Desassombro, coragem e galhardia

Ao contrário do que pretendem alguns espíritos exageradamente pacifistas, segundo os quais qualquer forma de perigo deve ser afastada da vida, o ser humano por sua natureza, a mais elevada e nobre das criaturas tem um certo gosto do risco. Essa afeição é um dos elementos que trazem felicidade para a existência. E, não raras vezes, afastar de alguém o risco pode causar-lhe grande prejuízo.

Este princípio torna-se mais compreensível e aceitável quando se considera, por exemplo, as touradas ibéricas. Especialmente aquelas em que o toureiro se lança a cavalo na arena.

É impossível não sentir a impressão de risco que transmite a marcha do cavaleiro e de sua montaria diante do perigo. Nota-se o prazer, uma espécie de alegria, de euforia mesmo, em se atirarem naquela situação desafiadora. E parece que o risco produz, psicologicamente, no cavalo e no cavaleiro, como um arejamento fresco e agradável. E que espetáculo! Cavalgar dentro da aventura e do imprevisto; improvisar as manobras que devem ser executadas; avançar, recuar, atacar, defender… tudo realizado de acordo com uma certa regra interior, que faz exatamente o esplendor da tourada!

Em geral, o cavalo corre de modo extraordinário, com um passo lindo e audacioso. Dir-se-ia não é assim, pois trata-se de puro instinto que o animal possui uma noção raciocinada do que se está passando, e acha uma verdadeira beleza jogar-se para frente e raspar no perigo. Tem-se a impressão de um bem-estar do cavalo, no momento em que o touro avança, quase o toca, e ele se esquiva com donaire, como se dissesse: “Touro, tu não és senão touro; eu sou cavalo. Sou elegância, força e garbo. Você é massa bruta! E por causa disso, posso raspar-me em você, posso até permitir que seu chifre me risque, e eu ter a alegria de roçar pelo perigo e sair vitorioso!”

Curiosamente, essas reações do cavalo lembram certas atitudes do espírito humano colocado diante do perigo, em várias circunstâncias do quotidiano nesta terra: não só quando a vida está ameaçada, mas numa jogada política, numa polêmica acirrada, num negócio arriscado, num empreendimento difícil, etc., há pessoas que se saem como o cavalo diante do touro.

E se este segundo animal é a força bruta, sem expressão nem nada de humano em sua postura, já no primeiro há qualquer coisa de sobre-animal, parecendo transcender não o faz, claro está a mera condição de bicho e participar em algo do reino dos homens, pelas atitudes que demonstra na arena. Característica esta que nos leva a admirar outro interessante aspecto desse tipo de tourada.

O autêntico cavaleiro sabe transmitir alguma coisa de sua personalidade à montaria. E vê-se que, ao enfrentar o touro, o cavalo compartilha do heroísmo do toureiro. Geralmente, este é esguio, destro, cheio de movimentos ágeis, e quando ele mesmo raspa pelo perigo, sente euforia. Quando executa a manobra para cravar a “banderilha” no touro, e quase é atingido pelos chifres de seu adversário, ele seria comparável a um homem que está tomando o melhor trago de rico licor. É o licor do risco! O delicioso licor que o pacifista exagerado de nossos dias não sabe compreender nem apreciar…

Quando se esquivam do  oponente, a atitude do cavaleiro e do cavalo  não é a de dar as costas e se pôr a correr. Eles saem de lado, procurando contornar o touro para lhe fincar mais uma farpa. É a imagem da “distância psíquica”, de um inteiro domínio de si, calculado e ativo. Pode-se olhar para o toureiro e para o cavalo: ambos estão numa posição em que não têm medo. Não perderam a noção da realidade e só estão procurando dar uma volta, com elegância e distinção, para atacar com mais eficácia!

É este um lado esplendoroso da luta entre cavaleiro e touro que nos faz considerar um outro aspecto da vida humana: o gosto que tem o homem justo, colocado na presença do mal, diante de ignomínias insuportáveis que se propagam e não podem ser contidas senão pela força, de enfrentá-las e de vencê-las, obedecendo aos altos desígnios de uma Fé sumamente equilibrada. Então ele, obrigado a atacar, avança e subjuga.

É realmente belo que o homem,  em presença do mal, o goste de calcar aos pés. E a sensação do golpe atingindo o alvo, é uma experiência na qual o homem se realiza inteiro!

Por fim, um outro aspecto a se contemplar nas touradas a cavalo. Durante todo o certame, não se vê nada de teatral no toureiro. Ele não presta uma atenção vaidosa em si. Mas está sempre vigilante, e por isso não tem receio de que a coragem lhe pregue alguma peça nos momentos decisivos. Naturalmente, conhece à saciedade o seu “métier”, está muito bem treinado, e, note-se, todas as sensações que nascem nele na aparência, impulsivas e até irrefletidas são na verdade enriquecedoras da razão.

É o garbo, a galhardia, a coragem e o desassombro, o esplendor da “distância psíquica”, a vivacidade da inteligência e da varonilidade que enfrentam o perigo. São qualidades,  também elas, frutos da civilização cristã.

O maior tesouro de um povo

Sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e sutil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada “crescia em graça e santidade”. Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis.

Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o maximum de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da harmonia profunda e da veracidade cintilante dos princípios sobre os quais ela se construiu. Ninguém possuiu como ela o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural — mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria — e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela, brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma [grande] consonância de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstâncias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana “naturaliter christiana”(1) e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente.

Tocamos num ponto de importância fundamental. Todos os povos têm sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. (…) Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre os mesmos nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região. (…) Toda civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de se ajustar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região, e de cada povo. (…)

Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas várias nações da Europa medieval.

A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem-estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação. Eles têm uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído do “Legionário”,  nº 666, de 13/5/1945)

1 ) Naturalmente cristã.

Intercessora junto ao Divino Esposo

Como Esposa do Divino Espírito Santo, Maria possui um título especial para nossa devoção a Ela. Com efeito, tudo quanto diz respeito à Fé católica, à ortodoxia e à manutenção da fidelidade à Igreja deve ser considerado como fruto e obra da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade em nós.

Ora, enquanto Esposa do Espírito Santo, Nossa Senhora tem sobre Ele aquele poder que, no Antigo Testamento, tinha Ester sobre o rei Assuero. Assim como esta, por suas súplicas, tudo conseguiu do monarca em favor dos judeus, assim a Virgem Bendita pode nos alcançar de seu Divino Consorte um tal grau de união com Ele, uma tal abundância de graças das quais Ele é a fonte, que, sem a intercessão d’Ela, ser-nos-ia inteiramente impossível obter.

Plinio Corrêa de Oliveira

O PARAÍSO DO NOVO ADÃO

Conforme disse certa vez um autor sagrado, os verdadeiros devotos de Maria se sentem irresistivelmente atraídos uns pelos outros. É o caso de Dr. Plinio em relação a São Luís Maria Grignion de Montfort, cujos escritos foram, para ele, contínua fonte de inspiração. Nestas páginas ele volta a comentar as riquezas aí encontradas.

 

Uma das obras mais ricas e empolgantes sobre Nossa Senhora é, sem dúvida, o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort. Nele encontramos sempre ensinamentos que nos convidam a crescer no amor e na devoção a Ela, além de se prestarem a valiosos desdobramentos acerca das insondáveis e maravilhosas perfeições da Mãe de Deus.

Tomemos, por exemplo, um pequeno trecho desse magnífico Tratado, para comentá-lo passo a passo. Discorrendo sobre como devemos fazer todas as ações com Maria, em Maria e por Maria, explica o santo autor:

“Para compreender cabalmente essa prática, é preciso saber que a Santíssima Virgem é o verdadeiro paraíso terrestre do novo Adão, de que o antigo paraíso terrestre é apenas a figura. Há, portanto, nesse paraíso terrestre riqueza, belezas, raridades e doçuras inexplicáveis que o novo Adão, Jesus Cristo, aí deixou”.

Excelência interior de Nossa Senhora

Como se sabe, Adão foi criado no Paraíso Terrestre. Era o lugar de maravilhas, de esplendores, de felicidade, do qual ele e Eva foram expulsos, depois de caírem na tentação do demônio e prevaricarem contra os preceitos divinos. Contudo, aquele era o paraíso do primeiro homem.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo é considerado, a justo título, o segundo Adão. Quer dizer, aquele que veio resgatar a humanidade, tirá-la das sombras da morte e restabelecê-la no estado de graça, através da imolação que Ele fez de si mesmo no alto da Cruz. E assim como o primeiro Adão foi criado num paraíso, o novo Adão deveria ser criado igualmente num lugar de delícias imaculadas. Esse segundo paraíso é Nossa Senhora. Ou seja, tudo o que Éden terrestre tinha de belo e de esplêndido na sua realidade material, Maria possuía ainda mais belo e esplêndido na sua realidade espiritual.

E Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em Nossa Senhora, teve maior felicidade e contentamento do que Adão no seu paraíso, pois assim como o Filho de Deus era infinitamente superior a Adão, o paraíso d’Ele era insondavelmente mais precioso e excelente que o do primeiro homem. Por isso São Luís Grignion fala de “riquezas, belezas, raridades e doçuras” que existiam nele.

Tratam-se de aspectos distintos. Riqueza é a abundância das coisas úteis, e nem sempre envolve a beleza. Por outro lado, algo pode ser muito belo sem ser necessariamente rico, e pode ser raro, sem representar riqueza ou beleza especiais. Nesse novo Paraíso havia, portanto, extraordinárias raridades, belezas e riquezas espirituais, além de incomparáveis doçuras.

A doçura é uma qualidade que torna alguma coisa amena, agradável de trato, suave de contato. Por exemplo, o bem-estar que uma pessoa sente quando se encontra à sombra de determinadas árvores frondosas, a faz experimentar uma satisfação e uma harmonia que são diferentes da realidade da riqueza e da beleza. É o mesmo aconchego que se sente, aliás, à beira de um bonito lago, de um riacho ou, conforme o momento, à beira do mar. Enfim, há uma doçura que não se esgota nos termos de beleza, nem de riqueza, nem de raridade.

Nossa Senhora e a Igreja, perfeições recíprocas

E São Luís Grignion faz então um inventário desses quatro valores, para nos dizer que tudo isso existe em Nossa Senhora, e nos levar a compreender o que n’Ela há de riqueza, beleza, raridade e doçura. Desse modo, embora a Santíssima Virgem seja inesgotável, vamos adquirindo um conhecimento classificado das perfeições e magnificências contidas na sua alma. Por via de comparação, deveríamos proceder da mesma maneira em relação à Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Porque quase tudo que se diz de Nossa Senhora, se diz da Igreja; e, reciprocamente, quase tudo o que se diz da Igreja, se diz de Nossa Senhora. Maria é Mãe de Cristo, a Igreja é a Esposa Mística d’Ele, e entre a Mãe e a esposa existem essas correlações que facilmente podemos compreender.

Podendo conhecer a Igreja Católica, no que ela tem de essencial, no seu esplendor copioso que atravessou os séculos, também nos é dado distinguir suas riquezas, suas belezas, suas raridades e doçuras…

Dotada de graças indizíveis

Concluindo seu pensamento, São Luís afirma que tais maravilhas foram deixadas nesse segundo paraíso pelo próprio novo Adão. É a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo sacratíssimo em que Ele se formou no ventre materno, cumulou-o de excelências de toda ordem. Depois, pelo convívio entre Filho e Mãe, desde o nascimento d’Ele até a Ascensão, enriqueceu-A ainda mais. Adão, no primeiro paraíso, parece ter sido apenas um consumidor; não consta que fosse um embelezador, embora, permanecendo fiel, provavelmente lhe coubesse a tarefa de construir ali uma civilização que aprimorasse tudo quanto recebera de Deus. Ao contrário dele, Nosso Senhor requintou e elevou o paraíso onde esteve, isto é, aprimorou e dotou Nossa Senhora de graças indizíveis, fazendo-o, segundo a expressão de São Luís Grignion, “com a magnificência de um Deus”.

Analisemos. A magnificência de um Deus é a magnificência total. O autor lembra, de passagem, que ninguém pode realizar coisas tão magníficas quanto Deus. E se é verdade que o paraíso do novo Adão foi mais esplêndido do que o do primeiro, devemos deduzir que Nossa Senhora é incomparavelmente mais bela que todo o universo. Quer dizer, estrelas, sol, lua, água, lírios do campo, nada tem qualquer paralelo com a beleza espiritual e física da Santíssima Virgem.

Terra imaculada para o corpo do novo Adão

“Esse lugar santíssimo é formado de uma terra virgem e imaculada da qual se formou e nutriu o novo Adão, sem a menor mancha ou nódoa, por operação do Espírito Santo que aí habita. É nesse paraíso terrestre que está, em verdade, a árvore da Vida que produziu Jesus Cristo. Há, nesse lugar divino, árvores plantadas pela mão de Deus e orvalhadas por sua unção divina, arvores que produziram e produzem todos os dias frutos maravilhosos, de um sabor divino; há canteiros esmaltados de belas e variegadas flores de virtudes, cujo perfume delicia os próprios anjos.”

São outras lindas comparações.

Assim como Adão foi formado a partir do barro, e em seguida Deus lhe insuflou uma alma, assim também o novo Adão foi constituído da carne virginal de Nossa Senhora, por obra do Espírito Santo. Depois, havia uma árvore da vida no paraíso antigo, porém no paraíso novo existia outra, que produziu o mais precioso dos frutos, Jesus Cristo. É uma referência à fecundidade imaculada de Nossa Senhora.

Os belos canteiros, flores e frutos variegados simbolizam os dons e virtudes de Maria Santíssima, que deixam os próprios Anjos tão santos e puros extasiados.

Fortaleza invencível, caridade abrasadora

“Há torres inexpugnáveis e fortes, habitações cheias de encanto e segurança”. Como em todo o texto de São Luís, temos aqui mais uma imagem muito bonita. Ela nos faz pensar num castelo com torres inexpugnáveis, cheias de encanto e segurança, com maravilhas dentro e robustíssimas por fora. Essa é a virtude da fortaleza que em Nossa Senhora protege todas as demais virtudes.

“Ninguém, exceto o Espírito Santo, pode dar a conhecer a verdade oculta sob essas figuras de coisas materiais. Reina nesse lugar um ar puro, sem infecção, um ar de pureza; um belo dia sem noite, da humanidade santa; um belo sol sem sombras, da Divindade; uma fornalha ardente e contínua de caridade, na qual todo o ferro que aí se lança fica abrasado e se transforma em ouro.”

São Luís Grignion, referindo-se aos elementos materiais que relacionou nesse paraíso, afirma que só com o auxílio da graça alguém pode fazer ideia do que eles significam enquanto aspectos físicos, espirituais e sobrenaturais de Nossa Senhora. Quer dizer, Ela é bela como o dia por sua natureza, mas Cristo, que habitou n’Ela, não é apenas o dia, mas é o sol, a fonte de todo o esplendor diurno. Então, Jesus é o astro soberano da divindade presente em Maria.

Depois, a igualmente magnífica simbologia da fornalha ardente e abrasadora de caridade, de amor a Deus, que é a Santíssima Virgem. Uma pessoa pode ser dura e fria como o ferro, porém, lançada nessa fornalha, isto é, sendo muito devota de Nossa Senhora e n’Ela confiando, transforma-se não apenas em ferro incandescente, mas em ouro. O contato com Maria muda a alma por completo, a nobilita e santifica.

Abundância de humildade e virtudes cardeais

“Há um rio de humildade que surge da terra e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo esse lugar encantado: são as quatro virtudes cardeais.”

Por fim, um outro conceito muito bonito. As quatro virtudes cardeais são aquelas que regulam todas as ações do homem: a justiça, a temperança, a fortaleza e a prudência. Todas as outras virtudes decorrem dessas. Então, São Luís Grignion diz que em Nossa Senhora há como que um rio de humildade, que se abre em quatro braços e dá origem às mencionadas principais virtudes.

Mas a imagem significa também que uma pessoa verdadeiramente humilde possui de modo torrencial as virtudes cardeais. E o que é ser verdadeiramente humilde?

Antes e acima de tudo é ser humilde para com Deus, reconhecendo tudo o que devemos a Ele e retribuí-lo. Sermos, portanto, em relação a Deus, amorosos, fiéis, filiais, paladinos da causa d’Ele até o último ponto, vivendo num holocausto contínuo a serviço d’Ele. A autêntica humildade coloca uma alma nessa posição, e é dessa maneira que esta última adquire, abundantemente, as quatro virtudes cardeais.

E assim era Nossa Senhora.

Aqui temos, portanto, um pouco daquele bem-estar de que falamos atrás, proporcionado pelas doçuras da Santíssima Virgem. É impossível comentar-se algo a respeito d’Ela, sem se ter a impressão de que estamos junto a um rio ou a uma árvore sobrenatural, sentindo, num plano diferente, aquela satisfação particular que experimentamos à beira dos rios ou à sombra das árvores naturais.

Acredito que, após um dia passado no corre-corre de uma cidade supermoderna, super trepidante, superdinâmica, deter-se um pouco na consideração desse panorama maravilhoso que é a alma de Nossa Senhora é algo que sempre nos fará bem…

A epopeia de Santa Joana d’Arc

Há lendas tão parecidas com a realidade a ponto de suscitar a pergunta: “Será, de fato, simples lenda?” Em sentido contrário, certas narrações históricas revestem-se de tantos aspectos surpreendentes que provocam uma desconfiança: “Mas isto é mesmo real?” Um dos mais expressivos exemplos do segundo caso é a vida de Santa Joana d’Arc: uma das maiores epopeias da História.

 

Se tomarmos em consideração tudo quanto os santos fizeram ao longo da História da Igreja, veremos quão superiores foram em relação a todos os homens que, habitualmente, são tomados por heróis.

Nesse sentido, comentaremos a vida de Santa Joana d’Arc, a famosa virgem de Domrémy, na Lorena.

Suscitada num momento providencial…

No início do século XV ainda não havia eclodido a Revolução protestante, e toda a Europa era católica. Porém, no século seguinte, a Inglaterra se tornaria protestante.

Naquele tempo, a França estava ocupada, em grande parte, pelos ingleses. Portanto, encontrava-se em jogo um ponto muito importante da História da Igreja: se os franceses não conseguissem expulsar os ingleses de seu território, no século seguinte a França corria o risco de ficar protestante; a filha primogênita da Igreja, a nação que deu tantos grandes personagens para a Esposa de Cristo, a França, teria sucumbido na decadência religiosa do protestantismo.

Prevendo isso, a Providência suscitou no vilarejo de Domrémy, ducado da Lorena, uma jovem pastorazinha, muito piedosa e santa, a qual era estimulada por vozes celestes para se apresentar ao Rei da França, a fim de reconquistar o território que os ingleses haviam tomado, e reintegrar à filha primogênita da Igreja os limites que historicamente lhe eram próprios.

Rei disfarçado de simples nobre

Para provar a autenticidade da missão providencial de Santa Joana, as pessoas da corte fizeram o seguinte:

Quando a jovem pastora se encontrou com o Rei pela primeira vez, ela entrou numa sala onde estava o monarca acompanhado de vários fidalgos.

Propositadamente, alguns fidalgos estavam muito bem vestidos, com roupas bastante caras; e o Rei, para disfarçar, usava trajes de um fidalgo mais pobre, secundário, para ver se ela, olhando os mais ricamente vestidos, achasse que um deles fosse o soberano. Se ela de fato tivesse uma missão divina, não se enganaria e reconheceria o Rei.

Ela entrou na sala e, instintivamente, foi em direção do fidalgo pobremente vestido, que, entretanto, era o próprio Rei. Ela adivinhou porque uma luz do Céu explicou-lhe quem era o monarca.

Uma frágil virgem com espada na mão!

A partir desse momento, Santa Joana d’Arc convenceu o Rei, que a nomeou chefe dos seus exércitos, colocando-a à testa dos seus melhores guerreiros. Ela, uma frágil virgem usando armadura, precedeu as tropas nos combates, e os franceses, que até então apanhavam dos ingleses, começaram a surrá-los. E os ingleses foram recuando diante das tropas a cuja frente estava a donzela de Domrémy. Santa Joana d’Arc lutava enfrentando homens enormes, com couraças formidáveis, naquele tipo de guerra em que a força pessoal do guerreiro era decisiva.

Imaginemos num combate de cavalaria um homenzarrão com uma lança, investindo com toda a força contra ela, querendo dar-lhe uma estocada no peito. E ela, frágil, derruba o homem.

Coroação do Rei

Naquele tempo, a França estava tão por baixo que o Rei não tinha tido coragem de ser coroado, porque achava, com certeza, meio ridículo promover uma coroação quando a maior parte do seu território estava em mãos dos ingleses. Mas, foram tais as vitórias de Santa Joana d’Arc que, antes mesmo de os ingleses estarem inteiramente expulsos da França, chegou o momento de ela ir com o monarca para Reims. Nessa cidade há uma catedral prodigiosa, com rendas de pedras e vitrais, onde os Reis da França, por um sacramental da Igreja, eram ungidos com o óleo contido numa ampola trazida por uma pomba na noite do batismo de Clóvis, primeiro Rei dos francos.

Santa Joana d’Arc, com os guerreiros do monarca, teve, então, a alegria de assistir à coroação do Rei da França, numa glória indizível. Ocupou ela um lugar de honra, numa das primeiras fileiras, e estava com o seu estandarte. Junto a ela havia as eternas sombras que vão atrás de cada pessoa: os invejosos. E um invejoso disse-lhe:

— O que faz aqui o vosso estandarte? É o estandarte de combate, e esta é uma festa…

Ela respondeu:

— Uma vez que ele esteve comigo na luta, bom é que esteja também na glória!

Devido a uma traição, Santa Joana é presa e entregue aos ingleses

Quando ainda restava uma parte da França para ser recomposta, a traição, imunda como uma serpente, se enroscou nela. O Rei tinha como aliado o Duque da Borgonha, cujo feudo era muitíssimo rico. Esse senhor feudal era um homem sem caráter, mas entrava com muito dinheiro para a guerra.

Em certo momento, as tropas começaram a combater e esse Duque foi dirigindo as coisas de tal maneira que Santa Joana d’Arc ficou cercada exclusivamente pelos guerreiros dele. Então, o Duque deu ordem de a prenderem e seus vassalos a venderam aos ingleses.

Processo da Inquisição

Como naquele tempo ainda não tinham caído em heresia, os ingleses entraram em entendimento com o Arcebispo de uma diocese francesa onde eles ainda dominavam, e acusaram-na de pacto com o demônio. Diziam que por essa razão ela havia conseguido tantas vitórias.

Realizaram, então, um processo cheio de mentiras, com o intuito de queimá-la viva.

Embora fosse analfabeta, durante o processo ela se defendeu como um advogado brilhante se defenderia. Mas, no fim das contas, Santa Joana d’Arc foi condenada à morte pelo tribunal da Inquisição por ter seguido vozes vindas do Inferno.

Tal era a Fé existente naquela época, que o problema todo não era de saber se ela tinha ouvido vozes — esta seria a questão que se levantaria hoje —, mas sim se as vozes vinham do Céu ou do Inferno.

Inútil tentativa de fugir

De tal maneira a santa queria ainda viver para realizar seu plano de salvar a França, que ela chegou, com risco de vida, a se jogar de uma torre, onde estava presa, para fugir e montar num cavalo a fim de continuar a luta contra os ingleses, julgando que com isso ela fazia a vontade de Deus. Ela se espatifou no chão! Deus não fez o milagre de ajudá‑la, nem as vozes a socorreram. Os ingleses a reconduziram à prisão.

Na hora suprema, uma prova atroz

Chega, afinal, a hora de sua morte. O carrasco entra no local onde ela estava presa, põe-lhe uma túnica infamante, toda embebida em matéria combustível para que o fogo ateasse logo nela, amarra-a numa carreta, aonde ela vai de pé, com as mãos atadas por trás, como malfeitora e para não poder fugir; através de ruas cheias de povo, Santa Joana d’Arc é conduzida ao lugar onde deveria ser queimada viva.

E, contra sua expectativa, a carretinha chegou à praça, tendo ela que descer e caminhar em direção à fogueira que ali estava. Deus, que estivera tão presente em todos os combates da santa e ajudou-a a defender-se no processo, nesta hora se fazia ausente.

Foi lida diante dela uma acusação cheia de falsidades, de misérias e de infâmias que ela não tinha cometido. É trágico o momento: ela é posta na fogueira, diante do tribunal que está ali assistindo.

Ela, a santa que tinha cumprido a missão dada por Deus de salvar o povo francês, por ordem de um Arcebispo, Cauchon, presidente de um tribunal, ia ser queimada com o infamante epíteto de bruxa.

Pode-se entrever a perplexidade no espírito dela:

“Como? Aquelas vozes não eram verdadeiras? Elas teriam mentido? A ajuda que Vós me destes, ó meu Deus, teria sido uma ilusão? É a Inquisição que me condena? Um tribunal eclesiástico, dirigido por um Arcebispo, composto por teólogos e homens de lei… Será que eu não me enganei, ó meu Deus?”

Há um mistério, mas as vozes não mentiram…

O fogo ainda não foi aceso, a santa está amarrada a uma pilha de lenha toda induzida em azeite para que o fogo arda depressa. Ela espera o momento último, no qual não haveria mais dúvida nenhuma de que compareceria perante o tribunal de Deus.

Foi ateado o fogo, o qual com certeza já atacava as carnes dela; as chamas vinham de baixo para cima e, portanto, a parte vital ainda não estava atingida. Quando Santa Joana d’Arc começou a sentir os estertores da morte, ela não deu um gemido de dor, pedindo misericórdia. Ao contrário, primeiro clamou por São Miguel e depois, como Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz, bradou com “voce magna”, com grande voz, que, com certeza, se ouviu pela praça inteira: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Era mais uma manifestação de convicção da santidade de sua causa.

O fogo tomou conta do seu corpo e ela morreu com todas as dores de quem é queimado vivo. Mas até o último momento, ela bradava: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Ou seja: “Há um mistério, mas eu morro contente porque faço a vontade de Deus!” O mistério se explicou.

Santa Joana d’Arc estava morta, mas as vozes não tinham mentido. E, lutadora até o fim, ela morreu batalhando, não simplesmente deixando-se matar, mas dando um brado que era um desafio, um protesto e o prolongamento da resistência francesa. Como quem dissesse aos franceses: “Continuai a lutar, porque as vozes, em cujo nome eu vos conduzi à vitória, vinham do Céu. O Céu vos dará, portanto, a vitória total”.

Esse testemunho, dado na hora da morte, é um supremo lance de heroísmo que vale mais do que a entrada triunfal em Reims, ao lado do Rei que ia ser coroado, a entrada gloriosa e heroica em Orléans, ou tudo o mais quanto ela realizou.

Um coração que vigia e proclama

Conta Monsenhor Delassus que as chamas devoraram o corpo de Santa Joana d’Arc, mas pouparam o seu coração. “Ter coração” não é ser sentimental, e sim ter fibra, têmpera, alma, amor das coisas elevadas e da missão sobrenatural que se possui. E se há alguém que teve coração foi Santa Joana d’Arc. Então houve o bonito fato: o corpo foi todo queimado, mas não o coração. Isso significava ainda um modo de dizer: “Eu morro, mas meu coração vigia e proclama: As vozes vieram do Céu”.

Vitória post mortem

A ofensiva que Santa Joana d’Arc tinha conduzido contra os invasores ingleses era tão tremenda, que eles não ousaram resistir ao pequeno exército francês que restara. Os franceses foram expulsando os invasores, a Inglaterra estava liquidada. Era o ímpeto dela que tinha derrubado o poderio inglês na França. Ela morreu antes de ver a muralha cair, mas “as vozes não mentiram!”

Em 1909, portanto 478 anos após a sua morte, os sinos da Basílica de São Pedro badalavam, anunciando uma magnífica cerimônia: São Pio X, afinal, ia beatificar Santa Joana d’Arc, e com ela proclamar que “as vozes não mentiram!”

Santa Joana d’Arc ficou o próprio símbolo da glória da França, um símbolo magnífico da glória da Igreja!

Coruscação do ideal

Fazer a vontade de Deus dando-Lhe glória de qualquer modo, decapitado ou queimado, pouco importa ao homem de ideal que expira; para ele o importante é que Deus esteja sendo glorificado.

Ideal! Que coruscação, que beleza de palavra!

Qual é o prêmio do idealista?

Os véus da morte descem sobre isto. Nosso Senhor fez promessas incríveis, carregadas de mistérios paradoxalmente luminosos. Por exemplo: “O irmão que salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu como um sol por toda eternidade”. Isso por salvar um! Quem, como Santa Joana d’Arc, evita que a França inteira caia na heresia, como brilhará no Céu? Como será esse sol em toda a eternidade?

Não se tem ideia de qual é a glória dos santos. Podemos imaginar com que afeto Deus se volta para uma Santa Joana d’Arc, a qual está com as marcas do sofrimento que a fogueira causou à sua alma e se apresenta, por assim dizer, pegando fogo diante d’Ele… E Ele lhe diz: “Vem minha eleita, minha escolhida, minha dileta! Goza, agora, de minha presença cheia de amor durante toda a eternidade!”

Nossa Senhora lhe sorri, a afaga, os anjos cantam, todas as almas do Paraíso se rejubilam porque aquela alma santa, portanto a alma com o mais alto dos ideais, o único ideal pleno e verdadeiro, chegou até o Céu. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/5/1972, 20/10/1984 e 2/11/1991)

 

Confiança plena em Maria

Ao comentar uma célebre passagem de São Luís Grignion de Montfort em sua obra consagrada à devoção a Nossa Senhora, Dr. Plinio nos dá a conhecer a valiosa lição de confiança contida nos primeiros milagres operados por Maria Santíssima, na ordem da graça e na ordem da natureza.

 

No seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, São Luís Grignion de Montfort nos lembra uma importante passagem do Evangelho: Nossa Senhora praticando seu primeiro milagre, na ordem da graça, quando visitou Santa Isabel, a qual trazia em seu seio São João Batista.

Protótipo do devoto de Nossa Senhora

Esse acontecimento é, para nós, de muita significação. Tendo a Rainha do Céu dirigido a palavra à sua prima, São João Batista estremeceu de gozo no claustro materno, a tal ponto que ela o declarou a Nossa Senhora. Como homem predestinado que era, ao ouvir a voz da Santíssima Virgem, o Precursor sentiu frêmitos de alegria, e — conforme o parecer de abalizados teólogos — tornou-se livre do pecado original.

Se considerarmos quem foi São João Batista, e quais os traços característicos de sua alma, compreenderemos o efeito que a voz de Nossa Senhora operou nele.

Grande asceta, foi por excelência o homem da pureza, dando-nos a ideia de possuir extremo domínio sobre si mesmo. Além disso, levou o desassombro e o espírito de combatividade ao último ponto, não recuando diante do mal, invectivando e censurando os erros dos importantes de seu tempo, sem se acovardar, a ponto de ser o mártir que se deixa decapitar para manter-se fiel à sua pregação.

Todas essas graças de pureza e de fortaleza podemos supor que ele as tenha alcançado pelos rogos da Santíssima Virgem, e, portanto, não é despropositado considerarmos São João Batista como o protótipo do devoto de Nossa Senhora.

Quando, pois, rezamos ao Precursor, não lhe devemos pedir graças vagas, mas que também possamos — ao ouvir interiormente a voz da Mãe de Deus — ter ímpetos de alegria e imitar as virtudes por ele praticadas.

De outro lado, quando oramos pela conversão de alguém, nada melhor do que pedir a Maria Santíssima falar-lhe palavras ricas em dons celestiais, como fez com São João Batista. A esse propósito, cumpre nos lembrarmos de que não se consegue a conversão ou o afervoramento de uma pessoa apenas pelos raciocínios a ela apresentados. Seria bazófia presumir: “Dei-lhe um argumento poderoso e a converti”. Diferente deve ser nossa afirmação: “Dei-lhe um forte argumento, e Deus a fecundou com sua graça de tal maneira que ela mudou de vida”.

Quer dizer, a conversão é produto da graça divina, e os argumentos que eventualmente saibamos aplicar não passam de simples veículo ou ocasião para que ela atue numa alma. Assim, devemos desejar que em nossa voz jamais entrem acentos meramente humanos, e sim que Nossa Senhora fale por nós, pois só através d’Ela se obtém a graça de Deus.

É também oportuno salientar que os efeitos das palavras de Maria formando um justo, fazendo-o estremecer desde o ventre materno — por lhe ter sido apagada a mancha original —, devem ser um incentivo para confiarmos n’Ela quanto ao êxito de nosso apostolado.

As bodas de Caná

Já na ordem da natureza, pode-se considerar como sendo o primeiro milagre realizado pela intercessão de Nossa Senhora, a transformação da água em vinho nas bodas de Caná, uma vez que a intervenção e o pedido d’Ela junto a seu Filho foram determinantes para tal acontecimento.

Embora o episódio seja muito conhecido, gostaria de ressaltar um aspecto. O Evangelho recomenda que o verdadeiro fiel tenha uma fé capaz de transportar montanhas. É desta fé que ali nos dá exemplo a Santíssima Virgem. Colocada numa situação onde Jesus poderia fazer um milagre, não tem dúvida alguma quanto ao poder do Redentor, nem de que Ele atenderá sua oração. Limita-se simplesmente a falar àqueles servidores: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5). O Mestre ordena e, ato contínuo, o milagre se opera. Nossa Senhora nos mostra, portanto, que, pela virtude da fé, verdadeiras maravilhas são realizadas.

Falta de fé, falta de milagres

Cabe aqui uma pergunta: por que vemos hoje tão poucos milagres? Na Idade Média, por exemplo, quantas manifestações do sobrenatural! Atualmente, quão raras são as que podemos contemplar! Outrora havia quem enfrentava potentados, filósofos e reis ímpios, dirigindo-lhes a palavra e operando suas conversões, o que em nossos dias parece impossível. Em diversas situações nas quais os católicos corriam graves riscos de sobrevivência e liberdade, saíam vitoriosos porque lhes apareciam Nosso Senhor, Nossa Senhora ou algum Santo para socorrê-los.

Coisas semelhantes quase não mais acontecem, porque o homem contemporâneo não procura imitar a Virgem Santíssima, modelo de fé que move montanhas. Ele não tem a convicção absoluta de que, de fato, o Criador está presente em sua vida, vai ajudá-lo e, se pedir, o atenderá efetivamente. Considera Deus quase como um ser de razão, perdido num céu muito alto, sem nenhum contato nem interesse para com ele. A doutrina católica a respeito da Providência Divina, da sua intervenção na existência de cada um e da Igreja são ensinamentos aceitos, porém não com espírito de fé bastante para se ter, face às dificuldades, a certeza de que Deus agirá no momento preciso.

Total confiança em Nossa Senhora

A respeito dessas virtudes de Nossa Senhora, devemos conservar em nossa mente sobretudo esta ideia: se, ao longo de nosso apostolado, nos encontrarmos em situações de apuro tal que se faça necessário um milagre de primeira grandeza, devemos esperá-lo. E confiarmos na Santíssima Virgem como Ela — à vista do apuro daqueles esposos em Caná — confiou que a água seria transformada em vinho. É desta ordem a confiança que precisamos ter em Nossa Senhora.

Insisto nessa confiança total em Maria, devido a uma nota característica de nossa obra e de tantos movimentos semelhantes. Refiro-me à desproporção flagrante, cruel, entre o que se deseja realizar e os meios disponíveis para isso. Por exemplo, almejamos a construção de uma nova civilização católica, ou seja, a restauração do reinado de Jesus Cristo no mundo, alicerçados na promessa feita por Nossa Senhora em Fátima de que, por fim, seu Imaculado Coração triunfará. Nossos meios, entretanto, são tão ridiculamente insuficientes que, se não contássemos com o sobrenatural, seria o caso de duvidarmos de nossa sanidade mental. Nossos ideais se deparam com tanta dificuldade de frutificar que, embora contemos apenas dezoito pessoas, quando nos reunimos e nos entreolhamos, somos tentados a achar que constituímos um grupo já numeroso!

Através desse fato, podemos avaliar qual a nossa fraqueza, do ponto de vista humano. Nossa situação poderia ser comparada à de um paralítico que quisesse transportar o Pão de Açúcar com o polegar, e um dia exclamasse: “Hoje consegui me mexer na cama! Estou, portanto, a caminho de me levantar, e, quando me erguer, transmudarei o Pão de Açúcar”. A desproporção de forças é verdadeiramente chocante.

Por isso há momentos em que nos colhe o desânimo e tudo parece remoto. Sobretudo, há ocasiões nas quais, após pressentirmos o advento de muitas coisas boas, ficamos afinal decepcionados, como se tivéssemos na mão uma série de bilhetes de loteria sem valor, porque não foram sorteados. Algo semelhante a uma viagem de automóvel: ao lado de horas agradáveis, de conversa animada, existem outras em que a estrada parece interminável; temos a impressão de estarmos viajando há vários dias, de ainda faltar outro tanto, e até mesmo de que a viagem deverá prolongar-se indefinidamente…

Assim é a vida de apostolado. Há ocasiões em que se está eufórico e outras nas quais tudo se nos afigura caminhar mal, lento, emperrado, e não conseguimos remover os obstáculos. Pois bem, esta é a fase áurea, se soubermos sempre manter o ânimo.

Paciente e misericordioso

Mais do que nunca, faz-se necessária na época em que vivemos a invocação ao Coração de Jesus paciente e misericordioso. Paciente, porque sofredor, porque disposto a suportar as injúrias que Lhe fazemos, porque modelo e consolação para os que enfrentam com resignação as inevitáveis dores desta vida. E porque paciente, é também misericordioso: perdoa-nos uma vez, duas vezes, duas mil vezes, desejando apenas que não desanimemos do seu perdão.

Ó Sagrado Coração de Jesus, pelos rogos do Imaculado Coração de Maria, sede paciente com meus defeitos, com meus pecados, misericordioso para com minhas lacunas — tende pena de mim.

Amém.

Estética do Universo

Numa conferência pronunciada na década de 60, Dr. Plinio analisa duas concepções de vida, duas ordens de valores profundamente diversas: a católica e a anti-católica moderna. E procura mostrar que, acima das aparências, a razão profunda da oposição entre ambas é de caráter metafísico-religioso. Esta é a causa fundamental da divisão dos espíritos. Oferecemos nestas páginas excertos dessa conferência.

 

Pode uma maneira de encarar os problemas do Universo encerrar uma questão religiosa?

Considerando a Criação, podemos nos perguntar por que Deus, tendo em si toda a plenitude, desejou criar a imensa quantidade de seres que compõem o universo.

Sendo infinitamente perfeito, não precisava criá-los. E se é verdade que não havia nenhum motivo que o impedisse de dar existência ao cosmos, de outra parte razão alguma existia que O obrigasse a fazê-lo. Em sua bondade e sabedoria infinitas, Deus assim o quis. E então, com que de um jorro, uma quantidade incontável de seres foi por Ele produzida.

Deus Nosso Senhor, além de ter em si todas as perfeições, vê também em si todos os graus de perfeição possíveis. Seu intuito, ao criar tão  grande  número de seres, foi fazer com que esses seres não só espelhassem a sua perfeição, mas a reproduzissem nos mais variados graus.

Assim se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao universo.

Esses graus de perfeição espelham convenientemente a Deus.

Não podia Deus criar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Não nos parece que esta questão possa ser considerada como objeto de uma opinião unânime dos filósofos, mas somos muitíssimo propensos a pensar que isso seria metafisicamente impossível. Deus criou o universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem de modo conveniente a perfeição divina.

A razão de ser da criação consiste, portanto, em dar glória a Deus, espelhando de modo completo e pleno as perfeições que n’Ele existem.

Essas considerações são importantes para a exata compreensão do que seja a “causa católica”. Poder-se-ia conceituá-la como sendo o ideal que visa a fazer com que a Criação dê glória a Deus, considerada entretanto a Criação em seu todo, e não somente em um ou outro de seus aspectos parciais. É o conjunto das famílias, das cidades, das nações, da humanidade, e, em última análise, do universo inteiro, que se trata de fazer com que dê glória a Deus.

O princípio da unidade na variedade e suas leis

De acordo com a escolástica, a beleza consiste na unidade posta na variedade. Julgamos um objeto belo quando seus elementos variados formam um todo uno. Os seres fragmentados, sem unidade, não têm nem beleza, nem capacidade de atração. É a unidade que dá beleza aos seres, é ela que dá o valor por seus elementos diversos e variados. Portanto, a unidade é a forma da beleza; e a variedade é a sua matéria, elemento secundário mas indispensável da beleza.

De certo modo, cada ser tem em si essa unidade e essa variedade. É fácil percebê-lo em todos os seres concretamente considerados. Examinemos, por exemplo, a alma humana. Verificamos que ela tem inteligência, vontade e sensibilidade. Eis a variedade na alma humana. Mas esta variedade está posta na unidade da pessoa do homem.

O princípio da unidade na variedade tem suas leis, que consubstanciam o que chamamos de estética do universo.

No estudo dessas leis encontramos a explicação de muita coisa da Idade Média que nos encanta.

Analisemos, em primeiro lugar, as leis da variedade.

Lei do caráter típico

Para bem entendermos essa lei, vamos servir-nos de um exemplo. Tomemos uma sala com vários objetos: poltronas, quadros, lustres, tapetes, cortinas. Aí está a variedade de elementos. Em que condições, entretanto, será autêntica essa variedade?

Só o será quando cada um dos objetos for muito tipicamente, muito caracteristicamente ele mesmo. As poltronas devem ser tipicamente elas mesmas; os quadros devem ser caracteristicamente eles mesmos. Digamos que todos esses objetos fossem feitos de uma única substância a matéria plástica, por exemplo e que seus formatos não diferissem entre si como deveriam, parecendo-se o lustre com a poltrona e a poltrona com o lustre: não teríamos variedade. O característico é, pois, um sinal distintivo da variedade autêntica, é nele que a verdadeira variedade se realiza.

É essa a razão pela qual tanto nos maravilhamos com aspectos ricos, característicos e típicos que encontramos na organização política e social da Idade Média.

Por que, por exemplo, [ao considerarmos a Espanha] temos um movimento de simpatia e admiração para com um andaluz característico? É que nele estão muito nítidas todas as notas que o tornam diferente de um biscainho ou de um navarrês. Se nada houvesse senão o homem “standard” moderno, não haveria variedade. Julgamos bonito, na Espanha antiga, o soberano intitular-se “rei de todas as Espanhas”. Sim, porque cada uma de suas regiões era como que uma pequena Espanha, com sua arquitetura, suas danças, suas músicas, tudo muito característico.

Neste mesmo sentido, é muito interessante, na sociedade medieval, a diferença nítida que havia entre as classes sociais. Um guerreiro era tipicamente guerreiro. Os monges, os comerciantes, os artesãos, os camponeses, eram marcadamente aquilo que eram. Podemos imaginar uma rua de uma aldeia medieval: passa um nobre precedido de um cortejo, logo após um clérigo, depois um artesão, passa, por fim, um frade. O que torna esta cena interessante? É o fato de cada um desses elementos ser autenticamente ele mesmo.

O mesmo podemos admirar no estilo gótico, que, sendo cheio de variedade, conserva uma profunda unidade, e por isso é equilibrado e harmônico.

O necessário contraste para que a beleza seja mais completa

As diversas coisas devem também manifestar um certo contraste, uma certa oposição, para que sua beleza seja mais completa.

A Igreja Católica tem, em suas instituições, muitas variedades que chegam ao contraste. Imaginemos, por exemplo, um cortejo papal entrando no Vaticano. Notamos, desde logo, os Prelados da Igreja Oriental, com toda a pompa peculiar ao Oriente. Mais adiante, os frades franciscanos, vestidos de maneira paupérrima, com os seus simples buréis. Seguem os príncipes, representando a nobreza; mais atrás, os militares soberbamente fardados. Por fim, entra o Papa, rodeado de um fastígio de glória, enquanto humildes religiosas, rezando, inclinam-se à sua passagem.

Há magnífico contraste entre o Papa, que está no pináculo do poder, diante do qual todos se ajoelham, e um humilde irmão leigo, que protesta se alguém se ajoelhar diante dele. Essa oposição está cheia de harmonia. É precisamente nesse contraste, nesse extremo de aspectos antagônicos, que a variedade se reveste de toda a sua riqueza.

É doloroso verificar como, no mundo moderno, a beleza está mutilada pela uniformização.

Hierarquia cheia de diversidade e inteiramente harmônica

Quis a Divina Providência criar todas as coisas hierarquizadas. Fazendo os minerais, os vegetais, os animais, os homens e os anjos, estabeleceu dentro de cada uma dessas categorias uma imensa gama de graus intermediários. Essa hierarquia, cheia de diversidade, é ao mesmo tempo inteiramente harmônica. Há uma infinidade de matizes entre os diversos graus, que faz com que neles não haja saltos bruscos. Sem esses graus intermediários, aliás, o mundo seria agreste e inóspito.

Imaginemos que o homem vivesse num mundo em que só houvesse minerais, e que a Providência o fizesse tirar daí o alimento indispensável ao seu sustento. Ele se sentiria mal, pois há um abismo entre o homem e os minerais. Porém, quando junto a si ele tem vegetais e animais, estabelece-se uma escala natural que produz nele uma sensação de bem-estar. A hierarquia orgânica e cheia de gradações é agradável ao espírito católico, porque constitui uma unidade cheia de variedade. Esta lei da gradação, transposta para o campo político-social, produziu a sociedade medieval, em que as classes sociais formavam uma hierarquia suave, com uma infinidade de status intermediários entre o vilão e o rei.

Consideremos de um lado um rei; de outro, um plebeu de baixa categoria; e, entre eles, toda uma gradação intermediária, de acordo com os princípios de beleza que acabamos de expor. O rei e o plebeu se completam; a beleza do estado do plebeu vem, de certo modo, do fato de haver o rei, e a beleza do estado do rei vem do fato de haver plebeus.

Se só houvesse reis, e não plebeus, pouca significação teria ser rei. Pois é a existência do plebeu que dá ao rei um grande valor.

Tomemos o inverso. Imaginemos, numa botica medieval, o ourives trabalhando no lusco-fusco, algumas pedras preciosas aqui, um cálice acolá. Um pouco além, um agradável odor de saborosos quitutes, os móveis de carvalho, uma cançãozinha de criança. Em uma palavra, o bem-estar plebeu. Isto é evidentemente agradável; contudo, se o mundo todo fosse somente assim, seria sem graça.

Harmonia do movimento: elemento de formosura na Criação

Há ainda um outro interessante tipo da variedade: o da transformação. Existe no mundo uma transformação constante, um movimento contínuo. Mas as variedades de movimento postas por Deus no universo são graduais, harmônicas, a exemplo das gradações da hierarquia que analisamos na lei anterior. Essa harmonia do movimento constitui um elemento de formosura na Criação.

Para exemplificar, consideremos o desenvolvimento da vida humana em um varão justo. O homem nasce, desabrocha com um movimento rico em harmonia na adolescência, e nobremente se torna maduro; envelhece em dignidade e, quando Deus chama a sua alma, é como que a colheita de um fruto precioso, que vai ser levado para o Céu. É uma bela trajetória.

No entanto, o que quer o espírito moderno? Ele pretende que o homem deva ser mocinho até cair morto. Arranjados ou pintados, todos devem parecer ter a mesma e jovem idade.

Não se tolera o plano divino, que estabeleceu a desigualdade nas idades. Quando, entretanto, é forçado a reconhecer a sua existência que não pode ser, aliás, objeto de contestação o espírito moderno procura fazê-lo com brutalidade, desconhecendo as gradações entre as idades, e desprezando a velhice que para nada serve, já que nada produz!…

Pode-se concluir isso observando a vida de uma família antiga e de uma família moderna. Na primeira, reúnem-se em uma mesma sala os avós, os pais, as crianças, os parentes, os amigos; as mais variadas idades convivem juntas, conversando: variedades na unidade. Na família moderna, se os pais promovem uma recepção, os filhos não devem comparecer. Se estes dão uma festa, os pais e sobretudo a mãe devem ausentar-se… Os pais são chamados pelos filhos de “os velhos”, e não querem com eles ter maior convívio.

Uma ação de graças por meio de Maria

A melhor maneira de reverenciar, louvar e pedir graças a Jesus enquanto Este se encontra presente em nosso interior, após a Sagrada Comunhão, é fazê-lo por meio de Maria. “Um Rei entra em nossa casa — diz Dr. Plinio — e temos algo em comum com Ele: a mesma Mãe!”

 

Segundo uma prática piedosa mais que recomendável, quando recebemos Nosso Senhor eucarístico — cuja presença dentro de nós se estenderá por algum tempo — convém nos dirigirmos a Jesus pelas mãos de Maria Santíssima, Mãe d’Ele e nossa, cogitando, por exemplo, no seguinte:

“Sinto em meu interior algo que me diz: ‘Deus está aqui’, e duas impressões se apoderam de meu espírito. Primeiro, a de ser um sacrário no qual se acha Aquele que eu julgava inatingível. Oh! honra! Oh! maravilha! Mas, em segundo lugar, a noção de que eu conheço esse sacrário… Lembro-me de quantas vezes fui infiel e dos defeitos com os quais convive minha pobre alma. E este homem ingrato, ser tabernáculo d’Aquele que é infinitamente santo, perfeito, meu Senhor, meu Criador! Eu não existia e Ele me tirou do nada, deu-me a vida. “Ecce enim in peccato concepit me mater mea” (cf. Sl 50, 7) — eis que no pecado me concebeu minha mãe, devem dizer todos os homens, filhos de Adão e Eva, porque nasceram com o pecado original, raiz de nossas faltas pessoais. Não sou digno de recebê-Lo! Preciso ter uma ponte com esse Rei que entrou em minha casa. Há algo em comum entre Ele e eu: temos a mesma Mãe!”

Nosso Senhor, Maria e nós, na Sagrada Comunhão

Ela é a mais perfeita das meras criaturas, ornada de todos os dons necessários para ser a Mãe do Verbo Encarnado. Concebida imaculada, Virgem antes, durante e depois do parto, em todos os instantes de sua vida não cessou de corresponder à graça de Deus, atingindo uma insondável elevação de virtude, até o momento bendito em que o Redentor resolveu colhê-La da Terra e levá-La para o Céu.

Ora, essa excelsa criatura é também nossa Mãe, e a verdadeira mãe nutre ternuras e compaixão até pelo filho mais esfarrapado, torto e desarranjado que seja. Então devemos nos voltar a Ela e dizer: “Minha Mãe, aqui está Plinio. Como sempre o fizestes, mais uma vez tende pena de mim. Nunca recebemos uma graça que não seja a vosso rogo. Se estou comungando a Ele, é porque Vós me obtivestes de seu Filho esta dádiva, pedistes a Ele que entrasse numa cabana tão indigna chamada Plinio. Purificai-a, ordenai-a, enfeitai-a para que seja do agrado d’Ele.”

Nossa Senhora ornando minha alma, o Rei do Céu e da Terra olhará para mim com satisfação, e dirá: “Aqui me encontro com gosto, porque minha Mãe querida está ordenando sua alma”.

Adoração e agradecimento

Ao ser objeto de mais essa bondade, minha primeira atitude deve ser de adoração. Ou seja, depois de reconhecer minha pequenez e indignidade insondáveis, devo reconhecer também a infinita perfeição de Nosso Senhor. E estando a Santíssima Virgem — espiritual e não realmente — presente em mim, não tenho receio e Lhe digo: “Minha Mãe, fazei com que eu voe para Deus!”

Sorrindo, com muito afeto, Nosso Senhor fala no meu íntimo: “Tu és um filho amado por Maria, minha Mãe. Ela quis que Eu aqui viesse. Pede-me o que quiseres”. Digo-Lhe, então: “Senhor, antes de pedir, eu Vos agradeço tanta bondade e misericórdia”. Em seguida, dirigindo-me a Nossa Senhora: “Mãe e Rainha do Céu, agradecei por mim, porque a minha ação de graças é insuficiente”.

Ardorosa reparação

E sempre por meio de Maria, acrescento: “Senhor Jesus, sei que pequei e preciso Vos pedir perdão de minhas faltas. O mundo inteiro peca contra Vós, Senhor. Sois a própria bondade e tão clemente para comigo, como posso, a menos que seja irremediavelmente vil, não me indignar diante de tantas ofensas de que sois alvo?

“Contristam-me, Senhor, os pecados cometidos por mim e pelos outros contra Vós. Perdão, Senhor! Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende compaixão de nós. Senhor, podeis tornar limpo quem é asqueroso, desde que este corresponda à graça. Mais uma vez, tende compaixão do mundo, e de mim, pelos rogos de Maria!

“E se houver pessoas que continuem infiéis, aceitai como reparação minha atitude indignada. Sabeis — pois vosso olhar penetra até o fundo de nossas almas — que eu gostaria de estar em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo, censurando os impenitentes e combatendo o mal com a força de invectiva que Vós me concederíeis.

“Não me é dado estar em toda parte, porém aceitai esse desejo que vossa graça infunde no meu coração, e não pode ser inútil. Fazei, Senhor, que em todos os lugares onde sois ofendido, minha alma de certa forma ali esteja, admoestando e fazendo recuar os fautores do mal.

“Terminada essa prece, começarei a laborar no apostolado ao qual me destinastes: acolho um, falo com outro, sorrio para um terceiro, tomo uma deliberação, atendo um telefonema, leio uma revista, um jornal, um livro. Rezo. Tomai, Senhor, cada uma dessas ações como se eu as estivesse praticando no mundo inteiro, junto a todas as almas, diante de todos os sacrários da Terra, suplicando-Vos graças para todos os homens, falando no interior de cada um deles.”

Petições repassadas de zelo

Como nos ensina a Santa Igreja, os atos de piedade são: adoração, ação de graças, reparação e petição. Assim, depois de oferecermos a Nosso Senhor os três primeiros, vem o momento de Lhe apresentarmos nossas súplicas, dirigidas a Ele pelas mãos da Virgem Santíssima.

“Devo, Senhor, pedir coisas para mim, para aqueles a quem estimo e até pelos que não conheço. Antes de tudo, rogo-Vos que em todo cargo da Sagrada Hierarquia eclesiástica — desde o sólio de São Pedro até uma simples paróquia — haja fervorosos apóstolos de Maria, ardorosos escravos d’Ela segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, em toda a força do termo”.

É o intenso desejo do Reino de Maria que surge no fundo de nossas almas. Com efeito, além das necessidades da Igreja, nos é dado conhecer as da sociedade temporal. Amamos todas as nações da Terra, e quereríamos que Nossa Senhora as fizesse florescer, no maior esplendor de sua piedade, para dar glória a Ela e a seu Divino Filho, numa nova e mais luminosa Cristandade. Poderíamos compor uma ladainha enumerando todos os países e, a propósito de cada um, suplicar graças específicas.

“Senhora, Vós pusestes em minha alma tanto amor por tal nação; tornai-a inteiramente vossa. E tais povos, raças, culturas, civilizações… Ó minha Mãe, intercedei por tudo isso junto a Deus, e obtende que desabrochem no vosso Reino, para a glória de Cristo Senhor nosso!”

Temos também obrigações especiais para com os que nos são mais próximos. Ou seja, em certo sentido, nossos irmãos de vocação, sobretudo pelos que nos mantêm, pelo seu exemplo e seu impulso, nos caminhos da Santa Igreja. Com não menos solicitude devemos rezar por aqueles que nos parecem em dificuldades na vida espiritual: “Minha Mãe, notei, pela fisionomia, que tal filho vosso se acha muito provado. Socorrei-o! Outro vai bem, mas precisa melhorar. Ajudai-o!

“Agradou-me ver um terceiro progredindo; minha Mãe, não permitais que ele esmoreça na virtude!”

Como se nota, quase que instintivamente nos dirigimos a Nossa Senhora, embora estejamos fazendo uma ação de graças após comungar o Corpo e o Sangue de Jesus. Compreende-se, pois é por meio d’Ela que nossas preces chegam mais segura e rapidamente ao Altíssimo.

Rezemos, em seguida, pelos nossos mais chegados quanto ao vínculo de sangue; aqueles dos quais nascemos, nossos irmãos segundo a carne, nossos familiares. Devemos querê-los segundo o amor de Deus e, portanto, ter para com eles, ao mesmo tempo, todo o afeto e o desapego preceituados pelos mandamentos da Lei divina. Peçamos que eles amem a Deus acima de todas as coisas, e nos queiram a nós também por amor ao Criador. Assim, pelas mãos de Maria Santíssima, estaremos rezando pelo bem da alma deles, e este é o maior tesouro que podemos lhes oferecer.

Pelos amigos e também pelos inimigos

Rezaremos pelos nossos amigos, mais próximos ou distantes, nas mesmas intenções. E, por fim, uma prece por aqueles que porventura alimentem injusta hostilidade em relação a nós; desejando que a clemência e a misericórdia infinitas de Nosso Senhor toquem os seus corações e os conduzam ao arrependimento e proporcionada penitência.

Para estes, poderíamos dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, na medida de vossa compaixão, rogai a Deus que não os castigue nem nesta vida nem na outra; sobretudo, o que Vos peço é que os salveis, pela glória da Igreja. Dai-lhes tudo o que de Vós os aproximam e tirai-lhes tudo o que de Vós os afastam”.

Deste modo terão passado os minutos do convívio com Jesus Eucarístico em nosso interior, e estará feita nossa ação de graças pelas mãos de Maria Santíssima.  

 

A Cooperação de Nossa Senhora com seu Filho

Na seqüência de suas considerações sobre o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos convida a contemplar as “maravilhas de graça” operadas em Nossa Senhora, cujo claustro materno tornou-se, durante nove meses, a paradisíaca habitação de Deus.

 

Escreve São Luís no tópico 16 do Tratado:

Deus Filho desceu ao seu seio virginal qual novo Adão no paraíso terrestre, para ai ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça.

Em primeiro lugar, devemos considerar a Encarnação de Deus Filho em Nossa Senhora. Ela, pelo processo da maternidade, foi gradualmente fornecendo-Lhe sua carne e seu sangue, e assim foi sendo formado, dentro de seu seio virginal, o corpo de Nosso Senhor, unido à divindade pela união hipostática. A participação d’Ela no mistério da Encarnação é imensa. Considerando que o corpo de Nosso Senhor, sua carne e seu sangue, são carne da carne e sangue do sangue de Nossa Senhora, não se pode imaginar uma maior intimidade com Deus. O papel de Nossa Senhora nesse mistério foi tal, que Deus quis que Ela antes desse o seu consentimento, para depois dar sua carne, seu sangue e, portanto, algo de seu próprio ser.

Maria criou, governou e ofereceu Jesus em holocausto

…Encontrou sua liberdade em ser aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou sua força em se deixar levar por esta Virgem santa…

Foi vontade de Deus Pai que Nosso Senhor ficasse contido n’Ela como dentro de uma arca, de um tabernáculo, em que Ele operava maravilhas de graças só por Ela conhecidas. E foi dentro d’Ela, como no interior de um santuário, que Nosso Senhor Jesus Cristo começou a dar glória ao Pai Eterno. No próprio momento em que começou a existir a união hipostática, Deus Pai recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo o mais perfeito ato de amor que jamais se deu na Terra. Ninguém nunca prestou-Lhe um ato de amor tão excelso quanto a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O Santo mostra ainda como Jesus, que era Senhor onipotente, contido em Nossa Senhora, deixou-se transportar por Ela, não só pelas montanhas da Judeia para visitar Santa Isabel, como por todos os lugares pelos quais Maria o quis.

…Achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo. Para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até a morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão á vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.

Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus!… Nossa Senhora foi incumbida de criar Nosso Senhor e de O governar em sua infância, durante a qual Ele tinha para com Ela as mesmas relações de uma criança para com sua mãe. Pois seria falso imaginar que, na presença de outros, Nosso Senhor fazia o papel de criança; e quando não havia ninguém, apresentava-se como Deus. Ele estava junto a Nossa Senhora sempre como menino, do qual Ela cuidava como quem trata a um Deus.

Depois Nosso Senhor cresceu, passando trinta anos de sua vida junto d’Ela, e consagrando aos homens somente três.

Por fim, Ela O levou até o alto da cruz e, ali, ofereceu-O a Deus.

São Luís Grignion resume o papel de Nossa Senhora na Redenção: Ela gerou, criou, acariciou e finalmente acompanhou a vítima ao altar do sacrifício, onde Ela mesma o imolou, como diz o Santo autor. Porque verdadeiramente Nosso Senhor morreu com o consentimento de Nossa Senhora. Ela aceitou que Ele sofresse tudo o que padeceu, e morresse da maneira como expirou.

Dediquemos mais tempo a Nossa Senhora, a exemplo de seu Divino Filho

Há aplicações maravilhosas para nossa espiritualidade a tirar desse fato: Nosso Senhor vivendo trinta anos sob a dependência de Nossa Senhora.

Em nossa vida de piedade, por exemplo, que importância damos, respectivamente, à nossa união com a Virgem Santíssima e ao nosso apostolado? Temos a impressão de que este é muito mais importante que a nossa união com a Mãe de Deus, de tal modo que dedicamos nosso quarto de hora de oração a Ela, e, o restante do tempo a nosso “enorme” apostolado?

Nosso Senhor nos dá exemplo do contrário. Tempo dado à união como Nossa Senhora: trinta anos; ao apostolado: três.

Podemos bem compreender o que representa de homenagem — “homenagem” de um Deus, a palavra parece até absurda —, de glória para a Virgem, o Verbo Encarnado vir ao mundo e passar trinta anos junto d’Ela, dedicando apenas três à realização de sua missão. E entender o que significa a graça de estar junto de Maria Santíssima. Assim sendo, quando vamos fazer uma visita a uma imagem de Nossa Senhora numa igreja, podemos nos unir a esses sentimentos de Nosso Senhor. Convém que, amiúde, interrompamos nossas atividades, e entremos numa igreja para fazer uma visita a Maria Santíssima com esta intenção: imitar Nosso Senhor, que não se apressou em iniciar desde logo sua vida pública, mas consagrou trinta anos a estar junto de Nossa Senhora. Vou seguir seu exemplo; por isso peço-Lhe que, dada minha impossibilidade de agradar como devo a Nossa Senhora, que Ele A agrade por mim neste momento. Quando me coloco diante do tabernáculo, devo pedir a Nosso Senhor a graça de que, em meu nome, Ele trate Nossa Senhora como eu gostaria de fazê-lo, embora seja incapaz.

Eis uma boa visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora. Com isto se constrói uma vida espiritual digna desse nome. Mas é preciso que sempre tenhamos em mente todas essas idéias, esses princípios, para que possamos utilizá-los quando as ocasiões se apresentarem.

Convicção e resolução em nosso amor, não mera sensibilidade…

Pelo acima exposto, vemos como seria tolo dizer que há secura ou geometrismo na piedade por parte de quem assim procede. O que aí não se pode desejar é o vácuo, a bazófia. Pois o que recomendamos não é secura nem geometrismo, mas coerência: a inteligência ilumina, a vontade quer, e a sensibilidade acompanha o preito de amor da vontade. E se acaso a sensibilidade não acompanhar, não terá maior importância, pois o ato de amor estará feito. O amor reside na vontade.

Não se trata, portanto, de experimentar uma espécie de consolação sensível, sentir o trêmulo da comoção, para só então rezar. Importa, sim, ter convicção e resolução. A Fé nos ensina que Nossa Senhora é imensamente bondosa, e por isso recorremos a Ela com confiança. É uma consideração racional, que não nasceu da sensibilidade. Essa atitude racional na oração, a construção de uma piedade toda ela alicerçada sobre convicções recebidas da Fé, que a razão anipula, isso sim é verdadeirasi um tabernáculo admirável, “como Adão no Paraíso”. Para compreendermos bem o que isto significa, é interessante apelarmos para certos conceitos subjacentes à seção Ambientes, Costumes, Civilizações, que nós escrevemos, sobre a importância da beleza e a propriedade dos ambientes. Estando no seio virginal de Nossa Senhora, Jesus encontrou todo o necessário para suas delícias espirituais: havia ali um ambiente, uma atmosfera que Lhe eram perfeitos, graças às virtudes excelsas de Maria Santíssima. Durante este período, Nosso Senhor teve com Ela uma união verdadeiramente incomparável.

Já consideramos o fato de que, neste período, Nossa Senhora vai fornecendo sua própria carne e seu próprio sangue para a formação do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse tempo, havia uma atividade em extremo íntima entre Ele e Ela, sendo preciso notar que Nosso Senhor teve o uso da razão desde o primeiro instante do seu ser. Ele, portanto, vivia em Nossa Senhora dispondo já completamente de sua inteligência. Podemos imaginar a intimidade enmente a seriedade na vida espiritual. O que desejamos é produzir convicções profundas, construir uma estrutura de espírito útil à vida de piedade, e não apenas fabricar uma faísca passageira de emoção mariana.

União inexprimível entre Mãe e Filho

São Luís Grignion lembra, entre outras coisas, que Nosso Senhor, no período de sua gestação, enclausurou-se no ventre puríssimo de Nossa Senhora, e aí encontrou para tre Eles e o alto grau de cada ato de amor? A cada colaboração que Ela prestava para a formação de seu corpo, correspondia da parte d’Ele uma série de graças a Ela concedidas. Durante a gestação de Nosso Senhor havia, portanto, entre Ele e sua Mãe, uma união verdadeiramente inexprimível e de uma sublimidade incomparável.

Em que sentido a consideração dessa união nos pode ser benéfica?

O homem, na Igreja Católica, encontra-se diante de um firmamento de verdades. E assim como, colocados diante do céu físico, contemplamos inúmeras pulcritudes que enriquecem nossa alma, no universo de verdades da Santa Igreja poucas maravilhas podemos considerar tão grandes quanto a intimidade de uma alma inteiramente humana, como era a de Nossa Senhora, com Nosso Senhor Jesus Cristo, durante o tempo da sua Encarnação.

Assim, nos é dado ter uma ideia da intimidade que também nós podemos adquirir, pela nossa santificação, com Nosso Senhor; faz-nos compreender um pouco o que é a vida da graça, e faculta-nos a apetência de uma maior união com Jesus Cristo.

Essas considerações não podem ficar no vácuo. Na vida espiritual devemos propriamente desejar esses dons sobrenaturais, a união com Deus e os bens eternos!