O Divino Interlocutor

Em sua concepção sacral da existência, no processo de seu pensamento e até na elaboração de uma arte de conversar, Dr. Plinio tinha como fonte de inspiração e ponto de convergência o Sagrado Coração de Jesus.

 

Início, expansão e morte

E isso é tão diferente nas várias espécies de vegetais, e em cada planta em particular! É diverso nos bichos e nas velocidades materiais. E também em todo o processo de pensamento e de desenvolvimento do homem.

Nesse crescer, expandir-se e morrer, Deus Nosso Senhor fez um verdadeiro jogo de maravilhas, que evidentemente as pessoas que cultuam a natureza não se dão o trabalho de apreciar. Porque isso supõe um mínimo de pensamento, de contemplação e de meditação. E esse tipo de meditação, em geral, elas não querem fazer.

Tudo isso — nas plantas, nos animais e nas velocidades materiais — é simbólico, de um modo ou de outro, do processo do homem; é simbólico da vida terrena de Nosso Senhor e da trajetória da História, do curso dos acontecimentos.

Até mesmo certas coisas que são feitas para matar e não para viver — por exemplo, uma batalha — têm seu começo, seu crescimento, depois seu murchamento, e caem. Um dos aspectos bonitos desse estudo é a questão dos recrudescimentos: quais são suas origens, que forças têm, como se faz um recrudescimento. Só o tema dos recrudescimentos daria para uma doutrina interessantíssima da Contra-Revolução.

Até os fogos de artifício podem ter uma trajetória muito bonita nesse sentido.

Um universo de belezas

Uma das coisas que eu gosto de apreciar no mar é exatamente o nascimento da onda, depois o sistema de ondas, quando elas arrebentam ou expiram na praia.

Também, a ilusória perpetuidade da calmaria… Como, dentro da calmaria, o primeiro elementozinho indica uma mudança completa das coisas que vão se acumulando. É um processo muito bonito!

Isto tudo é uma verdadeira maravilha que depois tem sua transposição para os processos políticos, para a história das instituições, das correntes de espiritualidade, etc.

Há um universo de belezas aí, que ao homem foi dado contemplar com olho rápido, furtivo e atento, porque não tem tempo para pensar nisso. Mas que é uma coisa lindíssima!

Por exemplo, há mortes que são como um Amazonas desembocando na eternidade; quase que empurra a eternidade um pouco para fora. Mas existem outras mortes como um riozinho pequenininho, humildezinho, que vai dar diretamente no mar e se perde, envergonhadinho, com um sussurro que o mar incorpora a si…

Há uma porção de coisas bonitas, interessantes, para ver dentro disso. E isso se aplica muito à história de um homem.

Por temperamento, sou muito estável e gosto das coisas estáveis, que duram na calmaria.

Não concebo o Céu num perpétuo movimento, mas com diferentes modos de ser da estabilidade. Não é a instabilidade; é a mutação dentro da estabilidade.

Processo de pensamento de Dr. Plinio

Todas as doutrinas e temas — portanto, também o conceito de sacralidade — têm um modo de se desenvolver peculiar de cada indivíduo. Em mim, essa peculiaridade é assim:

Primeiro, um nascimento cheio de intuições, de graças, ultra-alcandorado, em que entra de um modo especial uma visão confusa do ultra-maravilhoso e do ponto terminal bom, do ponto supremo, do auge; e o encantamento por esse auge.

Depois do auge bem visto, e de dar a ele tudo quanto naquele estágio da vida espiritual ele merece que se dê, então vem um período de aparente estabilidade; mas de fato é um período em que se vai “cozinhando” lentamente a explicitação.

Ao mesmo tempo — é como se dá concretamente comigo — um período de luta, em que a explicitação é ajudada possantemente pela contestação. Porque aquele conhecimento confuso, primeiro, vem acompanhado de uma implícita rejeição do que não é aquilo. E quando alguém afirma o contrário, vem a repulsa.

Na repulsa implicitamente fica mais conhecido aquilo que foi negado. E, ao mesmo tempo em que se prepara a apologética, elabora-se a explicitação. A apologética e a explicitação são fenômenos reversíveis um no outro. De maneira que eu me torno conhecedor das coisas por dois dados: por uma espécie de conaturalidade, e por uma espécie de repulsa daquilo que é contrário.

Num determinado momento, tudo o que se podia conhecer a respeito daquilo está conhecido, com os próprios recursos e com a observação concreta da vida. Aí chega a hora da leitura. Não antes.

Podem percorrer todos os livros de minha biblioteca, e encontrarão sinais disso. A leitura veio exatamente depois para ajudar esse processo, dando mais informações, fazendo com que a pessoa se situe ante o que diz o escritor e, portanto, julgue: é “sim”, é “não”, é “talvez”, é “conforme”, etc.

Depois de tudo isso feito, há mais uma vez uma nova aparente estagnação, em que todos esses elementos recolhidos são objetos de uma nova síntese. E vem uma visão final que depois cresce pouco, na aparência, mas que de fato tem muita intensidade. E prepara o ato de amor terminal.

Eu não sei se isso será assim em outros. Desconfio muito que não, e que varia muito de acordo com o caminho de Deus para cada pessoa.

A inocência é o princípio da sabedoria

Graças a Nossa Senhora, há nesse processo muita inocência. Porque não é só conhecendo a coisa em si, mas é conferindo os dados externos com a inocência. A inocência, nesse sentido, é um começar de sabedoria. Ela constitui uma espécie de ortodoxia.

O que eu disse agora, há um ano eu não teria tão claro a ponto de explicitar; neste momento estou explicitando com facilidade.

Na aparência, isso em mim se encontrava parado; mas, de fato, estava sendo preparada esta explicitação. O que indica que havia uma ação profunda — muito silenciosa, tranquila, discreta, mas não pouco ativa — para passar do último estágio de um conhecimento confuso para o conhecimento inteiramente definido.

Seria um crescimento contínuo sob a forma de estabilidade, mas na realidade trata-se de uma ação em profundidade. Mais ou menos como o desenvolvimento da árvore já crescida, que não cresce mais, mas suga da terra coisas que dão ao processo vital da árvore o meio de ir vivendo. Examinando bem, a árvore pode, durante muito tempo ainda, crescer em força e em volume por esse processo.

Então, o conhecimento da transcendência de Deus, por exemplo, depois de chegar a certo estágio, entra nessa fase de elaboração profunda, pouco perceptiva, que de repente dá um fruto muito mais sutil e melhor, que é fazer as correlações entre os conjuntos que se têm na mente, e daí nasce um determinado “unum”.

E esse é o píncaro do processo intelectual e moral. Porque esse píncaro já é a primeira nota, é a antífona do cântico que nós devemos entoar no Céu.

Procura do mundo dos possíveis

Esse é o processo de conhecimento das coisas que poderiam ou deveriam existir, algumas das quais existem. Por exemplo, quando vejo um belo castelo. Ele corresponde a ideias que todos tivemos na mente sobre um castelo inexistente. Então, minha primeira reflexão é: “Aqui está o inexistente que eu procurava!”

Muita coisa, que parece estar no mero mundo dos possíveis, existe. É questão de saber procurar. Em última análise, se fosse bem ordenado, o turismo perfeito seria uma procura pelo mundo dos possíveis que a pessoa não conheceu.

Essa procura é um pouco o que vai dando ânimo e movimentação à vida. O contrário é o tipo de velho que, no domingo, às três horas da tarde, junto com sua esposa, acabou de almoçar; ele está bem satisfeito e ela está aliviada porque o marido almoçou bem e gostou da refeição. Ele se senta numa cadeira e fica ruminando, com desapontamento, porque ele acha que não há mais possíveis.

Propriamente, a substância dessa velhice mal concebida é crer pouco nos meramente possíveis do Céu, e achar que na Terra não adianta conhecê-los, porque já se viu que todas essas coisas fanam. Então o velho fica sentado na cadeira, ruminando sua bronquite. Essa é a substância desse conceito de velhice.

Antigamente, como a senhora — de modo habitual, não necessariamente — era melhor do que o homem, ela ficava pensando um pouquinho no Céu e nas saudades do tempo que se foi.

O homem, pouco sujeito a saudades, não pensava no Céu, mas de vez em quando o relâmpago do Inferno lhe aparecia pela mente. E isso o levava a fazer a sua Confissão e Comunhão pascais. Assim era a velhice.

Havia uma casa — creio que não existe mais — na esquina da Rua Imaculada Conceição com a Rua Martim Francisco(1). Eu percebia, pela conformação do prédio, que existiam muitos quartos de dormir vazios; donde se deduz terem morado filhos ali, que depois tinham se mudado, e o casal residia sozinho.

Eu, então, imaginava o velho e a velha possível no nível daquela residência, que era uma casa mediana. Esse velho e essa velha eu os construía de vários velhos e velhas que tinha conhecido.

Como a ideia da Contra-Revolução foi elaborada no espírito de Dr. Plinio

Estou explicitando agora. Mas a explicitação é fruto de um trabalho lento, que a mim me dá a impressão de que não estou trabalhando, mas simplesmente vivendo. Eu diria que parei. Mas, de repente, saio com uma enxurrada de coisas que, assim, nunca pensei. É o lento trabalho terminal que deve aprontar na mente.

A Contra-Revolução, considerada no seu conjunto, teve exatamente esse papel no meu espírito.

Primeiro formei impressões, observei fatos, tomei conhecimento pela leitura de alguns tantos acontecimentos históricos, e também conheci muito pelas narrações, mais ou menos à Alexandre Dumas, que circulavam no ambiente familiar, a respeito desse ou daquele caso.

Por exemplo, Maria Antonieta. Na minha geração, o preconceito contra Maria Antonieta era uma coisa atroz: “Mulher dura, má, traidora, favorecia os austríacos! De uma beleza esplendorosa — era vista assim — que fazia com que todas as mulheres feias ficassem complexadas, pensando nela!”

Mas contavam que o povo faminto chegou a Versailles, e ela estava tão alheia às verdadeiras necessidades do povo que disse: “Então, se vocês não têm pão, comam brioche”. E ela nem sabia bem que brioche era mais caro que o pão; porque problema de dinheiro não existia para ela. Então deu um conselho que provava — assim diziam — como ela vivia alheia ao sofrimento do povo.

Eu me lembro de, ainda pequeno, perguntando para Dona Lucilia:

— Mas, mamãe, o que é brioche?

— Uns bolinhos excelentes.

Não cheguei a me perguntar por que ela não fazia brioche para eu comer. Até lá a gula não chegou… Mas vejam a provação para uma criança que ainda não sabe o que é brioche:

“Então as pessoas bonitas, alinhadas, estiladas, superiores não têm coração porque seguem demais regras e se endurecem com essas regras? Por que seguir a regra endurece e cega para a compaixão com os que não conseguiram seguir a regra? Então, seguir as regras é mau?”

Minha resposta interior:

“Não pode ser. Porque entre bem e bem não pode haver incompatibilidade.”

A doutrina não é o ponto de partida, mas o de chegada

A importância que dou ao raciocínio faz com que eu não considere nada por acabado se não foi raciocinado. Porque todo esse processo de intuição tem que chegar a raciocínios que provem ou não provem aquilo que foi antes intuído, apalpado, pressentido.

Podem, então, imaginar o meu encantamento lendo o “Tratado de Direito Natural”, de Taparelli d’Azeglio, o “Tratado de Sociologia Católica”, de Albéric Belliot, um franciscano; enfim, uma flotilha de coisas que eu li e me provaram, por exemplo, a legitimidade do direito de propriedade, que era uma coisa instintiva, mas cuja legitimidade eu apanhei aí.

Quando vi que o direito de propriedade, a instituição da família, a indissolubilidade do vínculo matrimonial, a autoridade paterna — cuja liceidade era intuída por mim — se baseavam num raciocínio claro, límpido, perfeito, tive um entusiasmo enorme!

Isso deu ao meu pensamento uma estrutura que veio depois de mil apalpações.

Essa é uma característica do meu espírito: não começar por ler a doutrina, mas por pegar a realidade. Depois de ter intuído na realidade, ir ver a doutrina. E aí ter um contentamento, um gáudio enorme.

Estou longe de ser daqueles que julgam dever prescindir da doutrina, mas a questão é que para muitos a doutrina é o ponto de partida, e na conformação do meu espírito é o ponto de chegada.

Todas essas coisas com o tempo acabam formando um depósito primeiro de impressões maturadas, para raciocinar. E enquanto já vou raciocinando algumas de minhas impressões, continuo a maturar ou explicitar outras. Então, nós poderíamos dizer que esse processo é:

Primeiro: observar, captando e classificando subconscientemente.

Segundo: estabelecendo oposições, e começando por aí a explicitação.

Terceiro: fazer os primeiros raciocínios que constituem pontas de trilho para que, daí para diante, em contato com qualquer coisa nova o processo inteiro vai se movendo.

Concepção sacral da vida

Isso forma inclusive o progresso na vida espiritual.

Por exemplo, a noção de sacralidade, no começo, é muito mais vívida em relação à Igreja. Depois menos em referência à autoridade paterna dentro da família como entidade toda ela sacral, num certo sentido especial da palavra “sacral”. E também em relação ao mito monárquico dentro do Estado, que pode ser sacral se o indivíduo quiser vê-lo assim, oferecê-lo à Igreja e pedir as bênçãos dela a fim de sacralizá-lo.

Isso acaba dando lugar a uma noção de sacralidade adequada às coisas temporais, que é um desdobramento da noção do sacral — própria das coisas estritamente espirituais e sobrenaturais — e formando no espírito vários degraus e modos de ser da sacralidade, cujo auge sempre me pareceu como sendo a Consagração durante a Missa, mais do que a minha Comunhão.

Agora, uma coisa que é pessoal: sou mais sensível à sacralidade do ato da Consagração, enquanto considerado na Consagração do vinho e a apresentação do cálice para o povo adorar, do que na Consagração do pão e a apresentação para ser adorado.

Eu tinha a impressão — que soube, depois, não corresponder à realidade — de que a transubstanciação se dava no momento da elevação. E daí aquele respeito e aquela veneração! Porque nos fiéis há um redobrar de respeito e veneração, quando o Santíssimo é elevado. Compreende-se, porque é exposto para eles adorarem, então fazerem um ato interior que corresponde a essa exposição. Mas eu achava que era porque a transubstanciação estava se dando naquele momento.

A forma material do cálice é tão evocativa do que é o oferecimento da sacralidade! Uma alma que se oferece, ou oferece alguma coisa de dentro de si, é tão bem representada por um cálice que se abre e que dá tudo o que tem! Por outro lado, o vinho é tão mais parecido com o sangue, do que o pão o é com o corpo, que tudo isso me dava mais sensação — puramente física e analógica — de sacralidade.

A simples presença do Santíssimo Sacramento exposto me dava uma sensação de sacralidade colossal. Muito mais do que o Santíssimo guardado na capela-mor. Poder chegar perto d’Ele, adorá-Lo, produz em mim impressões de sacralidade que eu acho que possuem qualquer coisa de místico, muito maiores do que as que se têm em contato com a sociedade temporal.

Mas por esse progresso de alma de que estou falando, a pessoa vai compreendendo que em formas, termos e modos diferentes, a sociedade temporal inteira acaba tendo qualquer coisa de sacral. E, então, uma concepção toda ela sacral da vida vai se maturando lentamente, ao longo das décadas, para depois fazer uma conferição com os autores especializados.

Porque a palavra definitiva é deles. Eles representam a Igreja, que é infalível e, portanto, vamos ouvir o que a Santa Mãe Igreja ensina a esse respeito. E ensina, na força da palavra “ensinar”: quer dizer, ela é a Mestra infalível, eu sou o aluno bobo que posso ter feito um engano, e apresento a ela aquilo que pensei.

No princípio não estava o livro, mas o pensamento

É um processo que, em certo momento, entra numa aparente estagnação, e continua a elaboração em profundidade. De maneira que quem me conhece há muito tempo, é possível que tenha tido ideia de que em algumas coisas eu estou me repetindo indefinidamente. Mas se forem examinar de perto notarão que tem sempre alguma coisinha nova, que corresponde em profundidade a esse processo lento.

Mas isso levanta um problema: Esse não é — em suas linhas gerais, não nos seus pormenores — o próprio método de pensar legítimo do espírito humano?

Vamos formular a coisa assim: O primeiro livro foi escrito por um homem que não teve livros. Então, a cultura nasceu de um pensamento anterior ao livro. Logo, no processo intelectual, no princípio não estava o livro, mas o pensamento.

Então, eu volto ao ponto de partida.

O “unum” é o Sagrado Coração de Jesus, de uma majestade infinita, doçura infinita, sabedoria infinita, de um poder infinito e de uma bondade infinita; para dizer só alguns atributos. Tudo isso é uma síntese para chegar até Ele, compreendê-Lo.

A teoria geral das várias formas de crescimento, de desenvolvimento, que apresentei no começo da reunião, parece não ter relação alguma com Ele. Mas, no fundo, é a Ele que visamos. Ele é o alfa e o ômega; o “unum” é Ele! Ele é o começo e o fim de tudo. E se de algum modo todas essas reflexões não visassem o melhor conhecimento d’Ele, não teriam valor.

Numa conversa os espíritos vão evoluindo juntos, como num dueto musical

Em toda essa teoria, a conversa tem um papel enorme, porque ela, no fundo, requer certo discernimento dos espíritos e uma percepção do que convém ou não ser dito. Quando não convém, deve-se ter o suficiente desapego para não tratar.

Muita gente conversa sobre aquilo que tem vontade de conversar. Isso é a morte da conversação. A conversa boa nem é sobre aquilo que tenho, ou meu interlocutor tem, vontade de conversar; mas sim tratar daquilo em que nós dois podemos igualmente gostar de conversar. O resto é a morte da conversação.

À medida que uma conversa está bem travada, os espíritos vão evoluindo juntos, como num dueto musical. E quando se entendem bem, vão mudando de tema igualmente, muito mais por apetências do que por nexos lógicos. Entra em algo o nexo lógico, mas são nexos psicológicos, mudanças de temas vizinhos, que vão fazendo com que as duas pessoas gostem das mesmas coisas. Então a conversa aí se torna deliciosa.

É mais ou menos como, por exemplo, duas pessoas que passeiam juntas no centro de Roma, a caminho das catacumbas. Passam por uma loja qualquer que tem gravatas bonitas; os dois estão precisando comprar gravatas; param, olham, gostam, conversam. Depois transitam em frente a uma confeitaria, e comem algum doce. E assim chegam à catacumba.

A conversa só pega mesmo — ao menos é a impressão que eu tenho — quando na pontinha do que está sendo conversado há qualquer coisa que é uma graça de Deus, sobre alguma coisa de transcendente, maravilhoso, que, por uma pontinha de consolação sensível, ambos estão sentindo.

Pode ser o “unum” ou não. Pode ser uma consolação, que todos têm juntos, sobre um ponto que Nossa Senhora quer glorificar. Então, a conversa em geral tem um fundinho comum de supremo. E quanto mais esse fundinho é sentido por todos, mais a conversa é animada.

Donde se tira uma conclusão linda: o principal interlocutor é o Interlocutor Divino, presente em nossa conversa, falando dentro das nossas almas e elogiando-se a Si próprio por nossos lábios.

A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece

Isso dá uma elevação ao conceito de conversa, em que Deus está sempre presente; não só — e já é muito! — através da Fé, mas também, no fundo, por alguma coisa comunicada diretamente pela graça, que se torna sensível e causa alegria. Esse é o sal da conversa, e que a Providência dá quando quer. É certa forma de sensível. Não é uma mera troca de ideias teórica, mas algo que vai mais alto.

Eu volto a dizer: pasma, mas é fato, o Divino Interlocutor é propriamente Aquele que fala. Ele fala pela boca de um, responde pela boca de outro e Se alegra pelo coração de todos. É uma coisa muito bonita!

Pode-se dar um fato parecido com esse, na ordem meramente natural. O exemplo mais característico disso é este: quando se está muito longe do país em que se nasceu, e vários co-nacionais se encontram inesperadamente em algum lugar, sai uma conversa animada.

O que há no gáudio de, por exemplo, vários brasileiros se encontrarem na Tailândia, inesperadamente, formarem uma conversa animada e serem capazes até de ir almoçar juntos?

Há um fato natural meio parecido com o sobrenatural — porque há muita analogia entre certos fenômenos naturais e outros sobrenaturais —, que é um ponto comum da alma do brasileiro e do ambiente do Brasil; o brasileiro, que se sente muito isolado quando está na Tailândia sem ter com quem conversar, quando encontra outros com o mesmo ponto comum, aquilo aflora com uma veemência extraordinária, e faz na conversação o papel natural, semelhante ao que a graça opera no tipo de conversa de que falávamos.

Outra coisa se dá quando alguns dos interlocutores, por serem bons católicos, são objetos de uma graça por onde os demais podem ficar deslumbrados. Isso pode ocorrer até no relacionamento entre um jovenzinho e seus colegas.

O que se passou nesse caso? É algo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora enquanto canal necessário do Redentor, porque foi dita alguma coisa da Doutrina Católica, ou qualquer outra matéria por onde eles percebem, por um discernimento de espíritos que lhes foi dado no momento alguma coisa de maravilhoso e de celeste.

E isso pode determinar dois rumos diferentes: a conversão dos que estão ouvindo ou a perversão de quem está falando. Porque este fica sujeito ao seguinte raciocínio: “Aqui me compreendem mais do que nos meios católicos que frequento. Portanto, vou frequentar mais este ambiente porque aqui faço apostolado…” Mas, de fato, ele vai se atolando naquele ambiente mundano.

A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece. Quando está presente esse lado sobrenatural, é uma oração, uma coletiva elevação da mente a Deus.

Porém naqueles salões do período do “Ancien Régime”(2) — era uma coisa medonha! — havia uma graça propriamente sobrenatural, católica, de caridade fraterna, que dava na “douceur de vivre”(3), manifestamente presente lá, misturada com a frivolidade mais escandalosa e com a irreligião categórica.

Desde que o Divino Interlocutor esteja presente, a conversa é o verdadeiro prazer da vida

Uma pessoa frívola costumava dizer, na minha presença, que o verdadeiro prazer da vida era uma boa conversa. Também acho que conversar, desde que o Divino Interlocutor esteja presente, é o gosto da vida. E nenhuma outra coisa tem o valor da conversa.

E daí entra outro tema que quase justificaria uma conversa: não é compreensível a felicidade do Céu se não se admite o que estamos dizendo. Aquele co-louvor no Céu é uma conversa sumamente bem-aventurada, porque o Divino Interlocutor está presente, dando uma animação incomparável ao que dizem a respeito d’Ele, de si próprios, da História e do universo — sempre com vistas a Ele — todos os que estão ali participando.

Mesmo assim, é preciso tomar em consideração que o modo de ser apresentado o Céu por certas escolas espirituais deturpa-o e torna-o menos apetecível. Tenho a impressão — que é quase uma certeza, mas se a Igreja ensinar o contrário, no mesmo instante mudo de opinião — de que no Paraíso cada bem-aventurado conserva todas as características legítimas que teve na Terra.

E, no Céu, é interessante o fato de almas com personalidades tão diferentes estarem todas unidas na conversa, na interlocução a mais agradável, a mais amável, a mais nobre, a mais gentil, a mais elevada, a mais distinta, a mais recolhida e ao mesmo tempo a mais pseudo-dissipada que se possa imaginar.

De maneira que cada um ama muito que o outro seja de outro modo, e todos sentem as respectivas harmonias. E a presença de Deus se tornando continuamente sensível, conhecida e apreciável a todos, e sendo Ele, no fundo, o Divino Interlocutor dentro da alma de todos, há um tipo de conversa que é do gênero das conversações abençoadas aqui na Terra, mas com qualquer coisa que vai infinitamente além.

A conversa no Céu será como uma contínua oração

E aí compreendemos todo o gáudio que o Céu pode trazer, a partir do primado da conversa sobre todos os outros prazeres.

É uma coisa que nos é dada de vez em quando na Terra, um pouquinho, e que nos deixa fora de nós de contentamento. E no Céu nos é concedida contínua e plenamente, e com uma intensidade inimaginável. Donde a felicidade celeste.

Considerem as almas que certos estilos artísticos pintam como estando no Céu, todas elas têm a mesma personalidade, as mesmas características, e o co-louvor perde o sabor. Fica meio inimaginável um Céu saboroso.

Porém, imaginar que no Paraíso se está conversando, por exemplo, com um grande historiador e vemos São Tomás de Aquino que está passando, e lhe perguntamos:

— São Tomás, o que dizeis sobre este assunto?

Ele para extasiado, fica contente e responde com aquela simplicidade que lhe é característica:

— Olhe aqui, isso é assim…

Grande alegria! Ele passa, e ainda durante algum “tempo” — para usar nossa linguagem aqui da Terra — aqueles a quem ele ensinou ficam contentes por causa disso.

No “fim” do “dia” vão levar de presente para ele uma pedra linda que encontraram no Céu empíreo. Ele pega-a, fica encantado, e faz uma reflexão ultra-substanciosa sobre aquilo…

É a vida do Céu, vista com base na conversa tida como uma oração.

A conversa é uma coisa continuamente móvel. E como as perfeições de Deus são infinitas — Deus é insondável! — Ele é para nós, no fim de milhões, de trilhões de anos, tão novo como no primeiro instante.

Além disso, há o Céu empíreo, onde suponho que é dado ao homem fazer obras de arte, construir, organizar, arranjar, etc., e assim ter o gosto de realizar. Eu não acredito que um contemplativo tenha um verdadeiro gosto de contemplação se não tiver também o gosto da contemplação transformada em obra e deixada para outros.

Nesse sentido, por exemplo, quando li pela primeira vez aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, etc.”(4), que ele pronunciou próximo da hora de morrer, aquilo me pareceu a morte por excelência, magnífica: “Eu pensei, eu fiz, eu deixei!” Quer dizer: “Aqui está!” E o ter feito é uma grande coisa.

Carlos Magno morrendo com a consciência de que ele fez um império, que coisa magnífica!

Bem, tivemos uma ótima conversa. Assim foi, porque o Interlocutor Divino estava presente.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/4/1989)

Revista Dr Plinio 207 (Junho de 2015)

 

1) Em São Paulo, bairro Santa Cecília.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do francês: doçura de viver.

4) Cf. 2Tm 4, 7.

O fim da Idade Média inglesa

As palavras de Dr. Plinio abaixo transcritas, que versam sobre um dos mais importantes momentos da história inglesa, guardam profunda relação com seus comentários estampados logo a seguir, na seção “Luzes da Civilização Cristã”.

 

Antes de Henrique VIII, a Inglaterra era um dos baluartes da Igreja Católica. Em toda a vida intelectual, artística, política e social, a influência dos princípios católicos era profunda. O número de Santos nascidos em território inglês foi tão grande que a Inglaterra chegou a chamar-se-á “Ilha dos Santos”.

Características particularmente salientes desse espírito católico eram exatamente o apego profundamente sincero do povo à autoridade do rei e, ao mesmo tempo, a altivez com que se insurgia contra todas as tentativas da Coroa, tendentes a transformar a monarquia em tirania.

A luta dos ingleses por suas liberdades traz o estigma característico do espírito católico, um grande respeito à autoridade e um grande amor à justiça. Amantes da autoridade, os ingleses, antes de Henrique VIII, nunca chegaram a tentar a destruição da monarquia, mesmo quando lutavam pela sua liberdade. Amigos da justiça, sempre reivindicaram seus direitos, sem que seu respeito à autoridade lhes tolhesse a liberdade de ação.

A história medieval inglesa não conhece a maior parte das abominações que comoveram a história da França, da Alemanha ou da Itália no mesmo período (que, seja dito de passagem, são insignificantes perto daquelas às quais assiste o mundo contemporâneo).

As “jacqueries” em que os camponeses queriam exterminar os senhores feudais, as revoluções em que os nobres queriam exterminar a realeza, e as lutas em que a realeza procurava aniquilar os direitos do
povo e da nobreza, tiveram na Inglaterra um aspecto imensamente mais benigno e mais razoável que em outras partes. O feudalismo inglês, modelo admirável de inteligência administrativa, foi quiçá o mais perfeito regime político da Europa medieval.

Nas lutas dos barões e do povo com os reis, as desinteligências existentes a respeito do governo da Inglaterra acabaram por se resolver definitivamente. E surgiu, com o bafejo da Igreja, a estrutura política mais firme que a Europa tenha conhecido até hoje.

O pecado do outrora “Defensor da Fé”

Uma crise de caráter íntimo e passional veio pôr em jogo a estabilidade desse admirável edifício, todo ele alicerçado e cimentado nos princípios católicos.

Antes de a atmosfera político-religiosa se deteriorar, o Rei Henrique VIII, fazendo-se intérprete do sentimento do povo inglês, escreveu uma obra de refutação do protestantismo, que começava a incendiar a Alemanha. O Papa, reconhecido pela intervenção do Rei, outorgou-lhe o honroso título de “Defensor da Fé”. E Lutero, indignado com Henrique VIII, o chamava “o mais sujo de todos os porcos”.

Mas acontece que Henrique VIII sentiu em si a mesma fraqueza que arrastou David ao pecado e Salomão à perdição.

Um romance — expressemo-nos assim, para não dizer algo pior — havia se formado na vida do Rei. Desejava ele anular seu casamento com a Rainha para contrair núpcias com outra dama de sua corte. Não conseguindo do Papa a anulação do casamento, ficou colocado em um cruel dilema: ou renunciar à Fé, ou renunciar ao “romance”. Renunciou à Fé. Fez-se protestante o “Defensor da Fé”! E sua união ilícita foi abençoada pelo mesmo protestantismo que o alcunhara de “o mais sujo de todos os porcos”.

O fim da monarquia orgânica

É interessante notar que Henrique VIII encontrou em São Tomás Mórus, seu primeiro Ministro, um adversário irreconciliável da anulação de seu casamento. Profundamente católico, Tomás Mórus recusou-se a abjurar a Fé. Foi condenado à morte. Sofreu o martírio e hoje brilha nos altares da Igreja Universal com a auréola da santidade (*).

Pode-se dizer que, com o desaparecimento de São Tomás Mórus, extinguiam-se também os últimos bruxuleares da Idade Média — moribunda naquele século XVI — e da monarquia orgânica. Esta, como se sabe, baseava-se no princípio da subsidiariedade, pelo qual cada grupo social deve tirar de si mesmo os recursos para prover suas necessidades e solucionar seus problemas. Conta com o auxílio do grupo superior apenas na medida em que, por sua própria natureza, não lhe for possível suprir suas carências nem resolver suas dificuldades. De maneira tal que exista uma espécie de autonomia de todos os corpos e instituições dentro do Estado.

Era o que se verificava na organização da Idade Média, em que cada unidade social dispunha de uma vitalidade pela qual produzia o seu próprio impulso. Assim, os feudos tinham leis, costumes e até idioma característicos. Os pequenos se encaixavam nos maiores, que só intervinham na existência dos primeiros para remediar as violações da Lei de Deus e dos princípios da civilização cristã, ou para sustentá-los quando as limitações de sua pequenez assim o exigissem. As cidades se desenvolviam com vida própria e, dentro delas, as corporações levavam também sua existência particular, com regras e usos peculiares. Acima de todos, o rei, ápice dessa estrutura de subsidiariedades. Era ele o mantenedor de todas as liberdades e autonomias, o coordenador e estimulante de todas as atividades gerais.

Entre estas autonomias, a maior, a mais notável, era a da Igreja Católica. E quando se trata da Igreja, não se pode falar em autonomia, mas sim em soberania. Ela é uma entidade soberana, tanto quanto o Estado, e, na sua esfera própria, não pode ser dominada nem dirigida por nenhum governante civil.

Quando, porém, teve início a decadência da Idade Média, os monarcas passaram a se fazer absolutos, tomando como modelo os imperadores romanos, verdadeiros déspotas da antiguidade. Levados por essa mania de absolutismo, começaram a eliminar todas as autonomias inferiores, e se jogaram, com particular empenho, sobre a liberdade da Igreja. Desejavam transformá-la num instrumento para o governo de seus respectivos países, embora num âmbito próprio à força espiritual e, portanto, independente das funções do poder temporal.

Um fato de graves conseqüências…

Ora, Henrique VIII, a pretexto de legitimar seu divórcio, foi mais longe. Ao determinar a ruptura da igreja anglicana com Roma, teve por objetivo adquirir o mais pleno domínio sobre toda a Inglaterra, tornando-se, ao mesmo tempo, chefe do Estado e do poder espiritual.

Para se ter ideia das conseqüências desse fato na antiga “Ilha dos Santos”, basta tomarmos em consideração duas coisas.

Em primeiro lugar, o minguamento das Ordens religiosas, que começaram a se esvaziar em virtude da supressão do celibato. O rei, agora líder da igreja anglicana, permitiu que monges e freiras abandonassem seus conventos para contrair matrimônio, munidos de uma pequena dotação que o próprio monarca lhes concedia, a fim de iniciarem “a nova vida”. Semelhante disposição concernia também os padres seculares.

Em segundo lugar, os bens da Igreja Católica foram confiscados pelo monarca e, na sua maior parte, distribuídos entre os nobres — de tal sorte que, ainda hoje, muitas famílias residem em antigas abadias, transformadas em habitações particulares.

Ora, na velha e boa Inglaterra, os pobres viviam às custas da Igreja, sendo por Ela muito bem sustentados. A partir do momento em que foram fechadas e espoliadas as instituições eclesiásticas, os mendigos se viram privados daqueles meios de subsistência. Passaram, então, a confluir para Londres, no intuito de angariar esmolas junto às classes mais abastadas da capital britânica. Resultado, surgiram os primeiros decretos na igreja anglicana de repressão à mendicância, um dos tristes frutos do desaparecimento das instituições de caridade.

… que perduram até hoje

Não foram essas as únicas conseqüências do que se passou na Inglaterra do século XVI. Outras, igualmente graves, surgiram com o passar do tempo, e algumas delas se fazem sentir até os dias de hoje (**).

Com efeito, as sementes de protestantismo que o anglicanismo adotou, produziram os frutos de anarquia que lhe são próprios. Destes foi um prelúdio a Revolução que destituiu e decapitou o rei Carlos I.

De lá para cá, lentamente, a desagregação das instituições políticas inglesas se tem acentuado mais e mais. A luta entre o fator “ordem católica” e o fator “anarquia protestante” na doutrina anglicana, se projetou no terreno político. As duas tendências se têm combatido num confronto de todos os momentos, e é por elas que se explica a grandeza e a decadência da monarquia britânica.

Grandeza, porque nenhum domínio temporal está, hoje em dia, colocado mais alto. Firmado em um princípio, o poder do monarca inglês não se alicerça sobre um entusiasmo de momento, mas sobre um profundo amor da multidão a uma dinastia ligada à história do País.

Decadência, porque este poder, de aparência tão magnífico, é apenas um vestígio do que ele foi outrora, uma reminiscência histórica, nos quadros constitucionais ingleses. Poucos são, atualmente, os homens que recebem tantas reverências e manifestações de respeito quanto a Rainha da Inglaterra. E, no entanto, poucos são os chefes de Estado mais privados de reais atribuições na vida política de seu país do que ela…

São João Fisher Vigilância e serenidade diante da morte

Inabalável na Fé e na defesa da Verdade, São João Fisher, Arcebispo de Rochester, chegou ao seu último momento na prisão com placidez e esperança na bondade divina. Porém, antes de receber o golpe do verdugo, não confiou nas próprias forças e rogou as orações dos que presenciavam sua morte, para não fraquejar e ceder no derradeiro instante. Dr. Plinio nos apresenta e propõe esse admirável modelo de humildade e vigilância.

 

No  dia 22 de junho a Igreja celebra a memória de São João Fisher, juntamente com a de São Tomás Morus, ambos martirizados na Inglaterra por se recusarem a aderir à revolta de Henrique VIII contra o Papado.

“Deixai-me dormir mais uma hora…”

São João Fisher tinha sido capelão da mãe de Henrique VII e chanceler da universidade de Cambridge, antes de ser nomeado Bispo de Rochester. Opôs‑se ao divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão, bem como à constituição da igreja anglicana. Tendo negado a prestar o juramento exigido pelo rei aos bispos ingleses, foi detido e encarcerado na Torre de Londres. Durante sua reclusão, em maio de 1535, foi feito Cardeal pelo Sumo Pontífice Paulo III.

São João Fischer foi condenado a morrer por torturas, mas a pena lhe foi comutada para decapitação, devido ao muito debilitado estado de saúde em que se encontrava. Assim, nas primeiras horas do dia  22 de junho, o oficial da Torre encontrou‑se com o prisioneiro na cela, recordou-lhe que era idoso e não poderia suportar o regime do cárcere por longo tempo. Em seguida, declarou-lhe ser vontade do rei que a execução tivesse lugar naquela mesma manhã.

— Está bem — respondeu o santo —, se é essa a mensagem que me trazeis, não constituiu para mim novidade. Espero‑a todos os dias. Que horas são?

— Cerca de cinco.

— Para que horas foi marcada a minha partida deste mundo?

— Às dez.

— Então, agradeço‑vos que me deixeis dormir uma hora ou duas mais, pois não dormi muito essa noite, não por medo, mas por causa de minhas doenças e grande fraqueza.

Extremo cuidado com a saúde, a caminho do cadafalso

Ao voltar às nove horas, o oficial encontrou Fischer de pé e vestido. O santo Bispo tomou o novo Testamento e com grande consolação leu essas palavras de São João: Ora, a vida eterna é essa: Que te conheçam a ti como um só Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei sobre a Terra, acabei a obra que me deste para fazer; e agora, Pai, glorifica‑me junto de ti mesmo com aquela glória que tínheis em si antes que houvesse o mundo. Depois, pediu que lhe dessem seu manto forrado. Ao que lhe interrogou o oficial:

— Mas, meu senhor, por que haveis de ter um tal cuidado com vossa saúde, se vosso tempo está contado, e pouco mais tendes que uma hora de vida?

— Peço meu manto para me conservar aquecido até o momento da execução. Pois ainda que não me falte coragem quanto a morrer santamente, não quero, entretanto, comprometer minha saúde nem um minuto sequer.

Caminhou rumo ao cadafalso endireitando seu corpo tão magro e descarnado que parecia que a morte tinha tomado a forma de um homem. Sobre o patíbulo, com voz inteligível e clara pediu aos que assistiam a execução que rezassem por ele:

— Até agora nunca tive medo da morte; contudo, sou carne. E São Pedro, receando‑a, negou o Senhor três vezes. Ajudai‑me, pois, a que no instante preciso em que eu receba o golpe mortal, não ceda por fraqueza em nenhum ponto da Religião Católica.

Já no lugar do suplício lhe ofereceram o perdão por várias vezes, se quisesse dizer o que dele esperavam. Mas foi inabalável. Após o suplício, seu corpo ficou exposto, desnudo, durante todo o dia. Sua cabeça, espetada numa lança, foi posta na ponte de Londres. Quinze dias depois, como ainda parecesse viva e o povo começasse a acreditar num milagre, foi lançada ao Tâmisa.

Castigo que todo homem teme

Vemos aqui as reações de alma de um grande prelado às vésperas de seu martírio, o qual não oculta seu receios diante da morte.

Creio que, sem uma assistência da graça, ninguém pode dizer que não teme a morte, pois esta, de si, significa um castigo de Deus infligido aos homens por causa do pecado original. Ela é, portanto, de natureza a incutir medo. Não se pode saber que espécie de sofrimento a separação definitiva entre a alma e o corpo traz para quem morre, porém nos é dado conjeturar que se trata de uma dor profunda, mais ou menos inimaginável. Pois se a menor torção do menor osso do corpo humano pode ser penosa, que dizer dessa dilaceração pela qual a alma vai diminuindo sua influência sobre a carne até abandoná-la completamente?

Portanto, é normal que uma pessoa, ao considerar de frente essa realidade, tenha medo no supremo momento de enfrentá-la.

Se fosse só isso, ainda seria pouco. Na verdade, qualquer pessoa judiciosa que tenha presenciado a situação de um agonizante, sentiu medo da morte por uma razão mais profunda.

Lembro-me, por exemplo, de observar meu pai durante a agonia dele, e de fazer a seguinte reflexão: “Está colocado, a bem dizer, entre a eternidade e a Terra, e já perdeu completamente a consciência de tudo. Os fatos exteriores não lhe tocam. Porém, no mais recôndito de sua mente, não estará pensando em algo? Que formas de medo, de tentação, de provação, que consolações, alegrias, que auxílios uma alma pode sentir nesse momento?”

Mais uma vez, é compreensível que tal circunstância, repassada de incertezas, seja de molde a causar temores no homem.

Admirável tranqüilidade na hora da morte

Agora voltemos ao exemplo de São João Fisher, e consideremos até que ponto admirável esse santo levou a virtude da vigilância e do examinar-se a si próprio. Pois, afinal, ele recebe a notícia da morte com toda a serenidade e, em seguida, pede que lhe concedam mais duas horas de sono. É uma extraordinária despreocupação diante de sua partida iminente deste mundo: “Não dormi bem à noite, estou com sono, deixem-me repousar um pouco mais”.

E adormece na paz de sua alma, pois a sabe pronta para comparecer diante de Deus, e nos braços d’Ele repousa até o momento de se deitar para o descanso eterno. É, sem dúvida, uma impressionante manifestação de limpeza de consciência, como também a de um auxílio sobrenatural por onde ele teve essa tranqüilidade na última hora de sua vida.

Dali a pouco ele acorda, levanta‑se, prepara-se e se apresenta calmo ao oficial que vem buscá-lo.

Medo de ter medo

Dirigiu-se ao local do suplício e, ao pé do cadafalso sentiu que a fraqueza humana poderia falar mais alto. Ele teve medo de vir a ter medo, de perder algo daquele magnífico estado de alma em que se achava para enfrentar a morte. Então pediu que os presentes rezassem por ele.

Quanta razão tinha o santo nessa desconfiança de si mesmo! Pois ali, no patíbulo, sofreu uma longa insistência por parte de seus algozes que o queriam perverter e fazê-lo renegar a fé católica. Esse assédio no último momento não era gratuito: sabiam que se aquele homem aceitasse as propostas heréticas, seria um triunfo para a causa anglicana, e nada mais sedutor do que ter de escolher entre o dizer “sim” e a morte. Se ele aceitasse, sairia daquele cadafalso cercado de honras e aplausos. Naquela noite dormiria em algum palácio, no meio do conforto, e com alguns anos de vida regalada pela frente.

Porém, São João Fisher teve medo do próprio medo, receava uma tentação do demônio naquela hora, reconheceu que poderia cair, e por isso, praticando a virtude da vigilância recomendada pelo Divino Mestre, pediu a oração dos outros em seu favor. Sobretudo, deve ter implorado a intercessão de Maria Santíssima junto ao trono de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Permaneceu inabalável na sua fé, foi decapitado e assim recebeu a coroa do martírio.

Confiando em Nossa Senhora teremos forças para enfrentar a morte

Eis para nós, católicos, um modelo de como enfrentarmos o momento de nossa própria morte. Tenhamos esse espírito de vigilância e humildade manifestado por São João Fisher. Nunca imaginemos que, por sermos devotos de Maria Santíssima e praticarmos boas obras de apostolado, não seremos tentados nem fraquejaremos na última hora.

Devemos, sim, pedir a graça de sermos vigilantes sobre nós mesmos, a graça de resistir sempre à tentação quando esta se apresente, compreendendo que o espírito pode estar pronto, mas a carne é fraca. De modo especial peçamos a Nossa Senhora que nos assista com sua misericórdia no momento de deixarmos este mundo rumo à eternidade. Como nos recomenda a Santa Igreja, a graça de termos uma boa morte deve ser pedida com toda a insistência, pois não sabemos o que pode nos suceder no derradeiro instante de nossa vida.

Essas considerações não visam criar pânico nem um terror malsão. Pelo contrário, quando o homem confia em Nossa Senhora — e, por meio d’Ela, em Nosso Senhor —, ao mesmo tempo compreende como a morte é terrível, mas para ela caminha com serenidade. Porém, insisto, cumpre entender a necessidade de implorarmos amiúde essa confiança em Deus e esse auxílio sobrenatural do Céu, único remédio para evitarmos o terror malsão diante da morte.

Sejam esses os preciosos ensinamentos a colhermos do exemplo de São João Fisher, Bispo, Cardeal e mártir da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 21/6/1967)

 

São Luís Gonzaga, um gran de batalhador

Pela via da inocência, São Luís atingiu um elevado grau de santidade. Em meio aos prazeres da corte, ele permaneceu resoluto em seu desejo de fazer-se religioso, pois nada de terreno o atraía.

 

A “Vida de São Luís Gonzaga”, de autoria do Padre Virgílio Cepari, o qual conviveu durante largo tempo com o santo, traz trechos bastante interessantes. Passemos a comentá-los.

A Marquesa Castiglioni, Dona Marta Tana de la Róvere, sentia um desejo muito vivo de ter algum filho que servisse a Deus como religioso. Perseverando neste desejo, pedia com frequência a Nosso Senhor que lhe concedesse essa mercê.

Não é algo novo que um filho tão santo e desejado com tanto zelo tenha sido fruto não menos das orações que do ventre da mãe. Ana, mãe de Samuel, sendo estéril, pediu a Deus um filho que servisse no templo, e logo o obteve. São Nicolau Tolentino foi fruto das orações de sua mãe estéril; São Francisco de Paula nasceu de pais estéreis, que o obtiveram depois de um voto; e outros mil exemplos disto.

As grandes obras nascem das orações

É preciso notar de passagem, embora o que vou dizer não se refira à biografia de São Luís, o comentário que esse padre está fazendo. Se os filhos eleitos, com frequência, nascem das orações dos pais, também é verdade que as obras e frutos preferidos dos homens que se consagram a Nossa Senhora, e que não vão ter filhos, nascem de suas orações. Assim como uma mãe que quer ter um filho reza a Deus para obtê-lo, também uma pessoa que abrace o estado de celibato pode rogar a Nossa Senhora: “Eu vos peço que a fecundidade da minha vida seja tal obra”.

Às vezes, Deus faz com que uma longa esterilidade tenha depois como consequência um nascimento tardio, esplêndido, que longos anos de espera fizeram germinar. Isso se dá com o apóstolo, que pode passar longo tempo estéril nas suas ocupações, mas em determinado momento o “filho” nasce.

Devemos rezar intensamente a Nossa Senhora para que Ela dê a nossas vidas essa forma de fecundidade, que vale mais do que ter “n” filhos.

Belo exemplo de disciplina conjugal

Quando chegou o tempo do parto, foram tais as dores sofridas pela Marquesa que ela esteve a ponto de morrer, sem poder dar à luz a criatura. A boa senhora mandou chamar o Marquês, e pediu licença para fazer voto à Rainha dos Céus; de muito bom grado, o Marquês assentiu, e ela fez voto de ir pessoalmente, se escapasse com vida, visitar a santa Casa de Loreto, levando consigo o menino, se ele também sobrevivesse.

Que bonito exemplo de disciplina conjugal! Ela manda chamar o Marquês e lhe pede licença para fazer a promessa.

Batizar tão cedo quanto possível

Feito o voto, cessou o perigo e em pouco tempo nasceu o filho. Porfiavam ainda os médicos que não era possível que o menino ficasse vivo, e o Marquês instava a que se procurasse salvar a alma do filho; a experimentada parteira, logo que viu o menino o suficiente para poder receber a água do Batismo, antes que nascesse totalmente batizou-o.

Uma criança em vias de nascer, estando apenas com a cabeça de fora do claustro materno, pode ser batizada. Dir-se-ia que esse fato não tem importância nenhuma porque a criança ainda não tem uso da razão; portanto não pode pecar nem rezar, e não é capaz de atos de virtude ou viciosos. Assim, não há razão para esse açodamento.

Sem culpa da criança, mas por artes do demônio, este pode adquirir maior influência sobre ela durante o tempo em que ainda não é habitada pela graça de Deus. Portanto, há vantagem em batizá-la quanto antes, para evitar isso.

Faço essa afirmação com base num cerimonial da Liturgia católica: em certas Missas solenes, o padre começa por incensar o altar. O povo acha que é um ato de reverência do sacerdote para com o altar. De fato, tem esse sentido e também outro mais profundo: é o de exorcizar o altar, expulsando o demônio que ali possa estar. Se o demônio pode ficar junto a um altar consagrado, em que todos os dias se rezam várias Missas, não poderá estar exercendo uma ação sobre uma pobre criança inocente, que repercutirá durante sua vida inteira?

O açodamento do Marquês era para evitar que a criança morresse antes do Batismo e fosse para o Limbo. A alegria do pai se deve ao fato de que, desde muito cedo, a criança fora habitada pela graça.

Para maturar, São Luís foi mandado para o exército e não para o jardim da infância

O Marquês quisera que seu filho fosse soldado como o pai; com este fim, tendo ele quatro anos, mandou fazer uns arcabuzes e outras armas tão pequenas que o menino pudesse carregá-las.

Quando se preparava a armada contra Tunes, o Marquês levou consigo Luís ao local onde deveriam se reunir, para que tomasse gosto pelas coisas de guerra.

Fazer um menino de quatro anos frequentar o ambiente militar pode parecer um excesso, mas, ao contrário, é uma coisa esplêndida.

Hoje em dia, as crianças são colocadas no jardim de infância, e acabam numa espécie de infância a vida inteira. Quando se quer que a criança mature, não se deve pô-la em jardim de infância, mas em jardim de adultos. Maturar é o próprio da criança. Em vez de colocá-la em estágio superior, onde ela procure acelerar sua busca de um estado mais alto, atualmente se faz o contrário: uma educação para comprimir. E quando termina o jardim de infância, o menino é educado junto com as meninas: a coeducação. Há o risco de ele se tornar um elemento híbrido, nem adulto nem infantil e de espírito nem másculo nem feminino. São Luís, portanto, foi mandado não para o jardim de infância, mas para o exército.

Nos dias em que havia desfile militar, o Marques fazia seu filho ir à frente das tropas, com as pequenas armas que mandara fabricar.

Podemos imaginar que encanto: um menino que tinha uma alma de lírio, marchando ufano à testa de uma tropa maravilhada pela vista do filho do Marquês de Castiglione!

Uma vez, estando o Marquês fazendo sesta, e dormindo também outros soldados, Luís tomou pólvora dos frascos dos soldados e ele, sozinho, carregou um canhão pequeno que estava no castelo, e atirou. O Marquês acordou com o estrépito e, temendo alguma revolta dos soldados, quis saber o que tinha acontecido.

Que Marquês de truz! Não era um homem amolecido, e logo teve uma desconfiança: os soldados estão revoltados…

São Luís Gonzaga foi educado na gravidade que se deve atribuir a todas as coisas

Tinha aprendido, pelo trato em conversação com os soldados, a empregar algumas palavras livres e descompostas que eles de ordinário empregam. Um dia seu preceptor o repreendeu por causa disso. Desde aquela hora nunca mais saiu palavra descomposta de sua boca e, se escutava a outros dizê-las, baixava os olhos de vergonha, ou virava o rosto.

Sabemos que nem sempre a linguagem dos ambientes militares é a mais pura e elevada possível. E o menino aprendeu umas tantas palavras peculiares ao palavreado militar, que não faziam parte da linguagem da casa de família.

Naquela época um príncipe viajava muito. Imaginemos o menino numa carruagem, com seu preceptor e um séquito de gentis-homens que o acompanhavam a cavalo. Só depois de ter deixado a cidade, já em pleno campo, o preceptor falou com ele. Notemos a gravidade que o preceptor atribuía ao assunto.

Os espíritos “marca jardim de infância” achariam exagerada a gravidade empregada pelo preceptor. Dir-se-ia que ele foi imprudente, pois a criança, não sabendo o significado dos termos, não fizera mal nenhum. Pelo contrário, ele revelou uma visão profunda das coisas: a palavra é tal que, mesmo quando a pessoa não sabe o que quer dizer, ela faz algum mal.

O que vem a ser escrúpulo?

Essas palavras, ditas naquela idade, são o maior pecado da vida de Luís. Doeu-se delas a vida toda, como se tivesse feito um pecado gravíssimo.

Veremos agora a humildade de São Luís; a humildade é a verdade e esta o leva a considerar esse ato como o pecado mais grave de sua vida. E aí transparece uma inocência, uma santidade, que é uma coisa de cegar.

O que houve da parte de São Luís: um escrúpulo tonto? O escrúpulo é uma deformação da alma. Na linguagem corrente se diz “tenho escrúpulo de tal coisa”, no sentido de afirmar que minha consciência, retamente orientada, me levante dúvidas sobre a liceidade de algo. O escrúpulo, no sentido próprio da palavra, não é uma dúvida varonil sobre a liceidade de alguma coisa; é um treme-treme imbecil a respeito de algo, sobre o qual não há razão para se ter dúvidas.

No caso de São Luís, não é nem podia ser escrúpulo, porque se vê que ele foi um menino admirável desde o começo, e não pode ter tido essa moleza especial que é o escrúpulo. Então, como se justifica que ele se acusasse disso?

Uma hipótese é esta: acusava-se de ter notado que essas eram palavras vulgares, sem lhes conhecer o sentido sórdido ou imoral. Mas ele as pronunciou de algum modo aderindo ao estado de espírito trivial da soldadesca. Embora não tivesse cometido um pecado contra a castidade, teria praticado uma falta que, de longe, raspava no Primeiro Mandamento.

Importância da idade da razão

Chegado aos sete anos, decidiu dedicar-se inteiramente ao serviço de Deus; de maneira que ele chamava a este tempo o de sua conversão.

Isso prova que a criança pode ter a alma já deformada muito mais cedo. E que essa mania de dizer que ela é um “anjinho”, porque não atingiu ainda a idade da razão e não pecou, é uma lorota. Pecado propriamente dito a criança não comete, enquanto não tiver a idade da razão. Mas daí a dizer que não possa ter adquirido maus hábitos, é muito diferente.

O Padre Mucio Vitelleschi, Geral da Companhia, depõe com juramento na informação canônica que conversou um dia com Luís sobre a opinião de Santo Tomás, segundo o qual, quando o menino chega ao uso da razão, tem obrigação, sob pena de pecado mortal, de dedicar-se logo ao serviço de Deus, e encaminhar todas suas ações ao último fim; com grande sinceridade, disse este santo moço que neste ponto não tinha escrúpulo nenhum, por estar certo de que, no instante em que nele amanheceu a luz da razão, Deus o preveniu com sua graça, e com ela se tinha ele oferecido e dedicado de todo o coração.

São Tomás diz que a criança, quando chega à idade da razão, deve racionalmente, e motivada pela Fé e pela graça, resolver levar a sua vida no serviço de Deus. A primeira razão para viver é dar glória a Deus; depois podem vir outras razões.

Seria uma coisa desejável que no dia em que a criança completasse sete anos, fosse uma data especial, pois é o pórtico pelo qual ela entra na arena. Em vez de se fazer uma festa para dar a entender à criança que é um passo a mais no gozar a vida, deve-se proceder de outro modo, dizendo-lhe: “Agora você vai começar a lutar. E lutar pelo seu Senhor e Deus; pela sua Senhora, a Mãe de Deus; pela sua Mãe, a Santa Igreja Católica. Prepare-se! E faça desde já o enunciado de seu propósito: viver para servir a Deus.”

Confirmação em estado de graça

Com razão, o Cardeal Belarmino(2), falando das assinaladas virtudes de Luís, chegou a dizer que provavelmente se pode crer que a Divina Providência em todos os tempos tem na sua Igreja alguns santos confirmados em graça, enquanto estão vivos. Nestes termos se expressou o Santo Cardeal: “Eu, para mim, acho que um destes confirmados em graça é nosso irmão Luís Gonzaga, porque sei quanto se passa na sua alma”.

Uma pessoa ser confirmada em graça é um dom extraordinário. Não quer dizer que ela seja somente santa, mas que Deus deu àquela santidade tal vigor que a pessoa não pecará mais. Mais precisamente, não perderá o estado de graça; não cometerá pecado mortal. É a excelsitude das excelsitudes.

Virgindade exímia

Estando um dia em oração, fez voto a Deus Nosso Senhor de perpétua virgindade.

Fala-se hoje muito pouco de virgens, e é uma coisa razoável, porque se fala pouco a respeito do que existe pouco. E quando se trata de virgens, pensa-se sempre no sexo feminino. Não se tem ideia da beleza da virgindade no sexo masculino.

Vemos aqui ser de virgindade o voto feito por São Luís.

Afirmam seus confessores, e em particular o Ilmo. Cardeal São Roberto Belarmino, que São Luís em toda a sua vida não sentiu jamais nem o mínimo estímulo ou movimento carnal no corpo, nem um pensamento ou representação lasciva na mente, contrária ao propósito e voto que fizera.

Esse fato fala muito em favor da confirmação em graça.

Ele, de sua parte, cooperou para a proteção desta rica joia com o cuidado contínuo que tinha na guarda dos sentidos, especialmente dos olhos, tendo-os sempre controlados para que não olhassem nem a mil léguas onde pudesse haver algo inconveniente.

Encontro com São Carlos Borromeu e primeira Comunhão

Em 1580, esteve São Carlos Borromeo, Arcebispo de Milão, visitando a diocese de Brescia, e chegou a Castiglione. Depois do sermão, visitou-o Luís, então com doze anos e quatro meses.

Vejamos como eram as coisas: São Roberto Belarmino, São Carlos Borromeo, São Luís Gonzaga encontram-se… Um santo conversando com outro tem muita coisa para dizer.

Consolava-se o Cardeal de ver a tenra planta tão forte no meio dos espinhos da corte, sem indústria de hortelão, mas só com as influências do Céu.

“Indústria de hortelão” não é uma linguagem muito contemporânea. Indústria quer dizer aqui jeito, habilidade, arte. Hortelão é o jardineiro. Sem arte de jardineiro, ele era como uma planta muito viçosa.

O menino alegrava-se de ver o Cardeal, e como sempre ouvira falar dele como de um santo, tomava suas palavras e avisos como vindos do próprio Deus. Foi então que fez sua primeira Comunhão.

Decidido a abandonar o mundo…

Um dia, meditando sobre a felicidade dos religiosos, começou a pensar:

“Que grande bem o da religião! Estes padres estão livres dos laços do mundo, afastados de ocasiões de pecar. Por que estranhar que estejam alegres e sem medo, nem sequer da própria morte, do Juízo e do Inferno, se trazem sempre a consciência limpa? E eu, por que não adoto para mim um estado tão feliz?”

Segundo ele narrou, depois de ter-se encomendado a Deus com grande afinco, julgando que Deus o chamava para esse estado, resolveu-se a deixar o mundo e entrar em alguma Ordem religiosa.

Podemos imaginar a maturidade desse menino! Naturalmente, não estava voltado a dizer coisas engraçadas o tempo inteiro, nem a brincadeiras. Desde pequeno lhe foi ensinado a ser sério.

São Luís pede para isso licença a seu pai

Depois de rogar muito a Deus, procurou escolher em qual Ordem deveria ingressar.

Na festa da Assunção de Nossa Senhora, no ano de 1583, tendo ele quinze anos e meio de idade, comungou e depois se retirou para fazer a ação de graças, pedindo a Nosso Senhor, por intercessão de sua Mãe, que lhe descobrisse sua vontade. E então escutou uma voz clara que lhe disse para entrar na Companhia de Jesus.

Luís foi, então, falar com a senhora Marquesa; e ela ficou tão contente que deu muitas graças a Deus, e quis ser a primeira de cuja boca ouvisse o Marquês a noticia. E foi isto bem necessário para aplacar a cólera e primeiros ímpetos dele. Depois, em diversas ocasiões, fez a Marquesa este ofício, e como o Marquês não sabia que ela desejava ter um filho religioso, atribuiu a diversas intenções, entre outras que ela tinha afeição pelo segundo filho, e desejava que este herdasse os Estados.

Vemos que era bem esperta essa Marquesa. Esperta ao serviço do bem: não revelou ao marido que ela queria que seu filho mais velho ficasse jesuíta. Disfarçou, e com isso o Marquês começou a ter outras ideias, como a de que desejava favorecer o segundo filho para o governo dos Estados que pertenciam a esse Marquês; assim, ela desviava a atenção do marido sobre seu filho mais velho e sua vocação religiosa, a fim de ele poder entrar num convento. Ela era corajosa e reivindicou para si a honra de ser a primeira a dar a notícia, ou seja, a escorar no peito a primeira raiva do Marquês.

Mais tarde foi Luís pessoalmente, com a maior humildade e reverência que pôde, e disse ao Marquês que ele estava resolvido, e que haveria de ser religioso.

Notem o contraste: “Foi Luís pessoalmente com a maior humildade e reverência que pôde”, e “disse que estava resolvido”. Quer dizer, respeitoso ao extremo, mas resolvido, e não adiantava vir com histórias: ia ser mesmo. Era maior de idade e dispunha de si.  O resto são amabilidades e reverências necessárias e louváveis. Ele vai atender à vocação de Deus, porque é preciso obedecer a Deus antes que aos homens.

A reação do Marquês

Ficou o Marquês como de fogo ouvindo isto, e com ásperas palavras expulsou-o de sua presença, ameaçando que o faria despir e açoitar.

Não conheço um fato atual de recusa de um pai para seu filho, no caso deste querer entrar para um movimento religioso, e que tenha chegado à ameaça de açoite em carne viva. Isso teve São Luís Gonzaga que enfrentar.

Respondeu Luís: “Fosse do agrado de Deus, meu Senhor, que eu merecesse padecer algo por seu amor”. Ficou o Marquês com incrível ira, e depois de alguns dias em que não pôde descansar nem repousar, mandou chamar o confessor e fez-lhe grandes queixas de ter colocado tais coisas na cabeça do filho, sobre o qual ele depositava as esperanças de sua casa.

Ele via que seu filho era muito inteligente, capaz e virtuoso. E um defeito de muitas famílias antigas era este: quando tinham um filho menos inteligente destinavam-no à vida sacerdotal; a filha feiarrona, que não conseguia encontrar casamento, ia ser freira; escolhiam os filhos mais capazes para continuar a família. Era uma forma de dar a Deus o menos bom, e ficar para si com o melhor. Assim não se trata a Deus, a Nossa Senhora!

O homem forte é aquele que segue todos os meios lícitos para cumprir a vontade Deus

Tendo certo dia ido visitar, com seu irmão Rodolfo, o colégio da Companhia, Luís disse no final aos que o acompanhavam que poderiam voltar à casa, que ele não mais queria regressar, mas ficar lá.

Foi jeitoso. Não disse em casa “até logo” para o pai; pretextou uma visita ao colégio dos jesuítas, e depois disse: “Vocês vão-se embora, eu vou ficar aqui!”, dando a entender: “Meu pai, se quiser, venha cá”. Assim fazem os homens fortes.

Há um modo errado de conceber o homem forte: aquele que é tonitruante como um trovão em meio a relâmpagos. Às vezes ele é assim; outras, não: é jeitoso e macio, mas chega onde deve chegar. O homem que obedece à vontade de Deus, e segue todos os meios lícitos para cumpri-la, esse é um homem forte.

Ao saber do ocorrido, o Marquês enviou vários mensageiros para fazê-lo retornar. Estes só obtiveram êxito quando argumentaram que era um menoscabo da autoridade paterna fazer isso sem licença.

Tentativas do pai em dissuadir São Luís a respeito de sua vocação religiosa

Instou, pois, o Marquês para que, ao menos, o jovem adiasse a entrada até a volta à Itália. Luís, pensando que o Marquês cumpriria a promessa, respondeu que com gosto daria esse prazer a seu pai. E assim ficaram todos de acordo.

Chegando à Itália, o Marquês escusou-se, dizendo ser forçoso que Luís fizesse antes, com seu irmão Rodolfo, as visitas de cortesia às cortes da Itália.

Concluídas as visitas, obteve o Marquês do Duque de Mântua que enviasse um Bispo muito eloquente dizer a Luís que ficasse homem de igreja, e assim poderia servir melhor a glória de Deus; para isso não faltavam exemplos de homens santos, como o Cardeal Carlos Borromeo.

Ou seja, ficar padre secular e não membro de uma Ordem religiosa.

Insistiu o Bispo várias vezes e com diversos argumentos. Luís agradecia a preocupação do Duque, mas escolhera a Companhia, e não pretendia outro gênero de vida.

Veio também uma pessoa da família argumentar que, se queria deixar o mundo, não entrasse na Companhia que ficava perto dele, mas nos Cartuxos ou outra Ordem distante.

Vê-se aí a decadência religiosa da época: o Marquês encontra uma série de eclesiásticos que vão fazer a obra do demônio junto ao filho. Uma pessoa o aconselha a entrar numa Ordem severíssima, como os cartuxos que são contemplativos no rigor do termo. Por que o Marquês poderia preferir que ele ficasse cartuxo a jesuíta? Porque os jesuítas estavam na ponta da Contra-Revolução. E se seu filho se tornasse jesuíta teria inimigos, mas se entrasse para uma cartuxa ou outra Ordem semelhante, ficaria trancado lá. Ao menos esse espantalho sairia de diante de seus olhos.

Afinal, depois de muito relutar, o Marquês confessou estar convencido de que aquela era uma grande vocação de Deus, e logo começou a contar a grande santidade com que Luís vivera desde menino, e disse que ele não queria mais impedir o filho de ficar religioso.

A bonita morte do Marquês

Quando morreu o Marquês, seu pai, dois meses e meio depois de começado o noviciado, Luís não sofreu maior impressão, como se não fosse com ele. Nesta ocasião foi-lhe dito que escrevesse a sua mãe para consolá-la, e ele começou a carta dizendo que dava graças a Deus, pois doravante poderia dizer mais livremente: “Pai nosso que estais nos céus”.

Manifestou-se de modo especial a Providência de Deus nesta morte, pois o Marquês sempre fora dado a pretensões de honrarias e grandezas mundanas. E com motivo da entrada de Luís em Religião fez tal mudança de vida que deixou totalmente o jogo; todas as noites mandava que trouxessem diante de sua cama um Crucifixo que Luís deixara e rezava os sete salmos penitenciais e as ladainhas.

Notem qual é o problema da profundidade do pecado. O mundo hoje está cheio de jogadores, em toda parte. Os presentes neste auditório não acham dificílimo que um deles morra nessas condições? É quase impensável. Para a atitude do Marquês, é claro que contribuía, e em muito, o mérito de São Luís Gonzaga. Também é verdade que esse homem tinha restos de boas resoluções, tradições, e não estava tão gangrenado pela Revolução como estão os de hoje. Assim, foi capaz de um arrependimento sério, profundo, até edificante, depois de ter feito uma oposição a mais tremenda possível à vocação do filho; e morreu na graça de Deus.

São Luís morre em jovem idade

Antes de completar seus estudos de Teologia, faleceu aos 23 anos de uma doença contagiosa.

A 26 de setembro de 1605, Paulo V publicou o seu Breve de beatificação.

Diversos foram os pedidos de beatificação. O próprio Imperador Rodolfo escreveu desde Praga ao Sumo Pontífice, e além de fazer a lembrança “da pura, piedosa, santa e mortificada vida de Luís”, acrescentava esta razão: “era Príncipe do Sacro Romano Império, e parente seu, e tinha dado a todos tão preclaro exemplo de desprezar o mundo”.

Considerem como os tempos mudaram: o mais alto personagem temporal da Cristandade, naquele tempo, o Imperador do Sacro Império, se interessava pela beatificação de uma pessoa. Escrevia diretamente ao Papa, intervindo como filho primogênito, em certo sentido da palavra, da Igreja para a beatificação do Servo de Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de: 9/2/1966, 3/4/1990 e 18/4/1990)

 

1) Cepari. Pe Virgilio. Vida de San Luís Gonzaga, Patrono de la juventude. Einsiedeln, Benziger & Co.: Nova York, 1891.

2) São Roberto Belarmino. Cardeal, membro da Companhia de Jesus e contemporâneo de São Luís Gonzaga.

Pulcritudes na vida de pobreza

Dissociar a pobreza da beleza é um erro, infelizmente, comum em nossos dias. Analisando ambientes pobres moldados pela Civilização Cristã, Dr. Plinio explicita a beleza, dignidade e nobreza existentes na modesta condição em que o próprio Rei dos Céus quis nascer.

 

O homem de hoje tem dificuldade em compreender bem qual a beleza que pode haver na pobreza. É mais fácil conceber o belo na riqueza. Como pode ser a pulcritude da pobreza?

Vamos tratar deste assunto, analisando algumas fotografias(1).

A beleza da velhice

A primeira apresenta uma praça, na Itália, na qual está um poço. Aquele arco dá o ponto de partida a uma corda que desce e, com um recipiente, se pega água lá embaixo. Porque a água encanada não existia nessa favela de pedra que ali se vê.

Junto a essa praça há vários arcos que dão acesso a uma rua, mas ela é toda fechada e seu ambiente é diferente do da rua. As passagens são tais que preservam a praça da entrada e saída de ônibus. Creio mesmo que a movimentação de automóveis não é muito fácil, a não ser por aquela porta grande que fica aberta. Mas nenhum dos presentes neste auditório gosta de imaginar um automóvel entrando ali.

Um carro puxado a cavalo, desde as esplêndidas carruagens conduzindo príncipes, até qualquer carro movido por um cavalinho que, ao trotar, bate com as patas na pedra dura, enfim, tudo isso agradaria, exceto um veículo motorizado, cuja entrada na praça nos daria a impressão de profaná-la.

Essa construção é toda de pedra, feita para durar sempre e que não pede pintura. A pedra é de um jeito que, quanto mais fica suja e velha, mais se torna bonita.

Notem que a construção é feita de tal maneira que se vê que ela é suja. A pátina do tempo passou sobre ela, está meio ensebada, mas não nojenta. Ninguém teria nojo de encostar-se em uma dessas paredes, nem de morar dentro de uma dessas casas. Tudo é pitoresco e tem algo de fortificado.

Nas cidades italianas desse tempo as guerras internas, de bairro contra bairro, eram frequentes. Vê-se que a torre tem no alto uma espécie de terraço, maior do que a própria torre, com uns suportezinhos em forma de arco embaixo. Esses suportes são vazados, de maneira que deles se jogavam chumbo derretido, azeite e água fervente, disparavam-se flechas, etc., sobre os miseráveis que quisessem entrar ou sair, sem licença dos donos da torre.

A pobreza aí é evidente; nada fala de riqueza. O que, entretanto, é bonito dentro disso?

Antes de tudo, é bonita a velhice. Isto, reconstruído, seria muito menos bonito. O vento soprou, o Sol dardejou de modo inclemente sobre essas pedras, fazendo ferver as pessoas que moram ali. As dificuldades da vida, acontecimentos importantes se passaram nesse municipiozinho, e que tudo isso como que deu uma fisionomia a essas portas, janelas e a esses arcos.

Cada lar era um lugar sagrado

Tem-se a impressão de que essas janelas e portas não têm uma fisionomia inexpressiva de uma criança no berço, mas a fisionomia expressiva de um homem que já viveu muito, e no qual a sua biografia mudou o aspecto da boca, dos olhos, da carnatura; enfim, tudo mudou no choque da vida. Olhando para ele, vê-se sua história estampada em sua fisionomia.

Vê-se que essas torres e casas passaram por convulsões da vida e apresentam a beleza forte da História. Durante muito tempo — queira Deus que até hoje — moraram ali populações com Fé, cientes de que a pobreza pode ser uma bênção, mas que é preciso lutar para que ela não nos jogue nos braços da morte. Sabiam que a vida é dura, difícil, mas que tudo isso aponta para o Céu e encontra nele a sua explicação, o seu prêmio. Compreendiam que a verdadeira vida de família, imbuída de sobrenatural, a dignidade e a respeitabilidade do chefe de família e de sua esposa face à prole numerosa que os venerava, tudo isso fazia de cada alvéolo, de cada lar, um lugar sagrado, respeitado, venerado. De vez em quando se ouve numa casa: “Papai está em cima, mamãe desceu, mas já vem.” E onde estão papai e mamãe, está o lar, a respeitabilidade, a sabedoria, a confiança na vida. Em última análise, o Mandamento que preceitua a castidade perfeita aos solteiros e a fidelidade entre casados paira como se fossem dois Anjos sobre essa casa.

Na parede, uma Madonna, uma vela gasta. Mais adiante, um pequeno objeto esculpido por alguém e um presente dado por outrem. Sobre um móvel, uma campânula de vidro e dentro uma coroa de noiva. Era a coroa que a noiva — hoje anciã cheia de rugas e de cabelos brancos — levava, altaneira e digna, ao casamento, como símbolo de sua pureza, e que, a pedido do marido, se conservava lá por toda a sua existência.

Quanta pulcritude na vida de pobreza!

Isso todos o sentiam, o entendiam, e não havia essa ferocidade para escapar da vida de pobre como de dentro de um inferno. Tratava-se, do contrário, de entender o sabor que a vida de pobre tem, saber fruí-lo; isto era o segredo da vida dessa gente.

A vida é, antes de tudo, uma caminhada para o Céu

Comparem isso com algum aspecto de uma cidade contemporânea: prédios enormes visando dar uma impressão de monumental e de riqueza. Mas não têm graça, ninguém se detém para olhar nada, todo mundo passa depressa.

Aqui não! É evidentemente uma rua pobre de um bairro pobre. As casas estão meio espremidas uma na outra. Nas paredes, de um lado e de outro, nada traz sinal de riqueza. Tudo é pobre, mas bonito, tem fisionomia, expressão. É muito mais atraente do que, por exemplo, qualquer dos grandes hotéis modernos, que se encontram mais ou menos por toda parte das grandes cidades.

Nesse ambiente modesto o homem se sente em casa. E existe a alegria do conforto, mas principalmente o conforto da alma, do aconchego de pessoas que se entendem porque participam da mesma Fé e têm o mesmo modo de entender a vida, que é antes de tudo uma caminhada para o Céu; onde as almas restauram suas forças para voltar para a luta, ou ir para a oração, participar da Missa e comungar na igreja mais próxima.

Nesse tipo de cidades há muitas igrejas, e não se dão dois passos sem encontrar com uma. Em todas elas, silencioso, invisível, está sempre Nosso Senhor realmente presente. Há muitas imagens de Nossa Senhora e de outros santos. A igreja é o palácio dos pobres. Eles entram e veem a riqueza da Santa Igreja, a beleza da Liturgia, se regalam com aquilo, seus horizontes se abrem, suas almas voam até o Céu.

Quando se ama a Deus, tende-se para a beleza

Analisemos agora uma fotografia de uma aldeia alemã, na noite de Natal.

Esses grupos de pessoas percorrem de casa em casa para cantar alguma canção relativa ao Menino Jesus. São, em geral, pessoas de uma mesma família. Eles cantam e o dono da casa vem para o lado de fora e ouve a canção. Depois, os de dentro respondem com uma outra música conhecida. Posteriormente, os visitantes são convidados a participar da ceia, comem, agradecem e saem cantando. E os donos da casa, terminada a ceia, vão percorrer outras casas, fazendo o mesmo. E, de alegres em alegres visitas, a noite inteira se canta a glória do Divino Infante.

Eu pergunto: isso não traz consigo uma manifestação de como se pode ser pobre e ter alma feliz? Pode-se ser pobre e ter Fé? Isso não nos leva a compreender a beleza da condição pobre em que o Menino Jesus, Príncipe descendente de Davi, quis nascer? Aí está outro aspecto poético da vida do pobre de antigamente.

Onde está o lado poético da vida do pobre hoje? Mas também, onde está o aspecto poético da vida do rico? Onde há poesia neste mundo de mecanicidade da revolução industrial?

Para entender inteiramente essa outra fotografia, precisamos tomar em consideração que essa casa alemã passa uma parte do ano na neve, e que nesse período não há flor. O único sinal de vegetação é o pinheiro, com seu formato triangular, verde-escuro, e mais nada. Todos os outros vegetais “estão de luto”, e apenas uma camada de “açúcar com água” recobre a terra: é a beleza da neve.

Mas na primavera explodem as flores magnificamente. Não posso me esquecer de quando estive na Europa, pela primeira vez, depois de adulto, em 1950. Fui preocupado com tudo, menos com flores. A primeira nação onde comecei minha viagem foi a Espanha.

Desci no aeroporto de uma cidade cujo nome não me lembro. De repente, um vermelho explosivo que parecia sangrar me chamou a atenção. Eram gerânios. Mas uma cor bonita! Todo entusiasmo da Espanha parecia transbordar no gerânio. Em toda a Europa, na primavera, a vegetação explode. Então os donos das casas têm muita alegria em poder exibir para os transeuntes essa sua felicidade, sua alegria: as flores que possuem.

Nessa fotografia, veem-se flores que ornamentam uma casa visivelmente pobre. É evidente que a família fez florir assim a residência para que todos participem da beleza das flores que ela possui; e há gente que, passando por ali, para, comenta, entra, felicita, depois segue adiante. Existe uma participação de todos na procura e no gosto da beleza.

Vemos na outra foto habitações modestas, cujo ornato é feito por traves de madeira comum e flores nas janelas, e onde tudo está disposto de um modo apenas um pouco artístico. Percebe-se que as pessoas que ali vivem não passam fome, mas não levam uma vida folgada.

É a arte do pobre: tomar materiais simples, fazer com eles desenhos simples. Por que causa tanta admiração? Porque, quando uma população tem amor à verdade e ao bem, ama a Deus — que é a Verdade, o Bem, a Beleza —, todas as pessoas, desde as mais modestas até as mais elevadas, tendem a pensar, imaginar e realizar coisas belas. E, enquanto é próprio dos ricos fazer palácios magníficos, é característico dos pobres tirar de materiais simples uma beleza que ninguém imaginava.

Como é nobre ser católico!

Tudo leva a crer que, na parte de baixo dessas casas, haja um estabelecimento comercial, e mais provavelmente um dos inúmeros restaurantes saborosíssimos existentes pela Alemanha. Posso imaginar os pães, as salsichas, as delícias… evidentemente as cervejas. Comida simples. Cada dona de casa tinha sua fórmula de fazer pão e, portanto, essa loja tinha um pão que não se encontrava em nenhuma outra. As salsichas, a linguiça, eram feitas pela própria casa, e todas elas tinham sua modalidade.

Nesse presumível restaurante havia um homem do bairro, pago para cantar, à noite, e outro tocava violino; era uma coisa original do lugar, tinha seu atrativo.

Hoje não. As salsichas, as linguiças, os pães, tudo é fabricado aos milhares, e vendido igual por toda parte, não tem originalidade nenhuma. Que graça tem isso? Ora, atualmente isso é a vida, inclusive do rico. Minguando o amor de Deus, o pecado e a feiura vão invadindo a vida dos homens.

Em geral, o interior dessas casas modestas é ornado com móveis e utensílios confeccionados pelos próprios moradores. São as tais esculturas domésticas que, colocadas na residência, ficam para sempre. Os bisnetos vão saber que tal bisavô fez isso. E não se vende, é uma lembrança. O artesão que a realiza sabe estar dando uma nota de beleza a mais ao seu lar, e quando ele morrer, sua família terá para sempre um ornato a mais na sua pequena casa.

Formam-se, assim, verdadeiras dinastias de trabalhadores manuais, dentro das quais se aprecia a recordação dos avós como na nobreza tem-se respeito pela ancestralidade. Não são nobres, mas operários que sentem quanto é nobre ser católico, ainda quando não se faz parte da nobreza.

Por outro lado, como Deus é o Senhor, o Rei, o Criador do Céu e da Terra, e a igreja é a casa onde mora Deus no Santíssimo Sacramento do Altar, a igreja é o palácio do lugar. Por causa disso, quando a família ia para a Missa — o ato mais augusto que se possa realizar na Terra, onde se renova de um modo incruento o Santo Sacrifício da Cruz — todos usavam seus trajes de ornato, de festa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1986)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

1) As ilustrações desta seção não correspondem às fotografias analisadas por Dr. Plinio nesta conferência.

 

A felicidade celeste – II

A Revolução odeia as desigualdades existentes na sociedade e, visando extingui-las, fomenta nos homens o vício da inveja. O contrarrevolucionário ama a hierarquia e se alegra em ver pessoas superiores a si mesmo; assim, ele se prepara para o Céu, onde os bem-aventurados estão colocados hierarquicamente, constituindo uma magnífica unidade em que todos se estimam por amor a Deus, e não há lugar para a inveja.

 

Cornélio a Lápide cita uma carta de São Jerônimo a uma santa do tempo da decadência do Império Romano do Ocidente: Santa Eustáquia, que pertencia à nobreza romana, era muito rica e distribuiu sua fortuna aos pobres. Ela abandonou tudo e abraçou a pobreza por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo.

São Jerônimo escreve a esta santa descrevendo-lhe como seria a entrada dela no Céu, quando ela morresse.

A inveja provoca devastações nas almas

Para explicar a alegria da entrada e da permanência no Céu, Cornélio desenvolve muito um ponto que supõe uma explicação.

Há muitos anos, conversando com um bispo, falávamos de vários assuntos e, a certa altura, tratei da questão da inveja. Ele, então, me disse: “Se você fosse confessor, saberia o que é a inveja e a devastação que ela faz nas almas. Pelo que você está dizendo, calculo que não tenha ideia disso”.

Naquele momento, isso me chamou um pouco a atenção e pensei: “Vou refletir depois”. Posteriormente comecei a pensar… Na obra Revolução e Contra-Revolução faço referência à inveja quando falo da desigualdade. O homem inferior, que não tolera a desigualdade do superior, é um invejoso; fica com tristeza pelo fato do outro ter uma coisa que ele não possui.

E no Céu, se inveja coubesse, haveria um título especial para ela se exercer. E é desse ponto que eu queria tratar para entendermos o mal da inveja, a tristeza e a acidez com que ela enche a vida do homem, e compreendermos a alegria do Céu.

Por isso vou fazer apenas um pequeno parêntesis para chegarmos depois até lá.

Uma hipotética ocasião de inveja no Céu

Não é possível a inveja no Céu. Mas, numa hipótese imaginária, irreal, o que poderia dar ocasião à inveja no Céu? As pessoas, no Paraíso, estão com seu futuro marcado para todo o sempre, e nunca mais mudará. Ora, alguns veem Deus mais excelentemente do que outros, e os que veem menos sabem que outros veem mais.

Os que veem Deus menos excelentemente poderiam fazer o seguinte raciocínio:

Como seria mais deleitável eu ver ainda mais do que estou contemplando! Porque se o que estou vendo, que é menos, já é tão deleitável que eu quase racho — racharia se Deus não me sustentasse — como seria desejável eu arqui-rachar!

Ora, eu que vivi, pelo menos até agora, 72 anos neste exílio, entrando no Paraíso posso notar a alma de um menino que, logo após ser batizado, morreu e foi chamado ao Céu. E Deus, porque quis, deu a ele mais do que a mim. Como é isso?

Então temos que entender o razoável disso, para compreendermos como no Céu não existe a inveja. E, a partir disso, fazer uma aplicação sobre as relações nesta Terra. Esse seria o curso desta exposição.

Diversos modos de ver a Catedral de Orvieto

Tomem pessoas de sensos artísticos de vários graus que, todas juntas, vão olhar a fachada da Catedral de Orvieto, gótica e dourada, adornada por vitrais e mosaicos. Digamos uma família, ou um grupo de amigos, que vá à Itália.

Em certo momento, o veículo que os conduz entra na praça de Orvieto. Maravilhamento! Todos veem a catedral no seu conjunto. Mas, se prestarmos atenção, nem todos a veem do mesmo jeito. Porque, em primeiro lugar, o grau de agudeza de vista pode ser maior em um e menor em outro, de maneira que a imagem que, pelos olhos, chega até a retina seja melhor num e pior no outro.

Em segundo lugar — e isso importa incomparavelmente mais —, um tem o senso dos conjuntos, pega e sente aquela quintessência de sabor própria a quem compreende a fundo a catedral. Enquanto outro, ao ver o conjunto, apenas balbucia: “Quanto dourado, quanta escultura, hein!”

Depois, passada essa primeira impressão, todos se aquietam, um diz: “Olha que bonita aquela imagem, e aquela outra!” De repente, um outro se entusiasma com uma escultura ou com um mosaico e, dentro deste, com uma figura e fica olhando-a.

Isso é legítimo? Está bem?

Pormenores que merecem toda a admiração

Sim! Porque a catedral é uma tal obra-prima que, na ordem das coisas, é proporcionado haver algumas inteligências privilegiadas que vejam ali tudo. Mas é proporcionado também que cada um daqueles pormenores extasie tanto algum homem, que ele teria ido a Orvieto só para ver um detalhe. O pormenor merece isso! É um direito, por assim dizer, do pormenor que haja alguém que vá à Itália só para vê-lo.

Por exemplo, uma cena a qual não lembro que esteja em Orvieto, mas provavelmente está: as mãos de Nossa Senhora, num mosaico, quando Ela recebe a saudação do Anjo. Só por aquilo um homem atravessaria o oceano, para ver as nervuras, os dedos, a piedade. Dir-se-ia: aquelas mãos liriais merecem isto!

E está de acordo com a ordem das coisas que haja uma família de almas feita para apreciar aquilo. O gênio do artista, o valor da obra que ele deixou realizada merecem admiração, isso está na ordem querida por Deus. E o homem que admira só as mãos de Maria Santíssima ou, por exemplo, está encantado com as asas multicolores de um Anjo, diz o seguinte: “Eu não tenho talento para ver tão bem quanto um outro a catedral toda, mas possuo uma alegria: presto justiça a essas asas! E, para admirá-las, poderia dedicar minha vida inteira!”

Dou muita importância a isto para se ter paz de alma. Mas também para ser contrarrevolucionário e poder afirmar: “Eu, enquanto homem, sou proporcionado a isto; esse detalhe artístico merece que um homem consagre sua vida para admirá-lo, e este homem particularmente sensível a isso sou eu”.

Enquanto um homem não concordar que sua vida está bem empregada assim, nele há um fermento ativo de Revolução.

A “fortiori” é com Deus Nosso Senhor, que possui todas as perfeições em todos os graus possíveis. E, quem vir a Ele num todo — isso todos veem — e depois ficar eternamente para contemplar apenas um grau desta perfeição, este será bem-aventurado por toda a eternidade, e perfeitamente aquinhoado porque Deus merece. Aquele grau da perfeição do Criador merece isso e muito mais. Nossa Senhora se daria por feliz de passar a eternidade contemplando o que se poderia dizer o grau mais acessível de uma das perfeições de Deus.

Como não poderíamos nos dar por felizes? Seria, no fundo, negar a perfeição do próprio Deus! Quer dizer, passando do exemplo de Orvieto para o que se dá com Deus Nosso Senhor, compreende-se, então, como no Céu não há inveja.

Devemos nos alegrar ao vermos a superioridade de outros

Assim, entendemos o quanto a inveja é irracional, estúpida.  Alguém dirá:

— Mas Doutor Plinio, eu tenho pesar de ser burro.

Eu lhe respondo:

— Meu filho, você devia ter pesar de ser bobo!

No Colégio São Luís de meu tempo de menino — não sei como fazem nos colégios hoje — havia nota de comportamento e aproveitamento no ensino. Mamãe me dizia: “Desejo que você tire boas notas em aproveitamento, mas não faço tanta questão, porque pode ser que meu filho seja burro, e nesse caso eu também o estimo muito. Mas, em comportamento, não! Nota de comportamento tem que ser dez e raramente nove. E quando não for dez, você precisa explicar a sua mãe o que ocorreu. Porque nesse caso entra a culpa. E neste ponto não transijo”. E eu achava que ela tinha razão.

Então, eu digo àquele que se afirma burro: “Tenho pena de você porque tem nota cinco de comportamento e fica triste por causa do aproveitamento. Com sua pouca inteligência, quando você morrer dará para ver em Deus uma perfeição tão admirável, que justificaria a vida de um coro de Anjos! Isso você vai ver, e está choramingando?”

Para não falar de outras coisas mais ordinárias… “Fulano é tão engraçado, e eu não sei contar nada de jocoso! Fico com inveja de Fulano”.

Dá vontade de dizer: “O palhaço do circo é mais engraçado do que Fulano. Vá lá para admirar o palhaço! Na realidade, você não acha graça no outro, mas tem inveja das palmas que ele obtém, da popularidade que ele forma em torno de si.”

Então deveríamos ter um cuidado muito grande em ficarmos com alegria, notando a superioridade de outros. Precisamos ser almas famintas de admirar essa superioridade. Vendo que uma pessoa tem mais do que eu, digo: “Mas que bom!” E se possui uma coisa que não tenho: “Mas que ótimo! Que satisfação!” E se é mais virtuosa: “Lamento não ser tão virtuoso quanto deva, mas me alegro que tal pessoa seja mais virtuosa do que eu!”

A alma faminta de ver outros superiores é contrarrevolucionária. Se ela não é assim, não minta para si nem para Deus, e reconheça humildemente que tem um grave fermento revolucionário. Bata no peito e peça emenda. Não minta para si, porque a Deus não se mente. Ela carrega duas mentiras: uma para os homens e outra para si mesma. Deus vê! De maneira que isso deve ser analisado bem de frente.

Recepção de uma virgem no Céu

Vejamos agora como São Jerônimo cuida da questão. Na carta a Santa Eustáquia, diz ele:

Qual será o dia em que Maria, Mãe do Senhor, virá a teu encontro, acompanhada pelos coros das virgens?

Ela era uma virgem que entrava no Céu, e o coro das virgens viria recebê-la. Pensemos um pouquinho que coro nos receberá no Paraíso… Será uma pessoa de quem tínhamos saudades e que virá nos abraçar? Nós, mais velhos, morreremos antes dos mais moços. Já temos membros de nosso Movimento que morreram e estão no Céu. Nós podemos esperar que eles nos recebam na orla do Paraíso, como São Domingos Sávio, com certeza, acolheu São João Bosco. E serão os primeiros amplexos, o primeiro entusiasmo, a primeira alegria… Que gáudio para nós ver os que estão na glória dos Céus, e há muito tempo rezando por nós! Que coisa magnífica!

Então vêm Nossa Senhora, o coro das virgens, e também o coro dos guerreiros para receber essa virgem de alma varonil.

São Jerônimo continua:

Virá o próprio Esposo…

Num perfeito cortejo, o rei vem no fim.

…da alma dela e dirá: “Levanta-te, vem, minha irmã…”

Ele imagina Nosso Senhor Jesus Cristo dizendo a Santa Eustáquia:

“…vem minha bela, minha pomba; porque passou o inverno e a chuva.”

São palavras tiradas do Cântico dos Cânticos(1).

 Imaginem que Nosso Senhor diga a um de nós: “Venha, meu filho, venha meu guerreiro! Passou a luta. E agora, por toda a eternidade, triunfarás”.

Vendo a alma que entra, os bem-aventurados se admirarão e dirão: “Quem é esta que se ergue como uma aurora, bela como a Lua, eleita como o Sol?”

Esta última frase é da Escritura(2) e costuma ser aplicada a Nossa Senhora. São Jerônimo a aplica a Santa Eustáquia, e nós poderemos empregá-la aos contrarrevolucionários que entram no Céu. “Quem são estes que se erguem como a aurora, pulcros como a Lua, luzidios e escolhidos como sóis?”

E São Jerônimo acrescenta:

As donzelas te verão e te louvarão.

As graças rejeitadas pelos réprobos serão concedidas aos bem-aventurados

Então, terminada a recepção, da qual estou encurtando partes, afirma São Jerônimo:

Os 144 mil que estão diante do trono e os anciãos tomarão cítaras e cantarão o “canticum novum”, em louvor da nova bem-aventurada que entrou!

Cento e quarenta e quatro mil é um número simbólico. Quer dizer, feita toda a recepção, os bem-aventurados cantam em louvor daquela que chegou! Lá não cabe a inveja, ela não existe!

São Jerônimo continua:

Deus, no Céu, entregará aos bem-aventurados todos os dons, todos os dotes e todas as graças.

E Cornélio a Lápide comenta:

Todas as graças, também aquelas que os réprobos tiveram nesta vida.

Quer dizer, as graças que os réprobos tiveram e rejeitaram são entregues aos que forem, pelas orações de Nossa Senhora, levados ao Céu. Essas graças recusadas esperam aos justos. Tudo isso não se perderá.

Porque a beatitude é o estado perfeito, pela agregação de todos os bens, como diz Boécio.

Vem citado, depois, um dito de Santo Ambrósio:

Cada um dos bem aventurados goza de tal maneira com a glória de cada um dos outros…

Ainda que seja uma glória maior. É o contrário da inveja!

…como se esta glória dos outros fosse a sua própria glória!

Assim devemos ser na Terra com relação aos outros. Quando eles se realçam, precisamos ficar alegres como se fosse um dom para nós; dessa forma nos preparamos para o Céu. Não se pode ser de outra maneira! Eu sei que a Revolução ensina o contrário! Pior do que isso, vicia com o contrário! Porque é um vício o que ela estimula.

Maravilhosa união entre os bem-aventurados

Pelo que é bem-aventurado, não uma vez, mas milhares e milhares de vezes.

Quer dizer, o indivíduo tem a bem-aventurança de milhares e milhares, porque ele frui a glória do outro como se fosse dele. Então, o menorzinho no Céu desfruta a glória de São Miguel Arcanjo, no píncaro dos píncaros, como se fosse a dele. E literalmente ele “racha” de contemplar São Miguel Arcanjo!

E agora vem a metáfora apresentada por São Jerônimo:

Na recompensa há uma torrente de gozo e o ímpeto de um rio que não corre e nem se retira.

É chamado de rio não porque passa, mas porque abunda.

É uma beleza de metáfora! Quer dizer, os bem-aventurados vão chegando ao Céu como um rio; um rio que não escorre, mas deságua numa eternidade para a qual não há mais movimento nem inércia. Está tudo na perfeição. E cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais! Um invejoso que estivesse lá veria um concorrente no novo que chega. Não sendo invejoso, ele tem alegria e exclama: “Mais gente! Que maravilha! Para Deus, eu nunca serei anônimo. Todos que estão aqui me conhecem pelo nome. E me querem até na minha pequenez”.

E os maiores que passam perto dele, vendo-o na sua pequenez dizem: “Como esta perfeição de Deus merece que fosse criado este, e O adorasse especialmente neste grau!  Meu caro, como estou alegre que tu existas!”

Os menores serão o gáudio dos maiores e os maiores serão a alegria dos menores. Tudo numa união maravilhosa, sem igualitarismo. O maior gosta do menor porque é menor. E o menor gosta do maior, porque é maior.

Feito este périplo por tão belos textos, deixo-os aos pés da Catedral de Orvieto.

Imaginem um homem que melhor entendeu Orvieto, o qual passa e vê de repente um que está olhando fixo para uma asa de um Anjo, um arco-íris, ou qualquer outra coisa da Catedral de Orvieto. Ele olha e diz o seguinte: “Sou feito para ver o todo, mas se eu contemplasse só o que ele está vendo, daria minha vida por justificada, porque aquilo merece”.

Passa perto dele e diz: “Meu caro, como você está bem aquinhoado em admirar esse detalhe! Somos irmãos!”

Terminou, meus caros, a nossa visita à Catedral de Orvieto, e nós nos dirigiremos, com a bênção de Nossa Senhora, para outros e novos rumos. Estes não são nem novos nem antigos; são eternos! v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/2/1981)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

 

1) Ct 2, 10-11.

2) Ct 6, 10.

A poderosa intercessão de Maria

Nossa Senhora nos quer tão bem que tudo quanto Lhe peçamos, certamente obteremos. Por pouco que valham nossas orações, Maria Santíssima recolhe nossas preces e, com os méritos d’Ela, torna-as magníficas.

São Luís Grignion de Montfort faz uma comparação muito bonita. Ele fala de um camponês que queria oferecer uma homenagem a um rei, mas a única coisa que ele possuía era uma maçã. Então, ele procurou a mãe do rei e lhe disse:

— Senhora, esta maçã não vale nada, mas se vós a oferecerdes ao rei, ele sorrirá e a comerá. Eu vos peço, oferecei ao rei esta pobre maçã. Apresentada por vós, ele lhe dará valor e a aceitará.

A rainha o fez, e o rei ficou muito contente: comeu a maçã porque sua mãe lhe havia dado.

Assim são nossas orações; entretanto, devemos oferecê-las a Nossa Senhora, dizendo:

— Mãe nossa, nossas orações valem muito pouco, mas, por favor, oferecei-as a Deus, porque por vosso intermédio elas serão muito bem recebidas.

Por causa disso, deveremos sempre rezar com muita confiança de que seremos atendidos. A Mãe de Deus nos tirará de nossos erros, de nossas faltas e obterá perdão para nossas culpas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/2/1991)

Enlevo e holocausto

A “Carta Circular aos amigos da Cruz” – I

Serviço, obediência e holocausto em prol da Igreja, nascidos do enlevo pelas perfeições de Deus, são atitudes próprias da alma onde lateja um autêntico amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o que Dr. Plinio nos convida a compreender, ao comentar — numa série de conferências que equivalem a um retiro espiritual — a “Carta circular aos amigos da Cruz”, escrita por São Luís Grignion de Montfort.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort escreveu uma obra com um título glorioso: “Carta Circular aos amigos da Cruz”. Por ser pequena, deu-lhe a forma de carta. A julgar pelo título, foi redigida para afervorar certo número de pessoas conhecidas do santo, particularmente amigas da Cruz ou, pelo menos, com um começo de amor a ela, numa época (início do século XVIII) onde se era pouco amigo da Cruz(1).

Ardorosa linguagem do santo

Esse é um pormenor importante, e não de interesse meramente livresco. Porque uma é a linguagem empregada com os inimigos, outra, com os amigos. Há ainda um terceiro modo de falar, utilizado com os irmãos, aqueles que vibram de entusiasmo pelo mesmo ideal que o nosso, aos quais não queremos apenas afervorar, mas impulsionar nas sendas desse ideal. São Luís escreve numa linguagem que convém às duas últimas categorias, embora mescle considerações diversas.

Com efeito, alguns pensamentos são próprios a estimular o amor à Cruz, outros constituem defesas ou apologias da Cruz, para serem usados em polêmicas contra os inimigos dela. Analisaremos ambos os aspectos, para bem compreendermos a linguagem e o significado da Carta, que assim começa:

Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz a palavra, não me é possível e nem desejo vos falar, para vos externar os sentimentos do meu coração sobre a excelência e as práticas divinas de vossa união na adorável Cruz de Jesus Cristo.

Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por assim dizer, da atração do meu interior, a fim de esboçar neste papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles transpassar vossos bons corações. Prouvesse a Deus que, para acerá-los, bastasse o sangue de minhas veias, em lugar da tinta da minha pena! Mas, ai de mim! Mesmo se ele fosse necessário, é por demais criminoso. Que o espírito de Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta; que sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz seja minha pena, e vosso coração, o meu papel!

Graça especial para se ter amor à Cruz

Percebe-se nesse trecho certo estilo próprio à literatura da época, mas também um pensamento teológico muito profundo. Ou seja, para tudo quanto é bom, faz-se necessária a graça de Deus, e de modo especial no que diz respeito à cruz. Porque o homem é tão egoísta e infenso ao sofrimento que, se não houver uma graça particularmente intensa, pujante, a ação de qualquer pessoa é incapaz de despertar noutra o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por exemplo, a graça do enlevo pelas coisas celestes, pelas coisas de Deus, proporciona a uma pessoa coragem para que ela carregue grandes cruzes como se fossem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, por Nossa Senhora, pelas grandezas do Céu agem com tal profundidade no homem que, por um ato de consentimento livre, consciente — e ao mesmo tempo subconsciente, o que parece paradoxal, porém verdadeiro — ele se deixa transformar. E o amor à Cruz é o sintoma dessa mudança de mentalidade.

Esse é um ponto fundamental na vida espiritual. Pois quando no coração de alguém cresce o enlevo por algo, ele fica apetente de obediência, serviço e holocausto, que são cruzes. Fazer a vontade de outrem e não a própria: obediência; servir ao próximo e não a si mesmo e a seus egoísmos: serviço; e mais que tudo isso, o holocausto, o sacrificar pelo outro o que se possui, até a imolação da própria vida. Essas três atitudes de alma constituem cruzes e são a substância de toda cruz que existe na Terra.

Pode-se supor que é a esse amor nascido do enlevo pelas coisas de Deus, o qual torna as almas capazes de abraçar a Cruz, é a essa graça especial que se refere São Luís Grignion no exórdio de sua carta.

“Coragem! Combatei valentemente!”

E prossegue:

Estais reunidos, amigos da Cruz, como outros tantos soldados crucificados para combater o mundo, não fugindo dele como os religiosos e religiosas pelo medo de serdes vencidos, mas como valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas. Coragem! Combatei valentemente!

Como já vimos, uma das características de São Luís Grignion é o espírito combativo, com um quê de fogoso no sentido de apostrofar os erros dos adversários. Então ele, que fundou uma congregação religiosa, reunindo pessoas para fugirem do mundo, conhece a variedade dos dons que existem na Igreja. E compreende que certas almas são chamadas a permanecer no mundo para combater o mal. Porque viver no mundo é sinônimo de lutar contra o mal. É para esses que ele escreve: “valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha…” Apenas isso? Não. “Coragem! Combatei valentemente!” Quer dizer, é preciso tomar a iniciativa em defesa da virtude, contra o pecado.

Essas palavras se compaginam com a forte personalidade de São Luís Grignion de Montfort, fazendo-nos imaginar um missionário que fala e brande um crucifixo para os seus ouvintes, convidando-os à luta. Nesse trecho há qualquer coisa do timbre de voz de nosso santo, que é insubstituível. Aqui transparece sua psicologia inteira: abrasado de entusiasmo, não passando um minuto sequer sem um amor a Deus superlativo, lucidíssimo, com os olhos voltados ao mesmo tempo para o ideal que o enlevava e para a ação por ele contemplada. Portanto, da chama da contemplação passava para o ato, realizando um apostolado dardejante, levando muitas pessoas consigo. Era um braseiro ardente, cujo calor comunicativo se sente nessas palavras.

Mais anjo do que homem

Tem-se a impressão, aliás, ao lermos esses escritos de São Luís Grignion, de vermos nele mais um anjo do que um homem, com o amor próprio de um serafim. Constantemente aceso e deitando labaredas em torno de si. Ele possuía uma castidade primeira, uma candura inicial, uma incontaminação da sabedoria, sem nenhuma concessão às máximas mundanas, aos desvios da Revolução. Era um reflexo do espírito de Nossa Senhora agindo entre os homens, como um anjo.

Como se vê, nesses comentários procuramos fazer sentir o tom de voz e quase o calor pessoal de São ­Luís Grignion de Montfort, pois para nós é indispensável compreendermos a personalidade dele, que tanto nos fala à alma. Afinal, ele é o santo da verdadeira devoção a Nossa Senhora, a qual alcança para seus devotos a plenitude de dons como este do amor à Cruz, enaltecido por São Luís nessa sua admirável carta circular.

(Continua em próximo artigo)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1967)

A verdadeira compreensão da piedade

Notável educador, profundo conhecedor da alma humana, bem como das dificuldades enfrentadas pelos jovens de nosso tempo na prática da religião – dificuldades vencidas garlhardamente por ele mesmo em sua mocidade -, Dr Plinio é a pessoa ideal para abordar essa questão.

 

Poderá à primeira vista causar estranheza que um sobre assuntos de piedade, uma vez que estes têm sido em geral confiados à pena mais competente e mais firme dos sacerdotes.

Por este motivo, começo por declarar que não tenho intenção alguma de doutrinar sobre assuntos piedosos. Observando, apenas, o grande número de obstáculos que a mocidade de nossos dias encontra para conseguir uma compreensão verdadeira da piedade, tentarei remover certas dificuldades e esclarecer certas noções que a rotina ou a ignorância religiosa apagaram completamente.

Que valor tem a vida de piedade?

A primeira dificuldade que se opõe à formação de uma vida intensamente piedosa é o mau exemplo dado por alguns católicos que, assíduos na prática da oração e dos Sacramentos, levam uma vida particular escandalosa, em absoluta contradição com os princípios religiosos que professam.

Confesso ter sido esta uma das observações que mais desfavoravelmente atuaram em minha vida espiritual.

Entendia eu que, uma vez que havia pessoas piedosas que levavam uma vida irregular, a piedade era inútil para o aperfeiçoamento do indivíduo, e tinha por única função o dar expansão a arroubos de temperamentos sentimentais.

E, infelizmente, não me faltaram os maus exemplos. Quando menino, grande parte dos mais piedosos entre meus colegas era de um respeito humano e de uma inconveniência de linguagem pasmosa. Mais tarde, conheci um rapaz que se destacava na Faculdade de Direito pela imoralidade das conversações que mantinha. Com grande pasmo meu verifiquei, posteriormente, que se tratava de uma pessoa extraordinariamente assídua na freqüência de igrejas. E, conversando certa vez comigo (a quem ele conhecia como católico praticante), abordou o tema dos escrúpulos, exibindo aquela consciência empedernida no pecado, notável conhecimento do assunto, discorrendo com facilidade sobre trabalhos de santos e de recentes autores europeus a esse respeito!

Ignorância do papel da graça

Outro grande obstáculo é a ignorância completa em que se vive, do valor e do papel da graça no progresso de uma alma na sua vida espiritual.

Acrescente-se a isto o completo desconhecimento do valor e da necessidade da adoração, da reparação, do louvor e da ação de graças tributadas pela criatura ao seu eterno Criador, e temos a vida piedosa reduzida a uma série de atos frios, mera cortesia externa para com um Criador distante e exigente que, com um olhar impassível e talvez distraído, assiste às genuflexões corporais e espirituais de suas criaturas.

Quadro pintado com cores negras, certamente. Consulte-se, porém, a grande maioria dos que pretendem ser católicos, e freqüentemente encontraremos uma situação espiritual ainda mais triste.

É necessário que esta situação deixe de existir. E, para isto, é indispensável que se vençam preconceitos e se destruam erros.

Desejando não dar grande extensão a este primeiro artigo, deixamos para o próximo número o exame do preconceito suscitado pela falsa piedade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do”Legionário”, nº 118, 23-4-33.)

São João Batista – Modelo de Alma

Modelo de alma admirativa, São João Batista anunciou a vinda do Messias e, por isso, foi seguido pelas multidões.

Contudo, ao avistar Nosso Senhor, ele proclamou: “Eis aquele que é superior a mim, eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, e do qual não sou digno de desatar suas sandálias”.

E logo depois, essa afirmação de extrema beleza: “Convém que Ele cresça; a mim me compete minguar”. Como se dissesse: “Terminou minha missão, que era de preparar os caminhos do Filho de Deus. Eu não sou nada; Ele é tudo. Importa que eu diminua, e Ele exista”.

Esplêndida expressão de quem admira e se enleva com o que lhe é superior!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/6/1967)