Esplendor do equilíbrio

Interpretando falsamente o princípio de que a virtude está no meio, muitas pessoas chegam a defender os erros mais crassos, contrários à Doutrina Católica.
Dr. Plinio elucida sapiencialmente esse tema, com base na razão e apresentando belíssimos exemplos.

São Francisco de Sales, grande Doutor da Igreja, chegou a identificar o equilíbrio com a virtude, dizendo que a virtude está no meio. Ora, o meio é exatamente o equilíbrio entre dois extremos, a considerar as coisas do ponto de vista geométrico. Assim, se a virtude está no meio, chegamos à conclusão de que a verdade se encontra no equilíbrio. Portanto, não há razão para julgar o equilíbrio como sendo algo insípido, estúpido; nele deve estar a verdadeira sabedoria.

Noção de equilíbrio

Contudo, é preciso ver bem o que nas conotações da palavra “equilíbrio”, na linguagem brasileira, entra de fundamentalmente sem sabor, fazendo com que uma coisa tão eminente como o equilíbrio possa dar uma impressão tão desagradável.

O equilíbrio, afinal, o que é? É uma excelência das coisas por onde elas — nos seus aspectos contrários — se compensam, se harmonizam, de maneira tal que se reúnem em torno de uma nota suprema, a qual abarca uma porção de notas colaterais. Poderíamos dizer, por exemplo, que um edifício, com uma torre no centro e duas alas iguais de uma amplitude harmônica com o tamanho da torre — ou seja, quanto mais alta a torre, mais largas as alas —, tem equilíbrio. Essa ideia de equilíbrio abrange uma grande variedade de aspectos, e nós começamos a entrever através disso, de um modo mais vivencial, quanto o equilíbrio é uma coisa boa.

Entretanto, no Brasil se chama homem equilibrado, não aquele que tem uma ideia ou princípio central, em torno do qual ele traça a circunferência de todos os aspectos possíveis, mas um simplório que não tem nenhuma ideia central; e sempre que é atormentado por dois extremos opostos, o equilibrado se coloca simplesmente no meio-termo, pensando que com isso resolveu as coisas.

Por exemplo, entre um comunista e um fascista, o equilibrado seria um burguês. Entre um indivíduo que quer o divórcio e outro que deseja o amor livre, o equilibrado quereria um divórcio muito evoluído; entre um homem que é favor da alopatia e outro da homeopatia, o equilibrado gostaria de uma mistura sem sentido entre essas duas coisas incompatíveis. E daí para a frente.

Pensamento seletivo, ordenativo, vigoroso

Então, o verdadeiro equilíbrio não é uma mistura ininteligente de coisas incongruentes, mas a força de um pensamento central, com o leque das consequências que em todos os sentidos dele se podem tirar.

Assim, toda beleza é necessariamente equilibrada. Mas há certas formas de pulcritude nas quais o que brilha à primeira vista não é o equilíbrio, mas é quase o desequilíbrio.

Tomem a Catedral de São Basílio, em Moscou, por exemplo, com aquelas torres pequenas — encimadas por cúpulas em forma de cebola — que sobem com uma espécie de ascensão frenética para o céu: a nota daquilo é de um misticismo que parece não dar lugar ao bom senso e à razão. Em substância dá, mas parece que não. É uma nobre e pseudo unilateralidade, no fundo da qual existe um equilíbrio.

Encontraremos, assim, várias formas de beleza. Mas a forma de beleza francesa — sobretudo nos áureos tempos da França, na Catedral de Notre-Dame, por exemplo — é o equilíbrio. Mas é um equilíbrio cheio de gosto, de sabor, de classe, de estilo — não o equilíbrio abobado entre duas opiniões das quais, tratando-se irenisticamente, se obtém o meio-termo “pro bono pacis”(1) —, porque é um pensamento seletivo, ordenativo, forte, vigoroso, que agrupa em torno de si os respectivos elementos, e faz disso propriamente uma maravilha.

O equilíbrio francês cheio de sabores

Temos um exemplo neste panorama que vemos aqui. Eu o considero de uma alta categoria. Onde está a beleza do quadro que contemplamos?

Analisem elemento por elemento. A grama é de um verde-esmeralda que nos nossos trópicos não se encontra. No meio da grama, a coisa mais comum do mundo: um caminho inteiramente reto. Bem no fundo, um castelo.

O que tem esse castelo propriamente de maravilhoso? Na fachada, não se vê uma estátua e quase nenhum ornato. Não se nota no castelo nada que deslumbre. Não é uma construção cara; custa preço alto apenas porque é grande, tem muito tijolo, material com que se faz qualquer casa. Entretanto, eu acho que seria um absurdo não reconhecer a isto a nota do equilíbrio, do maravilhoso. Mas qual é o maravilhoso? É o maravilhoso do equilíbrio, da coisa bem pensada, bem estudada, e feita com categoria: aqui está o esplendor do equilíbrio. E é o equilíbrio francês, cheio de toda espécie de sabores. Observem primeiramente o prédio, depois o resto.

A graça dominando a força

O prédio é composto de uma espécie de torreão central, que não é uma coisa “bojudona”, fazendo assim o papel de um tórax, de um abdômen, perto do qual o resto são duas asinhas. Pelo contrário: é uma coisa fininha, esguia, terminada, para acentuar a ideia do fino, por um teto pontudo. Mais ainda, de um lado e de outro há duas chaminés altas que realçam ainda mais a ideia do pontudo, porque elas terminam em ponta; e no alto uma espécie de campanariozinho — um mirantezinho, uma pequena cúpula — suportado por coluninhas. E essa ponta termina numa janela com uma ponta, tendo do lado duas pontas. Essa parte central do prédio é toda leve, esguia, fininha; mas está de tal maneira no centro, é tão bem pensada, que ela não faz o papel de raquítica, de nenhum modo, em relação aos dois extremos atarracadões e bojudos que se encontram num ponto e no outro.

O governo, a linha “rectrix” do prédio está bem no centro. É a graça dominando a força, Jacó reprimindo Esaú, as coisas pesadas coordenadas em torno da leve.

Não sei se percebem o alto pensamento, a afirmação da superioridade do espírito que há por detrás disso: é o triunfo da graça sobre a força, a faculdade ordenante da inteligência sobre as coisas da matéria.

Alta categoria

Entretanto este contraste entre a parte central e os dois extremos é equilibrado — porque todo contraste equilibrado deve possuir termos intermediários harmônicos — por dois corpos de edifícios iguais, nem tão esguios nem tão bojudos, mas que ficam entre uma coisa e outra, preparando a transição. As fachadas laterais são mais largas que a central, os cimos mais esparramados e não terminam em ponta, mas em cones truncados. No alto, há uma janela só no centro, e três janelas nas partes laterais.

Usa-se nas gerações mais novas uma expressão um pouco popular, mas que às vezes tem uma certa força de significado: “Que coisa bem craniada!” Porque é preciso ter crânio para fazer isso.

Esse castelo não foi feito por bobo, nem para bobo, porque é muito discreto. É como quem diz: “Se tu não me percebes, eu não te digo. Sou para quem tem quilate; diante de mim há mata-burro.” Ou então: “Se tu me julgas banal, eu te julgo trivial. Os eleitos, os seletos venham a mim. Eu sou feito para poucos.”

Vemos que tudo isso é de alta categoria, realizado por cabeça superiormente orientada.

O gênio francês

Nos extremos, observamos a coisa curiosa. Esses corpos de edifícios são atarracadões; não tanto atarracados porque possuem três janelas — porque os laterais também têm —, mas devido ao espaço maior entre as janelas, e, sobretudo, pelo teto pesadão e grandão, que constitui uma tampona. Mas o muito pesadão horrifica o gênio francês, e por causa disso, no meio do pesadão há algumas coisas que o equilibram.

Imaginem que pesadelo seria essa tampa grande se não houvesse essas janelinhas pequenas em cima, redondinhas! Como elas dão um sorriso que compensa a carranca dessa imensidade de ardósia do teto! Por detrás, as chaminezinhas e os campanariozinhos evitam que isto tome a aparência de um calcanhar achatando a ala do castelo. Apesar de tudo, isso é pesadão, a parte intermédia é meio leve, e o centro é levíssimo.

A altivez do castelo está no que ele tem de mais gracioso. É como quem diz: “Forte eu sou, mas, sobretudo, eu me prezo de ser inteligente. Em última análise, eu sou completo, porque tenho tudo. Tenho muita força, mas tanta inteligência que, em mim, a inteligência domina a força. Eu sou equilibrado”.

Isso é um equilíbrio de primeira categoria, é degustação, porque se degusta isso como um prato saboroso! Isso é turismo! Viajar pela Europa quer dizer ir percebendo essas coisas. Não basta ouvir o que um guia fala, mas é preciso ver o que o artista diz, o que o ambiente que inspirou esse artista tinha a sofreguidão de contemplar.

Vemos aqui uma aplicação da noção de equilíbrio. Quando São Francisco de Sales afirma que no meio está a virtude, pensem nesse torreãozinho e encontrarão a explicação. Não é um equilíbrio sensaborão, mas sim cheio de sal; é o gênio francês.

Esse gênio francês, muito discretamente, se faz sentir noutra coisa: é o quadro. O castelo é, talvez, um pouco discreto demais. Então, ele é realçado pela perspectiva: um grande parque. Ele é tão simples nas suas linhas e nos seus enfeites que, se houvesse canteiros com muitas flores e esguichos, ele ficava pobre; então, ele tem um simples, mas esplêndido tapete de esmeralda para lhe servir de apresentação, e arvoredos formando, um pouco longe dele, moldura. Dir-se-ia que ele sai de dentro de um mundo de delícias e de mistérios que essas árvores encobrem; ou a clareza e a lógica cercadas de imponderáveis. Outra forma de equilíbrio. Eu acho isso maravilhoso.

Perceber essas maravilhas é um dos prazeres da vida

Os caçadores! Notem a posição deles! Tenho a impressão de que é uma fotografia tirada espontaneamente, mas a pessoa que fotografou o fez tão bem, que se um encenador devesse colocar esses caçadores numa posição bonita, ele os poria assim. Querem uma coisa mais sem graça do que, por exemplo, todos andando na mesma linha? Estragaria o quadro. Ou um cavaleiro aqui, outro ali, outro lá, outro acolá, etc., seis manchas de vermelho, sem sentido… Aqui não. Há um misto de distância e proximidade, fantasia e ordem dentro da distribuição deles, que faz com que sejam deliciosos de ver.

Observem, por outro lado, o estilo. Os caçadores estão parados, tranquilos, de uma tranquilidade pronta para a ação. E a ideia da efervescência da caçada não é dada pelos homens, mas pela cachorrada: um ferver de cães famintos, dispostos para correr. E os caçadores sólidos, mas elegantes — porque são homens elegantes —, montados em cavalos que não têm nada de espetacular, mas espetacularmente proporcionados ao conjunto. Com toda a distância psíquica(2), os homens se preparam para uma caçada que vai ser feroz, por vales e por montes, tocando cornetas etc.; a “demarragem” é equilibrada.

Não é verdade que para degustar um dos prazeres da vida, que tornam a existência humana digna de ser cristãmente vivida, é preciso perceber essas coisas? Mas perceber com o rumo ao Céu.

Reflexo da Igreja Católica

Esses valores de espírito são assim porque essa civilização foi cristã. Porque há o precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, a graça, o Batismo, a Igreja Católica dentro disso. Isso é, no fundo, um reflexo da Igreja Católica. Se não fossem as virtudes cristãs, isto não teria sido assim.

Então não é um puro gáudio dos olhos, nem da inteligência que se tira daí, mas acima disso é um gáudio superior do espírito, considerando uma ordem transcendente de coisas, onde existe um Deus pessoal, sobrenatural, que nós contemplaremos face a face, e no qual todas as formas desse equilíbrio se realizam de um modo tal que isto é uma imagem do Criador. Mas Deus é tão mais do que isto, que Ele até não é nem um pouco assim. Isto se encontra n’Ele de um modo insondável e incapaz de ser imaginado por qualquer criatura. Assim é a Terra como a bênção de Deus a fez, como a civilização cristã a modelou. Esta é a figura do Céu para o qual nós vamos.

Temos aqui um termo religioso para uma meditação sobre uma coisa profana.

Alguém me diria: “Dr. Plinio, falta um cruzeiro diante desse castelo para ele ter a nota cristã.” Eu responderia: Em todos os lugares onde se queira colocar um cruzeiro, eu exulto. Mas dizer que a coisa fica falha sem cruzeiro, não concordo. O espírito católico está aí até sem o cruzeiro. Esse castelo é católico em si; tal equilíbrio sem a graça não se consegue. É uma tradição constituída por homens que em certo momento receberam a graça e tiveram esses valores. Aqui está o equilíbrio católico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1969)

1) Do latim: para o bem da paz.
2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

Instintos e amor ao maravilhoso

O homem possui instintos nos quais, devido ao pecado original, há algo de desordenado. Para se conseguir a ordenação natural dos instintos é necessária uma espécie de educação e propensão pelo maravilhoso. Essa é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.

 

Por ser um animal racional, o homem tem dois jogos de instintos: os do corpo e os da alma. Os instintos da alma são muito mais nobres do que os do corpo, embora estes exerçam uma influência sobre aqueles. Basta ver, por exemplo, o instinto de conservação, como ele existe no bicho e no homem.

Os instintos do corpo se conjugam com os da alma

Ao ter notícia de uma coisa que lhe é nociva, o bicho foge ou avança. Isso é muito menos nobre do que faz o homem que conhece por que aquilo é nocivo, e estuda o modo de avançar ou de recuar.

No homem, por causa de nossa natureza espiritual e animal, os instintos do corpo se conjugam com os da alma formando um movimento harmônico, mas composto de elementos diversos. Não é, portanto, como se fosse um só tipo de instinto.

Comecemos por estudar os instintos do corpo para depois analisar o efeito disso nos da alma. Em seguida, consideraremos a relação deles com a temperança e a intemperança.

Conosco passa-se um fenômeno que com os animais não se dá. Por não ter sido atingido pelo pecado original, o animal tem instintos sempre harmônicos. Não se conhece um animal – exceto se estiver louco – que proceda de um modo contrário aos seus instintos. Estes são sempre equilibrados e, quase se diria, mecânicos, enquanto que no homem os instintos são desequilibrados e difíceis.

Tomemos como exemplo, num homem, a tendência ao repouso. Esse instinto existe de maneira diferente nos diversos corpos humanos, de tal maneira a se poder dizer que em cada homem há uma determinada peculiaridade, por onde o modo de repousar nunca se repetiu nem se repetirá em nenhum outro homem, o que corresponde às apetências e, neste sentido, aos instintos de seu corpo, como também, por conexão, aos instintos da alma.

Conheci um indivíduo com uma natureza, por alguns aspectos, tão plácida que ele não se movia durante o sono a noite inteira. Ele me disse ter feito várias experiências de, antes de se deitar, à noite, pegar uma parte do lençol, formar um tufo e segurar na mão. Na manhã seguinte, quando ele acordava, o mesmo tufo estava intacto. Quem o conheceu notava isso muito presente em várias maneiras de ser dele. Enquanto ele dormia, era um instinto animal que estava imperando, exclusivamente. Mas algo disso correspondia à alma, por onde ele levava uma vida muito calma, tranquila, metódica, com modos e gestos pacatos. Vê-se que o corpo tem um certo jogo de instintos diferente, mas condicionado ao da alma.

Repressão ou estímulo a certas apetências

Em função disso, algumas coisas podem causar bem ao instinto do corpo porque o estimulam, e outras por lhe fazerem contrapeso servindo de corretivo. Por exemplo, é possível que um homem exageradamente fogoso, por instinto, seja propenso a frequentar ambientes com penumbras, a tomar muito sorvete, a vestir-se com colarinho bastante largo. Por outro lado, alguém muito indolente pode receber uma “chicotada” tomando determinado tipo de bebida. Assim, para um, o instinto pede a penumbra, para outro, o licor.

Entretanto é possível acontecer que, para corrigir uma carência ou estimular alguma apetência, o instinto induza a pessoa a um exagero, o qual pode levá-la à intemperança, ou já constitua, de si, uma ponta de intemperança.

Posso admitir, por exemplo, que uma pessoa muito débil, obrigada a enfrentar condições de vida difíceis, sinta-se muito estimulada tomando “Cointreau”. Ora, pode-se conceber que um homem, sentindo-se dignificado e mais varonil depois de ter tomado um gole de “Cointreau”, fique viciado nesse licor, a partir disso. Não se trata apenas do bêbado pelo gosto de beber, mas é por uma razão mais complexa, mais delicada: um bom movimento por onde ele procura completar-se no “Cointreau”. Esse bom movimento leva-o a exagerar a dose.

Temos assim, ao contrário do animal, instintos nos quais sempre alguma coisa é desordenada e pede uma repressão ou um estímulo. Por conseguinte, o recurso a determinados agentes para reprimir ou estimular determinadas apetências dá ao homem um deleite no uso desses agentes, que o gosto pode conduzi-lo ao exagero.

Sem dúvida, muitas vezes o indivíduo adquire um vício daquilo que sua natureza não precisa. Por exemplo, numa roda de meninos fica bem fumar, e ele é o único que não fuma. Então, começa a fumar. A partir desse momento, ele se habitua ao deleite proporcionado pelo cigarro, para o qual, até então, não tinha apetência. Trata-se, portanto, de uma pura degustação a que ele se habituou inutilmente por um ato de servidão ao ambiente onde estava. Nesse caso não notamos nada de nobre na origem desse vício.

Contudo, creio que em muitos casos, quando se fala do mero bêbado, talvez se pudesse afirmar a existência de algo razoável na origem da bebedeira; mas, por se ter destemperado e desfeito o elemento razoável, entrou o mal.

Há instintos mais atingidos pelo pecado original

Isso tem o seu efeito prático: se vemos que um homem caiu na intemperança por um motivo originariamente bom, é uma ajuda para ele explicar-lhe o que se passou. Não é, portanto, a pura descompostura: “Seu bêbado, seu cretino, seu nojento!”, mas sim um auxílio.

Qual a vantagem dessa ajuda para ele?

Como percebe que nem tudo quanto estão recriminando nele é mau, ele guarda uma espécie de reserva contra a descompostura que está levando, como quem diz: “Vocês não compreendem bem, mas isso é bom por um lado. Logo, não posso aceitar essa descompostura por inteiro.” E por não poder aceitá-la inteiramente, ele toma isso como pretexto para continuar no seu vício.

Quem o ajude, deve tirar-lhe o pretexto dizendo: “Por esse lado, isso seria bom; mas você se desviou e por isso chegou a tal ponto…”

Acontece que em nós, seres humanos, há um ou mais instintos especialmente atingidos pelo pecado original. À medida que o homem peca nesses instintos, vai desequilibrando todos os outros, por via de consequência.

O jogo temperamental do homem é como um móbile

Há uma espécie de ornato de origem chinesa, chamado móbile, que se pendura nos lustres, constituído de um sistema de pequenas alavancas e hastezinhas, feitas com material delicado imitando cristal. Esse adorno é calculado de tal maneira que um vento, batendo num pontinho qualquer desse sistema de alavancas, move todas as hastes e inicia-se uma “dança” sempre diferente da anterior.

O jogo temperamental de um homem é como um móbile. Se em algum ponto ele consentiu que fosse puxado, todas aquelas partes do móbile começam a se mexer. E, por um consentimento a um instinto desordenado, entra a ciranda de uma espécie de desequilíbrio total.

Dizer que, ao contrário, a experiência demonstra haver pessoas equilibradíssimas em certos pontos, mas desequilibradas em outros, não corresponde à realidade. Podem existir alguns pontos menos desequilibrados do que outros; mas, onde se instalou um desequilíbrio, o sistema corrosivo de todos os desequilíbrios começa a estalar. E, à maneira de uma infecção que se instala em um membro, mais cedo ou mais tarde, se não é debelada, acaba gangrenando todo o corpo.

O problema é ter a integridade, eu quase diria, a pureza de não consentir em nada. Porque num ponto onde se consinta num desequilíbrio, todo o mecanismo se altera. Então, começa uma batalha para conservar o equilíbrio aqui, lá, acolá. Seria mais ou menos como um homem puxando um móbile, e eu querendo segurar com a mão todas as outras partes para não se moverem. Não vai! Enquanto estiver um homem mexendo ali, não há mão que segure todas as outras hastes.

Então, ou o indivíduo está num estado em que exerce sobre os instintos uma vigilância completa, ou, mais cedo ou mais tarde, ele começa a rolar para intemperanças progressivas que podem tomar, e muitas vezes tomam, proporções assustadoras.

Equilíbrio implícito dos instintos

Diante dessa descrição a pessoa se sente mais ou menos desconcertada e diz: “Não seguro isso. É desejável segurar e é uma miséria que eu não o faça; reconheço ter culpa em não segurar, mas não me peçam isso porque é um trabalho tão heroico, hercúleo e constante, que não tenho forças.”

Ora, a alma fortemente habituada a considerar as belezas metafísicas, trans-esféricas(1), voltada fortemente para o Absoluto e o sobrenatural tem uma atitude – instintiva também – de oposição aos desequilíbrios. Isso oferece ao indivíduo a possibilidade de não fazer de cada repressão ao instinto uma caçada consciente, mas lhe dá uma atitude de equilíbrio implícito, que é o primeiro equilíbrio diante do primeiro desequilíbrio. Dou um exemplo:

Imagine um homem viajando a bordo de um navio que está balançando muito. Se ele tem seu jogo de instintos bem feito, mesmo estando em pé e conversando com alguém sobre uma notícia no jornal, é só o navio começar a se mover que seu corpo vai fazendo contrapeso sem ele estar pensando nisso.

Nessa situação, vindo um movimento mais forte, o qual lhe exija mais atenção, ele já está muito mais adiantado na repressão ao tombo do que um homem que só se dará conta da sacudida do navio quando quase tiver ido para o chão. Isso porque, neste segundo caso, a tendência dos instintos para o equilíbrio é muito frouxa, está habitualmente como uma trouxa de carga. Resultado: até se mobilizar, ele não aguenta.

Assim, o equilíbrio moral e o psicológico comportam essa posição. Um é o homem dotado de senso do maravilhoso, diante de quem tudo que o desequilibra instintivamente toma essa postura; e ele tem uma prevenção contra o desequilíbrio mais forte e sério, que é uma condição de vitória. Pelo contrário, o homem largado, não voltado para o maravilhoso, tem uma condição prévia de preguiça para se entregar e, portanto, resistirá mal à força do jogo dos instintos.

Outro elemento a considerar – uma coisa muito mais adquirida do que inata – é a boa educação. Ao se tornar instintiva, a boa educação leva o indivíduo a notar logo quando não está agradando e, espontaneamente, tomar uma posição acertada diante da pessoa com quem ele trata para agradá-la. Pelo contrário, quem não tem essa formação, vai desagradando, cometendo gafes, fazendo besteiras, e se lhe disserem:

– Preste atenção no que você disse!

Ele responde:

– Não consigo! Ou trato do tema de que estou falando, ou cuido de suas “bonequices”, do modo de pegar os talheres, etc. Tratar de uma coisa séria e, ao mesmo tempo, manusear com distinção e elegância uma xicarazinha de café ou cortar bem um bife, não faço. Não é possível.

Mas por quê? Porque o jogo dos instintos não foi bem afivelado. Em última análise, porque o gosto do maravilhoso, do transcendental, do absoluto não dominou a alma dele. Se dominar, tudo isso, por um movimento espontâneo, vai tomando posição.

Ordenação natural dos instintos e senso do maravilhoso

Nós deveríamos conhecer o jogo dos nossos próprios instintos a partir da posse habitual, do interesse maior, do gosto pelo maravilhoso.

Quando a alma se dá ao maravilhoso, o efeito próprio dele é fazer voltar a apetência de todos os instintos – que de algum modo se satisfazem no maravilhoso – para esse ponto maravilhoso. De maneira que só naquilo que os instintos têm de baixo é que são incompatíveis com o maravilhoso. Em tudo o mais não são.

Tomem, por exemplo, um menino com o senso do maravilhoso muito desenvolvido e que, tendo recebido objetos feitos de madrepérola, está brincando encantadíssimo. Se alguém quiser puxar com ele uma conversa muito banal sobre mecânica, isso não fará mal à sua alma porque ele está tão voltado para coisas mais altas que poderá ouvir aquela conversa por amabilidade, por afabilidade, e até pôr duas ou três perguntas sobre o assunto, mas seu coração não estará naquilo. Se lhe sugerirem renunciar a brincar com suas madrepérolas para assistir a uma corrida de automóveis, aquela torcida pela velocidade não lhe diz nada, porque ele prefere o gosto de ver as madrepérolas.

Isso porque, ao conhecer algo muito maravilhoso, somos levados a amar, por conexão, ou estar abertos para uma série de outras coisas maravilhosas que não conhecemos. É um universo. Essas maravilhas de tal maneira desdobram nossas apetências harmônica e ordenadamente, que a tendência para as coisas mais baixas decai muito.

É uma ordenação natural dos instintos, mas que vem do amor ao maravilhoso. Essa espécie de educação e propensão pelo maravilhoso, antes de tudo pelo maravilhoso moral, mas também pelo artístico e por todas as formas de maravilhoso, por assim dizer, chumbando o homem no maravilhoso, é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1986)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

1) Relativo a “transesfera”. Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

 

Divina seriedade de Nosso Senhor

Os algozes fizeram terríveis brutalidades contra Nosso Senhor, por ódio à virtude que n’Ele transparecia de modo tão magnífico. Quem chegasse perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviria lancinantes brados de dor, entretanto, mais harmoniosos e belos  que os sons de qualquer orquestra.

Se considerarmos Nosso Senhor ao longo da sua peregrinação durante os três anos da sua vida pública, de um lado para outro pregando às multidões, quer no primeiro ano  que foi gaudioso, em que a obra d’Ele iniciou-se e mais ou menos encantou todo o povo de Israel; quer no segundo, quando as dificuldades começaram a aparecer; quer no  terceiro, o qual foi dramático, chegando até o Gólgota e o “Eli, Eli lammá sabactâni” (Mt 27, 46) – Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? –; em quaisquer desses  anos, como imaginaríamos Nosso Senhor?

Majestosa e serena tristeza de Nosso Senhor

Andando alegre de um lado para o outro, satisfeito, com a fisionomia contente, comentando despreocupadamente e de modo agitado os aspectos engraçados das coisas? Ou  com um fundo de tristeza amenamente presente na sua personalidade, marcando seus divinos olhares e tudo quanto Ele dizia e fazia, exprimindo-Se aos homens em termos de um tratamento afável, doce, bondoso, mas também com um fundo de tristeza não dramática, nem lancinante, mas habitual, estável – para empregar uma comparação  que não me satisfaz inteiramente, mas que diz algo –, um olhar que tivesse algo de luminoso, resplandecente, de tristonho como o luar?

Sem dúvida, esse olhar assim tristonho, mas resignado, atento, afável, bondoso, exprimiria o fundo da alma d’Ele.

Trata-se de saber por que essa majestosa, serena, imensa, afável tristeza de Nosso Senhor enchia de tal maneira  a alma d’Ele. Começo por me perguntar que relação há entre esse olhar e a seriedade, e concluo ser esta a própria seriedade do Redentor. Não havia outro modo de ser sério. Ora, se era essa a seriedade d’Ele, não deve ser também  essa a nossa seriedade?

Se isso é assim, devemos nos indagar qual a razão pela qual sua tristeza era tão grande quanto a amplidão de suas vistas.

Na divindade d’Ele não podia haver tristeza. Deus é de tal maneira perfeito, excelso, admirável, que n’Ele não cabe consternação. Havia tristeza na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas essa natureza humana estava ligada hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constituindo uma só Pessoa continuamente na visão  direta de Deus, no oceano de suas perfeições e de sua felicidade infinita e imperturbável por todos os séculos dos séculos sem fim.

Logo, essa tristeza não poderia vir de Deus, mas só do Homem. Porque Nosso Senhor veio à Terra como Redentor e se encarnou para nos resgatar, morrendo na Cruz como   Homem-Deus e fazendo, portanto, que um Homem oferecesse um sacrifício infinitamente precioso que perdoasse o pecado original e os pecados posteriores, e abrisse o Céu.

Então, torna-se claro que esse sofrimento só poderia vir do Homem. Como um Ser que era Deus, e de tal maneira participava dessa felicidade infinita do Onipotente, podia ter tanta infelicidade, tanta tristeza a propósito dos homens que são tão menos do que Deus?

Dir-se-ia que seria mais ou menos como se eu – vou falar em termos mundanos – recebesse de repente de herança uma fortuna inestimável, imensa, e no mesmo dia, ao  partir uma fruta, corto um pouquinho o dedo. Aqui está um pequeno incômodo que coincide com uma causa de felicidade extraordinária, mas nem se pensa nele. Se à noite   o dedo estiver molestando, começa-se a dar conta de que nele houve um corte de manhã, porque se pensou o dia inteiro na felicidade e na alegria em ter ganho uma fortuna.

Com a devida reverência aplicada à comparação, poder-se-ia dizer que a tristeza causada pelos homens em Deus seria pequena perto de sua infinita jubilação. Isso se explica  da seguinte maneira: Deus ama os homens com amor infinito, e por causa disso Ele quer ter o amor dos homens. Um amor deseja a paga, a retribuição, e quando não é  retribuído sofre de um padecimento tão profundo, que chegava a penalizar desta maneira o Verbo de Deus encarnado. Ele possuía um conhecimento direto, imediato de  todas as coisas. Olhava para todos os homens e conhecia – nem sei se se pode chamar discernimento dos espíritos – os estados de espírito deles.

Ponto de gravidade em torno do qual todos os homens devem girar

Deus via essa atitude dos homens que era de não O amarem: o povo eleito voltado completamente para as abominações que conhecemos; os outros povos para idolatrias e  pecados que enchiam todo o mundo de então. E Ele se sentia não retribuído no seu amor infinito, que não é o sentimento comum, por exemplo, de um professor que se  dedica muito aos alunos e vê que estes não reconhecem.

É uma coisa muito diferente. Sendo Deus, Ele era infinitamente digno do amor dos homens; e estes, recusando o amor do Redentor, ficavam péssimos, totalmente  recusáveis, porque o ponto de gravidade em torno do qual todos os homens, e cada homem em concreto, devem  girar é Ele, que é infinitamente bom, infinitamente santo, e  em função do qual todos nós devemos fazer gravitar a nossa vida. Ele é o Astro divino, o Sol divino. Nós somos os planetas que satelitizam em torno do Sol, e não olhamos  para Ele, nem queremos olhar. Vendo assim as criaturas que Nosso Senhor ama tanto, chega a causar n’Ele essa tristeza.

É uma tristeza por ver a falta de virtude; dos homens o Criador só quer virtude. O homem pode ter o que quiser, se não possuir virtude, por assim dizer, não interessa a Deus. E se Ele toma posição face ao homem é apenas com desejo de que se torne virtuoso e semelhante a Deus para se amarem. Ele rejeitado, a sua tristeza enche a Terra, mais ou  menos como  a luz do luar cobre de tristeza o céu.

Devemos querer que tudo seja semelhante a Jesus Cristo

Isto é um dos traços da divina seriedade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E nós vamos ver que os Apóstolos, os mais chegados a Ele, antes de Pentecostes estavam cheios de  coisas destas.

Prestavam atenção em coisas terrenas, humanas, e tendo entre eles Nosso Senhor Jesus Cristo, levaram um tempo enorme para perceber e reconhecer que Ele era o  Homem-Deus, simplesmente porque não tinham apetência daquelas virtudes, não as amavam, e por isso seu entusiasmo não era ascendente, alpinístico, não escalava os cumes. Mas era um entusiasmo dos charcos, dos pântanos. Por exemplo, quando os Apóstolos caminhavam com Jesus para o Horto das Oliveiras, é possível que Ele os tenha  repreendido, dizendo: “Daqui  a pouco iremos orar e vocês vão dormir, enquanto o Filho de Deus começará a padecer.” Naturalmente, os Apóstolos, ligados a   brincadeiras e coisas semelhantes, dormiram. Depois, o resto nós conhecemos… Vamos transladar isso para nós.

Somos meras criaturas. Não temos, portanto, a união hipostática com Deus, mas fomos batizados e em consequência do Batismo começou a viver em nós a graça, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus. E há alguma coisa que não deixa  de ter vaga semelhança com a união hipostática. Nós somos os templos do Espírito  Santo. Isto posto, a grande preocupação nossa na vida é de notar na Igreja Católica, nos  Santos que Ela gerou, nos seus Institutos, nas páginas luminosas de sua História, aquilo que é santo e, portanto, lembra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nós amamos o que é parecido com Ele. Isso é o mais importante de nossa existência, como para Ele o centro da vida terrena era viver  na união hipostática e querer que os   homens recebessem a graça e O adorassem como Homem-Deus.

E, portanto, a nossa grande alegria – se somos fiéis ao nosso Batismo e coerentes na nossa Fé – deve ser ver que os homens estão amando Nosso Senhor, e que tudo no  mundo se passa de acordo com o Espírito, a Lei d’Ele, como se Jesus estivesse presente. Não queremos para nós outra coisa: que tudo seja semelhante a Ele.

Devemos ter um fundo de seriedade luminosamente triste

Sem dúvida, eu admiro Paris, descontados todos os aspectos mundanos. Porém, se me dessem para escolher entre viver naquela cidade, onde o pecado deixou tantas marcas e o amor de Deus algumas coisas tão maravilhosas – a Catedral de Notre-Dame, por exemplo –, ou numa localidade habitada pelo povo mais vulgar, mais desvalido, mais inculto da Terra, mas onde todos  amassem verdadeira e sinceramente a Deus, eu preferiria viver naquele povo, e sairia de Paris voando.

Porque, embora Paris seja tudo quanto é, e Notre-Dame signifique tanto para mim, prefiro ver almas e não apenas pedras, inteiramente segundo Deus, que amam o Criador em espírito e verdade, e tratando com elas tenho a impressão fundada e viva de discernir o Espírito Santo presente em cada uma. Por isso, quero ir para lá ainda que as  pessoas só usem uns tecidos grosseiros feitos de palmeira, comam apenas uns peixes ordinários que se pescam no rio local. Se nelas estais Vós, meu Senhor e meu Deus, é lá que eu quero estar!

Não sei se cada um de nós teria a mesma reação, e se faz assim de Deus o sol de sua própria seriedade.

Mas o fato concreto é que na alma do católico deve haver um fundo de seriedade, vaga e luminosamente triste pelas condições abjetas, altamente censuráveis do mundo  contemporâneo. Nós devemos nos sentir censurados, rejeitados, detesta odiados, e – oh, dor! – não porque é nossa pessoa, que pouco vale, mas porque rejeitam o Espírito  Santo que está em nós, recusam em nós a condição de membros do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se conhecessem os meus defeitos e me rejeitassem por essa causa eu os amaria, mas eles têm conhecimento de minhas qualidades e me recusam; então eu me sinto rejeitado no que é mais internamente  meu, naquilo por onde sou mais eu e pertenço a Nosso Senhor como ente batizado e que tem Fé, membro da Santa Igreja Católica. E então há em mim um fundo constante de tristeza, de seriedade triste.

Em Jesus, a seriedade não excluía, por exemplo, que Ele fosse de vez em quando à casa de Lázaro para tomar alguns dias de sossego, de tranquilidade, de bem-estar, de sentir o amor por Ele. Santa Maria Madalena O adorava, como sabemos, Marta O queria, Lázaro O amava e isso Lhe enchia a alma. Mas por toda parte, assim como a lua acompanha os passos do homem que anda pela noite, via-se a tristeza enluarada: “Os homens não querem a Mim porque não amam a Deus. Isto é uma espada que Me vara de alto a baixo.”

Gemidos de Jesus por causa de nossa indiferença

Se nós, uns nos outros, procurássemos apenas o amor de Deus e nos regozijássemos sempre, pensando nesse amor que há em nós, e quando notássemos em alguém uma falta de amor de Deus nos entristecêssemos, como Nosso Senhor, de uma tristeza cheia de amor, de vontade de extravasar- se para aquele a fim de trazê-a Deus; se assim   agíssemos, como a atmosfera em nossas Sedes seria, então, mais próxima do ideal de seriedade que tomamos quando nós participamos de um Retiro, como compreenderíamos mais completamente o que é a seriedade!

Não é porque desejamos que queiram odiassem, eu lhes oscularia as mãos e os pés e lhes agradeceria, porque  execro os meus defeitos. Mas essa gente, que tem a proibição de escrever o meu nome num jornal, odeia o que eu tenho de bom; isso me faz sofrer, me indigna. Não por mim, mas por Nosso Senhor, porque é Ele que estão rejeitando.

Aqui está a matéria-prima, a tintura- mãe de nossa seriedade. Entrando agora na Semana Santa,  contemplaremos as brutalidades, a injustiça, a crueldade que tiveram para com Ele, e teremos presente o tempo inteiro que fizeram isso por ódio à virtude que em Nosso  Senhor transparecia de um modo tão magnífico.

De maneira que, por exemplo, se algumas pessoas chegassem perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviram lancinantes gritos de dor d’Ele. Mas esses gritos eram mais  harmoniosos e mais bonitos que os sons de qualquer orquestra, mais atraentes que as exclamações de qualquer orador, por mais famoso que fosse.

Ele naquela púrpura de seu sangue, jorrando sobre todo o seu Corpo sagrado, era mais majestoso do que um rei na púrpura de seu manto real. Os carrascos viam isso e O  flagelavam porque queriam a vulgaridade, a indecência, a imoralidade. Então mais flagelavam, e Jesus gemia. Gemia por seu Corpo sagrado – um homem geme quando  sente isso –, porém muito mais por causa das almas tão ruins que O açoitavam, como Ele via o que aconteceria até o fim dos séculos.

Nosso Senhor nos olharia passando a  Semana Santa indiferentes aos gemidos, às dores d’Ele, e diria: “Até vós, a quem Eu chamei para um amor especial? Vós ouvis os meus gemidos, Me contemplais coroado de espinhos, como em outros episódios da minha Paixão, e também sois indiferentes!” E Jesus dando brados e gemidos por causa de nossa indiferença.

Maria Santíssima, fixai em mim as chagas do Crucificado!

Pensem na tristeza de Nossa Senhora diante disso. Provavelmente Ela sofria porque tinha algum conhecimento do que se passava com Jesus. Em suas santas intuições,  contemplando cada brado, cada gemido d’Ele, cada pedaço de carne que os açoites arrancavam e jogavam no chão – a união hipostática continuava com aqueles pedaços de  carne –, Ela, completamente transida de dor, sabia como seria a nossa Semana Santa. Quantas vezes, no lugar onde deveria estar o amor a Ele está o amor a outras coisas, ou quiçá a outras pessoas. Para pegar exemplos que não sejam amizades e afetos de si pecaminosos, suponhamos um amigo de quem gostamos porque é engraçado; de outro  porque é prestigioso e nos prestigia; de um terceiro porque nos admira. São essas as razões pelas quais se deve gostar dos outros, ou é porque eles se parecem com Nosso Senhor?

São Tiago era, por uma razão natural de parentesco intencionada por Deus, muito parecido com Nosso Senhor. De maneira que quando os algozes tiveram medo de errar na escolha e pediram para Judas indicar quem era, ele disse: “Aquele que eu oscular, esse é o Homem” (cf. Mt 26, 48).

Por isso, após a morte de Nosso Senhor havia quem percorresse distâncias enormes para ver o Apóstolo que se parecia com o Redentor. Ora, nós temos a Ele presente na  Sagrada Eucaristia… É Semana Santa. O que fazemos? O que isso arranca de nossas almas? Nós rezamos a Nossa Senhora pedindo- Lhe que ponha em nós as disposições de  alma d’Ela para vivermos a Semana Santa como deveríamos viver?

Há um hino da Liturgia que diz: “Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas” – Santa Mãe, fazei isso, prendei em mim as chagas do Crucificado. Isso nós deveríamos  afirmar durante  a Semana Santa. E quando chegar as três horas da tarde de Sexta-Feira Santa e adorarmos a Nosso Senhor na Santa Cruz, pensemos na seriedade e  procuremos sentir fixas em nós as chagas do Divino Redentor. Então peçamos a Nossa Senhora que faça de nós homens que vivam da tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1988)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

 

Considerações sobre o Brasil Império – I

O reinado de Dom Pedro I, príncipe romântico, impulsivo, tumultuoso e inconstante, inquietou e deslumbrou pacatos brasileiros, desorientou combativos portugueses, deixando um sulco na alma e na formação psicológica do Brasil

 

Ao fazer uma exposição sobre a História do Brasil, se eu fosse começar por mencionar as capitanias, os governadores, pondo num quadro-negro a lista deles todos, datas em que tomaram posse e deixaram seus cargos, a história das bandeiras, era muito pouco provável que despertasse a apetência de meus ouvintes.

O verdadeiro numa formação intelectual e, sobretudo, espiritual é alargar o campo do interesse, de maneira que os ouvintes tenham amplos horizontes. Não ficar tratando como especialista de um tema, por exemplo, de que doença morreu Fernão Dias Pais Leme. Não sou médico, nem contemporâneo dele, não me interessa saber do que ele faleceu, isso não é tema para mim. Mas alargar os horizontes, isto sim é formação.

Dois modos tipicamente brasileiros de interessar-se pela História

Nas anteriores reuniões sobre História do Brasil fui jogando no ar dados com alguma conexão entre si, mais ou menos como um piloto a bordo de um navio que, entrando num porto, vai atirando sondas para saber por onde sua embarcação deve rumar. Fui lançando sondas para ver quais eram os temas que interessavam mais. E acabei percebendo que um assunto que interessa muito ao feitio do nosso povo e, aliás, corresponde à mentalidade e ao ambiente brasileiro diz respeito à seguinte temática:

Cada chefe de Estado que passa é uma figura; ele governa e pode-se fazer a história do seu governo. O governo dele é o conjunto de atos de caráter político, diplomático, econômico, administrativo com os quais ele dirigiu o Estado brasileiro durante certo período, seja um monarca, seja um presidente da República, seja um ditador. Esta é uma faixa na qual se pode estudar a História de um povo.

Mas há outra faixa que me parece muito mais brasileira. Um chefe de Estado consegue ou não projetar a sua figura aos olhos do povo, de maneira a ser uma personalidade que marque por sua presença a vida psicológica, intelectual, afetiva do povo. Se ele consegue isto, o período de governo dele é uma era na História. E quando ele sai, o colorido da História muda.

Tem pouco a ver com a diplomacia, as finanças, a guerra e tudo mais. É a apresentação e a ação que toda pessoa exerce sobre outra quando estão juntas.

Tomem dois homens num gabinete dentário, por exemplo, esperando a hora de serem atendidos. Eles não se conhecem, olham-se vagamente e um não se interessa pelo outro, se rejeitam. Dir-se-á que não exerceram influência um sobre o outro. Não é verdade. Naquela mútua rejeição cada um afirmou alguma coisa de si que o outro recusa. E naquilo eles se acentuam em alguma coisa.

Todo contato humano exerce uma influência afirmativa ou negativa. Mesmo quando essa influência é neutra, ou seja, fecha o guichê, ainda aí há uma afirmação.

Dom Pedro I, um verdadeiro herói de romance

Um chefe de Estado tem sua presença muito mais realçada do que um particular. Então, pergunta-se: essa presença não exerce um efeito sobre toda a nação? Exerce. Qual foi o efeito pessoal de Dom Pedro I? E o de Dom Pedro II? Como eram eles? Como o Brasil os recebeu? Como foram os primeiros presidentes da República Velha? São temas de que se poderia eventualmente tratar. Parece-me que nesta faixa interessaria muito mais do que o estudo de finanças, por exemplo. Então, vamos expor um pouco sobre isso.

Dom Pedro I era um príncipe romântico por excelência. A Europa estava sob o signo do romantismo, do qual fazia parte uma sentimentalidade opulenta, ligada a um gosto pela aventura e a uma certa ponta de heroísmo pessoal. Sem isso não se era um verdadeiro herói de romance.

Modelado pela época, Dom Pedro I foi um verdadeiro herói de romance. Os heróis de romance têm muito de romance e pouco de herói. Eles não merecem ser chamados heróis, a não ser num certo sentido da palavra, porque aquilo não é heroísmo. Satisfazer seus impulsos não é heroísmo. Dirigi-los segundo a Lei de Deus, isso é o heroísmo!

Ele era um homem eminentemente impulsivo, e toda a sua vida, que poderia ter sido uma série de êxitos brilhantes, foi uma sucessão de fracassos. Porém, esses fracassos foram brilhantes, porque ele conduzia suas derrocadas com a virtuosidade de um herói de teatro. Essa teatralidade fez dele uma pessoa que inquietou os pacatos brasileiros, mas um pouco os deslumbrou. Agitou os portugueses de então – pouco pacatos e muito combativos –, mas os desorientou. Assim, ele marcou a fundo as duas nações.

Dom Pedro I era um homem, em certo sentido da palavra, brilhante. Muito vistoso, com muita vitalidade, tinha um todo verdadeiramente aristocrático que ele conduzia com ideias democráticas e acessos de absolutismo, dependendo da veneta dele. Ele era fundamentalmente “veneteiro”.

Uma “Commonwealth” luso-brasileira

O que teria sido o êxito de Dom Pedro I? Se considerarmos o assunto do ponto de vista meramente da ambição pessoal, na situação em que ele estava como homem ambicioso, o que poderia ter feito?

Ele declarou a independência do Brasil e o fato ficou consumado. A partir desse momento ele rachou os Estados do pai dele, que eram muito amplos e compreendiam: Angola, Moçambique, Guiné e outras possessões na Índia, o que constituía um império muito vasto. Mas a maior esmeralda ou rubi desse império caiu da coroa no momento em que o Brasil se separou de Portugal.

Com efeito, quando se separou, o Brasil deixou de ser colônia para se tornar reino unido a Portugal. O que vem a ser um reino unido?

Antigamente, os reis de Portugal recebiam este título: Rei de Portugal e dos Algarves. Algarves é a parte sul de Portugal, assim chamada por causa do sentido de uma palavra moura “algaribe”, que designava terras onde habitavam mouros. Como a dinastia portuguesa conquistou os Algarves para Portugal, o monarca ficou sendo Rei de Portugal e dos Algarves. O Algarve não ficou uma colônia, mas um reino bem menor do que Portugal, com suas leis, seus costumes próprios, como hoje em dia são a Inglaterra e a Escócia. A Escócia não é uma colônia da Inglaterra, é um reino irmão geminado com ela, o qual tem seus hábitos, estilos, sua autonomia, embora constitua um todo com a Inglaterra.

O Rei de Portugal, Dom João VI, tinha declarado o Brasil reino unido a Portugal. Esse reino foi separado por Dom Pedro I e declarado Império. Mas não estava dito que o imperador do novo Império não pudesse herdar a coroa de Portugal; nem que, separando uma monarquia da outra, Dom Pedro I não pudesse herdar a velha monarquia e reconduzir à união. A meu ver, se ele olhasse para sua ambição pessoal, a jogada inteligente dele seria levar as coisas de maneira a sossegar os brasileiros quanto à animosidade deles contra os portugueses. Assim, quando morresse Dom João VI, Dom Pedro I deveria tentar reunir os dois reinos.

Nessas circunstâncias, ele teria uma linda tarefa para executar que corresponde a um problema muito bonito a resolver. O mundo português do lado de lá do Atlântico tem o pequeno peso de uma economia metropolitana e de um território também pequenos, mas o peso enorme de uma História gloriosa, de uma longa tradição, de uma ligação afetiva muito grande com o Brasil, além do peso considerável de todo o império colonial que Portugal ainda possuía, e com o qual o Brasil perdeu o nexo quando se tornou independente. Não seria inteligente ter proposto aos brasileiros e aos portugueses uma “Common­wealth”, à maneira da Inglaterra, com todos esses Estados? Era evidente que o Brasil ficaria tão grande que, em certo momento, não seria mais governável a partir de Lisboa.

É como o Canadá e a Inglaterra. O Canadá não é governável a partir da Inglaterra. Os ingleses tiveram o bom senso de ir dando uma certa autonomia ao Canadá, para não pesar demais num cetro que acabaria se quebrando. Fizeram um regime um pouco parecido com a velha monarquia austro-húngara, em que os imperadores da Áustria eram reis da Hungria, da Checoslováquia, duques de tal e tal lugar na atual Iugoslávia. Tinham todas essas coroas e iam tocando essa política juntos.

Fracassos de Dom Pedro I

Os reis de Portugal tinham pensado em transferir a sede da monarquia portuguesa para o Pará e fazer uma monarquia amazônica, a pouca distância de Lisboa, portanto governável meio de Lisboa e meio do Pará e, através deste, exercer sua influência sobre todo o Brasil. A meu ver – se consultasse a ambição dele – Dom Pedro I deveria ter dirigido sua política no sentido de constituir uma monarquia bipolar: Pará-Lisboa. E quando os meios de comunicação fossem mais rápidos, passar o governo ao Rio de Janeiro. Mas esperar e deixar maturar a história. Ele não fez isso. Chegou ao Brasil, brigou com os brasileiros, foi para Portugal, abriu uma questão e brigou com os portugueses. Acabou morrendo prematuramente tuberculoso em Portugal, vítima da doença de que os heróis de romance achavam bonito morrer.

Como se deu isso? Ele declarou a independência, foi coroado e entronizado como Imperador do Brasil. Aliás, a coroa dele é bonita e está no Museu de Petrópolis.

Ele recebeu uma monarquia absoluta, como vigorava em Portugal. Entretanto, começou um movimento para transformá-la em monarquia parlamentar, com a convocação de um Parlamento e uma Constituição que limitasse os poderes dele.

O que fez Dom Pedro I? Disse que sim, mas com uma condição: a Constituição seria concedida por ele, que inauguraria o Parlamento. Mas quando ele quisesse fecharia o Parlamento e revogaria a Constituição.

Compreende-se que essa hipótese de nenhum modo agradaria os liberais, pois aquela era uma liberdade condicional. Na hora em que o Imperador franzisse a sobrancelha, cessaria a liberdade. Disseram-lhe, então, que não aceitavam, e saiu daí uma tensão medonha que acabou dando em sua partida para Portugal, porque ele não podia mais governar o Brasil.

Guerra entre absolutistas e liberais

Dom Pedro I embarcou num navio para Portugal com a sua segunda esposa, Dona Amélia de Leuchtenberg, e com a filha que ele tivera da Marquesa de Santos, a Duquesa de Goiás.

Chegando a Portugal, encontrou a seguinte situação: Dom Miguel, irmão mais novo de Dom Pedro I, tinha se candidatado ao trono português. Morreu Dom João VI, Dom Pedro I tornara-se Imperador do Brasil e se descolara de Portugal. Logo, argumentava Dom Miguel, uma vez que ele traíra a nação, separando dela uma parte, não tinha mais direito a ser Rei de Portugal. E afirmava: “O rei sou eu!” Dom Pedro I dizia o contrário: “Eu não renunciei, e agora que deixei o Brasil quero governar aqui em Portugal!”

A isso somava-se uma complicação de caráter ideológico: também os monarquistas portugueses estavam divididos pela mesma questão que dividira as opiniões no Brasil. Aliás, era a grande questão daquele tempo: saber se uma monarquia deveria ser absoluta, à maneira do “Ancien Régime”, ou parlamentar, como vigorou após a Revolução Francesa.

Os partidários de Dom Miguel eram monarquistas absolutistas, enquanto os de Dom Pedro I eram a favor da monarquia parlamentar. Ele que no Brasil tinha sustentado o princípio da monarquia absoluta, com o direito de fechar o Parlamento quando quisesse, em Portugal chefiou o parido liberal.

A guerra entre esses dois partidos dividiu Portugal a fundo. Quase todas as boas famílias de Portugal tiveram antepassados lutando ou do lado dos “miguelistas”, ou de Dom Pedro I, ou de sua filha, Dona Maria da Glória, a quem ele deixou os direitos quando morreu.

Morto Dom Pedro I, sua imagem apagou-se na recordação dos brasileiros como fato político, mas permaneceu como fato lendário-histórico. E ficou como a de um príncipe tumultuoso e inconstante.

Muito curiosamente veio parar em mãos de minha família uma espada pertencente aos partidários de Dona Maria da Glória, filha de Dom Pedro I. Era uma espada em forma ligeiramente curva à maneira das espadas turcas, em cuja copa estava esculpida em marfim uma cabeça de turco, com turbante e tudo. Na espada vinham gravados os dizeres: “Viva Dona Maria I”. Era, portanto, uma arma com a qual tinha combatido algum homem graduado, provavelmente nobre – a julgar pelo tipo da espada –, a serviço de Dona Maria I. Quer dizer, a favor da causa constitucionalista.

Infelizmente, quando se dividiram os bens de minha família, isso ficou com outro ramo e não sei que fim levou. Assim, não pude reter essa espada que era uma curiosidade.

Como o voo aloucado de uma arara

Apesar de tudo, há alguns lances brilhantes da vida de Dom Pedro I, como o casamento dele com a Princesa Leopoldina d’Áustria, a Proclamação da Independência do Brasil. Além disso, o fato de ele ser um homem cheio de repentes e aventuras, e o próprio caso da Marquesa de Santos, deu um certo colorido à sua vida – um colorido vivaz, mas nem sempre limpo… Trata-se de uma pessoa cuja biografia se compreende, por exemplo, que uma revista publique porque é uma coisa interessante.

No total, a recordação dos brasileiros é positiva. Vê-se, por exemplo, uma coisa curiosa em Brasília, a cidade moderna projetada por Oscar Niemeyer. Na sala do Presidente da República – que é um recinto inteiramente do estilo da cidade –, atrás da cadeira de despacho dele, colocaram um quadro representando Dom Pedro I como Imperador do Brasil, com todas as suas condecorações.

Pode-se bem compreender o que isto representa no sentir de toda a Nação. Não foi um homem qualquer, mas um chefe de Estado hábil que mandou pendurar o quadro lá, por saber que causava bom efeito em todos os visitantes do exterior e do interior que ali chegassem e encontrassem a recordação daquele homem, com aquele passado.

Imaginem uma arara que voasse de modo meio aloucado, ora quase caindo, ora subindo novamente, mas que durante seu voo nada bonito desse a oportunidade de se ver, em vários aspectos, suas lindas penas coloridas. Este foi o reinado de Dom Pedro I e o sulco que deixou na alma e na formação psicológica do Brasil.

“Meu Imperador e meu filho!”

Dom Pedro I tinha um ministro com quem conviveu numa amizade adversária e numa adversidade amiga: José Bonifácio de Andrada e Silva. Os três irmãos Andrada eram inteligentíssimos e tinham feito excelentes estudos em Coimbra. José Bonifácio viajou por vários países da Europa e se tornou amigo de muitos dos homens que haveriam de trabalhar depois na Revolução Francesa. Mas ele era caracteristicamente um aristocrata brasileiro.

Havia no Brasil duas espécies de aristocracia: uma era a aristocracia dos nobres de Portugal vindos para cá, nomeados pelo rei; outra, nascida da terra. Famílias que vieram para cá, não aristocráticas, que se constituíram aqui, tiveram larga descendência e uma longa série de gerações de proprietários rurais, exercendo seu domínio sobre extensões enormes.

Essas pessoas tomavam um ar, uma tradição e um jeito aristocráticos e descendiam, em geral, dos fundadores do lugar onde viviam. Eram reconhecidas pelas leis coloniais do Brasil como aristocratas, e não menos autênticos do que os portugueses. Era uma aristocracia nascida da terra. Isso se deu largamente no Brasil e de uma delas era José Bonifácio. Homem muito inteligente, cortês e representativo.

Com a partida de Dom Pedro I, os acontecimentos políticos no Brasil poderiam ter transcorrido de tal maneira que com ele fosse exilada para Portugal toda a sua descendência. Entretanto tal não se deu, e isso assegurou a unidade nacional. Porque o Brasil era grande demais para não se fragmentar, como ocorreu com as colônias espanholas quando ficaram independentes. A única coisa que podia torná-lo unido era um chefe de Estado não originário de nenhuma das Províncias brasileiras, mas que pairasse acima do Brasil como um símbolo.

Assim, mantiveram-se aqui os filhos de Dom Pedro I, órfãos de Dona Leopoldina e já então órfãos de pai também, porque este ia para longe, para outra vida com outra esposa. Eles ficavam sem nada… Dom Pedro I deixou como tutor de seus filhos o próprio José Bonifácio, como o mais capaz de educá-los, orientá-los.

Narra-se que, quando Dom Pedro I partiu para Portugal, José Bonifácio foi ao Palácio Imperial tomar contato com as crianças, e apresentaram-lhe, deitado numa almofada, o Imperador Pedro II. Ele tomou com ternura a almofada com o pequeno monarca e disse: “Meu Imperador e meu filho!” O que é uma exclamação muito brasileira…

A reverente compaixão nacional pousou sobre essas crianças órfãs e isoladas, a bem dizer pupilas do País inteiro, e por cuja salvaguarda, educação, saúde, casamento sentia-se responsável a Nação inteira também.

Desabrochava, assim, um vínculo filial e afetivo em torno da figura de Dom Pedro II, de todo o seu reinado e de sua família, constituindo uma espécie de relação familiar que vinha desse berço de onde renascia a monarquia. E fez com que Dom Pedro II, ao longo de sua vida, se tornasse pai e depois avô do Brasil.      v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1985)

Revista Dr Plinio  252 (Março de 2019)

Oração: Faça-se a vossa vontade

Ó Mãe do Bom Conselho, tende compaixão de mim nos desacertos e nas perplexidades em que minha alma culpada se encontra. No meio de todas as minhas misérias, vossa graça me dá a convicção de que é melhor qualquer padecimento a continuar como estou. Portanto, se a condição para deixar o estado infeliz em que me encontro é que Vós me façais sofrer, peço-vos a força para suportar o sofrimento que me enviardes. Com os joelhos dobrados em terra e as mãos unidas, de toda a alma, ó minha Mãe, peço-vos o sofrimento necessário para eu ser totalmente vosso.

Entretanto, se for possível unir-me inteiramente a Vós sem esse sofrimento, suplico-vos que afasteis de mim esse cálice. Mas, a exemplo de vosso Divino Filho, digo: Faça-se a vossa vontade e não a minha! A vossa vontade, Mãe de misericórdia, pois Vós sois o conduto necessário, por desígnio de Deus, para subirmos a Ele e para que as graças venham até nós.

Mãe do Bom Conselho, uma vez mais vos peço, tende piedade de mim!

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

Santo Edelberto, Rei de Kent

A história da conversão e santificação do primeiro rei católico inglês oferece a Dr. Plinio oportunidade de nos aconselhar a prática da prudência e da sabedoria semelhantes às exercitadas por Santo Edelberto, pelas quais seremos sempre capazes de escolher o bem e rejeitar o mal.

 

No dia 24 de fevereiro a Igreja celebra a festa de Santo Edelberto, Rei de Kent, na Inglaterra. Segundo nos relata o Martirológio, foi o primeiro dos príncipes dos anglos que se converteu ao cristianismo, pela evangelização do Bispo Santo Agostinho, em Canterbury, no ano de 616.

Os missionários do Papa recebidos com procissão

Sobre Santo Edelberto, diz Rohrbacher, na sua Vida dos Santos:

Em 596, o Papa São Gregório Magno enviou, sob a chefia de Santo Agostinho, um grupo de missionários à Inglaterra, então pagã. Aportando à ilha, os apóstolos fizeram saber ao Rei Edelberto de sua chegada e que lhes traziam uma mensagem de vida eterna. O soberano, que por intermédio de sua esposa já ouvira falar da religião católica, prometeu recebê-los numa entrevista pública.

Os monges chegaram em procissão, trazendo como estandarte uma cruz de prata e a imagem do Salvador pintada num quadro, entoando ladainha a Deus em prol da salvação deles e do povo pelo qual haviam se dirigido à Inglaterra. Mandou o soberano que se sentassem e eles começaram a lhe anunciar o Evangelho.

Prudente atitude do Rei Edelberto

Respondeu Edelberto: “As vossas palavras e promessas são belíssimas. Mas por serem novas e incertas, não me é dado aquiescer e deixar o que tenho observado há tão longo tempo com a nação dos ingleses. Todavia, como viestes de longe e como se me afigura perceber que desejais participar-me aquilo que julgais ser mais verdadeiro e melhor, em vez de vos opor obstáculo, vos recebemos bem e vos damos o que é necessário à vossa subsistência. Não vos impediremos de atrair para vossa religião todos quantos puderdes persuadir”.

Protegeu os cristãos, converteu príncipes e edificou igrejas

Cedeu-lhes, então, um abrigo na ilha que receberia, no futuro, o nome de Cantuária. Algum tempo depois, impressionado com o exemplo dos monges e com sua doutrina, o rei converteu-se e foi batizado. E dos vinte anos em que ainda viveu, dedicou-os à propagação da fé entre seus súditos, apoiado e exortado pelo pontífice Gregório Magno.

Protegeu os cristãos, levantou templos, fez leis admiradas e imitadas durante séculos, aplicou-se também à conversão dos príncipes vizinhos e conduziu dois deles ao cristianismo.
Faleceu Santo Edelberto em 606. Seu exemplo frutificou, pois nunca nação alguma deu à Igreja tantos reis santos quanto a Inglaterra.

Grandes figuras de fundadores da Idade Média

Aparecem-nos aqui duas grandes figuras de impulsionadores da Idade Média. Por essa breve e bela narração, podemos conceber o encontro de um insigne missionário, que é Santo Agostinho da Cantuária, com um extraordinário monarca fundador, Santo Edelberto.

Refiro-me a ele como fundador, porque da Inglaterra anterior à conversão pode-se dizer não passava senão de uma nação ainda em seus primórdios. Não havia uma civilização britânica, nem uma Inglaterra propriamente dita. Existiam apenas os germes da futura Inglaterra que, em contato com Santo Agostinho, floresceram e deram na nação em que ela se tornou posteriormente.

Magnífico preâmbulo de evangelização

A solenidade que o historiador nos descreve é, na verdade, maravilhosa. Podemos imaginar aquele rei e seus guerreiros semi-bárbaros, congregados na clareira de uma floresta, e, admirados uns, céticos outros, vêem chegando ao longe, entoando cânticos e ladainhas, Santo Agostinho com os seus monges e seguidores. Os enviados do Papa São Gregório Magno se aproximam, cumprimentam-se, são convidados a se sentar e começam as conversas entre apóstolos e futuros convertidos.

Sabedoria e simpatia

Percebe-se claramente a atitude ao mesmo tempo sábia e simpática do Rei Edelberto. Com efeito, embora se veja o coração dele tocado pela doutrina e exemplos de Santo Agostinho, ele responde com muita liberdade de movimentos e de palavras, dizendo: “Tudo o que vós nos dizeis é muito belo, mas não posso mudar de ideia tão depressa, abandonando as crenças que herdei de meus maiores. Desejo estudar melhor essas novidades que nos trazeis”.

Porém, ele o disse com notória benevolência e inclinação para aceitar o Evangelho, pois em seguida, ele agradece a Santo Agostinho e aos que o acompanhavam por terem vindo de tão longe para lhes falar, oferece-lhes um bom abrigo e lhes concede liberdade para pregarem e converterem à religião deles quantos o quisessem.

Ou seja, a posição dele em relação a Santo Agostinho revela um primeiro passo de sua alma em direção àquela verdade cujo precônio ele estava ouvindo naquele momento.

Confirmando essa sua intenção, ele facilita todas as coisas para a missão apostólica de Santo Agostinho, e este logo dá início à tarefa de evangelizar o povo e instaurar a religião católica na Inglaterra. Santo Edelberto, depois de examinar devidamente a nova doutrina, como homem consciencioso que era, abraçou-a de toda a alma. Converteu-se, tornou-se um modelo de soberano cristão, edificou igrejas, trouxe para o catolicismo outros príncipes ingleses e protegeu os súditos que foram acolhidos no grêmio da Santa Igreja Católica.

Pela ação da graça, discernimos a religião autêntica

O exemplo da conversão de Santo Edelberto nos faz deitar a atenção sobre um ponto que merece ser considerado. Trata-se de que, as condescendências primeiras que manifestamos em relação a alguma doutrina, revelam nossa simpatia: boa, quando para o bem; má, se tende para o mal.

Assim, quando alguém, de bom espírito, estranho à religião católica toma contato com esta, ver-se-á sob uma especial ação da graça, pela qual lhe é dada a possibilidade de vislumbrar — de propósito não afirmo que é dada uma certeza absoluta, mas um vislumbre — que ela tomou conhecimento da religião verdadeira. Donde, será bom todo movimento que essa pessoa faça no sentido de abraçar essa religião.

Pelo contrário, quando um católico trata com uma religião falsa, tem todos os elementos para se saber em presença de uma doutrina errônea. E, por conseguinte, todo movimento de simpatia para com tal doutrina será ruim.

Peçamos a Nossa Senhora, pelos rogos de Santo Edelberto, que nos conceda uma prudência e uma sabedoria semelhantes àquelas de que ele nos deu exemplo, e saibamos desse modo sempre escolher o bem e rejeitar o mal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/2/1966)

O belo e o prático

Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são exemplos característicos dessa verdade.

Tendo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos algumas carruagens(1) que se encontram no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.

A parte nobre do corpo do homem deve aparecer mais que a inferior

Logo à primeira vista notamos como o chão dessa carruagem tem uma superfície menor do que a do teto; este se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que se considerarmos como chão apenas a parte onde está a porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto. A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito menos.

Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo, é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre, em que ele aparece como um busto. Imaginem que este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até embaixo. Perderia enormemente.

Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou da dama, em atitude monumental, escultural.

Harmonia entre as diversas partes da carruagem

O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que transporta, e outra a que é transportada. A parte que transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor. Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que quando o carro para, imediatamente eles descem e vão correndo abrir as portas e pôr um banquinho embaixo — que já vem dentro do próprio carro —, para que o passageiro não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para baixo?

Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia muito grande com a porta aberta; e, não havendo um fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.

Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que são transportados.

Notem a diferença de construção das rodas da frente com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes. A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados, há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira que os passageiros não sejam jogados para frente ou para trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de providências práticas que são muito belas.

O prático disfarçado pela beleza

Está posta uma situação digna de nota, em que o prático existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”

As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.

Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao calçamento está calculada para a perfeita comodidade das pessoas que se encontram no interior da cabine.

Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas, conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente. O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes, e faz parte do dever delas apresentar esta beleza, pois as instituições políticas devem ornar os povos. O mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.

As carruagens e a hierarquia existente numa sociedade

Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?

Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo, mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas bonito.

Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer um carro assim?

Não, porque toda sociedade, qualquer que seja a forma de governo, deve ter uma hierarquia. E é preciso que essa hierarquia seja harmônica; quer dizer, não haja um tombo entre o primeiro carro e depois apenas liteiras. Convém que essa hierarquia seja por degraus. Este não é um carro para rei, mas para príncipes.

Por causa disto, ele é distinto, mas notem que a presença do ouro nele é muito menos abundante: o teto dele é muito menos ornado e de uma cor comum. As formas das janelas são muito menos fantasiosas e mais retilíneas, mas a justaposição de vermelho e ouro é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro possui, mas de modo menos excelente.

Essas carruagens são do museu dos coches da corte, mas se houvesse um museu dos coches da burguesia, outro dos coches do clero, etc., simplesmente pelos coches teríamos uma ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.

Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias da classe popular tinham para se fazer transportar, eram interessantes. É a hierarquia social em que cada elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo. E constitui uma boa organização social.

Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.

Ósculo entre o belo e o prático

Considerem um pouco o prédio do museu e notem como a sala dos coches é muito bem calculada. Vistas num conjunto, todas as coisas belas apresentam uma beleza maior do que a simples soma delas. E por isso é bonito ver os coches no seu conjunto. Então foi feito um salão bem alto, com uma grande galeria em cima, para que o conhecedor possa percorrer os vários lados e analisar os coches no seu conjunto.

Para guardar bonitos coches tudo foi bem preparado. Quadros a óleo, provavelmente do tempo, representando cenas que se passaram neste ou naquele coche. O teto todo pintado e trabalhado. Tem-se vontade de haver ali no fundo, onde há uma cortina, um órgão para serem tocadas músicas extraordinárias, celebrando o passado de Portugal.

Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um elemento de grande valor para o prestígio atual de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal. Em geral, as nações que foram colônias se revoltam contra as metrópoles, e rompem à mão armada. Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique, gente que está lutando para que essas nações voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que muitos angolanos, moçambicanos que visitaram esse museu, levando álbuns com visões de coisas destas para Angola e Moçambique, deram o sabor da cultura portuguesa, e concorreram para esta união de Portugal com os seus súditos. Nós, de origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam, se encontram. Era preciso termos chegado a este século descabelado e sujo para que se imaginasse esse dissídio entre o belo e o prático.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/10/1986)

1) As fotografias que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.

Misericórdia

Na gloriosa corrente constituída pela Santíssima Trindade, Nossa Senhora e o Papado, este último vem a ser o elo menos vigoroso: porque mais terreno, mais humano e, em certo sentido, estando envolto por aspectos que o podem menoscabar.

Costuma-se dizer que o valor de uma corrente se mede exatamente pelo seu elo mais frágil. Assim, o modo mais excelente de amarmos essa extraordinária cadeia é oscular o seu elo menos forte: o Papado. É devotar à Cátedra de Pedro, em relação à qual esmorecem tantas fidelidades, a nossa fidelidade inteira!

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Cátedra de São Pedro

Uma lenda antiga nos conta que à beira de certo lago havia um rochedo que crescia à medida que as ondas o acometiam, de sorte a nunca ser submergido, ainda nas maiores tempestades. Hoje em dia, este rochedo é a Pedra, é a Cátedra de Pedro, que tem avultado com as revoluções, zombando das heresias, crescendo em vigor à medida que seus adversários crescem em rancor.

Há já vinte séculos, ela vem espargindo água benta sobre os adversários prostrados no caminho. (…) Neste mar revolto do século XX, naufragam homens, idéias e fortunas. Só ela continua e será “via, veritas et vita”, devendo ser aceita pela humanidade, para levantar um voo salvador sobre o próprio abismo que ameaça tragá-la…

Plinio Corrêa de Oliveira (Do “Legionário”, nº 130, de 15/10/1933)

Escravidão de amor a Nossa Senhora

Eis a conclusão das palavras dirigidas por Dr. Plinio a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração a Nossa Senhora, pelo método de São Luís Grignion de Montfort. Dr. Plinio lhes  explicara inicialmente o contexto no qual esse Santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

 

Em seu “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, São Luís Grignion estabelece vários princípios que justificam a nossa consagração a Ela como escravos de amor.

Medianeira desejada pela Providência

O mais importante deles é a mediação universal de Nossa Senhora. Ou seja, o fato de que Ela é a medianeira entre Deus e os homens para a obtenção e a distribuição de todos os dons divinos que  pedimos ao Céu.

De tal modo essa intercessão de Maria é querida pela Providência que — ensinam os teólogos — nada do que os fiéis pedem a Deus seria alcançado, se a Santíssima Virgem não rogasse também  por eles. Pelo contrário, se Ela sozinha fizer a mesma oração em seu favor, será atendida.

Compreende-se. Escolhida para ser a mãe do Verbo encarnado, sempre imaculada e cheia de graça, a união que Nossa Senhora tem com Jesus é a mais alta que uma simples criatura humana pode ter com Deus. Em virtude desse vínculo extraordinário, Nosso Senhor nada recusa à sua Mãe, o que faz d’Ela uma intercessora onipotente junto a Ele. Esse é o princípio ensinado por São Luís Grignion e reconhecido pela Igreja.

Passemos a outro ponto.

Co-redentora do gênero humano

Quando foi decidido pelo Pai Eterno que Jesus Cristo deveria morrer para expiar nossos pecados, quis Ele ter o consentimento da Santíssima Virgem, o que representou para Ela um golpe  espantoso. Pensemos em nossas mães. Se alguém lhes dissesse: “Quer me dar seu filho, para que ele sofra blasfêmias, seja ridicularizado, perseguido, preso, entregue ao desprezo e ao ódio do povo, flagelado, coroado de espinhos, obrigado a carregar sua cruz até o Calvário e morra de modo atroz?” — nenhuma delas cederia o filho! Não há mãe que queira isso para aquele que ela trouxe ao mundo.

Porém, Nossa Senhora sabia ser necessário esse holocausto para a redenção do gênero humano. Ela deu seu consentimento, e com isso sofreu uma dor intensíssima, como se um gládio Lhe  transpassasse o coração. Daí vem a devoção a Nossa Senhora das Dores, e a imagem d’Ela com o coração aparente, atravessado por uma espada.

É uma evocação do sacrifício que Ela fez.

Nos seus eternos desígnios, Deus quis que esse padecimento de Maria fosse unido ao de Nosso Senhor para resgatar os homens, e por essa razão Ela é chamada pela Igreja de Co-redentora do  gênero humano.

Nossa Senhora é nossa arqui-mãe

Em conseqüência dessa participação de Nossa Senhora na redenção do mundo, podemos dizer, com inteira  propriedade, que Ela é nossa mãe: sem o auxílio e o consentimento d’Ela, não teríamos  nascido para o Céu e para a vida da graça. Ela aceitou e quis o sacrifício de seu Divino Filho por todos e cada um dos homens, até o fim dos tempos, e é, portanto, mãe de todos e cada um de nós.

Mãe a um título mais alto que simplesmente o de mãe natural, posto ser mais alta a vida sobrenatural para a qual Ela nos gerou. Em certo sentido, Ela é a nossa arqui-Mãe, a Mãe das mães. E tem, então, para conosco, uma tal misericórdia, que São Luís Grignion de Montfort não hesita em afirmar que Maria ama cada um em particular mais que todas as mães somadas amariam seu filho  único. Daí, diga-se de passagem, a entranhada confiança que devemos depositar na clemência d’Ela.

É louvável que nos consagremos a Nossa Senhora

Ora, se Nossa Senhora nos deu de tal maneira seu sacrifício, sua alma, se Ela nos amou a tal ponto, se é tão autenticamente nossa mãe, se Ela nos ofereceu seu Filho, o Filho de Deus, se O imolou por nós, se nos cumulou de tantos bens, é justo e louvável que nos consagremos a Ela por completo. Eis a tese de São Luís Grignion.

Pertencemos a Ela, de direito, pelo que Ela fez por nós. O santo autor diz muito bem que, quando um rei (ele se referia aos monarcas absolutistas) conquista um povo, torna-se senhor desse povo.

Nossa Senhora nos comprou e nos conquistou por seu sacrifício, e por isso Lhe pertencemos. Mas, como somos seres inteligentes e livres, é preciso que, por uma deliberação nossa, nos  entreguemos a Ela. Com nosso consentimento, essa união se torna completa.

De fato, não pode haver dom mais proporcionado ao que Nossa Senhora nos fez, do que a doação de nós mesmos a Ela, como seus devotíssimos escravos. Quer dizer, a escravidão de amor à  Santíssima Virgem Maria como Mãe de Deus, como nossa Co-redentora e nosso celestial amparo.

Características dessa escravidão

Por essa escravidão consagramos nossa vida nas mãos de Maria Santíssima, e Lhe entregamos todos os nossos méritos para que disponha deles como melhor quiser. Convenhamos, não é um  muito bom negócio para Ela… Que são os pobres méritos dos homens em comparação com os que Ela alcançou! Mas, se é este o desejo d’Ela, deixemos que Nossa Senhora use de nossos méritos  como Lhe aprouver, em benefício de terceiros, em tal intenção da Igreja, etc., etc. São Luís Grignion, entretanto, procura nos fazer ver a inestimável vantagem dessa entrega, aplicando à  generosidade de Nossa Senhora uma expressão francesa muito interessante: “Em troca de um ovo, ela nos dá um boi”. Ou seja, damos diminutos méritos e, em retribuição, Ela nos concede uma  torrente de graças.

Devemos, pois, fazer tudo o que Nossa Senhora deseja que façamos, quer dizer, cumprir a lei de Deus e procurar sermos perfeitos. Em outras palavras, tudo o que sabemos que seja o melhor para  os interesses da Igreja, segundo a moral e a perfeição cristã. Em compensação, Ela nos toma sob sua proteção de modo especial, e nos torna beneficiários de méritos superabundantes.

Eis no que consiste essa consagração de amor à Santíssima Virgem.