São Germano de Auxèrre – Apóstolo da Gália, da Itália e Grã Bretanha

Ao comentar alguns significativos episódios da vida de São Germano de Auxèrre, Dr. Plinio analisa os diversos aspectos da manifestação da graça de Deus através dos tempos, como resposta d’Ele a uma receptividade mais generosa da parte dos homens — ontem, hoje e, sobretudo, no Reino de Maria, essa época vindoura que há de ser favorecida por uma especial refulgência dos dons  divinos.

 

A respeito de São Germano de Auxèrre, cuja festa se celebra em 31 de julho, temos a seguinte nota biográfica: “Nascido no século V, foi ele uma das figuras extraordinárias de bispos dos primeiros séculos da conversão da Europa. Antes de receber a vocação episcopal, tinha sido duque de Auxèrre e general das tropas dessa província; estudou letras e jurisprudência nas Gálias (região da qual  fazia parte a atual França) e em Roma. Casou-se com uma jovem tão nobre e tão rica quanto ele.

Santo de majestosa fisionomia

“Entretanto, o Bispo de Auxèrre, pressentindo sua morte, recebeu de Deus a revelação de que Germano deveria ser seu sucessor. Assim, pedindo permissão a seus superiores, convidou Germano  para ir à catedral e ali cortou-lhe os cabelos, revestiu-o com um traje especial que, segundo o costume da época, o distinguia como clérigo. Após algumas acerbas resistências, acabou assumindo o cargo. Como sacerdote e bispo, transformou-se completamente, sendo um exemplo para todos. Em obediência a uma ordem do Papa, partiu para a Grã-Bretanha a fim de combater o  pelagianismo.

Ao passar por Paris, discerniu no meio da multidão Santa Genoveva e profetizou o futuro da jovem.

“Sua vida decorreu em meio a milagres, realizando grandes trabalhos apostólicos. É conhecida  sua intervenção a favor dos bretões, tornando-os vitoriosos numa batalha contra os ingleses. Combateu tenazmente os adeptos de Pelágio. Certa ocasião, dirigindo-se a Ravena (Itália), logo após atravessar os Alpes, vestiu-se pobremente para não ser reconhecido.

Chegando a Milão, entrou na catedral num dia de festa, como anônimo. Porém, um possesso começou a gritar no meio dos fiéis: ‘Germano! Por que viestes nos procurar na Itália?! Contenta-te em  nos expulsar das Gálias e de nos ter vencido com tuas preces!’. Admirado, o povo acabou reconhecendo o Santo, pela majestade de sua fisionomia. “São Germano era muito estimado por São Pedro  Crisólogo e pela Imperatriz Gala Placídia, para a qual, certo dia, enviou um pedaço de pão numa bandeja de madeira. A soberana recebeu o presente cheia de respeito, mandou colocar a bandeja num relicário de ouro e guardou o pão a fim de utilizá-lo como remédio para suas enfermidades. Faleceu São Germano em 448, e o quarto onde seu corpo era velado regurgitava de  grandes personagens, que disputavam suas relíquias.”

Uma revelação e um corte de cabelo…

Por esses dados podemos notar uma constante a ser analisada: a diferença profunda entre o modo como as pessoas daquele tempo consideravam as coisas e como o fazem as de hoje. Havia, então, uma mescla de barbárie e espírito rudimentar com sentimentos, disposições de alma extraordinárias e intervenções sobrenaturais sublimes.

Germano era duque de Auxèrre, província situada na importante Borgonha. Atualmente, o título de duque é apenas honorífico, pelo qual alguém se distingue dos demais por um cartão de visita e  algumas atenções num salão. Mas naquele tempo significava possuir o governo vitalício e hereditário de um grande território, uma pessoa com quem o monarca deveria contar para exercer a realeza. O duque era um pequeno rei no local onde tinha seu ducado.

Ora, o bispo daquele lugar, Amator, prevendo sua morte próxima, recebeu a revelação para designar o duque Germano como seu sucessor. O prelado não duvidou da inspiração da graça divina,  mas sim de que o duque aceitasse.

Mandou então chamá-lo à catedral e ali cortou-lhe o cabelo. Como um homem repleto de senhorio, autoridade e poder permitiu que agissem dessa forma com ele? Importa salientar que naquela época os homens usavam cabelos até os ombros, ou mesmo caindo pelas costas. E a cabeleira longa não era apenas um sinal distintivo dos nobres, mas também um elemento de vaidade masculina. Daí o costume de cortá-lo, chamado de “tonsura”, quando se ingressava nas ordens sacras, simbolizando a renúncia aos hábitos mundanos.

Não sabemos como o bispo convenceu Germano a lhe permitir cortassem os cabelos. Porém, deve ter sido uma espécie de pressão moral: diante de todo o povo reunido, ele explicou qual era a  vontade de Deus. O duque, um tanto constrangido, não teve alternativa senão deixar que os aparassem.

Candura e profunda seriedade

E assim ele se tornou clérigo, o que resultava na sua destituição do ducado. Diante dessa perda de senhorio, Germano se julgou vítima de um golpe de Estado e se levantou em armas na defesa dos  seus direitos. Era um modo de ver as coisas inteiramente diverso do contemporâneo. Havia, então, uma certa candura aliada — e aí se sente os sabores espirituais da Idade Média nascente — a  uma profunda seriedade.

Se acontecesse algo semelhante a um indivíduo de hoje, ou seja, se lhe cortassem os cabelos para torná-lo clérigo, ele sairia da igreja e diria: “Isto é nulo, pois houve coação moral; continuo minha vida como antes e não me importo com as conseqüências. Sr. Bispo, adeus!” Em sentido oposto, o duque Germano se achou lesado de tal sorte, e todo o mundo o considerava tão comprometido por aquela cerimônia, que ele levantou tropas e fez uma revolução. Pode-se ver nisso um pouco de primitivismo, mas, de outro lado, uma intensa seriedade no dar verdadeiro valor ao significado  das coisas.

Esse bispo terá agido bem? Quanto a Germano, creio estava no direito de reagir. Porque se ele foi objeto de  uma coação moral — o corte de cabelo não sendo um sacramento, mas uma coisa delével — parece-me que ele poderia perfeitamente se libertar daquele modo. Porém, tocado pela graça, ele se converteu. Renunciou aos seus direitos de nobre, aceitou o episcopado e começou sua grande carreira de Santo.

Convém apreciar como é interessante o trabalho da graça. O bispo de fato havia recebido essa missão de Deus, mas o Criador quis dar ao duque uma graça fulgurante, de maneira que ele ficasse esmagado pelo convite.

Permitiu-lhe até que oferecesse resistência. Contudo, em certo momento realizou seu desígnio: deu-lhe novas graças e Germano acabou cedendo, tornando-se um herói da Fé. E dessa forma maravilhosa, um dos maiores bispos da história da França deu início ao seu pontificado.

“Onde está Germano?!”

Consideremos outro episódio da vida de São Germano que também traduz de modo eloquente o espírito daquela véspera de Idade Média. Como em todas as épocas, tinha então o demônio permissão de Deus para tentar os homens, embora possamos concebê-lo com uma ação maléfica não tão agressiva quanto seria nos séculos sucessivos, em virtude da decadência da Civilização Cristã. Assim, compreende-se o ocorrido com nosso Santo na Catedral de Milão. Um possesso gritou: “Germano, que fazes aqui? Tu não te contentas de nos ter expulso da Gália, e ainda vens à  Itália nos aborrecer?”

Esses rugidos devem ter induzido ao mal certas pessoas lá presentes. Mas, de outro lado, o demônio tinha licença para tentar alguns sob a condição de dizer coisas que, em última análise,  pudessem abrir os olhos de todos para as grandes qualidades de São Germano. Então, o povo começou a procurá-lo: “Onde está Germano? Onde está Germano?”. Ele, embora pobremente vestido, era o ex-duque de Auxèrre e conservara a fisionomia e porte ducais, aliados à nobreza pastoral. E foi reconhecido pela majestade de sua pessoa, sendo logo objeto de homenagens e reverências.

Matizes diversos na economia da graça

Por fim, constatemos o belo uso feito pela Imperatriz Gala Placídia do presente enviado a ela por São Germano, cujo gesto encerrava provavelmente um sentido simbólico. É notável o espírito de Fé que animava essa soberana. Ela toma o prato de madeira e o coloca num relicário de ouro, porque fora presenteado por um santo. Embora ele ainda não tivesse sido canonizado pela Igreja, a Imperatriz estava convencida da heroicidade de virtudes do bispo. E sendo notórias, sólidas, incontestáveis as provas dessa perfeição espiritual, ela guardou o pão para usá-lo como remédio em  suas doenças. E certamente esse alimento operou muitos milagres!

Tal atitude da parte da soberana indica outra intensidade da Fé, das bênçãos divinas, outro regime da graça de Deus para com os homens naquele período histórico. E nesse ponto cumpre fazer uma insistência. Não se trata de dar aqui à palavra “outro” o mesmo sentido da diferenciação entre o Antigo e o Novo Testamento. Quer isto dizer simplesmente que havia um matiz diverso entre a economia da graça naquele tempo e o existente nos dias de hoje.

Séculos mais tarde, na época medieval, a graça era generosa, abundante, triunfante. Atualmente, por ser tão mal recebida pelos homens, apesar de ser igualmente copiosa, o seu triunfo é mais  difícil… Assim, é-nos dado compreender algo sobre o Reino de Maria, no qual, em sua substância mais íntima e importante, haverá um mais amplo leque de manifestação da graça nas almas.

Quer dizer, após o triunfo do Imaculado Coração de Maria, anunciado em Fátima, Deus perdoará os pecados dos que se arrependerem, e — atendendo aos rogos de sua Mãe Santíssima — dará  início a esse novo tipo de manifestação, ao mesmo tempo em que da parte dos homens, purificados de suas faltas, haverá outra receptividade e reciprocidade para com os dons divinos.

Pedir um  perdão novo e uma nova graça

Portanto, a condição essencial para que venha uma futura e nova Idade Média, é um perdão que deve descer do Céu e mudar todas as coisas. Houve em determinado momento da História um  pecado instigado pelo inferno, que determinou a ruína da cristandade medieval e alterou tudo na Terra. Uma vez perdoado este pecado, começará o Reino de Maria, pelo favor e misericórdia de  Nossa Senhora.

Devemos, pois, por meio de São Germano de Auxèrre, implorar com insistência que nos venha do Céu uma graça nova, um perdão novo, e a Virgem Santíssima se digne de estabelecer com os  homens um teor de relações  baseado numa outra situação. Não se pense que simplesmente com a derrota da Revolução e dos adversários da Igreja Católica estaria tudo resolvido. É preciso esse  perdão, um fato de ordem sobrenatural que será o alicerce do Reino de Maria.

É necessário orar muito, porque os fenômenos sobrenaturais não podem ser produzidos pelo homem. Eles provêm de Deus, pela intercessão de Nossa Senhora. Quanto mais pesar sobre nós a  dureza da época em que vivemos, tanto mais nos cabe pedir a vinda desse perdão e dessa graça inéditos, para mudar cada um de nós e o mundo inteiro.

Seja, portanto, este convite a um espírito de oração mais fervoroso e constante, a conclusão desses comentários à edificante vida de São Germano de Auxèrre.

Plinio Corrêa de Oliveira

Os homens, as nações e a Lei de Deus

A humanidade anda sôfrega à procura da paz. Em número cada vez maior pululam em torno de nós movimentos, associações, campanhas que tentam levar as pessoas a se conscientizar da necessidade de um mundo melhor.

 Os meios propostos para se alcançar esse fim são muito variados, mas traduzem, na sua maioria, o mesmo estado de espírito no qual o homem ocupa o centro e Deus nem sequer é mencionado.

Ora, o que são as obras humanas dissociadas de Deus? Nada mais do que vaidade. Tudo se torna carente de significado quando não é feito em função do ideal primeiro traçado para o homem: amar, glorificar e servir a seu Criador.

Eis a meta que deve nortear a humanidade, como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica:

“Deus, infinitamente perfeito e bem-aventurado em Si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada. Por isso, sempre e em toda parte, Ele está próximo do homem. Chama-o e ajuda-o a procurá-Lo, a conhecê-Lo e a amá-Lo com todas as suas forças” (n. 1).

A propósito desta fundamental doutrina, comentava certa vez Dr. Plinio(1):

A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda alma bem formada, de toda sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.

Todo ser possui um fim próprio e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Por exemplo, uma peça de relógio tem uma finalidade específica, e, por sua forma e composição, é adequada à realização dessa finalidade.

A ordem é a disposição das coisas segundo sua natureza. Portanto, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão dispostas segundo a natureza e a finalidade que lhes são próprias. Assim também se diz que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.

A ordem, por sua vez, engendra a tranquilidade, e a tranquilidade da ordem é a paz.

Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, encontra-se em estado de perfeição.

Logo, o acerto, a fecundidade e o esplendor das ações humanas — quer individuais, quer sociais — também estão na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.

Ora, as regras desta perfeição se encontram na Lei de Deus, que Nosso Senhor Jesus Cristo não veio abolir, mas completar(2), nos preceitos e conselhos evangélicos.

A Lei divina, que depois do pecado original tornou-se um jugo muitas vezes difícil de ser carregado pelos homens, é, na verdade, inerente a seu ser e a mais alta expressão da lei natural(3), formando, por conseguinte, a única e verdadeira bússola para o reto desenvolvimento da humanidade e do progresso da sociedade(4).

O Decálogo — continua Dr. Plinio — não poderia ser contrário à natureza que o próprio Deus criou em nós, pois sendo Ele perfeito, não pode haver contradição em suas obras.

Por isso, os Dez Mandamentos nos impõem ações que a nossa própria razão nos mostra serem conformes com a natureza.

Através da prática dos Dez Mandamentos os homens não só reverenciam, amam e glorificam a Deus, mas também alcançam para a nação a verdadeira paz e ordenação(5), como faz notar Santo Agostinho:

“Imaginemos um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo; governadores, esposos, pais, filhos, mestres, servos, reis, juízes, contribuintes, cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem [os pagãos] ainda dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado, quando fielmente observada.”(6)

Em outros termos — comenta Dr. Plinio —, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição.

Foi esta luminosa realidade, feita de uma ordem e uma perfeição antes sobrenatural e celeste, do que natural e terrestre, que se chamou a Civilização Cristã, produto da cultura cristã, a qual por sua vez é filha da Igreja Católica.

Neste sentido, a cultura católica é o cultivo da inteligência, da vontade e da sensibilidade segundo as normas da Moral ensinada pela Igreja. Já vimos que ela se identifica com a própria perfeição da alma. Se ela existir na generalidade dos membros de uma sociedade humana — embora em graus e modos acomodados à condição social e à idade de cada qual —, ela será um fato social e coletivo, e constituirá o mais importante elemento da própria perfeição social.

De onde decorre com evidência cristalina que não há verdadeira civilização senão como decorrência e fruto da verdadeira Religião.

 

1) Excertos adaptados do artigo “A Cruzada do século XX” publicado em Catolicismo n. 1, janeiro de 1951.

2) Cf. Mt 5, 17.

3) Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2070.

4) Ver nesta edição “A Lei de Deus e a boa ordenação da sociedade – I”, p. 12-17.

5) Ver nesta edição “O tecido social perfeito”, p. 18-23.

6) Epist. CXXXVIII al. 5 ad Marcellinum, cap. II, n. 15, in PL 33, 532.

Oração da despretensão e das santas proezas

Ó minha Senhora, Mãe de justiça e de misericórdia, modelai a minha alma de tal maneira que, inteiramente despretensioso, eu seja capaz das mais santas proezas. Afastai de mim a consideração de minhas qualidades naturais e até das sobrenaturais que a graça, implorada por Vós, possa me alcançar.

Abri minha alma para o exame sincero, leal, varonil de meus defeitos, sem buscar atenuantes e pretextos para indulgências falsas para comigo. Dai-me a verdadeira contrição pelas minhas faltas e o propósito de nunca reincidir nelas.

Assim, ó minha Mãe, serei verdadeiramente capaz de realizar todas as proezas por Vós, porque sei bem que só aos despretensiosos Vós concedeis as grandes vitórias.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/2/1980)

Vocação para harmonia e síntese

Agraciado pela Providência com um cordial e generoso “savoir faire”, o povo brasileiro desponta na História para exercer a importante missão de harmonizar as mais diversas nacionalidades. É o que, através de vívidos exemplos, nos mostra Dr. Plinio na exposição abaixo transcrita.

Quando consideramos o futuro do gênero humano e nos colocamos diante da idéia da unidade das nações1, nos referimos um tanto aos dias de hoje, mas, sobretudo, voltamos nossos olhos para o dia de amanhã. Poderíamos nos perguntar, então, se já existem povos que constituam essa unidade e qual o papel deles no concerto universal.

América Latina e o mundo vindouro

Creio que, por algum lado e de certo modo, esse plano está se realizando na América Latina, a qual representa o mundo de amanhã. Sua história é ainda tão recente que seu próprio passado é o dos outros povos europeus. Quando estes começam a decair, brotaram as nossas raí­zes e desabrocharam de forma incipiente as nossas glórias.

O século XX foi dos Estados Unidos; o XIX da Inglaterra; o período (quase mil anos) desde Carlos Magno até fins do século XVIII, da França. Espanha e Portugal não chegaram a ter primazia, mas deram origem à América Latina, e a história daqueles terá sua continuação nesta última, conforme os planos da Providência. Isso ocorrerá no século XXI, o qual, indubitavelmente, será do subcontinente latino-americano.

Em função desse acontecer histórico, vale dirigir nossa atenção para o brasileiro e o hispano.

Atualmente, fala-se muito e se cogita em estender o Pacto Andino desde o norte dos Andes até a Patagônia, abrangendo também o Brasil, embora ele nada tenha de andino. É um modo sul-americano de constituir uma grande unidade. E nos causa não pequeno entusiasmo a idéia de que essa magnífica unidade religiosa, étnica, cultural, eu diria lingüís­tica, estabeleça uma espécie de superestrutura arqui-política.

A índole do brasileiro, ideal para a unidade das nações

Quanto ao Brasil — onde nosso movimento foi fundado — percebo perfeitamente este fato: Deus criou suas características geográficas e a índole de seu povo de tal maneira que este adquirisse uma mentalidade a fim de servir idealmente para essa obra resumitiva do futuro. E a grande originalidade do brasileiro está em fazer compêndios dessa natureza. É sua missão na História.

Para auferir esse talento de sintetizar, recordemo-nos dos clubes de Carnaval no Rio da década de 40, quando essa festa estava num auge e se apresentava menos como folia do que desfile do maravilhoso, feito pelo povinho dos subúrbios. Este é propriamente o sentido nobre e bonito do Carnaval. Então havia salões freqüentados por homens de cor vestidos à maneira das cortes de Luís XIV e Luís XV, cabeleira empoada e sapatos de fivela, acompanhados de “marquesas” de ébano! Aquilo que poderia parecer sumamente ridículo, era contudo elegantíssimo.

Essa gente é de tal modo unida a Portugal que somos um povo luso-brasileiro, dotado de intensa cordialidade, vivendo num território imenso, e sempre de braços abertos para acolher os mais diversos imigrantes: desde o africano com seus costumes que adotamos, ao francês com sua cultura pela qual nos deixamos embeber. África e França se encontram harmoniosamente no ambiente brasileiro, em que a mulher de ébano se veste de Pompadour…2

Por expressar esses valores, o Carnaval carioca conquistou a admiração do Brasil inteiro, e obteve certa fama no mundo todo. É uma arte bem brasileira conseguir algo que pareceria impossível, isto é, conciliar duas coisas tão opostas: a simplicidade da neta das selvas e a cultura da marquesa. E tal arte é alcançada sem estudar, sem usar laboratórios ou levantar problemas teóricos e resolvê-los, mas remexendo coisas com uma indolência naturalmente sábia, por onde elas vão se colocando no lugar próprio e de modo acertado.

No fim das contas, o brasileiro nem percebe bem o que fez; boceja, alimenta-se de uma fruta e prossegue a toada normal de sua vida. Ele agiu com esse particular savoir faire [saber fazer] que possui, muito valioso por ser mais subconsciente do que consciente.

Temperado pelo “azeite português”

O Brasil descende de uma nação representativa para a Europa daquilo que esta precisava. Poder-se-ia comparar o continente europeu a uma carruagem magnífica — como as do museu do Palácio de Versailles que me deslumbraram em menino — cujas molas estivessem quebradas e o entrosamento dos eixos com as rodas pouco lubrificado. Por essa razão, ela andaria penosamente, sacudindo as plumas, quebrando os vidros, chiando por toda parte. Seria uma caricatura de carruagem.  Se alguém a azeitasse e consertasse o molejo, as plumas voltariam ao normal, os vidros não se partiriam, os passageiros não se segurariam nos damascos por receio de cair, e os rangidos grotescos desapareciam. E novamente se ouviriam a corneta dos postilhões, o trote elegante dos cavalos e os chicotes estalando no ar.  Era a carruagem que passava…

Portugal é propriamente a nação-azeite da Europa, ele a complementa, mas seu florescimento não foi inteiramente conhecido por esta última. Ele possui a doçura, o afeto, a serenidade, afabilidade e uma acolhida que não se sente em nenhum outro lugar do velho mundo. Sua expansão, através da influência, teria dado à história do pensamento, do sentimento e da ação dos europeus o imbricamento e o contexto que lhes faltou.

A Europa empurrou Portugal para um canto. Porém, ao mesmo tempo que plantava uvas para fabricar seu esplêndido vinho, a nação lusitana dentro de sua própria alma produzia azeite, o qual foi derramado pelo Brasil inteiro, embebendo-o e o transformando no povo “azeitado” por excelência. Suave, amável, compreensível, voltado a admirar os outros, comprazendo-se de encontrar neles uma qualidade, encantando-se quando aprende uma moda, um estilo e um arranjo novos. Não pensa em se comparar com ninguém. Senhor de uma vastidão de terras continental, distribuindo-as para os que as desejam, com toda naturalidade, como quem não está fazendo favor.

Além disso, recebe no seu imenso território as mais variadas raças, penetrando-as no mais íntimo da alma e realizando isso de curioso: qualquer povo radicando-se neste País, ainda que sem miscigenação, ele “embrasileira”. É o resultado do “azeitamento”. De um modo inteiramente ordenado, o estrangeiro, sem perder as suas características originais, acaba passando por uma mutação na essência de seu espírito.

Mais italiano no Brasil que na Itália…

É fato notório que no Sudeste do Brasil a imigração italiana verificou-se torrencial.  Se compararmos o ítalo-brasileiro com o argentino, chileno ou uruguaio de ascendência italiana, ou até com o próprio filho da cantante Península, julgo realizar-se mais no Brasil do que na Itália, Argentina, Chile ou Uruguai a figura convencional e folclórica do italiano.

A “Canaã” deles é o Brasil, para onde se mudam em grande quantidade. E posso dar o testemunho pessoal de que encontrei o autêntico ítalo no Brás, na Mooca, no Belenzinho3, e não comi na Itália uma pizza tão genuína como as elaboradas em certas pizzarias de São Paulo.

Percebe-se dessa forma como a brasilidade penetra e muda algo nos povos, mesmo não havendo a mistura de raças. E tal mutação, que é indizível, efetua-se acrescentando e azeitando. A imagem adequada desse fato é a de uma gota de azeite espalhando-se sobre uma folha de papel, deixando intacta a substância desta, que nem sequer fica mais grossa, porém se faz transparente à semelhança de um vidro.

Grandiosa missão de harmonizar os povos

Assim é ação de presença do povo brasileiro, que torna afáveis as coisas, encaminhando-as para a síntese.  Um exemplo peculiar: os imigrantes vêm para o Brasil com a idéia de, quando ricos, voltarem a viver na mãe-pátria. Entretanto, muito antes de granjear fortuna, já estão resolvidos a retornar ao seu país natal — para uma visita e não para morar lá outra vez. Querem residir no Brasil, e aqui morrer.

Quer dizer, há uma nova forma de imperialismo, exercida pelo azeite, que domina, penetra e se faz sentir nas mais diversas localidades do ­País. Se o imigrante se fixa no Rio, torna-se carioca; se em São Paulo, fica paulista; em Minas, se “amineira”; no Rio Grande do Sul, se “engaúcha”.

Assim, devido ao modo de ser de seu povo e ao ambiente por ele criado, o Brasil é um pólo de atração. Pode-se dizer que essa gente está preparada para contemplar com amor todas as etapas do passado e as variantes do espírito humano. E isso ela o faz simplesmente olhando, apreciando os valores, descartando os defeitos, destilando: tal coisa é má, não está de acordo com os ensinamentos da Igreja; tal outra, apesar de pagã, se encaixa na doutrina católica; e aquela outra foi predisposta por Deus para, em certo dia, servir aos interesses da Esposa Mística de Cristo.

O brasileiro consegue apanhar e acertar todas essas coisas para constituir no fim do mundo a grande síntese da História. Seria o compêndio da doçura, abarcando a Terra com amor, compreendendo todos os valores humanos num só olhar, e usando de seu território de proporções continentais para alojar e harmonizar tudo, com vistas a uma síntese final.

Essa missão encerra uma grandeza superior e mais bela do que as legiões de Júlio César avançando e estendendo as fronteiras do império romano… 

1 ) Cf. “Dr. Plinio” número 87.

2 ) Marquesa de Pompadour (1721-1764). Uma das mais prestigiadas damas da corte francesa, então estabelecida no Palácio de Versailles. Apesar de uma vida moral pouco louvável, destacava-se pelo luxo e elegância de seus trajes.

3 ) Bairros paulistanos.

Hífen de ouro

Diante de tantas maravilhas criadas por Deus no universo, pode-se pensar que seria talvez incompreensível que Ele não as coroasse com uma beleza complementar e suprema.

Imaginemos um joalheiro que possua um escrínio repleto de pedras preciosas, avulsas, ainda não articuladas como jóias. Ele as toma e as espalha em cima de um lindo feltro que cobre sua mesa de trabalho, faz incidir sobre elas uma luz que realça o esplendor e o valor de cada uma, e se põe a admirá-las. O homem se encanta com aquele tesouro. Se for um joalheiro inteligente, breve lhe ocorrerá a seguinte idéia: “Como constituir um conjunto com essas pedras? Pois são tão belas que merecem ser reunidas num todo que as exceda em pulcritude. Como fazê-lo?”

De fato, se as pedras são lindas, a jóia na qual se encaixarão o será mais, posto que o conjunto das coisas ordenadas adquire beleza superior ao mero amontoamento desarticulado dessas mesmas coisas. A ordem é um degrau a mais para o esplendor, e este, propriamente dito, decorre não só da graciosidade de cada parte, mas da ordenação com que as partes estão dispostas. Esta é a beleza das belezas.

Portanto, o joalheiro inteligente não poderia deixar de pensar: “Essas pedras têm tais e tais características, tais e tais encantos; mandarei fazer com elas uma jóia”. Ele analisa suas pedras e elabora o desenho segundo o qual elas estarão melhor dispostas para formar a jóia desejada: “No centro virá aquele brilhante magnífico; e para que o broche seja mais refulgente, incrustarei de um lado rubis, depois uma camada de safiras e outra de esmeraldas…” E assim por diante, seguindo sua valiosa inspiração, ele acaba compondo o objeto precioso.

Sendo um grande joalheiro, sem hesitações nem contradições, decidido a executar o plano primeiro traçado por sua idéia, ele chama um de seus funcionários e lhe entrega aquele esboço: “Leve este desenho ao ourives e peça que me monte essa jóia, usando ouro do melhor quilate, a fim de que a beleza do metal complete o esplendor das pedras.”

Dias depois, o ourives entrega a encomenda ao joalheiro. Este abre a caixa lavorada com esmero, abre as dobras de veludo, de seda, até que seus olhos se rejubilam com o fulgor da linda jóia ali encerrada. E o ourives lhe diz: “Senhor, aqui estão as suas pedras, e aqui está a jóia que idealizou. Eis a beleza que minhas mãos lhe entregam! Minhas homenagens!”

Ora, Deus tendo criado todas essas maravilhas esparsas no universo, quais as gemas avulsas do joalheiro, haveria de lhes traçar uma ordem. Como centro dessa ordem, governando-a, resumindo-a num conjunto precioso, Ele pôs o gênero humano. E neste, foi intenção do Criador que existissem homens mais perfeitos, mais santos e mais admiráveis, e existisse o ápice, a jóia máxima: o Homem tão perfeito, tão inteligente, tão sábio e poderoso que excedesse em beleza, sabedoria, virtude e poder a todas as criaturas humanas.

Em torno desse Homem, como os rubis e safiras ao redor do brilhante, dispor-se-iam todas as perfeições do universo. Esse é o Homem-Deus, hífen de ouro ligando de modo magnífico o Céu e a Terra.

Todas as belezas do mar e do firmamento, todos os tesouros escondidos nas entranhas do solo, todos os variados encantos da fauna e da flora, todas as grandezas e maravilhas engendradas pelos homens em todos os tempos não constituem senão pré-figuras ou ecos d’Aquele que é o ápice da História: Nosso Senhor Jesus Cristo, de cujo Sangue infinitamente precioso vertido por nós em sua Paixão e Morte, nasceram todos os esplendores da Civilização Cristã. v

Hífen de ouro(Extraído de conferências em 24/3/1984 e 13/10/1989)

Santo Inácio de Loyola – Alma repleta de lógica e enlevo

Desde os bancos do Colégio São Luís, onde tomou conhecimento da vida e obra de Santo Inácio de Loyola, nutriu Dr. Plinio grande devoção ao fundador da Companhia de Jesus, e uma entusiasmada admiração pela lógica e clareza adamantinas do autor dos “Exercícios Espirituais”. Veremos, pelas suas considerações transcritas a seguir, como estes e outros preciosos predicados da alma inaciana o encantavam.

 

Quando analisamos o modo de ser e de agir de Santo Inácio de Loyola, percebemos que o amor e o enlevo que ele tributava às instituições e aos ensinamentos da Igreja, redundavam em reflexos daquelas perfeições na sua própria alma, sem contudo empanar suas peculiaridades.

Tornando-se ainda mais Santo Inácio

Por exemplo, encantava-se com o modo de um Papa cuidar de uma fabulosa pluralidade de assuntos com inteira calma e sobranceria, conduzindo sem sobressaltos o orbe católico. Ora escrevendo uma bula pelo centenário de uma universidade ou de um estabelecimento católico famoso, autorizando a ereção de uma prelazia apostólica nas missões, resolvendo um delicado problema de relações com determinado país ou uma crise religiosa em tal outro, solucionando uma questão de corporações numa certa nação envolvendo problema moral bastante delicado, etc. — as mais variadas ações do Sumo Pontífice falavam de maneira intensa à alma de Santo Inácio.

Especialmente o enlevava discernir a ação do Espírito Santo, possante, sábia, serena, imensa, pairando sobre a Igreja e governando-a. Na medida que se enlevava, a obra do Espírito Paráclito se prolongava em Santo Inácio e algo dessa qualidade da Igreja passava a viver nele, tornando-o capaz de, até certo ponto, agir do mesmo modo. Dir-se-ia que uma força sobrenatural doravante o habitava, fazendo-o mais ele mesmo, porque sua vocação e seu carisma específico se enriqueciam.

Pode parecer um paradoxo que algo extrínseco passe a ser inerente a ele, orientando sua vida. Santo Inácio não se transformava num autômato?

A meu ver, dava-se o contrário. Ele se tornava mais Santo Inácio de Loyola.

A regra aplicada aos discípulos

E é interessante notar que o sucedido com Santo Inácio se verificava, guardadas as proporções, entre ele e seus discípulos. Ou seja, quando se lê a história da Companhia de Jesus, vê-se que o Fundador procurou formar a mentalidade de seus seguidores de acordo com o que hauriu da Igreja, encaminhando-os para a perfeição. E os jesuítas, por sua vez, procuravam se conformar a Santo Inácio, tendo não poucos alcançado de fato a heroicidade de virtudes. Lembremo-nos, por exemplo, de São Francisco Xavier, entre os primeiros e, posteriormente, São João Berchmans, São Luís Gonzaga, etc.

Tem-se a impressão, aliás, de que na Companhia de Jesus, mais do que nas outras ordens religiosas em relação aos respectivos fundadores, essa união e essa conformidade de alma manifestou-se sobremodo rigorosa e enfática, por razão compreensível. Na época em que Santo Inácio foi suscitado por Deus para impulsionar a Contra-Reforma, alguns aspectos da vida da Igreja pareciam de tal maneira alterados que, para se ter o perfeito conhecimento dela, era indispensável conhecer uma pessoa plenamente católica, e se estabelecer com esta um vínculo particular. Esta forma de contato pessoal era o meio de a Igreja manter sua influência sob o espírito dos fiéis.

E para os jesuítas que tinham Santo Inácio como modelo, a união com a Igreja se fazia através do influxo da pessoa do seu fundador, conhecida nas horas de enlevo com o auxílio da graça, e assimilada, no sentido próprio da palavra, pela meditação, ponderação, etc.

Portanto, para que um jesuíta do século XVI não se deixasse contaminar pelas idéias errôneas do tempo, deveria considerar os fatos através dos olhos de Santo Inácio.

Doutrina personificada

Por outro lado, cumpre admitir que é muito conveniente ao católico conhecer a doutrina personificada. Necessidade que também se explica facilmente.

Imaginemos alguém que estudasse um compêndio de Doutrina da Igreja, mas nunca tivesse visto um bom católico. Ele não teria uma perfeita noção da Santa Igreja. Agora suponhamos o contrário: ele conheceu um católico no sentido pleno do termo, mas ainda não estudou essa doutrina… Quase se poderia dizer: quem conheceu a pessoa do bom católico entendeu a Igreja mais do que quem analisou apenas sua doutrina.

Nesse sentido, figuremos uma conversa entre jesuítas a respeito dos escritos de Santo Inácio. Não deveriam eles estudar o texto inaciano como o faria um crítico qualquer, ou seja, excluindo o fator enlevo. Não. Antes, deveriam procurar discernir a mentalidade do seu fundador ao conceber aquelas linhas, e chegar a cogitações mais altas, como, por exemplo, considerar que a matriz daquele estilo existia na alma de Santo Inácio, com uma superabundância da qual aquele livro ou aquela oração era uma parcela.

Deveriam compreender que Santo Inácio era capaz de escrever a uma eminente autoridade eclesiástica, com um cunho enérgico e afirmativo, chamando-lhe a atenção por atitudes que causavam estranheza nos meios católicos fervorosos, bem como de usar de astúcias para resolver um grave problema, sem nada perder de sua seriedade, gravidade e firmeza.

Os jesuítas, se fiéis à sua vocação, tinham de admirar essas qualidades de seu fundador, conformar-se com elas, enlevar-se com o enlevo dele pela Igreja, e procurar ver a ação do Espírito Santo instruindo e conduzindo as atitudes do grande Santo Inácio de Loyola.

Encantos com os raciocínios do Mestre Costa

Não me esquivo de aduzir um exemplo pessoal, de quem — embora não sendo jesuíta — cedo sentiu-se enlevado com a lógica luminosa de Santo Inácio, e desejou adquiri-la para toda a vida.

Quando frequentei o Colégio São Luís, uma das matérias era lecionada por um jovem professor, ainda seminarista da Companhia de Jesus, ao qual chamávamos Mestre Costa (futuramente Pe. Costa). Ele desfiava seus raciocínios de caráter apologético, explicava isto, aquilo, aquilo outro, e me entusiasmava ver a coerência dos pensamentos dele: concatenados, determinados, caminhando a passos resolutos e direitos para a conclusão. Eram meus primeiros encantos com a lógica.

Eu percebia os movimentos do raciocínio no espírito do Mestre Costa, ágil, lúcido, forte, e me alegrava admirar uma alma, uma inteligência que se movia assim. Mais. Sentia um verdadeiro alívio no meu interior, como se algo longamente estagnado começasse a se mexer e a andar. Era uma espécie de libertação da minha presença habitual em ambientes poucos afeitos à lógica, pouco reflexivos, amantes das impressões: “acho que… talvez seja… parecer-me-ia que…”. Sem me dar conta, meu temperamento desejava outra postura de alma, pedia uma definição. Afirme! Abra o peito e tome a responsabilidade da conclusão: diga que é assim, e assunto encerrado.

Ora, no raciocinar do Mestre Costa havia isto: ele concluía. E de tal maneira que prendia o interlocutor na sua conclusão, sem possibilidades de fuga. Eu dizia para mim mesmo: “Um dia saberei também concluir, como o Mestre Costa!”

Meu encantamento era tanto maior quanto percebia que o professor chegava a conclusões com as quais muitos estavam em desacordo. Em geral, os pretensos “espíritos fortes”, homens bigodudos, vistosos, com aparência de mandões e que julgavam a época da Religião já ultrapassada. Pois o Mestre Costa começava a dispor sua argumentação, pensamento a pensamento, comprimindo e silenciando o seu oponente, para as delícias de minha alma.

Entusiasmo pela lógica inaciana

Mas, em meio às suas digressões, essa lógica brilhava de maneira particular ao fazer o elogio da Companhia de Jesus e de Santo Inácio. Com uma característica curiosa: quando se exaltava nas exposições, a ponta do seu nariz movia-se ligeiramente. Essa peculiaridade atraía muito minha atenção, e era notada de forma especial quando ele se referia ao fundador. Eu pensava:

“Está vendo? Esse homem é um brasileiro como eu, e hauriu as suas possibilidades mentais nesse mesmo Brasil em que estou. Se ele possui essa lógica dentro da alma, não a obteve da maré de relativismo que corroeu largamente a mentalidade atual, e sim de Santo Inácio, de quem ele é filho. O fundador dos jesuítas lhe concedeu essa dádiva.

“Ora, se eu admirar infatigavelmente Santo Inácio, quem sabe este me concederá, a mim também, um pouco dessa lógica ? Depende de eu ser muito puro, inteiramente puro, intransigentemente puro… Porque este espírito não é dado a quem não é casto. Se eu perseverar na prática da castidade, começará a nascer em mim uma lógica como a do Mestre Costa, como a de Santo Inácio de Loyola. Vamos para a frente! Meu entusiasmo está adquirido!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Florença e a perfeição das formas – II

Cidade com edifícios de proporções perfeitas, Florença, como todas as antigas urbes, viu transformarem-se em museu seus palácios e outras bonitas residências. Isso se deve ao fato de que seus habitantes, em determinado momento, quiseram romper com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).

 

Por certo, nesse casario há residências onde as escadas devem ter alguns degraus podres, as donas de casa brigam umas com as outras, de andar para andar, ameaçando-se com aquele rolo para fazer macarrão, e se vê um velho subir até o quarto andar, no qual ele foi morar por ser mais barato, mas tem medo por causa do coração… À noite ele sentiu umas dores no peito e não sabe se é bronquite ou começo de enfarte; então saiu muito preocupado e agora sobe devagarzinho, levando sua bengalinha e o jornal do dia debaixo do braço, e fumando o último cigarrinho que ele aspira até o fim, porque não pode comprar muitos; e vai curtir sua pobreza e seu isolamento junto a um gato no quarto que ele ocupa.

O povinho que a Revolução massacrou

Entrevê-se um formigamento de gente nesse casario. De gente vivaz, que fala, comenta, canta, trabalha, que quando dorme ronca; enfim, gente estuante de vida e, exceto o meu velho do gato, o resto todo com muita saúde. E esse velho, a doença dele é só velhice. Mas essa é inevitável…

Esse formigamento de vida não há em um arranha-céu moderno, nem nas pobres “vilas-Moscou” das periferias de certas cidades. Ora, é este o povinho que a Revolução massacrou, proclamando a soberania popular. Em Florença, e em outros lugares, algo disso ainda vive.

Notem, agora, aquela outra ponte que não tem construções colaterais e cujo traçado pode ser melhor apreciado. Vejam a beleza da ponte e também da iluminação pública. Que lampadários bonitos, delicados! Comparem com a iluminação que encontramos, por exemplo, em determinadas avenidas de São Paulo: as luminárias parecem esqueletos de não sei que animal pré-diluviano, que tinha um pescoço compridíssimo encimado por uma cabecinha inútil. Nesta ponte, ao contrário, tudo é proporcionado.

A propósito da arquitetura desta ponte, vem-me à memória a seguinte comparação. A Ponte Alexandre III, de Paris, é muito bonita, construída no século XIX, porém ultra enfeitada.

Esta aqui não tem um enfeite. A beleza está na linha dos arcos, mais nada. É o que se chamaria, na linguagem de hoje, um estilo despojado. Isso faz lembrar, em relação aos enfeites, um caso que se contava na Grécia.

Realizou-se um concurso de arte — creio que de pintura, não me lembro bem —, no qual concorriam artistas de vários lugares. Um deles, persa, representou uma mulher com um traje riquíssimo que visava realçar a beleza de sua obra. Outro pintor, um grego, figurou uma grega com uma simples túnica branca.

O júri deu a primazia à pintura grega.

O persa protestou, argumentando que a sua estava muito melhor vestida. Os gregos responderam: “Tu a fizeste rica porque não soubeste fazê-la bela”.

Uma construção estética reputada perfeita

Vemos em outra fotografia a Catedral de Florença, toda feita de mármore branco e preto. A mesma coisa que nós encontramos nas fachadas laterais da Catedral de Orvieto, onde há mais mosaicos. Notem o choque: Florença, muito mais importante e mais rica do que Orvieto, nem tem comparação, ousa fazer para si uma catedral que não possui um mosaico na frente. Mas a superioridade de Florença, segundo o meu modo de entender, está exatamente em que cores bonitas, mosaicos, etc., são enfeites fáceis, para imaginações débeis. Na Catedral de Florença existe uma proporção perfeita entre a torre, o corpo da igreja e a abóboda com aquela torrezinha em cima. E depois o tamanho das naves laterais. E isso está tão bem calculado, como as rosáceas nas portas, as colunatas, a rosácea grande, que é uma construção estética reputada perfeita. Então, a reflexão, o equilíbrio, a profundidade, zombam do ornato, do charme, da graça, e Florença tem uma beleza autêntica a qual resiste à metralhagem dos olhares analíticos que querem encontrar um defeito.

A Catedral parece dizer: “Eis-me aqui, despojada e sem maquiagem; eu sou eu, veja como sou linda!”

Não sou um especialista em matéria de arte. Não afirmo, portanto, como quem se acha entendido, o seguinte. Mesmo porque o valor do argumento da autoridade de incontáveis críticos, que têm achado isto perfeito, pesa mais do que o meu. Mas, em minha opinião, essa cúpula se fecha muito belamente em cima, tem uma proporção bonita com a barra branca sobre a qual ela se pousa, porém ela é muito pesadona para o conjunto do edifício. Ao menos eu a sinto assim.

Vemos na torre da Catedral, por exemplo, alguns vestígios do gótico nos vários andares, mas muito poucos. É muito bonito como os andares vão se afinando discretamente para cima. O branco está utilizado aqui magnificamente. Os vários espaços e dimensões, os ornatos dos diversos elementos, tudo está perfeitamente bem posto, e é muito bonito, não tem dúvida.

Mania do despojado

No interior da Catedral o despojamento vai bem mais longe. Não se pode negar que as dimensões, a altura das colunas são muito bonitas, que os arcos estão muito bem colocados, e que tudo quanto a Catedral apresenta é muito belo. Mas se tomamos, por exemplo, o altar do fundo, vemos como ele é pequeno em comparação com o tamanho da igreja, e como fica um espaço em cima, provavelmente destinado ao arejamento e à entrada de luz, mas que não traz nenhuma ideia piedosa. São meras janelas.

Se fosse uma arquitetura elaborada segundo outra escola artística, essas colunas teriam, em cada ângulo, um nicho com a imagem de um Santo portando seu instrumento de martírio. Ali não: tem-se a impressão de que uma tropa de ladrões entrou e roubou os ornatos da igreja.

Minha posição pessoal diante do monumento: respeito, admiração, vejo inegavelmente grandes valores artísticos, mas minha afinidade não vai para isso. A mania do despojado parece-me conter uma censura a Deus que não fez um universo despojado. É bonito que apareça, de vez em quando, alguma coisa despojada. Com isso eu concordo. Mas que haja a mania do despojado, com isso eu não posso concordar. E é como se apresenta a arte florentina.

Os entusiastas do despojamento dirão: “Mas Dr. Plinio, assim aparece melhor a linha lógica”. Eu respondo: “Está bem, mas nem tudo que aparece melhor é bem feito”. Isso é para pessoas incapazes de perceber a linha dentro da pluralidade dos ornatos. Não julgo que eu esteja afligido por esse mal. Em uma obra de arte com uma muito bela linha e lindos ornatos, estes não estragam a linha.

Residência de uma antiga família transformada em hotel

Ainda em Florença, mas nos arrabaldes da cidade, há um hotel excelente. Ao que tudo indica trata-se da residência de uma antiga família de banqueiros — Florença foi um centro bancário muito grande — ou de nobres que viviam fora da cidade na opulência, e cuja propriedade foi transformada em hotel.

A mim, que impressão dá? Como se trata de uma casa de uma família — seja de nobres ou de banqueiros — portadora de certa tradição, esta eleva e dignifica a vida de família, porque dá a ela uma nota de eternidade. A família percebe melhor as obrigações que lhe impõe um grande passado ao qual se sente ligada. Os mortos parecem ornatos dos vivos. E por outro lado, os que estão para nascer parecem a luz que entra para a família, a qual vive há séculos e pretende viver séculos ainda, na beleza de uma grande continuidade familiar.

Vemos ali uma casa grande construída para se levar uma vida de família, não como se entende hoje, dentro de um apartamento, mas com quartos de dormir grandes, salões espaçosos; uma residência feita para que se passe muito tempo nela, com conforto, tempo para pensar, ler, conversarem uns com os outros, para formarem grupos de dois ou três e irem passear pelo jardim que, aliás, é magnífico.

Podemos imaginar a magnificência de uma recepção dada numa propriedade como essa, à noite, com orquestra tocando, senhoras e senhores com trajes de gala, condecorações, desse tipo de recepções com tanta categoria que até os prelados do lugar apareciam. Então a hora da chegada do grão-duque, do cardeal-arcebispo, de tal autoridade militar, de tal grande artista que vai cantar, outro que vai acompanhar ao piano… Tudo isso em meio à conversa que rumoreja, enquanto incessantemente garçons fazem circular grandes pratos com pequenas delícias, bandejas repletas com taças e garrafas com bebidas. Se a noite é quente, uma parte dos convidados sai e conversa também do lado de fora.

Tudo isso foi transformado em um hotel muito bem mobiliado, onde se paga para estar, e no qual um turista anônimo entra, mete-se nas cobertas durante a noite, e no dia seguinte sai.

Notem o conforto, a estabilidade, a dignidade. Não é verdade que uma família como essa pareceria estar destinada a durar séculos? Entretanto, está morta, como uma concha que se encontra na praia, na qual o respectivo caramujo morreu. Por que morreu? Porque essa gente toda foi rompendo com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).

Paganizou-se, estancou.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1988)

 

Rainha e Mãe de misericórdia

As primeiras palavras da Salve-Rainha inspiram a quem as recita a plena confiança de que será atendido, apesar de suas misérias.

 

Pediram-me para fazer o comentário da Salve-Rainha. Devido ao pouco tempo de que disponho, vou comentar apenas as primeiras palavras desta bela oração: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Rainha que tudo tem e tudo pode

Salve, em latim, é uma saudação, e passou assim para o português. Os latinos costumavam dizer salve como saudação, sem nenhum nexo e sentido com a ideia da salvação, “salvai-me”. Não é isso, é uma mera saudação. Então, “eu Vos saúdo”.

Agora vem outro ponto: “…Rainha, Mãe de misericórdia”.

Vemos aqui uma harmonia muito bonita. O autor da oração coloca antes de tudo o título d’Ela de Rainha.

Nossa Senhora é Rainha? Evidentemente, Ela o é, pois é a Mãe do Rei, e um Rei que faz tudo quanto Ela deseja.

Maria Santíssima é chamada a Onipotência Suplicante. Ela, de Si, é uma criatura humana como nós, mas a súplica feita por Ela é onipotente, porque pode tudo diante de Deus.

Assim, também enquanto suplicante, Maria é Rainha, porque Aquela que pode tudo é Rainha. Então, vem desde logo uma ideia posta ao alcance do fiel: Aquela a quem ele vai se dirigir é uma rainha; logo, Ela tem e pode tudo.

A rainha e o rei são de uma riqueza enorme. Normalmente são as pessoas mais ricas do reino, que dispõem da maior soma de poderes, honrarias e riquezas de toda ordem. Ela é a Rainha, quer dizer, tudo quanto Lhe peçamos Ela pode dar.

Ademais, Deus, que é o Filho d’Ela, concede tudo quanto sua Mãe insondavelmente perfeita Lhe pede. O resultado é que, quando pedimos alguma coisa a Ela, temos a certeza de que Ela pode dar, porque Ela tem. Isso nos leva a nos encher de confiança no nosso pedido.

Não há carinho como o materno

Mas vem logo depois: “Mãe de misericórdia”.

Mãe já traz consigo a ideia de misericórdia, porque o mais misericordioso e compassivo dos entes, numa época em que a instituição da família funcione normalmente, é a mãe. Mesmo o pai pode ser muito bom e seu afeto é indispensável para completar a educação do filho. Mas o carinho é com a mãe.

Lembro-me de ter assistido, certa vez, a uma cena minúscula em casa, entre meu pai e minha mãe.

Eu costumava, naquele tempo, sair logo depois do almoço para meu escritório de advocacia. Minha mãe me acompanhava até a porta do elevador, junto à qual tem uma escada. Às vezes eu estava com muita pressa e me impacientava com a lentidão do elevador, e descia a escada a toda pressa. Lembro-me de que, enquanto eu descia, ouvia minha mãe dizer: “Filhão, cuidado com o corre-corre.” Era um último sinal de carinho.

Mas um dia desci muito precipitadamente e esqueci um objeto em casa. Chegando na rua, senti falta do objeto e voltei para apanhá-lo. Passei ao lado de uma pequena sala de estar onde ela e meu pai costumavam ficar durante o dia. Estavam conversando, certos de que eu tinha ido embora.

Meu pai estava sentando numa poltrona e minha mãe, em pé junto a ele, dizia:

— João Paulo, hoje para o jantar eu mandei fazer tal prato. Você acha que o Plinio ficará satisfeito ou seria melhor preparar outra coisa?

Não parei para olhar, mas tive a impressão de que meu pai estava louco para tirar uma sesta, e respondeu negligentemente que estava bem.

Não satisfeita com a resposta, ela acrescentou:

— Não, mas quem sabe se fizer de tal outro jeito seria melhor.

— Também está bem — respondeu ele.

Como ele estava querendo dormir e ela continuava a insistir, ele disse:

— Bem se vê que mãe é mãe. Se fosse comigo eu diria: “Rapaz, tem aqui para jantar tal coisa, se você não quiser, vá jantar num restaurante”.

Ora, mamãe queria exatamente evitar que eu fosse para o restaurante, pelo gosto de estar e conversar comigo. É o carinho da mãe que é todo especial, único.

Mãe toda feita de misericórdia

Entretanto, não contente com esta ideia, o autor da Salve-Rainha pôs: “Mãe de misericórdia”. É uma Mãe toda feita de misericórdia.

O que quer dizer “misericórdia”? Cordis, em latim, é o coração. Miseri, os miseráveis. Portanto, para com os miseráveis Ela é “toda coração”. Os miseráveis são aqueles que não têm do que viver, estão na miséria. Porém, moralmente falando, são os pecadores que ofenderam muitas vezes a Nossa Senhora e deram a Ela razão para estar descontente. Se esses pecadores se voltarem e rezarem para Ela, encontrarão n’Ela uma Mãe de misericórdia toda disposta a atender.

Então, está tudo reunido para inspirar a maior confiança: Ela é uma rainha que tem tudo e pode tudo; é Mãe de misericórdia, “toda coração”, inclusive para os filhos mais miseráveis.

Quem pode deixar de ter toda a confiança na bondade d’Ela em que será atendido, quando faz esta oração?

(Extraído de conferência de 5/3/1992)

 

Guerra de tendências

A vida de Dr. Plinio, analisada à luz da batalha das tendências por ele travada e transposta para a história dos povos, permitiu-lhe formar princípios dos quais deduziu uma teoria e com esta elaborou o livro “Revolução e Contra-Revolução”, que constitui, em grande parte, as memórias dele.

A primeira sensação que tive, relacionada com a Revolução tendencial, foi a da pressa. Entre a geração de mamãe e a minha havia uma intermediária, de primos. Dona Lucilia tinha, em números redondos, trinta anos a mais do que eu. Assim, entre ela e mim havia primos quinze anos mais velhos do que eu, parentes e vários amigos da família.

Choque entre dois modos de ser

Pouco depois de Dona Lucilia, começava a aparecer uma geração na qual a alegria do viver estava deslocada. Não era mais o bem-estar daquela placidez, com tempo diante de si, mas uma forma de vivacidade que consistia em andar e falar depressa, em estar continuamente alegre, satisfeito, em contar coisas tendentes ao engraçado, ao divertido, ao sensacional.

Eu presenciei, mas de forma confusa, o choque desses dois modos de ser e notei que, ou me engajava nesse modo de ser novo e mudava minha personalidade, abandonando essa placidez e tomando esse trem que ia para a frente, ou seria tido como sem graça por essa gente nova. Era toda uma orquestração tendencial que ia nascer, na qual a estabilidade fecunda, pensativa, forte, mas compassada, cedia lugar ao corre-corre em busca de prazeres, agitação e excitação.

Conferi esse modelo comigo mesmo, perguntando-me, entre outras coisas, se me adaptaria a isso. E pensava: “Eu não sou assim. Sou tranquilo, gosto das coisas plácidas e que andam passo a passo. Não quero essa alegria saltitante.”

Por exemplo, via determinada pessoa entrar em casa assobiando a última música da moda. Alguém perguntava:

— Que música é essa?

Gargalhada…

— Ah, você não sabe?! É tal música assim.

E sentava-se com uma cara radiante, quando eu não via razão para estar radiante. Aliás, não vejo nenhuma necessidade de passar a vida radiante, mas sim de modo tranquilo. É uma coisa completamente diferente. E concluía: “Não tenho embocadura para isso. Se fosse meter-me nisso, falsearia minha personalidade. Mas, pior, não se deve ser assim. Deve-se ser como quem? Como mamãe. Ali está certo, está direito, está bom…”

Estabelecia-se entre mim e os adeptos da nova mentalidade um diálogo de surdos que terminava amavelmente porque todo mundo era amável, mas com um pensamento assim na cabeça deles: “Esse menino não tem jeito… É um desmancha prazeres mesmo!” E eu com outra reflexão: “Essa gente não tem jeito. Não se pode viver perto deles. Eu vou destoar mesmo.”

Mecanização geral da vida

Essa impressão acentuou-se à medida que a influência do pós-guerra, carregada de vida mecânica, se intensificou. Em São Paulo, os carros puxados a cavalo foram ficando mais raros, enquanto os automóveis e bondes mais numerosos. A mecanização geral da vida foi entrando e dando um ritmo mais apressado a todas as coisas.

Fiquei colocado diante da seguinte situação: eu tinha tendência à lentidão e à preguiça. Sentia a preguiça como uma espécie de peso em cima de mim, que me tornava todos os movimentos lentos, lerdos, pesados, desagradáveis, e me fazia encontrar gosto na inação. Isso devia ser vencido por uma vida ativa. Ora, vida ativa só era possível no ritmo daquela que todo mundo levava, porque era necessário tomar o bonde, ir para o colégio, voltar correndo, ir ao dentista, depois passar por casa para fazer não sei o quê, e isso precisava ser feito dentro daquela velocidade, não tem remédio, do contrário “perdia o bonde”.

Donde uma espécie de reajuste interno tendencial para combater a preguiça, nunca permitindo deixar para mais tarde o que eu pudesse fazer logo. E começando sempre, se  pudesse optar, pelo mais desagradável. Porque para o mais agradável se tem ânimo; o difícil é fazer logo o mais desagradável, de maneira a nunca me permitir, nesse ponto, moleza nenhuma, mas dentro do corre-corre dos pés conservar a tranquilidade do modo de ser e da alma, de molde a dar, com a estabilidade antiga, uma force de frappe1 nova, juntando as duas reações.

Contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza

Ligada a isso, outra coisa tornou-se clara para mim: o contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza. A castidade tem isto de próprio: quem a vive verdadeiramente é comedido e encontra sabor em tudo, até nas menores coisas. Ela se contenta com pouco e se alegra muito com coisas pequenas; não precisa viver correndo atrás de delícias. Um pequeno prazer, um pequeno atrativo já a regozija inteira. Quando lhe acontece de receber uma delícia, o homem puro se alegra também e, cessada a delícia, ele não entra na depressão, mas continua a vida animado pela alegria que teve.

No homem impuro é tudo ao contrário. As alegrias pequenas não lhe satisfazem, parecem bagatelas. As coisas que se repetem lhe parecem enfadonhas. Ele só quer alegrias enormes e, quando elas passam, cai na depressão. Antes de chegar a alegria, ele fica na torcida; depois da alegria, vem a frustração. Essa é a vida do impuro. Não preciso entrar em descrições, porque todos nós vemos o mundo encharcado disso.

Eu notava muito o contraste nesse ponto entre pessoas de minha geração, em torno de mim, sonhando com maravilhas, e o desdém que tinham pelas coisas agradáveis e pequenas que a vida oferece. Eu me regozijava, às vezes, com essas coisas, mas não comentava com eles. Por exemplo: sábado à noite, tendo todo um domingo diante de mim, eu me deitava. Era o dia em que, em minha casa, se trocava a roupa de cama. A cama dava impressão de inteiramente nova; quarto tranquilo, todo revestido com um papel de parede de que eu gostava muito, um quadro de Nossa Senhora em esmalte, uma mesinha com pequenos objetos. Eu me deitava e pensava: “Como me sinto bem e estou contente! Vou ter amanhã o dia inteiro de repouso; irei de manhã à Missa, depois voltarei para casa e vou brincar com os soldadinhos de chumbo; chegada a hora do almoço, terei um superalmoço. À tarde, vou ao cinema e depois é o desfile nas confeitarias. Por fim, janto. Como é agradável deitar-me agora na previsão desse dia!”

Mas eu via os outros de minha idade indo dormir; era completamente diferente. Não tinham vontade de que chegasse a hora de repousar, queriam ficar conversando e mexendo. Era preciso ir arrancando-os para a cama, meio brigados com a governanta. A hora de dormir era triste porque iam entrar nas sombras da noite. Para mim as sombras eram amigas. Apagada a luz, eu ainda ficava ouvindo um pouco os grilos num terreno baldio perto de casa, com um cheiro de vegetação que vinha dali. Logo passava da reflexão para o sono. Contudo eu não ousava elogiar isso diante de ninguém, pois percebia que não sentiam isso assim.

A hora de levantar também me era agradável. Mas levantar sem corre-corre; sentar na cama e rezar, tomar um pouco a noção das coisas que me rodeavam: a luz que entrava pela veneziana, os sons domésticos, os ruídos da rua, a vida que começava a pulsar em torno de mim. Depois me levantava com calma e, primeira coisa: “Bom dia, mamãe!”, depois fazia minha toilette e começava a vida.

Outros se jogavam para fora da cama. Eu pensava: “Mas o que é isso? Essa eletricidade perto de mim!” Tinha vontade de dizer: “Fora!” Mas não podia, tinha de engolir por inteiro. Se fosse algum primo que ia passar a noite comigo e conversava com exagero, eu respondia pausadamente até que ele também se domasse um pouco. Outra coisa altamente apreciável para mim, mas não para ele: tomar café com leite, pão com manteiga. Não tinha geleia, nem queijo, nem outras delícias. Era o comum. Mas um pão no qual se sentia o bom gosto do trigo, uma manteiga feita do genuíno leite, passada abundantemente sobre o pão. Um prazer simples, mas cheio de suco para uma alma equilibrada.

Uma espécie de xadrez humano

Eram tendências que se chocavam. Resultado: eles gostavam de brigar, eu detestava a briga. Discussão, sim, é agradável, pois entra o florete do argumento. A meu ver, é a mais bela forma de esgrima que o espírito humano excogitou. É lindo! Disso eu gostava. Mas, brigar…! Então um diz para o outro: “Eu te parto a cara!” Que intenção é essa? “Primeiro, com a minha não pode. A sua, não tenho o menor intuito de partir, pela simples razão de que não perco tempo com ela. A sua cara me desinteressa do modo mais total possível. Nem sequer para quebrar, ela me importa. Concebo bem que você tenha as mesmas disposições a meu respeito. Portanto, cada um com sua cara, e não quebre a do outro.”

O senso da hierarquia, muito desenvolvido em mim, vinha de todo o ambiente doméstico de que falei, marcado pela recusa à pressa. No momento em que recusei a pressa revolucionária, preservei dentro de mim o senso da hierarquia. Porque a vida com pressa é feita sem hierarquia, as pessoas não têm hierarquia de valores e, no convívio, não existe a hierarquia de pessoas. Elas se cortam a palavra umas às outras. E me causava muita estranheza exatamente a vida igualitária dos meus companheiros de colégio.

Ficam assim apresentados alguns problemas com os quais me deparei ainda em pequeno: uma escolha e uma definição temperamental e tendencial; um choque entre uma posição e outra; depois esses choques se multiplicam, porque a posição inicial se desdobra em posições afins, tanto de um lado quanto de outro, formando uma guerra de tendências.

Então, havia pessoas com as quais eu estava em guerra total, ou seja, eram completamente opostas a mim. Elas percebiam isso, como eu também, e inaugurava-se uma verdadeira batalha, disfarçada pela educação comum. Quer dizer, não se podia mostrar, mas havia luta.

Eu notava também a existência de indivíduos divididos tendo, em parte, tendências boas que afinavam comigo e, em parte, tendências más que afinavam com a Revolução. Esses constituíam uma “terra de ninguém” entre os dois extremos de tendências opostas, e que estavam na guerra total, procurando acentuar nos intermediários as tendências afins para puxá-los ao seu próprio campo, constituindo uma espécie de xadrez humano. Eram a Revolução, a Contra-Revolução e o semicontrarrevolucionário, apresentados tendencialmente e já entrevistos no tempo de pequeno. Assim, minha vida de criança e de mocinho era levada nessa batalha das tendências, mas sem uma conscientização inteira.

Montando um vocabulário como quem confecciona uma joia imensa

Que papel faz dentro disso a conscientização?

Por incrível que pareça, sentia tudo isso em pequeno, mas, foi tal a inibição causada pelo fato de ninguém aludir a tais considerações, que só vim a explicitar essas coisas mais ou menos a partir dos meus vinte e cinco anos, e devagar. Implicitamente, eu tinha torrentes disso; porém, não saberia explicitar para os outros, como não saberia fazê-lo para mim. Ademais, para saber por em termos é preciso ter toda uma linguagem. É quase outra ordem da realidade e outra paragem do espírito humano, que exige um vocabulário próprio para se chegar a explicitar.

Esse vocabulário não se procura no dicionário. Encontra-se testando: “Tal palavra serve, tal outra não serve. O que quer dizer essa, o que quer dizer aquela?” No uso do dia a dia, reter as palavras: “Essa serviu para explicar tal coisa, vou reter; aquela outra palavra vai me servir, mas em tal ocasião…” Assim ir montando o vocabulário como quem monta uma joia imensa, com milhares de pedras preciosas ou semipreciosas, para poder explicitar essas coisas. Isso não faz uma vida mole, mas uma existência sumamente entretida. No dia em que o homem pode dizer antes de dormir: “Hoje encontrei uma palavra!”, esse foi um dia positivo na vida dele.

Quando explicitei isso para mim mesmo, consegui montar as regras que instintivamente eu tinha seguido. Então, em grande parte, a obra Revolução e Contra-Revolução constitui minhas memórias. Não que eu tenha pensado naquela ordem teórica, histórica, filosófica. Esses pensamentos não afloraram em minha cabeça assim, mas constituíam um magma fecundo no qual as ideias iam se ordenando.

As batalhas internas de um povo são parecidas com as de uma alma

Em sentido figurativo, cada povo tem uma cabeça, um espírito, uma alma, à maneira de um homem: o que neste são tendências diversas, naquele são partidos políticos, correntes filosóficas ou artísticas. As batalhas internas de um povo são extraordinariamente parecidas com as de uma alma. Logo, é conhecendo as lutas internas de nossa própria alma e da dos outros que interpretamos bem os fatos históricos.

Minha vida analisada e reanalisada à luz da batalha das tendências por mim travada, e transposta para a história dos povos, permitiu-me uma remontagem da minha experiência, formando princípios, dos quais deduzi uma teoria e com esta elaborei um livro.

Neste sentido, esse livro constitui as minhas memórias, mas não só. É a minha previsão. Porque, como na luta das tendências, percebi, com a ajuda de Nossa Senhora, quais eram as regras do jogo, daqui por diante sei como esse jogo deve continuar. Sempre aprenderei algo de novo, porque as tendências são insondáveis, e não presumo esgotá-las. Qualquer alma humana tem um fundo incognoscível. Entretanto, é possível conhecer muita coisa e, por aí, saber o traçado do futuro. A previsão política é, em boa medida, a análise de como estão as tendências hoje e no que elas vão dar amanhã. Com isso, a previsão política é fecundada como a água fecunda a raiz de uma planta. Na raiz do pensamento previsor está o conhecimento das regras das tendências. Essa é a vantagem de conhecer as tendências.

Entretanto, todas as coisas verdadeiramente muito elevadas são passíveis de serem exploradas. Por exemplo, a música. Quanta coisa magnífica se faz com ela, mas também quanta vilania! Todas as artes são assim. Ora, agir nas tendências é uma arte; logo, pode ser tomada para o melhor e para o pior.

Onde está a dignidade disso? Quando se vive toda essa intensa vida das tendências, há determinados momentos em que o espírito se distancia desse jogo e faz a pergunta: “Mas, afinal, o que aqui é verdade, o que é erro? O que é bem, o que é mal?” Passo, então, a fazer disso uma análise lógica, com argumentos, raciocínios, para saber como uma coisa se costura na outra. E faço, eu mesmo, a crítica do meu pensamento para verificar se ele enfrenta as objeções. Então, vemos surgir, à maneira de um píncaro de neve sobre uma montanha muito verde, a lógica fria, rutilante e, dentro da sua frialdade, espelhando melhor o Sol do que a relva nas encostas da montanha. E podemos formular a teoria.

Um modo de ser eminentemente hierarquizante

Por exemplo, eu tenho um modo de ser eminentemente hierarquizante. Não basta dizer que possuo esse modo de ser para provar que é justo que isso seja assim. Quem me dá o direito de ser assim? A ordem natural das coisas feita por Deus é assim? Se for, então é bom que eu seja assim. Do contrário, não é bom. Porque a medida de todas as coisas de nenhum modo sou eu, que fui criado por Deus. A medida de todas as coisas é Ele. O que Ele ensinou a esse respeito? Por que Ele ensinou? Qual foi a intenção d’Ele?

E aqui entraria a teoria esplendorosa, magnífica, de São Tomás que contraria o igualitarismo. Explica o Doutor Angélico que, ao criar seres que refletissem suas infinitas perfeições, Deus não poderia fazer um único ser, porque qualquer criatura é tão insuficiente para realmente espelhá-Lo que ela seria caricata.

Mas essas criaturas, por sua vez, para O refletir têm que ser diferentes umas das outras. Se Deus criasse dois seres iguais, Ele cometeria o erro que um gago pratica quando pronuncia duas sílabas inúteis: “Eu que-quero.” Porque na palavra humana cada sílaba tem um som. O resto é linguagem de criança, ou de uma pessoa que não tem a locução normal, bem construída. Então, por causa disso, Deus formou criaturas diferentes, e assim sendo, criou-as desiguais, pois não há seres diferentes sem que um seja superior ao outro em algum ponto. Logo, ou não haveria Criação, ou existiria hierarquia.

Então, Gloria in excelsis Deo! (Lc 2, 14). No fim, o cristal de rocha do raciocínio, em arestas tomistas definidas que rutilam ao Sol, é o encanto e a glória da montanha. Assim, nos entusiasmamos tanto com as tendências quanto com o raciocínio, e glorificamos a Deus que nos deu esta riqueza: sermos verdadeiros instrumentos de música de tendências e cristais reluzentes de raciocínio.               v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1979)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Do francês: força de ataque.