senhora também nos obtém, enquanto Auxílio dos Cristãos, para circunstâncias extraordinárias, para casos que não se resolvem de outro modo.

Acho muito importante isto, porque conheço muitas almas boas que acabam desanimando na vida espiritual à força de rotina, de estagnação, petrificação e paralisação; ela se pergunta: “O que eu vou fazer daqui por diante?” Não se sabe.

Pedindo a Nossa Senhora, Ela nos dá o auxílio

Às vezes entra-se em alguma igreja e se vê certas beatas rezando. Tem-se a impressão de que podiam passar dois mil anos fazendo aquela oração, e não saíam daquele pouco de vida espiritual. Tudo direitinho, arranjadinho… Pode-se imaginar uma delas que, voltando para sua casa, ia ver um filho bêbado, ateu, cuidava dele; depois pegava uma imagenzinha de Nossa Senhora, fazia uma novenazinha, etc. Mas uma chama de uma virtude heroica, de algo de generoso, que convertesse, nada! E então, também nesse caso, desânimo, uma certa rotina, rodando no vácuo.

Por que às vezes se encontra um bom católico parado? Porque não lhe ensinaram que seu estado tem uma solução, um remédio, e que o fato dele não encontrar a solução é a prova de que Nossa Senhora quer mostrar-lhe que a solução é só Ela. Sem Maria Santíssima, ele de fato não vai para a frente, pois está apegado, entalou, enrascou em qualquer coisa.

Então, Nossa Senhora quer deixar bem claro que é preciso pedir-Lhe essa graça, e, pedindo, Ela dá; o sobrenatural resolve as dificuldades, é uma questão de espírito de Fé. Rogando empenhadamente, afincadamente, nós conseguimos.

O título de Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos é um incentivo para que nós peçamos, porque compreendemos que o próprio d’Ela é auxiliar. Então, se eu preciso de auxílio e encontro a Auxiliadora dos Cristãos, estou certo de ser atendido, porque o necessitado encontra seu alívio junto à auxiliadora. Se considerar que a auxiliadora é Mãe, terei certeza de ser atendido. Então, àqueles dentre nós que se encontram nesse estado, em qualquer estágio da vida espiritual, eu sugiro — não vou além de uma sugestão — que rezem apenas três Ave-Marias por dia, pedindo a Ela isto: que tenha a bondade, a condescendência, a misericórdia de intervir nesse estado, e intervenha logo para nos socorrer. Ou, então, uma oração como o “Lembrai-Vos” pode ser sumamente útil para isso.

Rezando essa prece, posso dizer: “Lembrai-Vos de que nunca se ouviu dizer que Vós abandonastes algum pecador. Ora, eu sou um pecador. Será que Vós ireis interromper dois mil anos de gloriosa assistência aos necessitados e abrir uma exceção para mim? Eu não acredito.” É uma linda expressão: “Lembrai-Vos”.

Uma simples medalhinha amassada

Quando nos lembramos de todo o rebotado que passou… E quanta coisa Nossa Senhora tem perdoado, de toda ordem, de todo jeito; uns judeus empedernidos como Ratisbonne(1), bêbados, sem-vergonhas, canalhas, gente de toda ordem que Ela converte. Dessa forma, posso pensar: “Nunca se ouviu dizer… Será que Vós permitireis que a primeira vez seja comigo? Não é possível!” Eu, então, crio alento e toco para a frente.

Eu li uma vez, num livro de vida espiritual, uma coisa muito bonita a respeito do auxílio de Nossa Senhora. Uma senhora, se não me engano da nobreza de Paris, possuía uma casa muito bem arranjada, em cuja sala de visitas havia um quadro com uma moldura bonita e, dentro, uma almofada de veludo e uma medalhinha muito comum, amassada. Um ou outro visitante que aparecia lá perguntava, às vezes, o que era aquele objeto inteiramente sem valor artístico, até estragado, no meio daquela sala tão faustosa e de tanto gosto. E a senhora contava o seguinte: “A essa medalhinha devo a vida e a conversão do meu filho. Ele era ateu, estava saindo de um mau lugar — ou bebendo, ou fazendo qualquer outra coisa má; enfim, se encontrava em estado de pecado — e houve um crime na rua; o projétil desviou-se e bateu no peito dele, chocando-se contra essa medalhinha”.

Sabemos como, em geral, as medalhas de Nossa Senhora são frágeis, ultra comerciais, de alumínio, etc.

E ela continuou: “O projétil está guardado junto com a medalha. Entortou e estragou a medalha, mas miraculosamente não matou meu filho. Ele teve um tal golpe, que se converteu. E este grande milagre merece bem que eu tenha estes objetos expostos aqui”.

Vemos, assim, a bondade de Nossa Senhora por um tipo que, sendo morto por um disparo, iria para o Inferno, pois estava ofendendo a Ela naquele momento. Para esse sujeito, Ela realiza um milagre esplêndido.

Então: “Lembrai-Vos de mim também que não estou fazendo uma coisa horrorosa, não estou pecando, mas vilmente encalhado, bestamente encalhado, e não há o que me desencalhe. Disto eu estou farto de saber e compreendo que só Vós me podeis desencalhar; fazei-me este favor, desencalhai-me!” É um pensamento que só pode nos alentar e ser um incentivo para nossa novena de Nossa Senhora Auxiliadora.

Tardando em nos atender, Maria Santíssima nos concede superiores benefícios

Quando consideramos os auxílios da Virgem Maria, vemos que é uma verdadeira graça o fato de Ela dignar-Se estabelecer conosco relações pelas quais atende pequenos pedidos, quase que diríamos pequenas intenções, como se fossem pequenos carinhos maternos da parte d’Ela. Sem dúvida, é uma graça que devemos reputar como muito preciosa.

Entretanto, não devemos nos espantar quando o auxílio de Nossa Senhora tarda. Muitas vezes Ela demora a atender exatamente nas grandes graças, que Ela quer que peçamos muito.

Em geral, em toda a vida de uma pessoa muito devota de Maria Santíssima, assim como existem as graças que Ela dá logo, há também umas duas, três, quatro ou cinco que Ela concede demorando enormemente, e essas são as almas que Nossa Senhora mais ama, pelas quais, dentro de um rosário de graças facilmente concedidas, Ela coloca algumas muito difíceis. E em geral as graças que Ela ama mais são as de caráter espiritual. Às vezes, é uma graça de caráter temporal cujo retardamento vai ter um sentido espiritual.

Contaram-me o caso de uma senhora protestante, convertida à Religião Católica, a qual tinha muita vontade de ser devota de Nossa Senhora. Leu São Luís Maria Grignion de Montfort, convenceu-se de ser aquela a verdadeira devoção, mas não conseguia ter uma devoção que não fosse puramente teórica em relação à Santíssima Virgem.

Ela passou dez anos rezando todos os dias afincadamente, para ter uma devoção viva a Nossa Senhora. Ao cabo desse tempo, ela a obteve de modo supereminente.

Quer dizer, há certos retardamentos da providência de Nossa Senhora, enquanto Auxílio dos Cristãos, em que Ela concede mais tardando do que dando logo. E isso em parte porque se Maria Santíssima atendesse todos os nossos pedidos imediatamente, a Terra se transformava num paraíso e os sofrimentos desapareciam. Ora, umas das maiores graças que Nossa Senhora nos dá são as cruzes, os sofrimentos. E muitas vezes Ela tarda para nos dar a graça e o mérito do sofrimento.

É preciso também acrescentar que algumas vezes a Santíssima Virgem tarda para provar a nossa Fé, quer dizer, para nos desenvolvermos na Fé e na confiança; e depois Ela nos dá essas graças de modo supereminente.

Por isso, se há alguma alma que esteja esperando muito tempo para receber uma graça, ela não deve considerar isso como uma recusa de Nossa Senhora, mas como uma promessa de que, se pedir muito, essa graça lhe será dada com uma abundância extraordinária.

Na novena de Nossa Senhora Auxiliadora, que, enquanto Auxiliadora, é dadivosa e distribuidora de graças, devemos pedir que, assim como Ela tem pena das almas do Purgatório e abrevia seus tormentos, na medida em que convenha às nossas almas, condescenda em abreviar também essas grandes demoras, e nos dê aquilo que nós queremos, sobretudo para a nossa vida espiritual.

 

(Extraído de conferências de 21/5/1964,
 17/5/1966 e 18/5/1966)

1) Afonso Tobias Ratisbonne, convertido milagrosamente à Religião Católica ao presenciar uma aparição de Nossa Senhora. Ver Revista Dr. Plinio, n. 46, p. 6-9; n. 94, p. 24-29.

 

Com este sinal, vencerás!

No ano de 312, a batalha da Ponte Mílvia marcava a ruína de um mundo e o surgimento de outro. Após três séculos de perseguições, a mensagem do Evangelho derrotava o paganismo.

 

Durante centenas de anos a religião católica tentou espraiar-se por todo o mundo romano. E por isso foi perseguida, arrastada perante os tribunais, condenada injustamente, e sofreu toda ordem  de calúnias. Mas, impavidamente, os católicos se negaram a professar outra religião que não a católica e afirmaram ser falsa a religião dos deuses pagãos, e infames os ídolos que o mundo antigo  adorava. Proclamaram a existência de um só Deus e de Jesus Cristo Nosso Senhor, filho de Deus, Homem-Deus, Redentor do gênero humano, nascido de Maria.

Perseguição, refúgio nas catacumbas

Em várias ocasiões, parecia que o Cristianismo ia sucumbir e desaparecer no esmagamento geral em que o paganismo o procurava sufocar. Nesta luta grandiosa, a seqüência de acontecimentos se  dava de um modo que nós poderíamos esquematizar mais ou menos da seguinte maneira:

Ia um apóstolo a uma cidade qualquer, e ali pregava o Evangelho. Alguns se convertiam, começava a vida da religião católica naquele local. No início, sem muitos entraves. Mas não tardava a arrebentar a perseguição. E os católicos, que até então se reuniam em casas particulares, eram obrigados a  passar para esconderijos, a descer para as catacumbas. E a estabelecer o culto católico nas entranhas da terra, no meio dos maus odores e das feiuras daquelas profundidades cavadas para os  cadáveres, para aquilo que é feito para ficar escondido e não para aparecer.

Em pouco tempo, os pagãos ficavam com a ideia de que o culto católico havia desaparecido e dormiam sossegados. E também os católicos durante algum tempo dormiam sossegados, porque se  julgavam ignorados.

Mas não tardava muito a chegar uma denúncia aos governantes do lugar, informando que os cristãos se reuniam em tal casa e depois desciam a um subterrâneo, ou se escondiam numa gruta, ou  se adentravam no matagal, praticando ali o seu culto. E recomeçava a perseguição.

Depois de cada esmagamento, pujante renascimento

O Catolicismo, então corria novamente para os esconderijos e se habituava a morar ali dentro. Recomeçava a viver nas trevas e nos maus odores,  é verdade, mas sentindo o bom odor de Nosso  Senhor Jesus Cristo e recebendo graças magníficas nos subterrâneos, ou nas grutas, ou nos outros lugares onde se refugiava. Começava ali novamente a crescer. Mas apenas ele crescia um pouco  mais, vinha outro golpe brutal que, por assim dizer, o esmagava.

Os cristãos não se dispersavam, mas se escondiam em outros lugares. A perseguição se acentuava, chegava às vezes ao inimaginável da crueldade e da brutalidade, com a interferência pessoal do  imperador, que determinava os suplícios a que os cristãos deveriam ser submetidos para desanimarem e desistirem de pertencer à Igreja. Tinha-se a impressão de que a última hora havia chegado, que desta vez o pânico iria dominar completamente os que ainda conservavam a Fé e que a religião cristã acabaria.

Neste vaivém, o que aparece à primeira vista é a seqüência de uma fundação, um surto e um esmagamento. Um aparente acabrunhamento, um aparente destroçamento. Mas, daí a pouco, esse  destroçamento dá origem a algo de novo; logo, porém, é novamente um esmagamento que vem.

E isto vai de ponto em ponto, mas com uma circunstância que eu até agora não mencionei. É que, depois de cada esmagamento, aquilo que renasce é mais numeroso, mais amplo, mais cheio de fé,  mais brilhante. De maneira que, se é verdade que um esquema desses acontecimentos poderia ser: nascimento, esmagamento, novo nascimento, novo esmagamento — é preciso dizer que esse  esquema está mal formulado. Porque o verdadeiro esquema deve ser assim:  nascimento, esmagamento, multiplicação, esmagamento maior, multiplicação maior!

Ao cabo de alguns séculos, um apologista cristão pôde escrever a um imperador uma carta mais ou menos nos seguintes termos: “Vós só estais no vosso trono porque nós queremos, porque vós  sois fraco apesar de serdes o imperador. E nós somos fortes apesar de sermos apenas uns pobres perseguidos. Olhai em torno de vós e entre os vossos próprios ministros encontrareis católicos, entre vossos generais encontrareis católicos, entre os que comandam as vossas naus encontrareis católicos, entre os que dirigem as vossas finanças, entre aqueles que brilham na vida cultural, na  vida social, na vida política do vosso Império.

O que digo? Entre aqueles que fazem parte da vossa guarda pessoal e que são responsáveis pela vossa vida, que velam por vós enquanto vós dormis. Vós dormis e só não sois morto, porque são  católicos que vos guardam.” E ele poderia ter acrescentado: “Se durante a noite a consciência de vossos crimes vos acordar e vós olhardes para os homens que estão à vossa cabeceira, revestidos de couraça e de elmo para vos defender contra algum ataque, lembrai-vos: eles sabem que vós amanhã os jogareis aos tigres, os jogareis aos leões e aos leopardos; que vós os revestireis de matérias  combustíveis, os amarrareis em árvores e os incendiareis como se fossem tochas; eles, que sabem que amanhã serão vossas vítimas, hoje são vossos guardiães. Vós confiais neles, mas vós confiais,  na verdade, na vossa derrota. Porque vós, os pagãos, já sois os derrotados, falta apenas o fato histórico de um piparote para vós estardes no chão. E esse Cristo a quem quereis esmagar, que não  quereis conhecer, que caluniais, Ele já venceu sobre a face da Terra!”

Uma visita às catacumbas de Roma

Imaginem a situação dos católicos nos lugares onde eles se escondiam. Eu a senti, por assim dizer, palpitar na concha da minha mão estando nas catacumbas de Roma. A primeira vez que fui às  catacumbas, estava acompanhado de várias pessoas. Descemos, mas a certa altura eu tive de voltar, por causa de algo que costuma acontecer comigo: se vejo alguém ter falta de ar, imediatamente começo a sentir, também eu, falta de ar e sou obrigado a me distanciar.

Naquela ocasião, os meus companheiros e eu descemos até o fundo da terra. Mas à medida que íamos avançando por aqueles corredores, eu ia imaginando a falta de ar que deveria haver lá nos tempos de perseguição, com aqueles lugares repletos de gente, confinada num espaço limitado, naqueles corredores sem fim. Pensando nessa falta de ar, não suportei e tive de, discretamente,  desligar- me dos meus companheiros e sair. Fora, havia um bonito jardim, sorridente,  agradável, com um banco de pedra iluminado pelo sol da primavera.

Sentei-me e comecei a respirar livremente, pensando na diferença das situações. Naquele mesmo solo, nas noites do Império Romano, quanto passo fugidio de mártires do dia de amanhã, que  esgueiravam-se pelas trevas, passavam depressa e se enfurnavam dentro da terra, quando a noite estava mais escura e os guardas não podiam distinguir senão sombras muito confusas! Eram  escravos ou ex-escravos, homens pretos ou brancos, graduados ou não, mas todos marcados pelo signo do Batismo.

Mas a História tinha mudado tanto que naquele mesmo lugar onde se situava a entrada de uma catacumba, havia no momento um jardim e nesse jardim estava sentado num banco aprazível um  homem que se beneficiava do fresco ar da primavera de Roma…

Poltrões transformados pela graça em mártires

Esse ambiente no qual eu me encontrava era o sinal de uma vitória enorme. A fé que realizava seus cultos sob a superfície da terra, dominava agora essa superfície. E na tranqüilidade da liberdade conquistada e possuída, um filho dessa fé católica respirava tranquilamente, à espera dos que estavam sob a terra.

Que diferença dos tempos antigos! Que diferença de tanto suor, de tanto sangue, de tantas lágrimas, de tanto martírio!

Pior do que tudo isto: de tantas apostasias de pessoas que chegavam na hora do sacrifício e não tinham coragem de manter a fé, renegavam-na e então eram libertadas. E à noite, corroídas de  vergonha e de remorso, sem ter coragem de chegar perto dos homens santos que no dia seguinte morreriam pela fé, essas pessoas os viam passar e diziam baixinho, nas sombras: “Tenha pena de mim! Eu me envergonho, eu peço perdão. Obtenha de mim que eu esteja ao seu lado na hora do holocausto amanhã”. E o passante dizia: “Sim, sim. Deus o ajude!”, e se afastava com rapidez.

No dia seguinte, a graça lhes havia dado uma energia que dominava tanta fraqueza, uma força enormemente maior do que tanta poltronice. E assim, entre a coorte dos pobres miseráveis que iam  andando no meio das feras e sendo agarrados por elas de cá e de lá, via-se um homem que com coragem desafiava um leão. Era o poltrão da véspera. O raio da graça tinha pousado sobre ele. Na Igreja de Cristo havia mais um mártir; no Céu, mais um santo.

Não estava longe o dia em que o paganismo cairia

Bem, com tudo isto a Igreja foi se estendendo sobre toda a Terra. Era assim mostrada a vitória da Igreja , na sucessão dos pequenos triunfos e dos grandes esmagamentos, da enorme frutificação  conseqüente a esses esmagamentos e a enorme proliferação dos filhos da fé por todo o Império Romano.

Os que tinham presenciado tudo isto e os que eram frutos deste processo, viam que não estava longe o dia em que o paganismo haveria de cair.

Chegou um momento em que a própria futura  imperatriz, mãe de Constantino, o pretendente ao trono imperial, era católica, a modelar romana Helena. E este fato era do conhecimento de todos, porque a encontravam misturada no meio do  povinho humilde, de cabeça inclinada, na hora em que se oferecia o Santo Sacrifício. E pedindo, naturalmente, por si mesma e pelos dela, mas pedindo também — e com quanto empenho! — pelo filho, e pelo Império que esse filho teria nas mãos, tomando em consideração que um simples movimento de alma do filho podia fazer cessar a dominação pagã e fazer luzir aos olhos do mundo o Reino de Cristo.

Rezava, rezava, rezava, sem articular conspirações terrenas, mas conspirando com o Céu, conspirando com Maria Santíssima, conspirando com Deus onipotente, que é não só misericordioso, mas  é a Misericórdia, para que esse momento chegasse.

O triunfo final

Chegou a confrontação entre os imperadores Constantino e Maxêncio (este último, feroz inimigo dos cristãos) perto da Ponte Mílvia, em Roma, pelo controle da parte ocidental do Império.  Constantino viu que ele estava em inferioridade de condições. Na véspera do confronto, lembrado das orações da mãe, se ajoelhou e rezou ao Deus de Helena. Apareceu no céu uma cruz radiante e  as letras gregas similares às letras X e P, que são as duas primeiras letras do nome de Cristo nessa língua, Christós. Em torno dessa cruz, as palavras “In hoc signo vinces” — “Com este sinal,  vencerás”.

Na magnífica seqüência de aparentes becos sem saída que fora a vida da Igreja no Império Romano até então, havia por fim uma saída, prenunciava- se o triunfo final, abria-se a avenida da  História que se desenvolveria largamente por séculos inteiros.

Era o momento em que, anunciando às tropas o seu propósito de converter-se, anunciando a sua fé em Cristo, mandando pôr nos lábaros romanos o sinal da vitória de Cristo, Constantino deu a  investida. “In hoc signo vinces!” As tropas de Maxêncio foram dispersadas. Constantino era pagão até então, mas atribuiu a vitória ao Deus cristão, a quem rezava sua mãe, Helena.

E pouco depois, em 313, ele concedeu liberdade à Igreja Católica em toda a vastidão do Império. Tomou o palácio da sua esposa, Fausta, que tinha pertencido à nobre família dos Laterani, e o deu  de presente ao Papa.

Esse edifício se tornou a Basílica de São João de Latrão, Catedral de Roma até hoje e, enquanto sede do Papa, Bispo de Roma, cabeça e mãe de todas as igrejas do mundo: “urbis et orbis ecclesiarum ater et caput”.

Não muito longe dali — na Basílica de São Pedro, que Constantino mandara construir sobre o túmulo do Príncipe dos Apóstolos — Carlos Magno haveria de ser coroado imperador pelo Papa. À luz suave da noite de Natal do ano 800, nasceria o Sacro Império Romano Alemão, para bênção dos povos durante muitos séculos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 62 (Maio de 2003)

Encantos da velha Alemanha

Ao lado das superiores maravilhas que o espírito católico engendrou ao longo dos séculos, a par dos esplendores de monumentos, costumes e tradições que resistiram ao passar do tempo e ainda hoje se afirmam como obras-primas e requintes da realização humana, junto a tudo isso sempre me agradou considerar o reflexo do bom gosto cristão nos pequenos aspectos do ambiente europeu  em geral, e de modo particular na vida cotidiana do povo alemão.

Refiro-me mais diretamente a essa Alemanha médio-burguesa cujos encantos me foi dado apreciar de perto, a Alemanha de minha inesquecível Fräulein Mathilde, governanta e educadora exímia, ela mesma uma pequena burguesa nascida em Regensburg, na pitoresca e poética Baviera.

As descrições que ela nos fazia de sua terra natal, as histórias que nos contava de sua gente, com seu modo de ser, hábitos e tradições tão peculiares, despertaram minha atenção para o que havia  de bom, de belo e verdadeiro também nas menores  facetas de uma civilização católica.

De dentro dos meus olhos brasileiros, fiz uma análise própria da Alemanha que, desde o meu tempo de menino até hoje, não foi desmentida, mas ampliada e completada — é natural — com  considerações mais amadurecidas.

Assim, a meu ver, reveste-se de intensa beleza uma organização quase inocente da existência de todos os dias, que se pode comprovar até nos menores povoados alemães.

A casa, embora de modestas proporções, tem suas janelas guarnecidas de cortinas presas dos dois lados, de pano barato e comum, mas de cores alegres; os vidros primorosamente limpos e, do  lado de fora, o célebre pote de gerânios sorridentes ao sol de verão que os ilumina. Se, pelo contrário, é inverno, a casinhola amanhece engrinaldada de neve ou adornada por certas figuras  geométricas, por flores petrificadas que os caprichos do gelo desenhou nas pontas de telhado, nas quinas de balaustradas, nas traves das cercas.

As venezianas pintadas de verde e sempre bem conservadas, as portas com suas dobradiças e fechaduras que não rangem, funcionando de modo perfeito, suave, silencioso. Entra-se na pequena  sala de estar, primorosamente arranjada, decorada com móveis de maior ou menor distinção conforme o permitam as posses da família, porém oferecendo todo o conforto possível, além da  lareira, indispensável para o aconchego nos dias frios, com sua lenha disposta de modo ordenado e sua mesa enfeitada com “bibelots” e canecões de cerveja decorativos.

A um canto, na sua gaiola de ferro ou de madeira, um passarinho alegra o ambiente com seus trinares. A sua “morada” é limpíssima, o seu alpiste de primeira qualidade, e quando chega a hora de ele dormir, de entrar na noite antes das pessoas, cobre-se-lhe a gaiola com um lindo pano, e o bichinho se aquieta e emudece, até a manhã seguinte.

Noutro canto da sala, repousa um instrumento que o filho toca. Será um violino no qual o rapaz de vez em quando tange alguma melodia, acompanhado pela irmã que canta, sob o olhar  embevecido e derretido dos pais.

E bem podemos imaginar certos laivos do convívio entre os dois esposos, quando o dono da casa chega de seu trabalho, e já encontra uns largos e deliciosos chinelos que a mulher dispôs para ele trocar, logo depois de se sentar na poltrona que é só dele… Enquanto sua consorte leva os sapatos para o quarto, ele se repimpa e espreguiça no seu assento, acende o cachimbo, solta umas boas  baforadas, pega o jornal e começa a ler. Dali a pouco a senhora está de volta, e os dois se põem a conversar. Ela durante o dia se preparou — porque é a terra das preparações, não há improvisações — para esse momento de prosa com o marido, procurou saber as novidades com as amigas, trocou idéias, etc., a fim de estar à altura da conversa dele. E o homem fica contente quando a mulher lhe diz algo ou exprime algum pensamento que não lhe tinha passado pela cabeça.

A riqueza desse interior de vida familiar, perfumado pelos mil pequenos prazeres inocentes da existência terrena, parece-me formar uma atmosfera única de vidinha cintilante do pequeno burguês, que é uma maravilha da velha Alemanha. Foi ali, naquelas vizinhanças do tirol austríaco, que vicejou o “Stille Nacht, Heilige Nacht” (noite de paz, noite santa). É o Natal alemão que se  tornou o Natal do mundo!

O Natal com presentes sobre a lareira, aos pés do “Tannenbaum” (pinheiro), junto a uma imagem de Nossa Senhora esculpida por um artesão da família, enfim, todas as canduras natalinas com que a piedade popular germânica enriqueceu o universo católico.

Uma beleza, essa vidinha! À semelhança desse ambiente pequeno burguês, cada classe social na Alemanha tem o ar de si própria, como, por exemplo, a dos rudes fidalgos prussianos, os chamados  “junkers”.

Homens que gostam de se encontrar ao redor de volumosas canecas de cerveja, diante de sanduíches de salsichas, camadas de manteiga fresca e outros ingredientes formando saborosos andares nos pratos, devorados por eles com a mesma determinação com que invadem e conquistam territórios! Claro, conversando com o interlocutor muito seriamente sobre política ou filosofia, ou,  melhor ainda, os dois cantando. É outro veio.

Assim, desde o “Junker” ou desde o Kaiser (imperador) até o último pequeno funcionário público que tem seu lugar num alveolozinho com cortininha, tem-se um esplendoroso conjunto que é o  píncaro dessa Alemanha de tantas tradições e glórias católicas que eu, ainda menino, aprendi a admirar pelas descrições da minha Fräulein Mathilde.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 62 (Maio de 2003)

O amor materno da Auxiliadora dos cristãos

Conhecendo-nos individualmente, e amando-nos como a filhos únicos, Nossa Senhora nos auxilia em todas as batalhas da vida.

É verdade que Nossa Senhora é mãe de todos os homens; porém, Ela é, especialmente, mãe dos cristãos. Ela tem a missão, dada pela Providência, de auxiliar os cristãos.

O educandário da vida

Tal missão não deve ser vista como a de uma mãe junto a seu filho adulto. Por mais respeitável que seja a figura materna em todas as etapas da vida de um filho, há uma idade, entretanto, onde este carrega a responsabilidade de seu próprio destino, e mais protege a mãe do que é protegido por ela. Por isso, nossas relações com Nossa Senhora devem ser as de uma criança com sua mãe.

Enquanto vive nesta Terra, o homem está num período de provas e de lutas, onde sua alma se desenvolve rumo à plena maturidade. Assim, vistos do Céu, somos semelhantes a crianças em formação.

De fato, espiritualmente falando, nossa verdadeira idade adulta será atingida quando Deus nos chamar a Si; nessa ocasião, se tivermos sido fiéis à graça, alcançaremos a plenitude para a qual fomos criados. Dessa forma, do ponto de vista do Céu, a Terra é um educandário, e a maturidade é a morte. Nossa Senhora nos vê, portanto, como espíritos em formação.

Considerando os desastres e as desordens do mundo de hoje, que impressão causamos num espírito bem aventurado, o qual vê a Deus face a face? Evidentemente, é tal o desatino, a precariedade, a incerteza e a debilidade do homem, que, observados do Céu, somos como crianças mal encaminhadas.

Compreende-se, portanto, que Nossa Senhora tenha para conosco a missão de uma mãe para com um filho pequeno. Quer dizer, de dar uma assistência inteira, estar presente em todas as horas, proteger de todos os modos. Ela isso faz com cada homem, em todos os momentos da vida.

Maria Santíssima tem, a todo instante, conhecimento simultâneo e perfeito de cada um de nós. Ela nos ama como jamais alguma mãe amou seu filho. Assim, podemos imaginar a solicitude de Nossa Senhora para com sua missão de acompanhar, rezar, obter graças e guiar a vida de cada pessoa, como se esta fosse a única a existir.

O perfeitíssimo amor de Maria

Este é um ponto a ser sublinhado. De acordo com uma visão completamente falsa, quando rezamos temos impressão de estarmos sob as vistas de Nossa Senhora em meio a uma multidão de homens na qual Ela mal discerne cada um. E, quando chega da nossa parte um brado muito angustiado, Ela presta um pouco mais de atenção, mas fora isso nos perdemos em meio ao tumulto da humanidade e dos séculos.

Ora, ao rezar, deveríamos nos lembrar de que Ela nos vê, conhece e ama como se somente cada um de nós existisse.

Caso nosso Anjo da Guarda nos aparecesse e dissesse: “Neste momento a Virgem Maria vai parar de atender as orações de todas as pessoas, para olhar só para você. E no universo inteiro se fará um silêncio; haverá apenas a sua súplica subindo ao Céu”. A pessoa ficaria comovida: “Como é possível isso? Que honra! Que maravilha!”

Com efeito, isto se dá a todo momento. Quando alguém reza a Nossa Senhora, é como se somente ele o fizesse, e o universo inteiro tivesse parado para Maria prestar atenção apenas nele.

Com sua perfeição insondável, a Santíssima Virgem quer bem a cada um individualmente, do jeito como ele é, com aquela espécie de desinteresse do verdadeiro amor materno, em que a mãe não quer o filho por causa de sua carreira, mas por ser seu filho.

Uma reminiscência do amor materno

Quando se fala em amor materno, é normal que cada um pense na própria mãe. Por isso, vêm-me à lembrança fatos ocorridos com Dona Lucília.

Em 1950, candidatei-me a deputado federal pelo Estado do Paraná.

Eu acabara de chegar da Europa e tinha apenas vinte dias para a campanha eleitoral. Não foi fácil passar de Paris para as estradas poeirentas que ligavam as várias cidades do Norte do Paraná! Meti-me por aquelas vias e enfrentei os solavancos e desconfortos de uma campanha eleitoral.

Terminada a campanha, voltei para São Paulo e mamãe me acolheu com o afeto de sempre.

Começaram, então, a divulgar os resultados da votação. Estes, apesar de serem brilhantes para tão pouco tempo de propaganda, não atingiam o total exigido para minha candidatura. Nem podia ser de outro modo, tratando-se de um candidato desconhecido na região.

Quando chegou a notícia confirmando minha derrota, mamãe, com aquela serenidade, aquela calma, aquele timbre de voz ao mesmo tempo grave e doce que lhe era característico, disse-me:

— Como eu fico alegre com sua derrota!

Fiquei muito espantado e perguntei:

— Mas meu bem, por que a senhora diz uma coisa dessas? A senhora não vê que, ficando deputado, eu poderia prestar serviços à Religião?

Ela respondeu:

— Meu filho, é verdade, e se Deus assim o quisesse, eu quereria também. Mas eu fico alegre por Ele não ter querido sua eleição, pois ao menos assim você não vai para o Rio e fica mais perto de mim.

Eu disse a ela:

— Mas a senhora não gostaria de ter um filho eleito deputado por segunda vez?

Ela respondeu:

— A vida, meu filho, abaixo do serviço de Deus, consiste em se querer bem, morar juntos e se olhar.

A benquerença materna

Antes de rezar, lembremo-nos disso: Nossa Senhora tem por cada um de nós, de modo inimaginável, toda a benquerença própria às mães. Assim, quando alguém se ajoelha diante de uma imagem d’Ela, deve ter a ideia de que, ainda que esteja em estado de pecado, esse ato de devoção é verdadeiramente grato a Maria.

Desse modo teremos correspondido à solicitude de Deus, dando-nos Nossa Senhora como auxílio.  

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/5/1969)