A mais eminente figura da Idade Média

Dr. Plinio tinha grande devoção a São Gregório VII, porque este possuía, mais do que qualquer outro Bem-aventurado que ele conhecia, uma virtude que o entusiasmava  ao último ponto, e para a qual iam todas as fibras de sua alma: a combatividade inquebrantável. Esse papa tinha a integridade de alma por onde o homem caminha para todos os esforços, todos os riscos, todos os  dissabores, com o intuito de fazer vencer a causa da Santa Igreja.

 

Temos para comentar um trecho da carta escrita por São Gregório VII à Condessa

Matilde, no ano 1074 .

Um papa que atacava os vícios e as desordens dos mais poderosos

Entre as armas que, com o auxílio de Deus, eu vos forneço contra as insídias do mundo, lembrai-vos de que as principais são: receber frequentemente o Corpo do Senhor e ter uma confiança segura e completa em sua Santa Mãe.

Eis o que diz Santo Ambrósio, no livro quatro “Dos Sacramentos”: “Se nós anunciamos a Morte do Senhor, anunciamos a remissão dos pecados. Se cada vez que o Sangue do Senhor é derramado, o é pela remissão dos pecados, devo recebê-Lo sempre para que meus pecados sejam sempre perdoados. Pecando sempre, devo sempre tomar o remédio.”

No livro quinto “Dos Sacramentos”, o mesmo Santo diz ainda: “Se é um pão quotidiano, por que o recebeis uma vez ao ano, como os gregos costumam fazer no Oriente? Recebei-O diariamente, a fim de que cada dia vos seja proveitoso. Vivei de maneira a merecer recebê-Lo todos os dias.” […]

Quis, filha mui amada de São Pedro, escrever-vos estas coisas, a fim de aumentar a vossa fé e vossa confiança no recebimento do Corpo do Senhor; porque tal é o tesouro, tais são os presentes, não de ouro, nem de pedras preciosas, que, pelo amor de vosso Pai, o soberano dos Céus, vossa alma espera de mim, conquanto possais, segundo vossos méritos, receber de melhor de outros Pontífices.

Quanto à Mãe do Senhor, a Quem principalmente vos recomendei, recomendo-vos e não cessarei de recomendar-vos, até o momento em que tivermos a felicidade de vê-La como nós o desejamos. Que vos direi? Ela, a Quem o Céu e a Terra não cessam de louvar, ainda que não A possam louvar dignamente. Entretanto, considero isto fora de qualquer dúvida: Ela é mais elevada, e melhor, e mais santa do que qualquer mãe. Ela é mais clemente e mais doce para com os pecadores e as pecadoras convertidos. Empenhai-vos, pois, em pôr cobro ao pecado e, prosternada diante d’Ela com coração contrito e humilhado, derramai as vossas lágrimas. Vós A encontrareis, prometo-vos, sem qualquer dúvida, mais pronta do que uma mãe carnal, e mais terna em vos amar.

Comenta o Padre Rohrbacher:

Essa carta do Papa São Gregório VII é muito notável. Mostra-nos uma maravilha que o mundo não compreende. Esse gênio poderoso que com um olhar abarcava todos os reinos, todos os bens e os males da humanidade, que atacava ao mesmo tempo  e  por toda parte os vícios e desordens dos mais poderosos, que não se arreceava de nenhum obstáculo, que parecia aos homens de seu tempo mais firme e mais inquebrantável do que o céu e a Terra, esse gênio poderoso tinha […]uma ardente devoção  à Santa Eucaristia, uma confiança filial na Santa Virgem, uma terna compaixão para a fraqueza humana.

Alegria de Deus com o pecador que se converte

São trechos de um grande Santo e comentários de um grande autor .

Em primeiro lugar, a respeito do Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que está dito é que o pecador não deve afastar-se da Sagrada Eucaristia. Pelo contrário, ele precisa recuperar o estado de graça e voltar a frequentar este sublime Sacramento. Isso porque o Deus de misericórdia, ao invés de afastar o pecador, o atrai. Ele não aceita na Sagrada Eucaristia o homem no estado de pecado, mas arranca o pecador desse estado pela perspectiva de receber o banquete celeste e o atrai a Si. De maneira que, quando alguém comete pecado, não deve afastar-se da Eucaristia; pelo contrário, o mais depressa possível precisa confessar-se, recolocar-se no estado de graça e voltar à Sagrada Eucaristia.

Porque é imensa a alegria de Deus com o pecador que se converte. Ele a exprime bem no Evangelho quando fala da mulher que perdeu uma moeda, procurou-a por toda parte e, tendo-a encontrado, chama as amigas e mostra a sua alegria pelo encontro da moeda. Ou, então, com o exemplo do bom pastor que vai procurar a ovelha tresmalhada ao longe, e a traz nos seus ombros para o aprisco .

Quer dizer, Deus ama singularmente o pecador arrependido. E ao perdoar o pecador verdadeiramente contrito, Ele tem uma razão para amá-lo mais do que antes. É por isso, por exemplo, que Santa Maria Madalena foi mais amada por Nosso Senhor depois de se converter do que antes de pecar . São essas as amplitudes da misericórdia divina.

Não há coisa que seja mais frequente do que encontrarmos nas almas uma ação do demônio que põe a coisa nestes termos: “Você está em estado de pecado, não comungue, nem se aproxime de Deus. Onde é que se viu que um pecador de seu jaez vá se aproximar de Deus em estado de pecado! Você é louco, isso não tem propósito, fuja!”

Ora, o certo é o contrário: “Você está em estado de pecado mortal, venha correndo para Aquele que é o Médico de sua alma, o seu Redentor, com toda a humildade, batendo no peito, lamentando o mal que fez, é verdade, mas venha com confiança porque a porta da misericórdia estará aberta”.

São Pio X desferiu na Revolução um dos mais terríveis golpes

Compreendem-se, assim, os problemas da expansão da Igreja e o bem prodigioso feito por São Pio X com o seu projeto de re-afervoramento eucarístico.

Nós vemos aqui São Gregório VII, apoiado em Santo Ambrósio, pleitear a Comunhão diária. Como é sabido, antes do tempo de São Pio X, as pessoas mais piedosas comungavam duas ou três vezes por ano. Isso era observado para ter mais respeito para com a Eucaristia, de maneira a, mantendo-se bem afastado, o fiel fizesse uma arqui preparação para a Comunhão. Dir-se-ia até ser uma atitude esplêndida. Mas, generalizando a frequência à Sagrada Eucaristia, São Pio X desferiu na Revolução um dos mais rudes e terríveis golpes que se podia dar. Especialmente com a Comunhão das crianças. O império do demônio dificilmente é tão grande numa alma que recebeu o Santíssimo Sacramento, como seria se essa alma nunca O tivesse recebido.

Portanto, a insistência para que os fiéis vão ao Santíssimo Sacramento tem por detrás, doutrinariamente, uma insistência para que o pecador procure Nosso Senhor e, sem desfalecer, amparado na bondade d’Ele, vá mais uma vez ao seu encontro. De maneira que uma pessoa, por mais que peque, nunca deixe de se confessar, com um propósito sério de não mais pecar, segundo pede a Igreja, e comungar, aproximando-se assim das fontes das águas que é o Santíssimo Sacramento.

Harmonia total e inebriantemente bela do perfil moral da Mãe de Deus

O que o São Gregório VII diz a respeito de Nossa Senhora é também uma verdadeira maravilha:

…considero isto fora de qualquer dúvida: Ela é mais elevada, e melhor, e mais santa do que qualquer mãe. Ela é mais clemente e mais doce para com os pecadores e as pecadoras convertidos.

Aqui está um princípio de moral

que nos é muito caro: quem tem uma virtude em muito alto grau, possui também todas as outras virtudes em grau elevado . Não é possível a pessoa ser verdadeiramente muito elevada em outras virtudes, sem ser ao mesmo tempo muito misericordiosa. Porque, se ela é muito virtuosa, tem de um modo insigne todas as virtudes e, portanto, também a misericórdia.

Então, quanto mais eu falo da grandeza da Santíssima Virgem e nos seus altos privilégios, tanto mais devo me convencer de que Ela, entre outras qualidades excelsas, tem a de Mãe terníssima, benigníssima, intimíssima, que Se põe na estatura de cada um de seus filhos para tratar com eles como as mães fazem habitualmente com suas crianças .

Compreende-se, assim, como a harmonia celeste da alma de Nossa Senhora é feita: tão mais alta do que todos os querubins e serafins, a ponto de estar fora de qualquer termo de comparação com tudo quanto o restante da Criação possa ter de mais superlativamente magnífico. Entretanto, apesar disso, Ela é a mais meiga, a mais terna de todas as criaturas, a que mais entra na proporção e no contato com cada homem, de maneira tal que se um de nós tem uma mãe que considera ser muito carinhosa, esteja certo de que Nossa Senhora a excede indizivelmente em afabilidade, meiguice e carinho.

É assim que a devoção a Maria Santíssima deve ser vista. E jamais me cansarei de ensinar isso, porque Ela nunca Se farta de dá-lo a entender a seus filhos de todos os modos: aparições, milagres, etc .

A ação de Nossa Senhora sobre a Terra consiste em mostrar que Ela é simultaneamente terrível como um exército em ordem de batalha – esmagando continuamente a cabeça da serpente, derrotando sozinha todas as heresias do mundo inteiro; Nossa Senhora dos Cruzados, dos Inquisidores, dos Santos indomáveis na luta pela Fé, como foi São Gregório VII – e, ao mesmo tempo, Mãe bondosa dos pobres, fracos, desvalidos, pequeninos. É a harmonia total e inebriantemente bela do perfil moral da Mãe de Deus.

Varão intrépido, batalhador indomável

Na ficha lida há pouco, o Padre Rohrbacher mostra como São Gregório VII foi um pontífice indomável .

Eu tenho a impressão de que – e é a razão de minha veneração e ternura por São Gregório VII – ele foi chamado a prestar na História da Igreja, mais do que qualquer outro Santo que eu conheça, uma virtude que me entusiasma ao último ponto, e para a qual vão todas as fibras de minha alma: a combatividade inquebrantável. Ele combateu tudo, lutou contra todos, não cedeu em nada e enfrentou tudo.

Essa integridade de alma por onde o homem caminha para todos os esforços, todos os riscos, todos os dissabores, com o intuito de fazer vencer a causa da Santa Igreja, me entusiasma.

No entanto, por ser muito combativo, São Gregório VII necessariamente tem que ter também em alto grau as virtudes simétricas ou opostas. Assim, precisamente por ter muita combatividade, ele devia ser também um devoto ardentíssimo de Nossa Senhora, muito terno, meigo, e um ardorosíssimo devoto do Santíssimo Sacramento, inculcando formas de piedade extremamente suaves, como a da frequência diária ao Santíssimo Sacramento e a devoção à Santíssima Virgem.

É como São Bernardo, que foi pregador de Cruzadas e o autor da “Salve Rainha”, do “Lembrai-Vos”, orações de uma unção extraordinária! Pregador de Cruzadas e chamado “Doutor Melífluo”, quer dizer, de quem flui o mel pela doçura de sua pregação a respeito de Nossa Senhora. Ele não teria estado à altura de compor a “Salve Rainha” e o “Lembrai-Vos” se não fosse um homem com uma alma de um pregador de Cruzadas. Mas, por outro lado, não seria verdadeiramente um pregador de Cruzadas se não tivesse a alma de um homem tão doce, capaz de compor essas orações. As duas coisas se completam, uma seria impossível sem a outra.

Vemos, assim, as almas grandiosas de São Bernardo e de São Gregório VII, mas este último ainda mais caracteristicamente um varão intrépido, batalhador indomável que encheu com sua luz todo o céu da Igreja até nossos dias e a iluminará até o fim dos tempos.

Cada apóstolo dos últimos tempos deve ser como que um outro São Gregório VII

Eis o grande Santo cuja relíquia se encontra em nossa capela. Que felicidade e tesouro contidos simplesmente nesta afirmação: a relíquia desse Santo se encontra em nossa capela! Quer dizer, é um fragmento dos ossos dele, uma matéria momentaneamente dissociada, mas que numa ordem mais profunda forma um só todo com sua alma gloriosíssima que já está no Céu vendo a Deus face a face, e contemplando Nossa Senhora.

Esse fragmento, no dia da ressurreição da carne, vai ser unido ao corpo dele. Portanto, temos certeza de que esse pedaço de osso com um pouco de carne será inundado pela glória de Deus e se transformará em corpo glorioso, participando das alegrias da visão beatífica que São Gregório VII tem no Céu.

Compreende-se, então, com quanta devoção devemos nos aproximar dessa relíquia, e quanta confiança precisamos ter em sermos atendidos, tendo-a presente entre nós.

Anna Catarina Emmerich, várias vezes, viu relíquias deitando chispas de luz magníficas. Essa luz deveria ser um símbolo da virtude do Santo a quem aquela relíquia pertencia. Que luz de ouro, luz solar estupenda deve espargir essa relíquia de São Gregório VII que, a meu ver, na sua grandeza e riqueza de alma, foi a mais eminente figura da Idade Média e conteve em si, de algum modo, a Idade Média inteira.

Eu não poderia encerrar estas palavras sem lembrar que estamos na Festa de Nossa Senhora Auxiliadora, ocasião em que Ela se mostra particularmente solícita em nos auxiliar em nossas necessidades e atender nossos pedidos . Creio não haver intenção mais grata do que esta: que Nossa Senhora Auxiliadora faça de nós, o quanto antes, perfeitos apóstolos dos últimos tempos, segundo São Luís Grignion de Montfort.

Se São Gregório VII tivesse podido conhecer os apóstolos dos últimos tempos, ele estremeceria de alegria, porque cada um deles deve ser como que um outro São Gregório VII, ou seja, deve ter aquela combatividade, aquela grandeza, aquela suavidade.

 

(Extraído de conferência de 24/5/1967)

O Carlos Magno da Igreja Católica

São Gregório VII travou uma batalha decisiva e desfechou um golpe certeiro no maior potentado da Terra, vibrando contra ele a punição mais alta, profunda e intransigente que se poderia imaginar.

A lição desse grande Pontífice foi, em última análise, a de levar a verdade, o bem, a beleza, a fidelidade à Igreja até as suas últimas consequências.

Ele foi o Carlos Magno da Igreja Católica! A glória carolíngia, de proporções mais angélicas do que humanas, foi vivida magnificamente pela Santa Igreja Católica nos dias de São Gregório VII.

Devemos desejar, com toda a nossa alma, que o adversário da verdadeira Igreja Católica Apostólica, Romana em nossos dias, a maldita Revolução gnóstica e igualitária, seja punida ainda mais do que o Imperador Henrique IV, pois ela tentou coisa pior do que ele. A Revolução desbastou a Terra inteira, e é preciso que a punição seja proporcional.

(Extraído de conferência de 25/5/1985)

Seriedade, pureza, religiosidade

Santa Maria Madalena de Pazzi tinha um olhar cheio de vida, reflexão e seriedade. Uma seriedade que vai de par com uma real bondade, e que não está voltada para os assuntos terrenos, mas é uma seriedade que só se tem quando se pensa nos temas celestes. O todo de sua pessoa tem a ligeireza, a leveza de uma virgem. A seriedade, a pureza, a finura de pensamento, a religiosidade profunda do olhar, a aristocracia do todo se aliam muito bem. Isso tudo brilha em Santa Maria Madalena de Pazzi.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1986)

São Filipe Néri e a florescência da Europa católica

“Imagine, quem puder, toda a beleza espiritual de uma época em que os santos se encontravam na rua, cruzavam seus olhares, e a luz da virtude de um resplandecia na face do outro!” — exclama Dr. Plinio, ao considerar alguns dos edificantes episódios da vida de São Filipe Néri.

 

De São Filipe Néri, Fundador da Congregação do Oratório, sabemos que nasceu em Florença, no dia 15 de julho de 1515, e morreu em Roma, no dia 25 de maio de 1595.

Cena poética na Cidade Eterna

Segundo interessante notícia biográfica(1), ele teria passado todas as noites, durante dez anos, nas catacumbas. Quando encontrava as igrejas fechadas, recitava suas orações nos pórticos dos templos, e mais de uma vez foi visto fazendo leitura ao clarão da lua.

Não podemos nos esquivar de considerar o poético da cena. Um jovem estudante, piedoso, futuro santo, aureolado de virtude, peregrinando pelas igrejas da Cidade Eterna, lendo ao clarão da lua. E a poesia se torna mais acentuada se lembrarmos que, em Roma, isto se dava junto a ruínas milenares, sentado sobre o capitel de uma velha coluna, afagando com a mão a cabeça de um leão de pedra trazido do Egito, com ramagens crescendo pelo meio, enfim, todo o ambiente da Roma antiga, temperado por uma pitoresca e artística desordem…

Elevação de trato entre dois santos

No dia de Pentecostes de 1545, como ele suplicasse ao Espírito Santo de lhe conceder seus dons, sentiu seu coração abrasar‑se, e não podendo suportar o excesso desse abrasamento, jogou-se no chão. Quando se levantou, levou a mão ao peito: seu amor era tanto que o tórax havia estufado e se distanciado do coração.

Cinqüenta anos depois, quando da sua morte, os médicos o abriram para examinar o milagre e descobriram que duas costelas haviam se rompido sobre o coração e não se fecharam, tal o entusiasmo do amor de Deus que ele tinha sentido. Após aquele episódio na festa de Pentecostes, o santo experimentou uma contínua palpitação de coração todas as vezes que se ocupava das coisas divinas.

Muitos e nobres personagens, estimulados pelo exemplo desse até então simples leigo — ele só se tornaria padre seis anos depois, em 1551 —, entraram em Ordens religiosas, enquanto ele mesmo permanecia no século. Por isso Santo Inácio de Loyola, que o conheceu, censurava-lhe com familiar afeto, comparando-o ao sino, que chamava todos para dentro da Igreja, mas que nunca entrava.

Vê-se o dito amável, leve e gracioso de um santo para outro santo. O primeiro fora inspirado por Nossa Senhora a escrever os Exercícios Espirituais na Gruta de Manresa, e o segundo, nimbado pelos dons do Espírito Santo numa festa de Pentecostes: quem pode imaginar, pois, a elevação do trato entre eles!? Eram grandes conversas de grandes santos.

Assistência especial de Deus para com os caridosos

Certa noite, dirigindo-se à casa de uma pessoa nobre, mas arruinada, para levar alguma provisão de víveres, topou com uma carruagem no seu caminho, e querendo lhe dar passagem, caiu dentro de um buraco muito profundo. Porém, o anjo do pobre a quem ia socorrer velava sobre ele, e o suspendeu miraculosamente no ar, impedindo que despencasse naquela abertura.

Quer dizer, enquanto São Filipe Néri caminhava pelas ruas de Roma à procura dos necessitados aos quais costumava amparar, os anjos da guarda deles o acompanhavam e protegiam. Poder-se-ia perguntar por que não foi socorrido pelo seu próprio anjo custódio. E eu responderia: primeiro, porque o pobre era interessado em que seu benfeitor chegasse até ele; e em segundo lugar, porque Deus dava a entender, por essa forma, quanto Lhe era grata a esmola que São Filipe fazia ao necessitado.

Ou seja, o fazer bem aos pobres nos dá direito a uma assistência especial da parte da Divina Providência. E devemos acrescentar: se o socorro prestado aos indigentes de bens materiais reverte em tantos benefícios para o benfeitor, estes serão ainda maiores para os que prestam auxílio aos carentes de bens espirituais. Então, ao darmos um bom conselho, fazermos um apostolado, trazermos uma alma para a Igreja, etc., estaremos colhendo frutos para nossa própria santificação.

O “contra‑Carnaval” e os milagres de São Filipe Néri

Alguns fatos da vida de São Filipe merecem particular destaque.

Por exemplo, já sacerdote, nos dias de Carnaval costumava redobrar suas orações. Seguido por uma massa imponente de fiéis, peregrinava pelas sete basílicas de Roma, a fim de protestar contra a imoralidade de seus cidadãos.

Ou seja, enquanto alguns do povo se entregavam aos festejos desregrados, ele organizava procissões pelas ruas, apresentando a Deus um ato de reparação. Era um contra‑carnaval, vigoroso e destemido. A tal ponto que o cardeal-vigário de Roma o chamou e, depois de lhe ter censurado fortemente por aquelas peregrinações, proibiu-lhe de ser confessor durante 15 dias.

Ora, o vigário morreu bruscamente, antes de ter levantado a penalidade e o Papa Paulo IV, chamado a julgar a causa, deu ordem ao santo de retomar os seus exercícios e lhe pediu que rezasse por ele, Sumo Pontífice.

Outro fato digno de nota se passou com um de seus penitentes que, tendo partido de Roma contra a opinião de São Filipe, em direção a Nápoles, foi detido por corsários. Como estava a ponto de se afogar, ele clamou por São Filipe Néri à distância e pediu seu apoio. Imediatamente o santo lhe apareceu, cercado de uma auréola luminosa, tirou‑o da água pelos cabelos e o conduziu até a margem, por cima das ondas.

Como se vê, um estupendo milagre.

Noutra ocasião, o Papa Clemente VIII se viu atacado por uma doença mortal e fez chamar São Filipe Néri. Assim que o santo entrou no quarto, o Pontífice se sentiu curado.

E o próprio São Filipe, no mês de maio de 1594, foi acometido por uma violenta febre, e acreditou estar tudo perdido. Mas quando todos se desesperavam em torno dele, o doente, atraído subitamente por uma força desconhecida, foi arrancado de seu leito e durante alguns momentos suspenso entre a terra e o céu. Nossa Senhora visitou aquele a quem Ela amava e que tinha socorrido a tantos enfermos e lhe restituiu, ao mesmo tempo, a vida e a saúde.

Sem seriedade, nem as lições dos milagres nos fazem bem

Semelhantes milagres nos levam a uma consideração colateral, porém importante. Procuremos nos imaginar entrando no quarto de um moribundo e, de repente, o vemos se elevar e permanecer suspenso entre o céu e a terra. Dali a instantes ele desce, senta-se na cama e diz: “Estou curado”. Levanta-se e retoma seus afazeres costumeiros.

Dificilmente essa cena não produziria um impacto profundo em quem a presenciasse. Pergunta-se: esse impacto nos faria muito bem ou não?

Sabendo-me pouco amável — mas provavelmente veraz — em minha resposta, eu diria não estar tão certo da afirmativa. Pois a contagiante superficialidade de muitos espíritos contemporâneos é tal que, se não nos habituarmos a tomar as coisas com seriedade, um milagre como esse produz em nós impressão passageira, sem nos fazer o bem que dele deveríamos colher.

Alguém constestaria: “Dr. Plinio, eu teria um tal choque, que nunca me esqueceria desse fato”. É verdade. Nunca se esqueceria, mas nunca o tomaria a sério.

E o que entendo por “tomar a sério” é ver, julgar e agir como São Paulo no caminho de Damasco. Ele foi jogado ao chão, ofuscado pela luz divina, e ali mesmo, deitado no solo, tomou suas resoluções de santidade: “Senhor, o que quereis que eu faça?”, foi sua imediata resposta ao apelo de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quer dizer, tomou a sério: viu que andou mal, ouviu a voz de Deus, julgou sua situação, tirou suas conclusões e decidiu agir. “Que quereis que eu faça?” É o exemplo que devemos imitar, é o hábito de ser sério que devemos adquirir.

Contemplava a perfeição na fisionomia dos santos

Voltemos  à vida de São Filipe Néri. Por um privilégio especial, era-lhe dado contemplar a santidade resplandecer no rosto dos santos.

Percebe-se, por aí, como ele passeava no meio de bem-aventurados, conhecendo a vários deles e observando na suas fisionomias a excelência moral de que eram relicários vivos.

De modo particular notava-o no semblante de São Carlos Borromeu e de Santo Inácio de Loyola. Deste último, costumava dizer: “A beleza de sua alma é tal, que ela resplandece em sua face. Eu via raios de luz emanarem de seu rosto”.

Pensemos como haveria de ser maravilhoso essa contemplação: olhar para um homem e ver raios de luz espargindo de sua face! Se pudéssemos simplesmente presenciar a cena de dois santos cruzando seus olhares, quanto isso nos faria bem… se o soubéssemos tomar a sério!

“Eu preciso morrer”

Deus concedeu a São Filipe Néri o dom da bilocação, como atesta um episódio passado entre ele e a bem‑aventurada Catarina de Ricci, dominicana. Esta se achava na cidade de Prato, e São Filipe, em Roma. Ora, aquela pode vê‑lo e conversar com ele, e quando o santo foi informado disso, concordou que tudo quanto ela tinha dito era verdade. O próprio São Filipe admitiu que tinha conversado com Catarina, sem que esta tivesse ido a Roma, nem o corpo dele tivesse ido a Pratto.

Ou seja, foi um fenômeno de bilocação, muito pouco freqüente, mesmo entre os santos.

Por fim, no dia de Corpus Christi de 1595, São Filipe, após ter recitado o Ofício, celebrado a Missa e confessado pela última vez um grande número de penitentes, aos quais recomendava, sobretudo, ler a Vida dos santos, deitou-se na cama, dizendo: “Eu preciso morrer”.

O médico foi chamado, examinou‑o e disse que ele estava mais bem disposto do que nunca. Três horas depois São Filipe expirava docemente, assistido pelo Cardeal Baronius, um dos seus primeiros colaboradores. A Rainha do Céu recebeu sua alma.

Das considerações desses fatos tão edificantes, além dos exemplos de virtudes a serem por nós imitadas, depreende-se a idéia do que foi a florescência da Europa católica de antigas eras. Parafraseando a expressão de Leão XIII, diríamos: tempo houve em que os santos se encontravam nas ruas, cruzavam seus olhares e a luz da santidade de um repercutia na do outro, multiplicando-se e operando milagres. Felizes tempos.

 

(Extraído de conferência em 8/10/1973)

 

1) Cf. Rohrbacher, Histoire Universelle de L’Église Catholique, 1872, vol. 10, p. 347 ss.

São Gregório VII

São Gregório VII — conforme meu modesto entender, o maior Papa que a Igreja teve — foi terrivelmente perseguido pelo mais famoso potentado daquele tempo, o Imperador do Sacro Império Romano-Alemão.

Ele estava exilado de Roma, e após mudar de castelo para castelo, de convento para convento, de abadia para abadia, seu corpo foi enfraquecendo aos poucos. Quando sentiu aproximar-se a morte, ele disse: “Justitiam dilexit et odivit iniquitatem, propterea morior in exilium — amei a justiça e odiei a iniquidade; por causa disso, morro no exílio”.

Os sofrimentos dele foram incalculáveis. Porém, ele os aguentou e compareceu diante de Deus com a taça da dor bebida inteiramente.

(Extraído de conferência de 2/11/1991)

Homem semelhante a uma catedral

O que é uma pessoa venerável? É aquela dotada de uma especial profundidade de espírito adquirida pelo estudo, pela experiência, pela meditação; que possui uma têmpera, uma constância e uma força de vontade incomuns, por onde, mesmo em circunstâncias adversas, com sacrifício de sua saúde, de seu conforto, de sua riqueza, de sua própria existência, tendo traçado uma linha de conduta boa, ­seguiu-a até o fim.

A presença da pessoa venerável incute respeito, os outros amam de ver aquela venerabilidade e têm uma tendência natural a prestar reverência, a obsequiar, como quem pratica um ato de justiça. É próprio ao espírito da Igreja Católica comunicar uma nota de venerabilidade a tudo.

Como eu gostaria de ter conhecido São Beda, o Venerável! Como me atrai imaginar seu porte, mais parecido com o de um monumento do que de um ser humano, quando um homem vai tomando tais ares, que se assemelha a uma catedral!

Então, contemplar São Beda, o Venerável, ajoelhar-me diante dele, oscular seus pés e implorar que ele me obtivesse de Nossa Senhora algo dessa venerabilidade, sem a qual ninguém é autenticamente católico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1970)

Nossa Senhora Auxiliadora bondade e misericórdia incansáveis

Desde menino, quando se viu atendido pela Auxiliadora dos Cristãos em penoso momento de sua vida — a Ela rezando um peculiar e fervoroso “Salvai-me Rainha”(1) —, Dr. Plinio nutriu particular devoção a esse título de Maria Santíssima. E como podemos comprovar pelas palavras que seguem, não perdia ensejo de recomendá-la a seus discípulos, mostrando-lhes as maravilhas de clemência e solicitude maternas que nos coloca ao alcance tal invocação.

 

Segundo o ensinamento da Igreja, as maiores glórias de Nossa Senhora redundam do fato de sua maternidade divina. Ou seja, porque eleita para ser a Mãe do Verbo Encarnado, foram-Lhe concedidos todos os demais augustos privilégios e dons excepcionais. Entre seus grandes títulos estão os de Imaculada Conceição, Co-redentora do gênero humano, Medianeira Universal de todas as graças, etc.

Apesar de assim louvarmos e cultuarmos de modo especial a Santíssima Virgem, a invocação de Nossa Senhora Auxiliadora nos é muito cara, e com invulgar insistência a dizemos para implorar a misericórdia de Maria.

Mãe que conhece e atende a todas as nossas necessidades

Explica-se. Sendo Ela Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, é também Mãe nossa, permanentemente disposta a nos ajudar em tudo aquilo que precisamos. São Luís Maria Grignion de Montfort faz uma comparação que pode parecer exagerada, porém inteiramente verdadeira: se uma mãe, com um único filho, reunisse em seu coração todas as formas e graus de ternura que todas as mães do mundo têm por seus filhos, ela o amaria menos do que Nossa Senhora preza todos e cada um dos homens.

Assim, Maria Santíssima quer tanto a cada um — por mais desvalido, desencaminhado, espiritualmente trôpego que seja, ou nada valha — que, voltando-se este para Ela, seu primeiro movimento é de amor e auxílio. Nossa Senhora nos acompanha antes mesmo de nos dirigirmos a Ela. Tem ciência do que acontece com todos os homens, em qualquer lugar, sabe de todas as nossas necessidades e, por sua intercessão, nos alcança de Deus as graças que são importantes para nossa perseverança e santificação. Quando nos dirigimos a Ela, como que a primeira pergunta d’Ela para nós é esta: “Meu filho, o que queres?”

Graus inexcogitáveis de misericórdia

Outra afirmação, igualmente verídica, é esta: se o próprio Judas Iscariotes — depois de ter vendido Nosso Senhor e caminhado para o local onde se enforcou — tivesse tido um movimento de devoção à Mãe de Deus, rezado a Ela, obteria um apoio. Quer dizer, se A procurasse e lhe dissesse: “Eu não sou digno de chegar próximo de Vós, de Vos olhar, de me dirigir a Vós, sou Judas, o imundo… Mas, vós sois minha Mãe, tende pena de mim”, Ela o teria recebido com bondade. Ela acolheria com benevolência o filho cujo nome é sinônimo de horror: Judas Iscariotes.

É-nos difícil ter sempre presente essa noção da imensidade da misericórdia de Maria. Em nossa miséria, muitas vezes somos daqueles que não creem porque não vêem. Não duvidamos, mas esquecemos das graças recebidas neste sentido. Tentados, somos levados a pensar: “Aconteceu-me isto, aquilo, aquilo outro, pedi a Nossa Senhora e não fui socorrido. Sê-lo-ei agora? Certo, Ela é Mãe de misericórdia, mas, às vezes, não sinto sua ajuda…”

Mais do que nunca, nessas horas, devemos dizer: “Auxílio dos Cristãos, rogai por nós!”. Quando não compreendemos uma situação nem sabemos como dela sair, o que vai nos acontecer, etc., precisamos repetir com insistência: “Auxílio dos Cristãos! Auxílio dos Cristãos! Auxílio dos Cristãos!”. Para a Mãe de Deus, todo problema tem solução. Às vezes não a vemos, mas Ela já está dando ao caso um monumental e favorável desfecho.

Auxílio especial nas aparentes catástrofes

Quando me lembro da história das catástrofes pelas quais passou nosso movimento, nossos reerguimentos, nossa dolorida e gloriosa avenida de becos sem saída, pergunto-me: “Se Ela me desse para escolher entre a via dos becos sem saída e qualquer outro dos caminhos que eu imaginava para nossa obra, qual eu teria preferido?” Eu responderia: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, a avenida dos becos sem saída!”

É a via do inexplicável, da catástrofe aparente, da derrota, do arrasamento, mas também a da vitória que se afirma. Como é bela essa via, porque é o caminho triunfal de Nossa Senhora. Ela transforma uma estrada esquartejada em becos numa linda e desimpedida avenida. Compreende-se, assim, como a Virgem Santíssima, Auxiliadora dos Cristãos, opera verdadeiras maravilhas, sobretudo nos momentos em que tudo nos parece mais difícil e a solução menos alcançável.

A batalha de Lepanto

Temos um célebre exemplo dessa intervenção misericordiosa e decisiva de Maria Santíssima em nossos momentos de apuro: a batalha de Lepanto, em 1571, episódio histórico que se relaciona com a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Sucintamente, recordemos que a esquadra católica se achava em número muito inferior à do adversário, e via-se com isso votada a uma derrota com funestas conseqüências para a Igreja naquela época. Porém, em certo momento do confronto, aparentemente sem explicação, os inimigos abandonam a luta e fogem. Contudo, nos anais redigidos pelos próprios componentes da esquadra maometana, pode-se ler: Os nossos navios debandaram porque uma Dama terrível apareceu no céu e nos olhava com ar de ameaça tal que nos causou pânico.

Quer dizer, os católicos, embora em número menor, não cessaram de confiar na proteção de Maria, e Ela os socorreu. Conta-se que, naquele mesmo instante da vitória, o Papa São Pio V se encontrava numa de suas salas no Vaticano, e rezava o Rosário, rogando o especial amparo da Auxiliadora dos Cristãos. Em certo momento, o Pontífice se volta aos que o acompanhavam, e diz: “Uma grande vitória foi obtida por Dom João d’Áustria, comandante da esquadra cristã!”

A partir de então o Papa incluiu a invocação Auxilium Christianorum na Ladainha Lauretana, e a Ela devemos recorrer em todas as circunstâncias de nossa vida e na hora de nossa morte, quando estivermos no último alento. Antes de exalarmos o derradeiro suspiro, digamos: “Auxílio dos Cristãos, rogai por mim” — e o Céu se abrirá para nós.

Errônea concepção da vida sem caridade

Antes de concluirmos essas considerações, convém insistir num ponto de particular valia para nós.

No mundo contemporâneo não é raro que alguém se deixe levar pela ideia de que os relacionamentos devem se basear numa troca de direitos e deveres, exclusivamente. Ou seja, cada homem tem determinados direitos que implicam em deveres de outrem para com ele. Uma vez respeitados tais direitos, o homem tem suas necessidades atendidas.

Portanto, o ato de bondade, de caridade, de amor ao próximo, inteiramente gratuito, não tem razão de ser. Se os direitos não são acolhidos, cumpre exigi-los, como se cobra uma letra de câmbio. Consoante tal mentalidade, todas as relações humanas se reduziriam a um sistema de cheques. Então, a verdadeira noção de caridade — que compreende prestações de serviço realizadas por amor, bondade, simpatia, a concessão gratuita de vantagens, etc. — desaparece. Mais ainda. Atrapalha a vida social, fundamentada na estrita justiça, transtorna o convívio dos homens, baseado num jogo de exigências. Se alguém pretendesse receber mais do que lhe é necessário, o indivíduo infectado por essa concepção responderia: “Dou-lhe aquilo a que apenas tem direito. Se quiser mais, mereça!”

Se uma pessoa transpõe esse modo de ver as coisas para a ordem sobrenatural, dirá: “Não compreendo a misericórdia de Deus para comigo, pois Ele está disposto a me perdoar e a me ajudar, mesmo quando não O agrado. Se agi mal, que Ele me puna, pois é a atitude lógica. Caridade, bondade… são coisas que não têm sentido. Baseio-me nos meus direitos, os quais Deus precisa atender”.

Socorro baseado numa relação impregnada de bondade

Ora, essa não é a mentalidade com a qual devemos considerar nossa vida terrena, e muito menos a nossa vida de piedade, nosso relacionamento com Deus.

Com efeito, o convívio humano, quando bem entendido e praticado, fundamenta-se em grande parte na solicitude e na compaixão de uns para com os outros, sobretudo dos que têm mais em relação aos que têm menos.

Que dizer, então, do trato de Deus conosco? Esse comércio tem como um dos seus fatores preponderantes a bondade, e bondade gratuita, a efusão de caridade, de misericórdia, compaixão, assistência contínua. E diante de Deus, devemos nos sentir pequeninos, impotentes, encontrando a razão de esperar clemência em nossa própria pequenez, até em nossa fraqueza quando pecamos.

Deus nos amou gratuitamente, e quer de nós que também O amemos. Estamos cumulados de dívidas, e o único meio de saldá-las consiste em manifestarmos esse amor e essa adoração a Deus. Em segundo lugar, compreendendo humildemente que necessitamos da ajuda divina, como o filho depende do pai, sem estar fazendo grandes contabilidades, e sim recebendo tudo d’Ele — eu diria — com uma espécie de santa sem-cerimônia.

Com esse pressuposto, entendemos melhor o fundamento do título de Nossa Senhora Auxiliadora. Pois o que se diz sobre a infinita bondade de Deus para conosco, devemos dizê-lo da insondável solicitude de Maria em relação a seus filhos. Ela nos ajuda a todo momento, nos dispensando misericórdia e favores aos quais não teríamos direito, e nos concede tudo isto com uma superabundância de amor, de sorrisos, de perdão, muitas vezes dando-nos o que não pedimos, ou mais do que rogamos, e até movendo nosso coração para aceitar benefícios que não queríamos receber.

Portanto, a ideia do auxílio de Nossa Senhora está toda pervadida pelo princípio de que as relações entre o homem e Deus são baseadas não apenas na justiça, mas em larguíssima parte na misericórdia, na generosidade sem limites, na benevolência e na gratuidade de favores.

Razões a mais para nunca deixarmos de invocá-La: Auxílio dos Cristãos, rogai por nós.

 

 

1) Cfr. “Dr. Plinio” número 1, abril de 1998

 

LOBOS E OVELHAS

A imprudência ou ingenuidade de quem, em seu apostolado, põe em perigo sua própria alma ou a tranqüilidade do aprisco, não pode ser chamada de zelo. Dr. Plinio rebate algumas teses em vigor  nos anos 40, que confundiam o carinho do Bom Pastor com a temeridade mais peculiar das… virgens loucas!

 

Em anteriores ocasiões acentuamos os graves inconvenientes a que muitos católicos expõem a Igreja, cancelando inteiramente de seus processos de ação quaisquer manifestações de energia.

Resumindo em duas palavras a doutrina que sustentamos, lembraremos apenas a nossos leitores que o Evangelho contém, a respeito de apostolado, duas parábolas de máxima importância, nenhuma das quais deve ser esquecida em benefício da outra.

É injustificável abrir o redil ao lobo mascarado de ovelha

Nosso Senhor fala em ovelhas perdidas e em lobos com pele de ovelha. Quem visse nas ovelhas desgarradas do redil apenas lobos vorazes disfarçados com a pele de suas vítimas não poderia,  evidentemente, ser o bom pastor que vai ao longe, enfrentando perigos e desprezando fadigas, salvar a ovelha perdida. Que dizer, entretanto, do católico que, até o contrário, vencendo obstáculos sem conta, desce ao fundo do abismo, com perigo para si mesmo, e ali recolhe carinhosamente um lobo astuto, afagando-lhe com meiguice a fingida pele de carneiro; que abrisse triunfante com sua “conquista” as portas do redil, soltasse ali o fruto de seu caridoso apostolado, e, depois de um prolongado e terno olhar para o gáudio com que a nova “ovelhinha” se encontrava em  “confraternização” com as demais, fosse dormir sobre os louros de tão brilhante feito?

É evidente que qualquer católico leigo que queira proceder com prudência deve preferir, a introduzir um lobo no aprisco do Bom Pastor, correr o risco de deixar de fora alguma ovelha inocente. O  conselho parece cruel? E, porventura, não será ainda mais cruel expor a risco grave e real todo o aprisco?

Costuma-se repetir com muita razão que há mais alegria no Céu por um pecador que se converte do que por cem justos que perseveram. Mas esta afirmação do Evangelho não pode deixar de ser  considerada em conjunto com as tremendas ameaças com que Nosso Senhor fulmina  aqueles que, de qualquer maneira, concorrem para a perdição das almas que já se encontravam no caminho da virtude. Ao indivíduo que por imperícia, consciente ou inconscientemente culposa, abrisse o redil ao lobo mascarado de ovelha, se aplicaria com toda a propriedade a expressão de Nosso  Senhor : “Melhor seria para ele que lhe atassem uma pedra de mó no pescoço e o atirassem ao fundo do mar”.

E não lhe valeria como escusa o ter agido por excesso de zelo no temor de sacrificar uma ovelha possivelmente inocente. No Céu há realmente mais alegria por um pecador que faz penitência do  que por noventa e nove justos que perseveram. Mas, por isto mesmo, precisamente porque passar do pecado ao estado de graça é a maior das venturas, decair deste estado para o de pecado é desventura não menor. Logo, não se poderia pretender que a conversão de uma alma recompense a Nosso Senhor os riscos que com isso se faça correr a outra alma.

Pensar de modo diverso seria blasfemar contra Deus, atribuindo-Lhe maldade por dois títulos:

a) supondo que a Providência não dispusesse outros meios para a salvação da ovelha inocente sacrificada pela razoável prudência do pastor avisado;

b) imaginando que Deus dispõe das almas como o jogador de roleta usa de suas moedas, e de bom grado se expõe ao risco de perder uma delas a fim de ganhar, se bem sucedido, duas, dez ou cem. Preconizar tais aventuras apostólicas é entrar em conflito com a economia da Providência. E ninguém ignora o que acontece a quem zomba da Providência de Deus.

A corrupção do mundo moderno não se cura com simples sorrisos

É curioso que, em uma época de cavilosas maquinações, em conseqüência das quais países inteiros têm desabado como que devorados pelo caruncho de conspirações a modo de quinta coluna; em uma época em que [os adversários da Igreja] tomam ares de sacristão para melhor iludir os fiéis; é precisamente nesta época que, em certos círculos católicos, ganha terreno um otimismo ingênuo e eufórico, para o qual toda a malícia do mundo contemporâneo, toda a corrupção, toda lascívia, todo desbragado egoísmo de nossa sociedade contemporânea, da qual Pio XI escreveu que está na iminência de se tornar pior do que era antes de Nosso Senhor; que tudo isso não passa de um equívoco. E de um equívoco tão tênue que, com uma meia dúzia de sorrisos este mundo será o melhor dos mundos.

O paganismo antigo foi vencido pelas preces dos eremitas, pelo sangue dos mártires e pelos suores dos evangelizadores. Lendo-se, entretanto, certos tratados […], tem-se a impressão de que o mundo moderno pode ser regenerado com os simples sorrisos desses novos apóstolos, mais felizes do que Orfeu, pois que nem sequer precisam de flauta para amansar as feras.

Perdoem-nos certos confrades no apostolado, disseminados um pouco por toda a parte neste imenso Brasil, e para os quais escrevemos este artigo, se nesta última comparação entrou alguma  ironia, aliás muito explicável na pena de quem está escrevendo depois de todo um dia de afanoso trabalho. Mas, causa-me horror verificar uma certa maré montante de ingenuidade que  diariamente produz as mais novas e variadas manifestações, e ganha dia a dia mais terreno.

Lembrem-se estes amigos a quem tanto amo em Nosso Senhor, que o apóstolo leigo que não tiver desenvolvido todos os seus recursos a fim de precaver contra os lobos as ovelhas do Bom Pastor,  não poderá no leito de morte fazer a sublime oração de Nosso Senhor: “Meu Pai, dou-Vos graças porque, daqueles que me destes, a nenhum perdi”.

Plinio Corrêa de Oliveira Extraído do “Legionário”, nº 473, de 5/10/1941. Subtítulos nossos.)

Revista Dr Plinio 74 (Maio de 2004)

Características da Revolução

Processo cinco vezes secular, a Revolução tem sua raiz nos problemas de alma mais profundos, de onde se estende para todos os aspectos da personalidade do homem contemporâneo e todas as suas atividades. E nesse pernicioso afã de desordem manifesta ela, como nos aponta Dr. Plinio, algumas características fundamentais.

 

Quais os principais aspectos da Revolução?

Designando a Revolução com o termo “crise”, Dr. Plinio afirma: “Por mais profundos que sejam os fatores de diversificação dessa crise nos vários países hodiernos, ela conserva, sempre, cinco caracteres capitais”: é universal, una, total, dominante e processiva (pp. 22 e ss.).

Como um grande incêndio

Por que a Revolução é universal?

“Essa crise é universal. Não há hoje povo que não esteja atingido por ela, em grau maior ou menor” (p. 22).

Em que sentido a Revolução é una?

“Essa crise é una. Isto é, não se trata de um conjunto de crises que se desenvolvem paralela e autonomamente em cada país, ligadas entre si por algumas analogias mais ou menos relevantes.

“Quando ocorre um incêndio numa floresta, não é possível considerar o fenômeno como se fosse mil incêndios autônomos e paralelos, de mil árvores vizinhas umas das outras. A unidade do fenômeno “combustão”, exercendo‑se sobre a unidade viva que é a floresta, e a circunstância de que a grande força de expansão das chamas resulta de um calor no qual se fundem e se multiplicam as incontáveis chamas das diversas árvores, tudo, enfim, contribui para que o incêndio da floresta seja um fato único, englobando numa realidade total os mil incêndios parciais, por mais diferente, aliás, que cada um destes seja em seus acidentes” (pp. 22-23).

Depois da crise, restam vestígios de Cristandade

Explique a unicidade da Revolução que atingiu a Cristandade.

“A Cristandade ocidental constituiu um só todo, que transcendia os vários países cristãos, sem os absorver. Nessa unidade viva se operou uma crise que acabou por atingi‑la toda inteira, pelo calor somado e, mais do que isto, fundido, das sempre mais numerosas crises locais que há séculos se vêm interpenetrando e entreajudando ininterruptamente. Em conseqüência, a Cristandade, enquanto família de Estados oficialmente católicos, de há muito cessou de existir. Dela restam como vestígios os povos ocidentais e cristãos. E todos se encontram presentemente em agonia sob a ação deste mesmo mal” (p. 23).

Rainha à qual obedecem as forças do caos

Por que a Revolução é total?

“Considerada em um dado país, essa crise se desenvolve numa zona de problemas tão profunda, que ela se prolonga ou se desdobra, pela própria ordem das coisas, em todas as potências da alma, em todos os campos da cultura, em todos os domínios, enfim, da ação do homem” (p. 24).

Face aos acontecimentos caóticos atuais, como explicar que a Revolução seja dominante?

“Encarados superficialmente, os acontecimentos dos nossos dias parecem um emaranhado caótico e inextricável, e de fato o são de muitos pontos de vista.

“Entretanto, podem‑se discernir resultantes, profundamente coerentes e vigorosas, da conjunção de tantas forças desvairadas, desde que estas sejam consideradas do ângulo da grande crise de que tratamos.

“Com efeito, ao impulso dessas forças em delírio, as nações ocidentais vão sendo gradualmente impelidas para um estado de coisas que se vai delineando igual em todas elas, e diametralmente oposto à civilização cristã.

“De onde se vê que essa crise é como uma rainha a que todas as forças do caos servem como instrumentos eficientes e dóceis” (p. 24)(1). v

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 110 (Maio de 2007)

 

1 ) Editora Retornarei, São Paulo, 2002, 5ª edição em português.

Renunciar-se a si próprio para seguir o Redentor

Após um retiro espiritual, o objetivo de alcançar a santidade, sob o impulso da graça de Deus, implica em que as verdades tão corajosamente meditadas e as resoluções tão generosamente tomadas sejam levadas até o fim, consoante os ditames propostos pelos Exercícios de Santo Inácio de Loyola. Com esse ensinamento, Dr. Plinio conclui sua conferência no marco das celebrações do IV Centenário da Companhia de Jesus.

 

As verdades claras e simples, afirmadas nos Exercícios Espirituais nem por isso deixam de ser profundas e fundamentais. Constituem elas os grandes princípios que devem dirigir toda a conduta do cristão. Por isto, é incontável o número de conseqüências que nelas pode encontrar o retirante.

Questões terríveis e luminosas que elevam a alma

Daí um longo trabalho — fecundo somente se for pessoal — que o retirante deve levar a cabo: a fixação das linhas ideais de toda a existência cristãmente vivida. Qual a conduta que deve ter em sua vida familiar, social, profissional, política, o homem persuadido de que foi criado para a glória de Deus? Quais os deveres que essa grande verdade, ao mesmo tempo tão terrível e tão suave, lhe impõe para com a Igreja, as almas, a civilização cristã? Que perderá ele ao transgredir estes deveres, ou ao lhes dar um desempenho superficial e fraudulento? Que lucrará com sua prática honesta e integral? Qual a razão que precisa movê-lo a cumprir estas obrigações por puro amor de Deus, abstração feita até mesmo das punições ou das recompensas eternas?

Questões terríveis e luminosas, as quais, se de um lado mostram ao homem, por vezes, uma longa jornada a vencer nos caminhos ásperos da santificação, de outro lhe franqueiam o acesso a píncaros dourados pelo sol, radiantes de glória e de grandeza, certamente muito diversos dos vales lamacentos ou das grotas sombrias em que se arrasta habitualmente a fragilidade humana.

Diz Santo Agostinho que “Deus não deixa a fragilidade sem remédio, nem a culpa sem punição”. Esta frase admirável encontra nos Exercícios de Santo Inácio sua plena demonstração.

“Deus que nos criou sem nós, não nos salvará sem nós”

Fala-se muito, em nossos dias, da debilidade humana e, certamente, o aspecto das ruínas generalizadas que nos circundam sugere, a todo o passo, a lembrança de nossas misérias. Mas os espíritos vãos que a toda hora se comprazem em lembrar nossa fragilidade, não têm em vista que “Deus não a deixa sem remédio”. Portanto, se somos fracos, temos culpa por nossa fraqueza. Se o homem é fraco, a graça é forte. Sem Jesus Cristo, ele “nada pode fazer”. Porém, fortalecido pelo Senhor, “tudo pode n’Aquele que o conforta”.

Assim, por mais duros que sejam os deveres — discernidos por nosso olhar quando iluminado pelos clarões por vezes implacáveis, que se desprendem dos Exercícios de Santo Inácio — não há em nossa fraqueza qualquer desculpa que legitime nossos recuos, nossa covardia e nossos indefinidos estacionamentos nos abismos do pecado, ou nos charcos da mediocridade. Conhecendo toda a necessidade do socorro divino, Santo Inácio aconselha reiteradamente a prece, no período dos Exercícios Espirituais. Mas, a oração não basta. Como diz Santo Agostinho, “Deus que nos criou sem nós, não nos salvará sem nós”.

Santo Inácio pede, quer, exige uma cooperação fiel de todas as potências de nossa alma para a obra da salvação e santificação. De nada valerão seus Exercícios aos retirantes dispostos a ver apenas as verdades cômodas. De valor igualmente nulo serão para aqueles que, tendo atingido o ideal de uma vida cristã comum, ou uma existência inteiramente santificada pela prática da perfeição, não se entregarem resolutamente à segunda tarefa, consistente no confronto implacável da vida que levam, das resoluções que haviam formado, dos projetos que vinham nutrindo, com a linha de conduta que acabamos de traçar.

O motivo de tanto ódio aos exercícios espirituais

Sem qualquer receio de erro, pode-se afirmar que nesta dolorosa operação se acha o motivo profundo de tantas animadversões que os Exercícios de Santo Inácio têm suscitado. Com efeito, a alma pecadora que não quer regenerar-se odeia estes processos de cura espiritual; e à alma tíbia, não desejando subir mais alto nas vias da santificação, repugna este método que põe a nu, de modo tão inclemente e vigoroso, os remorsos que se extinguiam discretamente, sob as cinzas de uma longa vida de piedade toda feita do cumprimento de deveres sem importância, de minúsculos progressos sem significação real.

Almas fracas, almas míopes, que não cumprem os pequenos deveres nem realizam os diminutos progressos como meio para chegar aos grandes, mas como uma evasão dissimulada, um álibi inútil, procurando enganar sua consciência e o próprio Deus. Certamente, pelo despeito causados por estas verdades aos que as rejeitam, explica-se em última análise o ódio militante que se ergue não raras vezes contra os Exercícios de Santo Inácio. Mas este ódio é o que (…) a Igreja sem cessar despertará entre os filhos da serpente, irredutivelmente adversários dos filhos da Virgem.

Cumpre estabelecer resoluções

Terminada a tarefa do exame de consciência, ainda há outra. É a formação das resoluções. Não basta que a vontade conceba propósitos genéricos e imprecisos, ou engendre apenas veleidades ineficazes. Santo Inácio quer propósitos firmes e fecundos, que recaem sobre objetos determinados e precisos, e, com esta salutar recomendação, mais uma vez tolhe ele os subterfúgios conscientes ou inconscientes dos retirantes pusilânimes. É preciso chegar até o fim, traduzir em atos as verdades tão corajosamente meditadas, as resoluções tão generosamente tomadas. Mas os atos só nascerão das resoluções firmes e precisas, nítidas e práticas, cujo cumprimento só se realiza com todas as previdências concretas e particularíssimas, que cada situação especial exigir.

Ordenar a sensibilidade para alcançar a perfeição

Mas… e a sensibilidade? Quantas vezes geme um pobre coração humano ao passar por esta via de angústia que conduz à santidade! Quanta renúncia dolorosa! Quanta ruptura trágica! Quanto heroísmo incrivelmente pesado é por vezes necessário para o prosseguimento nas vias luminosas, mas ásperas, da santificação! Santo Inácio não seria o grande Doutor da vida espiritual que foi, se não se preocupasse com a sensibilidade. Erram, e de modo frisante, os que supõem que a ascética inaciana implica na extinção da sensibilidade humana. Em quantos trechos de seus Exercícios, exige Santo Inácio de Loyola que se faça o que ele chama a “composição de lugar”? E o que é essa prática senão um meio de que ele se serve para impressionar a sensibilidade, facilitando-lhe assim a obediência ao império da razão e da vontade? Não recomenda Santo Inácio que meditemos apenas sobre as grandes verdades, mas recomponhamos os quadros das cenas; quer que vejamos, ouçamos, sintamos pela imaginação tudo quanto ele nos manda meditar. E, assim, tende ele a substituir na imaginação e na sensibilidade as impressões que arrastam para o pecado, por aquelas que levam ao Céu.

Se se pensa, pois, que a sensibilidade ocupa na ascética inaciana um lugar de ré condenada ao patíbulo, erra-se. Mas é certo — e nisto está uma das mais salientes características da espiritualidade de Santo Inácio — que, talvez melhor do que ninguém, ele põe claramente o homem diante do dever de reprimir sem piedade, de abater sem falsa misericórdia, de abafar sem vacilações nem recuos, os movimentos desordenados, os caprichos infundados, as petulâncias criminosas ou os sentimentalismos mórbidos que o pecado original deixou em nossa sensibilidade. Disse Nosso Senhor que o homem deve renunciar-se a si próprio para segui-Lo. Sem esta renúncia, não há santificação possível. E a escola que pretendesse articular uma escada que chegasse ao Céu sem essa renúncia teria, na realidade, aberto mais um abismo para atirar as almas ao inferno.

“Ponde Jesus no vosso caminho de espinhos”

Falei-vos, meus senhores, com aquela franqueza que caracteriza os próprios Exercícios Espirituais. Deverei dizer-vos que, assim procedendo, tive a antecipada certeza de que não obteria aplausos unânimes, nem simpatias gerais, senão deste nobre auditório, ao menos daqueles a quem chegar depois de impressa, esta singela palestra. Muitos são em nossa época os que se revoltam contra o dever, porque se insurgiram temerariamente contra toda a lei e todo o freio. Como agradar-lhes, fazendo a descrição de um método espiritual que é o mais eficaz para reintegrar o homem na prática dos mandamentos e no cumprimento dos deveres? Não menos numerosos são os amigos das meias verdades, das “verdades” adocicadas, simpáticas, polidas, incapazes de inquietar a quem quer que seja, e aptas a proporcionar a um auditório alguns minutos de delicado prazer intelectual.

Suponho que não poucos defensores da verdade estremecem quando a vêem, inteiriça e sem véus, erguer-se aos olhos do mundo. Entretanto, não consistem em dissimulações ou recuos os métodos da Igreja. Quem segue a Jesus Cristo não deve temer as perseguições que vierem ao seu encalço. Almas retas, almas nobres, almas sedentas de verdade e de bem, é a vós que me dirijo. Vossa vida será, talvez, repleta de fardos e dores, e tereis possivelmente receio de acrescentar a tantos fardos mais um, a tantas dores mais uma.

Houve uma alma contemplativa, provada por mil sofrimentos, que se viu em sonhos percorrendo um caminho cheio de cardos, no qual seus pés se laceravam cruelmente. Apareceu, entretanto, o Salvador, e começou a seguir o mesmo trajeto. E por toda a parte onde seus divinos pés pousavam, ficava uma marca impressa no solo. A alma contemplativa fez sobre estas sacratíssimas pegadas seu caminho, e conseguiu andar com desenvoltura e sem dores, pela estrada onde há pouco conseguia apenas arrastar-se.

Ponde Jesus no vosso caminho de espinhos, segui suas pegadas e vereis como se mitigarão os sofrimentos que não conseguistes suportar, ou suportareis as dores que não for possível mitigar.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído dos Anais do IV Centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)