Espelho fidelíssimo de Jesus

Nossa Senhora devia conhecer o dia de sua Assunção, porque Ela estava na plenitude de sua santidade. Sua vida espiritual, que não deixara um instante de progredir de um modo admirável durante toda a sua existência, tinha chegado àquele clímax em que Ela possuía a perfeição perfeitíssima, a beleza belíssima, a virtude virtuosíssima, que tinha chegado, portanto, ao apogeu dos apogeus, e seu amor de Deus nunca fora maior do que naquele momento. Ela então sabia que, imediatamente depois de ressuscitada, seria elevada ao Céu.

Imaginem o estado de espírito de Maria Santíssima ao saber que, a partir daquele instante, iria gozar da visão beatífica, que Ela passaria por um cortejo infindo de Anjos dos quais receberia as maiores homenagens possíveis; e tendo uma ciência perfeita da hiperdulia dos milhões e milhões de espíritos celestes, todos se dirigindo a Ela e aclamando-A com o maior amor, o maior respeito, a maior veneração!

Ao tomar conhecimento de cada louvor, a Santíssima Virgem sentia um amor e um gáudio completos, ciente de que esses louvores eram merecidos, porque Ela tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e o espelho fidelíssimo de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1966)

O fato mais glorioso da História, depois da Ascensão

Durante a Assunção de Nossa Senhora, toda a natureza e os próprios Anjos refulgiam magnificamente, como nunca, refletindo de modos diversos, à maneira de uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. Porém, nada disso podia se comparar com o esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu.

 

Um fato que chama a atenção, na História Sagrada, é Nosso Senhor ter querido subir ao Céu aos olhos dos homens; e que acontecesse o mesmo com a Assunção de Nossa Senhora. Por que a Ascensão e depois a Assunção deveriam dar-se à vista dos homens?

Ascensão e Assunção

Quanto à Ascensão há várias razões e a mais protuberante delas é de caráter apologético. Era preciso que os homens pudessem dar testemunho deste fato histórico duplo: não só de que Jesus ressuscitou, mas de que Ele subiu ao Céu, a sua vida terrena não continuou. Subindo ao Céu, Ele abriu o caminho para incontáveis almas e Se assentou à direta do Padre Eterno. Ele, na sua humanidade santíssima, foi a primeira criatura – e ao mesmo tempo é Deus – a subir aos Céus em corpo e alma, como nosso Redentor, abrindo o caminho dos Céus para os homens.

Mas havia uma outra razão: era necessário que Ele, tendo sofrido todas as humilhações, recebesse todas as glorificações. E glória maior e mais evidente não pode haver para alguém do que subir aos Céus, porque é ser elevado por cima de todas as alturas.

E aqueles que se salvarem transcenderão todo esse mundo onde nos encontramos, e irão para o Céu empíreo aonde Deus Nosso Senhor está, para se unirem a Ele eternamente. E assim como Nossa Senhora havia participado como ninguém do mistério da Cruz, o Redentor quis que Ela tivesse a mesma forma de glória, participasse como ninguém da glorificação d’Ele. E a glorificação de Maria Santíssima se dava por esta forma, sendo levada aos Céus. E no momento em que lá entrou, a Virgem Maria foi coroada como Filha dileta do Padre Eterno, como Mãe admirável do  Verbo Encarnado e como Esposa fidelíssima do Espírito Santo. Anjos rutilantíssimos Nossa Senhora teve uma glorificação na Terra e depois uma glorificação no Céu. Portanto, nós precisamos considerar a Assunção como tendo sido um fenômeno gloriosíssimo.

Infelizmente os pintores, a partir da Renascença, não sabem representar de um modo adequado a glória que deve ter cercado este espetáculo. Devemos imaginar o seguinte: É próprio às coisas da Terra que quando se quer glorificar uma pessoa, em sua residência, por exemplo, todos vestem seus melhores trajes, se exibem os mais belos objetos, colocam-se flores e tudo aquilo que há de  mais nobre para homenageá-la.

Tal regra está dentro da ordem natural das coisas e é seguida também no Céu. O maior brilho da natureza angélica, o fulgor mais estupendo da glória de Deus nos Anjos deve ter aparecido exatamente no momento em que subiu ao Céu Nossa Senhora. E se foi permitido aos mortais verem os Anjos com seus próprios olhos, eles deveriam estar rutilantíssimos, com um esplendor absolutamente invulgar. E se não foi dado a todos os mortais contemplar os Anjos nesta ocasião, é certo, pelo menos, que a presença deles se fazia sentir de um modo imponderável, porque muitas vezes na História isso ocorreu, embora não fosse propriamente uma visão, ou uma revelação deles.

A glória interior de Nossa Senhora ia transparecendo como no Tabor

É natural também que nesta hora o Sol tenha brilhado de um modo magnífico, que o céu tenha ficado com cores variadas, refletindo de modos diversos, como uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. E que as almas das pessoas felizes ali presentes tenham sentido essas glórias em si de um modo extraordinário, de maneira tal que houve uma verdadeira manifestação do esplendor de Deus em Nossa Senhora.

Mas nenhum desses esplendores podia se comprar com o próprio esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu. À medida em que Ela ia se elevando, certamente, como numa verdadeira  transfiguração, a exemplo do Tabor, a glória interior d’Ela ia transparecendo aos olhos dos homens.

Falando de Nossa Senhora, diz o Antigo Testamento: “Omnis gloria eius filiæ regis ab intus” (Sl 44, 14), toda glória da filha do rei lhe vem do interior, daquilo que está dentro dela, e com certeza essa glória interna que Maria Santíssima possuía se manifestou do modo mais estupendo quando, já no alto de sua trajetória celeste, Ela olhou uma última vez para os homens, antes de definitivamente deixar esse vale de lágrimas e ingressar diante da glória de Deus.

Relíquia concedida a São Tomé

Compreende-se que deve ter sido, depois da Ascensão de Nosso Senhor, o fato mais esplendorosamente glorioso da História da Terra, comparável apenas com o dia do Juízo Final, em que Nosso Senhor Jesus Cristo virá em grande pompa e majestade, diz a Escritura, para julgar os vivos e os mortos; e com Ele, toda reluzente da glória do Divino Salvador, de um modo indizível aparecerá também Nossa Senhora aos nossos olhos.

Devemos considerar a impressão que tiveram os Apóstolos e os discípulos quando A viram subir ao Céu, recordando o fato que a tradição narra a respeito de São Tomé. Ele duvidou da Ressurreição e por isso foi convidado por Nosso Senhor a meter a mão na chaga sagrada do flanco d’Ele, para comprovar que era realmente Jesus. Depois recebeu o Espírito Santo em Pentecostes, ficou um Apóstolo confirmado em graça e tornou-se um grande Santo. Mas conta uma tradição venerável que, por ter duvidado, na hora da morte de Nossa Senhora, São Tomé não se encontrava  presente. Quando a Santíssima Virgem estava subindo ao Céu, já a certa distância da Terra, São Tomé foi trazido por Anjos para contemplar o final da Assunção. Aí vemos aquilo que poderíamos chamar a índole de Nossa Senhora, para cuja qualificação a palavra “materna” não basta, seria uma índole super materna, arqui materna, incomparável.

E ao receber esse castigo pungente, merecido, por uma culpa tão reparada de não ter podido estar presente à morte e ao início da Assunção de Nossa Senhora, ele olhou para Ela. Então, a Mãe de Deus sorrindo concedeu-lhe uma graça que não deu a nenhum outro. Ela desatou o seu cinto e, de lá de cima, fê-lo cair sobre São Tomé, de maneira tal que ele recebeu não direi o perdão, porque já estava perdoado, mas uma suprema graça, que era uma relíquia d’Ela atirada para ele do mais alto dos céus.

Nossa Senhora é assim quando tem algo a perdoar de algum filho muito dileto. Às vezes Ela nem sequer pune, mas quando castiga Ela faz seguir essa punição de um sorriso bondoso, de um perdão completo e de uma grande graça. Poder-se-ia imaginar que São Tomé, voltando para casa com os Apóstolos, mostrou-lhes esse presente dado a ele e disse: “O felix culpa – Ó feliz culpa –,  eu por desgraça duvidei de meu Salvador, mas em compensação tive a felicidade de receber esta relíquia celeste de minha Mãe Santíssima”. O último sorriso, o último favor d’Ela, a amenidade mais extrema, a bondade mais suave Nossa Senhora deu exatamente a São Tomé, e isto nos deve encorajar.

Que a Santíssima Virgem nos prepare para os dias terríveis que se aproximam Não há nenhum de nós que em relação à Santíssima Virgem não tenha falhas, e não precise pedir algum perdão. Nós devemos rogar a Nossa Senhora, nesta preparação da solenidade da Assunção, que proceda assim maternalmente conosco; que Ela olhe para nossas falhas, mas nos dê um perdão.

E que esse perdão seja o seguinte: Nós estamos cada vez mais claramente na orla dos acontecimentos preditos por Nossa Senhora em Fátima, e é possível que, analisando as nossas próprias almas com aquela severidade implacável que a condição de seriedade de todo exame de consciência exige, consideremos estarmos chegando um pouco atrasados na nossa preparação espiritual para esses acontecimentos.

Pois bem, nós devemos fazer uma oração, lembrando-nos de São Tomé. Se chegarmos atrasados, que Ela nos dê o favor especial particularmente rico e suave, por onde, de um momento para outro, nos preparemos de maneira tal que, quando bater à porta de nossas almas a graça dos dias terríveis que se aproximam, estejamos prontos, cheios de enlevo e capazes de seguir a vocação que Nossa Senhora nos deu.

Esta é a reflexão que me ocorre por ocasião da Assunção de Nossa Senhora. Se quisermos fazer uma meditação bonita sobre a Assunção, podemos ler as revelações de Fátima, narrando o milagre do Sol, que se manifestou de um modo tão terrível e esplêndido naquela ocasião. O astro-rei há de ter sido esplêndido, sem terribilidade, por ocasião da Assunção de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira

Complementos do Paraíso

Mais de uma vez me tenho perguntando se as construções, os monumentos e as obras de arte no Paraíso terrestre teriam sido mais belas que os engendrados pelo espírito católico nos séculos gloriosos da Civilização Cristã. Sem dúvida, o Éden onde viveram nossos primeiros pais era lindíssimo. Já o seria pela simples presença de Adão que, na sua inocência e formosura originais, era perfeita prefigura de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como se isso não bastasse, diz a Escritura que Deus até ali descia, no cair da tarde, para se entreter com Adão em meio ao frescor da brisa que  soprava naquela atmosfera paradisíaca.

Diálogo sublime, colóquio inimaginável, momentos incomparáveis.

Contudo, tanto quanto me é dado entrever (condicionando desde logo meu pensamento ao superior juízo da Teologia), algo faltava àquela extraordinária beleza. Pois se Deus criou o mundo para o homem nele crescer em graça e santidade, e nele glorificá-Lo com as obras de suas mãos, a magnificência do próprio Paraíso só estaria acabada quando o homem empreendesse realizações artísticas que servissem de complemento à criação divina.

Nesse sentido podemos dizer que o mundo todo seria como uma ânfora riquíssima e esplendorosa, à qual entretanto faltam as asas ornamentais e igualmente preciosas, que não apenas lhe tornam fácil o manuseio, mas, sobretudo, consumam-lhe o esplendor. Ora, Deus deixou aos filhos d’Ele, aos homens, a missão de colocar as asas na ânfora, de excogitar maravilhas e com elas embelezarem a face da Terra. Esse é o papel primordial da arte.

Então, ao longo dos milênios, talvez, em que este mundo existiria como uma extensão do Éden, as gerações que se fossem sucedendo realizariam obras artísticas cada vez mais belas, mais interpretativas, mais expressivas, mais carregadas de sobrenatural. Todas, porém, seriam a pré-história em relação ao dia em que o Verbo se encarnasse e habitasse entre nós. Pois aí nasceria para o Paraíso outra época e a arte reviveria de dentro de seus esplendores como se fossem de dentro de cinzas, e apareceria com uma nova beleza, porque estava toda constituída em função do Filho de Deus.

É belo Deus descer e conversar com o homem. Quanto mais belo é Deus se fazer homem! E tendo Ele assumido a nossa natureza, é evidente que tudo se modificaria em função de sua Pessoa, e que ovos aspectos de maravilhoso, de beleza, de magnificências, exprimir-se-iam de mil outras maneiras através do talento humano. Assim seria, se o homem não tivesse pecado. Pecou, e foi expulso do Paraíso. Mas trouxe consigo, no íntimo de sua alma, aquele desejo do belo e da pulcritude. Ele o transmitiu a seus descendentes, em cujos corações foi crescendo e crescendo, tornando-se sempre mais premente a necessidade de expressá-lo, de dar-lhe vida, de torná-lo realidade.

Foi uma longa caminhada ascensional, essa história das almas que anelaram, sonharam e pensaram o maravilhoso, transmitindo de geração em geração uma espécie de pressentimento daquilo que um dia, afinal, haveria de florescer na Idade Média com uma pujança insuperável: o estilo gótico.

Nasceu gradualmente, vindo do fundo dos tempos, como os bancos de coral que se vão construindo no correr dos séculos a partir das profundezas do oceano até surdirem por sobre as águas, formando ilhas e rochedos. Assim também o banco da maravilhosa arte gótica foi medrando aos poucos, desde os primórdios do peregrinar das almas fiéis nesta terra de exílio.

Desde os dias em que passaram a conviver com o sofrimento, aguçando nelas as saudades do Paraíso; os dias em que esperaram pelo Messias prometido; os dias em que O viram, Ele mesmo, padecer pela Redenção do gênero humano. E os dias em que O adoraram gloriosamente ressurrecto, em que conheceram o surto do cristianismo sob as bênçãos de Maria Santíssima e o influxo irresistível da graça do Divino Espírito Santo.

Tenho impressão de que aí, então, foi dada à Igreja a plenitude daquela virtude por onde Ela sempre agiria nas almas dos seus fiéis, de maneira a possuírem e desenvolverem esse senso do maravilhoso, esse desejo de esplendor que os fez conceber as grandiosas catedrais, os órgãos de som harmonioso e arrebatador, os majestosos castelos, os vitrais “éblouissants”…

Assim como os fez idealizar quantas outras coisas menos sensíveis ao corpo, mas cuja beleza o espírito compreende melhor: a Cristandade, a Civilização Cristã, a sociedade temporal com seus costumes, instituições e tradições existindo à luz da Santa Igreja Católica, e incontáveis outros valores suscitados na Idade Média que têm uma beleza vitralícia multiplicada pelo vitralício. Já não são vitrais que os olhos vêem, mas são vitrais que a  alma contempla e considera enlevada Numa palavra, são alguns daqueles complementos que faltaram ao Paraíso…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2003)

Uma prefigura do Céu

Tema sobremaneira grato a Dr. Plinio era a consideração da sociedade enquanto cumprindo a Lei de Deus e, por isso mesmo, constituindo um conjunto harmônico capaz de refletir adequadamente o Criador. Como veremos a seguir, dentro dessa temática salientava ele, de modo especial, a importância da tendência à perfeição — um dos mais belos frutos da ação da graça na alma do homem.

 

Se todos os homens cumprissem os dez Mandamentos, grande número das leis se evaporaria por desnecessidade, e o mundo seria perfeito. Santo Agostinho, grande Doutor da Igreja que viveu ainda antes da queda do Império Romano do Ocidente, tem esta famosa sentença: “Imaginai um país onde o rei e todo o povo cumpram os dez Mandamentos; imaginai um lar onde o pai, a mãe e também todos os filhos cumpram os dez Mandamentos; imaginai uma escola onde todos os professores e todos os alunos cumpram a Lei de Deus na sua integridade; imaginai o mesmo se dando  com todos os oficiais e soldados de um exército; imaginai, enfim, os dez Mandamentos observados em qualquer campo da atividade humana. Existiria uma coisa chamada perfeição.

A organização  social tornar-se-ia exímia e tenderia a ser perfeita. Enquanto os Mandamentos fossem cumpridos, os frutos seriam os melhores, os mais excelentes, os mais magníficos. Isto é a ordem.”

Pela ação da graça, o homem tende ao mais perfeito

Essa ordem foi levada à sua plenitude por Nosso Senhor Jesus Cristo, e Ele deu aos homens a força necessária para pô-la em prática. Os dez Mandamentos são muito bonitos, empolgam. Cada um deles é lindíssimo: “Não matarás… Amarás a Deus sobre todas as coisas… Não tomarás seu santo nome em vão”, etc. O homem começa a cumpri-los, e sente como são belos. Daí a algum tempo, porém, que peso! Porque não é fácil observá-los. A tal ponto que a Igreja nos ensina não sermos capazes de obedecê-los duravelmente, sem o apoio da graça de Deus.

Ora, Deus concede essa graça a todos os homens, e por causa disso todos têm a possibilidade de cumpri-los. Sendo assim, o movimento natural de todas as coisas é para cima, para o alto, para a perfeição. E essa tendência, própria à alma cristã, de fazer tudo de maneira excelente, desde o mais insignificante até o mais elevado, marca um homem: na sua cortesia, no modo de dobrar uma  folha para pô-la num envelope, no modo de dizer “sim” ou “não”, no jeito de se levantar, de se sentar e de andar — tudo deixa transparecer uma inclinação para a perfeição.

Essa tendência é tal que o homem procura levá-la até o ápice do concebível por ele. Quer dizer, não intenta apenas o perfeito, mas o perfeitíssimo. Ele quer se unir a Deus no Céu.

Uma sociedade precursora do Céu empíreo

Para termos ideia de como essa excelência é alcançável na Terra, imaginemos um ambiente onde toda a conversa seja marcada pela presença da fé, numa atmosfera ao mesmo tempo leve e séria, amena e forte, onde as pessoas saibam tratar de qualquer assunto, até dos menores, de maneira aprazível e profunda.

Situemos neste ambiente, por exemplo, o rei Felipe II da Espanha (a quem costumo chamar de “o Felipão”). Sem querer afirmar que tenha sido um santo, há nele algo denotativo de uma fé que  comunicava àquela alma uma grandeza, uma compenetração, uma largueza de vistas, uma profundidade de horizontes, uma firmeza de decisão extraordinária.

Consideremos a ele como um analogado primário de todos os homens sérios de seu reino, e que em cada casa de família que se entrasse, por mais alta ou mais modesta que fosse, o pai seria uma reedição do “Felipão”.

Que estabilidade, que segurança, que recolhimento, que compenetração no ambiente em torno desse homem! Os filhos lhe vêm falar num tom de voz baixo, fazem-lhe confidências ou pedem instruções. E ele, às vezes, fora das horas de convívio, responde-lhes apenas por uma meia palavra, porque está pensando, rezando, lendo ou escrevendo algo de muito elevado…

Agora imaginemos a mãe, partícipe das qualidades de Nossa Senhora, “Mater Misericordiae”, temperando pela presença dela o que pode haver no pai de, digamos, grandeza assombrosa. Ela tem a chave do coração dele, sabe lhe dizer a palavra necessária para criar o melhor relacionamento possível entre ele e os filhos. E ela o faz com uma abundância de misericórdia, uma majestade, uma perfeição de sorriso que torna uma humilde trabalhadora em rainha da casa, assim como pode tornar uma rainha em mãe trabalhadora, afável e condescendente com os seus filhos.

Pensemos depois nos filhos compenetrados desse ambiente. Eles também, a seu modo, verdadeiros anjos nesta imagem da corte celeste que é a família. Pois do mais velho até o último, estão dispostos numa hierarquia de irmãos parecida com a ordem dos anjos.

Compreende-se que nada pode ser aprazível como esta casa. E se alguém me dissesse: “Dr. Plinio, na Ilha de Marajó, perto de Belém do Pará, existe uma família que é igual a essa descrita pelo senhor” — eu iria visitá-la, sem hesitações. Se me oferecessem a alternativa de viajar à Europa para rever a Sainte Chapelle, a catedral de Toledo e quantas outras maravilhas, ou de me encontrar com esta família no norte, eu preferiria conhecê-la, ainda que ela vivesse nos pântanos da Ilha de Marajó, no meio dos bois.

Eu iria e teria visto o que queria! Ali está a casa-santuário, a casa-sacrário, que é a família católica perfeita! Agora, imaginemos uma cidade onde toda a população que anda pelas ruas é assim, onde as pessoas se vêem e se cumprimentam com atenção, respondendo aos acenos discretamente, com pequenos sorrisos e amabilidades, e depois continuam seu caminho, deixando pela atmosfera um rastro de perfumes espirituais.

Do interior de uma casa com as janelas abertas ouve-se uma música segundo Deus, justa, temperante, prudente e forte. Mais adiante, percebe-se uma conversa, eventualmente uma risada cristalina, e se sente um aroma de pombo bem preparado.

Todas essas coisas produzem sobre nós algo do efeito que a ação dos anjos exercerá sobre as almas e os corpos quando estiverem no Céu empíreo.

Em suma, toda essa sociedade assim formada seria já uma espécie de realidade precursora do Paraíso celestial.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (agosto de 2003)

O CARÁTER MILITANTE DA IGREJA

A História, estudada de modo científico e imparcial, derruba os preconceitos levantados durante dois milênios contra a Igreja. Este é o ensinamento de Leão XIII, analisado por Dr. Plinio num trabalho inédito, cuja publicação continuamos aqui. No trecho hoje transcrito, ele comenta a guerra movida contra a Igreja pelo demônio e o mundo, e o caráter militante do catolicismo.

 

Mostramos os objetivos e os anelos de Leão XIII com o desenvolvimento da historiografia católica, no tocante a seu aspecto apologético. Num sentido mais abrangente, o Pontífice considera a História como “magistra vitae et lux veritatis” (“mestra da vida e luz da verdade”), como afirma no Breve “Saepenumero Considerantes”.

Nesse mesmo documento, dá ele algumas vistas históricas de conjunto, salientando como orientam bem os espíritos. Se, como vimos, esse Breve se voltava de modo especial para a Itália, a “Annum Ingressi” se ocupa em mostrar não apenas a história italiana, mas a de toda a civilização cristã como “magistra vitae” – mestra da vida. O Breve “Saepenumero” é, pois, desse ponto de vista, apenas um importante passo no caminho em que a Annum Ingressi será o termo final.

Posto em evidência o pensamento de Leão XIII sobre a legitimidade, a necessidade e a nobreza da História como instrumento da Igreja, como mestra da vida, dando ao homem uma explicação do  passado e uma base para a solução dos problemas do presente, consideremos o panorama histórico exposto pela “Annum Ingressi”.

Divisão geral da Carta Apostólica

Concluída a parte introdutória da Carta Apostólica, Leão XIII passa à demonstração de sua tese: “Segundo uma lei da Providência, confirmada pela História, não é possível calcar aos pés os grandes  princípios religiosos, sem solapar conseqüentemente as bases da ordem e da prosperidade social”.

O Pontífice expõe, então, as grandes verdades filosóficas e teológicas nas quais se funda a concepção cristã da História. Por elas se explica a luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, a qual, desde os primeiros até os últimos dias da humanidade, sem jamais cessar, enche os anos, os séculos e os milênios.

Em seguida, mostra como se realizou esta luta nos acontecimentos, traçando um grande quadro de conjunto da História da Igreja e da Cristandade, à luz da Filosofia e da Teologia.

Narra a crise da civilização ocidental cristã, e mostra que a ruptura crescente dos europeus com a Igreja é a causa da imensa crise em que a Europa se debateu no século XIX. É a demonstração da “lei da Providência na História”, enunciada na parte introdutória.

Leão XIII define, depois, a missão imposta por Jesus Cristo à Igreja, isto é, a salvação das almas. Para cumprir tal missão, é inevitável que a Igreja entre em choque com as paixões humanas desregradas, e sofra a guerra, essencialmente injusta, movida contra ela pelos adversários de sempre, quer dizer, o demônio e o mundo. É a continuação da guerra feita a Jesus Cristo.

Distinguindo a Igreja militante

Afirmando que “a Santa Igreja de Cristo teve de combater, em todos os tempos, contradições e perseguições pela verdade e pela justiça”, Leão XIII continua a exposição, enunciando uma verdade  encontrada com muita freqüência nos documentos do magistério eclesiástico, que tem suas raízes na Sagrada Escritura e é do conhecimento corrente dos fiéis.

Sim, pois o Catecismo [de São Pio X] ensina a distinguir a Igreja Militante, existente na terra, da Igreja Padecente, formada pelas almas do Purgatório, e da Igreja Gloriosa, constituída pelas almas dos justos que já se acham no Céu. Para compreendermos o nexo entre esta verdade e os horizontes desvendados na “Annum Ingressi”, devemos considerar os modos pelos quais a Igreja, enquanto sociedade visível, dotada de fins definidos e de órgãos próprios, realiza seu caráter militante.

A revolta das paixões desregradas

Antes de tudo, notamos que ela o realiza na pessoa de cada um de seus membros. Durante a vida terrena, o homem se encontra em estado de prova, e de luta. Com efeito, Deus o criou, a cada um, para a bem-aventurança eterna no Céu. Mas, a fim de preparar-se para essa felicidade, bem como para merecê-la, o homem deve praticar nesta vida a Lei divina, acrescida de todos os preceitos eclesiásticos.

Contra tal observância levanta-se um primeiro obstáculo nas paixões desregradas: o orgulho, a inveja, a avareza, a luxúria, a gula, a cólera e a preguiça. Daí São Paulo escrever: “Encontro, pois, em mim esta Lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal. Deleito-me na Lei de Deus, no íntimo do meu ser. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?…” (Rm 7,21-24).

Dois odientos inimigos: o demônio e o mundo

Outros obstáculos provêm de dois lados: as tentações do mundo e as seduções do demônio: “Sede sóbrios e vigiai”, diz São Pedro. “Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (1Pd 5,8).

Para vencer tantos adversários interiores e exteriores, deve o homem lutar rudemente, e esta luta é de tal maneira o sentido profundo de sua vida, que São Paulo define toda a existência humana como uma prova. Tudo se resume na exclamação de Jó:

“Militia est vita hominis super terram”— “a vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7,1).

Cada membro da Igreja é, pois, militante por definição, na esfera mais circunscrita e mais íntima de sua existência individual, isto é, na luta travada dentro de si mesmo — ignorada por todos e presenciada só por Deus, “cujo olhar sonda o coração e os rins” (Sl 7,10) — e por suas ações exteriores, para vencer os obstáculos que lhe detêm o passo no caminho para o Céu.

Mas o caráter militante da vida de cada fiel não poderia ser considerado apenas neste âmbito, e como mero esforço para a salvação individual. Ação de todo católico na escala social O homem é naturalmente sociável.

Como tal, vive ele em contato contínuo com outros indivíduos ou grupos sociais, e com a grande coletividade, que é a sociedade humana, da qual é membro. Esse contato, ele o realiza na família, na profissão, nos lazeres, em mil diferentes ocasiões. Assim, forma relações que lhe impõem o grave dever de estado de velar pela salvação eterna do próximo. Esse é um segundo modo pelo qual todo fiel realiza em si o caráter militante da Igreja.

Com efeito, velar pela salvação do próximo implica não só favorecer tudo quanto possa concorrer para o levar ao bem, como ainda em contrariar e combater todas as influências que o podem arrastar para o mal. Os pais, os patrões, os superiores, por exemplo, têm grave dever de velar pela salvação de seus filhos, empregados ou súditos. Se não fizerem uso, para esse efeito, da influência que a justo título sua situação lhes dá, sujeitam-se à merecida punição dos que não fazem frutificar os talentos confiados a eles por seu amo (Mt 25,14-30).

“Mutatis mutandis” pode-se dizer o mesmo das obrigações entre irmãos, parentes, colegas, etc. E até da obrigação dos filhos, alunos e súditos, de velar pela salvação de seus pais, mestres, patrões e superiores.

Dever de fazer apostolado

Há um terceiro aspecto da realização do caráter militante da Igreja em seus fiéis. Independente das obrigações individuais, e dos deveres de estado decorrentes, para o fiel, da situação que eventualmente ocupe na sociedade temporal, é ele obrigado a fazer apostolado.

Esta obrigação lhe vem do simples fato de ser católico, e pode ter por objetivo a salvação de pessoas a que está vinculado por pertencerem à mesma Igreja, e até pelo fato ainda muito mais genérico e serem criaturas humanas. Em outros termos, enquanto membro de uma Igreja militante, o fiel é obrigado a militar por ela. Pio XI e Pio XII insistem muito sobre esse dever do  apostolado, que toca a cada filho da Igreja, abrangendo uma esfera de ação certamente mais vasta que a dos deveres de estado decorrentes da situação de cada qual na sociedade temporal.

Não nos cabe entrar, aqui, no problema por vezes complexo de saber até onde vai essa obrigação. Mas, se um católico fizesse apostolado apenas no cumprimento de seus deveres de estado na sociedade temporal, sem jamais atuar fora desse âmbito, não poderia sentir-se bem com sua consciência.

Faria abstração de que é membro não só da sociedade temporal, mas da Igreja, sociedade espiritual, o que lhe impõe também deveres de estado, um dos quais é tomar parte na luta pela conquista de toda a humanidade.

Obrigações dos grupos sociais

A sociedade temporal se compõe de grupos sociais: famílias, corporações, instituições, classes, municípios, regiões, estados, províncias, etc. Cada um desses elementos realiza certa parcela das  funções da sociedade temporal. Nisto consiste o fim peculiar de cada qual, e deste fim lhe vem sua forma, atribuições específicas, direitos e deveres. Em uma palavra, sua situação dentro do conjunto.

A par do fim temporal, têm os grupos sociais a obrigação de militar pela Igreja?

Sem nos referirmos a associações de fim especificamente religioso, tais como Ação Católica, Congregações Marianas, etc., consideramos o caso daquelas com um fim especificamente temporal. Um clube de colecionadores de selos, por exemplo, tem a obrigação de se declarar católico e fazer apostolado? Desde que seja composto de católicos, não poderia ser laico. (Abstemo-nos de tratar dos grupos sociais religiosamente ecléticos, questão complexa, que exigiria um grande desenvolvimento.)

Os modos pelos quais uma associação pode mostrar-se oficialmente católica são sugeridos pelas tradições de nosso passado cristão. Poderia, por exemplo: ter a imagem de algum Santo em sua sede; promover orações coletivas antes e depois das reuniões, pedindo a proteção divina para suas atividades; ter um padroeiro em cuja festa promova cerimônias religiosas; sufragar as almas dos sócios falecidos, etc.

Não queremos dizer que toda associação de católicos seja obrigada a essas atitudes, sob pena de ser laica. Trata-se apenas de exemplos. Porém, é necessário conformar-se, em tudo, com os ditames da Fé e da Moral ensinadas pela Igreja, e isto não só nas relações da sociedade com seus sócios e com terceiros, como ainda no modo de realizar suas atividades específicas. Estas devem se desenvolver segundo o espírito da Igreja, ser lícitas e, na medida em que sua natureza comporte, ortodoxas. E devem aproximar os homens de Deus.

Não há sociedade, por mais que seu campo pareça alheio a Igreja, à qual não se possam de algum modo aplicar estas normas. Não exemplifiquemos com entidades em que tal possibilidade é obvia,  como a família ou a escola. Tomemos de novo uma sociedade filatélica. Os estudos de filatelia envolvem referências a episódios históricos, personalidades, costumes e instituições. Ainda quando sumárias, tais referências são suscetíveis de exprimir oposições, preferências, atitudes ideológicas. Os selos falam pelo que contêm e pelo que calam.

Houve tempo no Brasil em que o laicismo chegou a banir os temas religiosos dos selos. Um filatelista católico julgará isto importante e o mencionar á com o devido destaque.

Além disso, é certo que o católico pode encontrar, na filatelia, meios para se elevar até Deus. Essa associação, portanto, agirá bem se promover cursos, conferências, etc., que facilitem a seus associados a “elevatio mentis ad Deum” nesse campo.

As sociedades que assim agem fazem apostolado

Bem se compreende a utilidade de uma associação assim para a formação de seus membros. Trata-se de verdadeiro apostolado, que poderia até transpor o âmbito do quadro social, levando ao conhecimento do público tudo quanto no campo da filatelia o possa elevar a Deus. Essa associação, agindo assim, participa eficazmente, em seu campo e a seu modo, do caráter militante da Igreja.

Em resumo, as sociedades e outros grupos sociais, como pessoas coletivas, têm em relação à Igreja obrigações e possibilidades de ação idênticas, “mutatis mutandis”, às dos fiéis.

Imagine-se o que não seria de um povo no qual todos os grupos — famílias, escolas, entidades culturais, recreativas, profissionais, econômicas, cinemas, rádios, livros, jornais, revistas, costumes regionais, sede social — fossem imbuídos de catolicismo na sua essência e ação! É indubitável que os obstáculos à salvação teriam caído ao nível mínimo, e a missão da Igreja se realizaria em condições ideais. E um povo tão voltado para as coisas do Céu não deixaria perecer seus interesses terrenos legítimos. É uma questão sobre a qual exporemos adiante o pensamento de Leão XIII.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

REALEZA TRIIUNFANTE

A realeza de Nossa Senhora, fato incontestável em todas as épocas da Igreja, veio sendo explicitada cada vez mais a partir de São Luís Grignion de Montfort, até aquele 13 de julho de 1917, quando Maria anunciou em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” É uma vitória conquistada pela Virgem, é o seu calcanhar que mais uma vez esmagará a cabeça da serpente, quebrará o  domínio do demônio e Ela, como triunfadora, implantará seu Reino sobre as vastidões da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Coroação da Virgem”, Basílica de Santo Antônio de Pádua – Itália)

Cruzados da glória de Maria

O dogma da Assunção de Maria constitui mais uma das afirmações sobre a Santíssima Virgem que A coloca completamente fora de qualquer paralelo com outra criatura, justificando assim o culto de hiperdulia que a Igreja Lhe tributa.

Depois de uma morte suavíssima, a Mãe de Deus ressuscitou e subiu aos Céus na presença dos Apóstolos e de uma grande quantidade de fiéis. Essa Assunção representava uma verdadeira glorificação aos olhos de toda a humanidade até o fim dos tempos, e o proêmio da glória que Ela deveria receber no Céu. Não existindo descrições desse fato, é legítimo fazermos uma composição de lugar imaginando, conforme o gosto de nossa piedade, como a Assunção se passou: a presença dos Apóstolos, todos ajoelhados, rezando, em um ambiente inefavelmente nobre, sublime, recolhido, enquanto o céu enche-se gradualmente de Anjos, e vai tomando, aos poucos, coloridos os mais diversos, com matizações e irradiações magníficas, de maneira a apresentar um espetáculo absolutamente incomparável.

Se Maria Santíssima pôde produzir fenômenos tão excepcionais em Fátima, por que o mesmo não poderia ter-se dado por ocasião de sua Assunção?

Ressurrecta, Maria coloca-Se em pé, em oração; o respeito e recolhimento de todos vão crescendo à medida que a semelhança física que certamente existiu entre Ela e seu Divino Filho vai se acentuando cada vez mais. E a cada instante Ela Se manifesta mais Rainha, mais majestosa e mais materna também. Os mais esplêndidos Anjos do Céu acompanham-Na em sua elevação e, aos  poucos, toda aquela maravilha vai mudando, a Terra volta ao aspecto primitivo, os homens retornam para suas casas com uma sensação idêntica à que tiveram na Ascensão de Nosso Senhor: ao mesmo tempo maravilhados, com uma saudade sem nome, desolados, por um lado, mas levando na retina algo que nunca tinham visto, nem podiam ter imaginado a respeito de Nossa Senhora.

Começa o triunfo de Maria Santíssima no Céu. A Igreja Gloriosa inteira recebe-A, com todos os coros de Anjos, Jesus Cristo A acolhe, junto a São José. Ela é coroada Rainha do Céu e da Terra pela Santíssima Trindade. Assim Ela foi glorificada aos olhos de toda a Igreja Triunfante e Militante. Com certeza, também a Igreja Padecente teve uma efusão de graças extraordinárias nesse dia. E não é temerário pensar que quase todas as almas então presentes no Purgatório foram libertadas por Nossa Senhora. Eis como podemos imaginar a glória de nossa Rainha. Algo assim se repetirá  por ocasião da vinda do Reino de Maria, quando virmos o mundo todo transformado e a glória de Nossa Senhora brilhar sobre a Terra.

Ao meditar nisso, aproximamo-nos da festa da Assunção de Maria pedindo esta graça: que tenhamos o senso da glória d’Ela para compreender bem tudo quanto esta glória representa na ordem da Criação, como ela é a mais alta expressão criada da glória de Deus, e de que maneira devemos ser sedentos de afirmar e defender, por uma virtude da combatividade levada ao seu último extremo, a glória da Santíssima Virgem na Terra.

Que Ela faça de nós verdadeiros cavaleiros, cruzados d’Ela, lutando por sua glorificação na Terra. Esta parece ser a virtude mais adequada a pedir nessa festa de glória que é a Assunção de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira

Recordações de uma visita a África

O avião da “Air France”, no qual Dr. Plinio viajava para Paris, desceu em Dakar, no Senegal, naquele 11 de junho de 1952 – há 50 anos. Por problemas técnicos, foi preciso adiar a partida por várias horas, para uma minuciosa revisão na aeronave. Isto permitiu a Dr. Plinio conhecer e  analisar um pouco daquele continente, e tecer depois inúmeros comentários, alguns dos quais transcrevemos neste artigo.

 

Não posso esquecer-me de uma noite que tive de passar em Dakar, numa de minhas viagens à Europa. Estava viajando pela “Air France”. Em virtude do atraso relativo em que ainda estava a aviação, os aviões destinados à Europa eram obrigados a pousar em Dakar, para se reabastecer. Mas, quando meu voo chegou àquela cidade, avisaram que nosso aparelho estava quebrado, e tínhamos de passar o restante do dia e a noite ali.

A companhia, evidentemente, providenciaria alojamento e, para nos entreter, punha à nossa disposição um ônibus que ia visitar os lugares mais pitorescos da cidade.

Contato direto com o Saara

Eu queria muito conhecer o deserto, e pensei comigo: “Não são só os lugares mais pitorescos da cidade os que quero visitar. Quero ir fora da área urbana e pisar na areia do Saara.

Quero pegar um punhado de areia, fechar num pacotinho e levar comigo para o Brasil, e dizer: Esta é a areia do Saara! Do famoso, poético, terrível e admirável deserto do Saara! ” Meus desejos  começaram a se realizar quando nos levaram para o alojamento. Eram casinhas redondas, de pequeno diâmetro, agrupadas no formado de uma semi-esfera, na boca do deserto, o que é uma coisa pitoresca.

Gostei da ideia. Além disso, tendo ficado receoso quanto à qualidade do hotel ao qual anunciaram que iam nos levar, regozijei-me ao verificar que essas casinhas estavam equipadas do melhor modo possível, bem conservadas e limpas. Entrei no deserto para pegar um pouco de areia. Era para mim um atrativo formidável, e está no meu modo de ser. Não consideraria que a realidade  “Saara” ficasse satisfatoriamente conhecida por mim, se eu não fizesse esse exame: aplicação de todos os meus sentidos ao deserto. É o mesmo que se dá comigo a respeito do mar, por exemplo: eu nunca me daria por suficiente conhecedor do mar sem ter entrado na água. É preciso tocar.

Queria pegar a areia e esfarelá-la na mão, para ver como era. Foi uma surpresa sentir que estava ligeiramente úmida. Ao menos naquela porção de areia que peguei naquele momento. E, pelo menos naquele lugar, a areia não é branca e alva, maravilhosa, como se vê nos álbuns com gravuras para crianças.

Era um pouco avermelhada, não limpa… Pode ser que, mais para o interior, se apresente diferente. Mas, naquela orla do deserta, fiquei meio desapontado.

O passeio pela cidade, no meio da sonolência

Dakar, também, foi uma surpresa para mim. Infelizmente, não a pude observar tanto quanto quisera, por estar tomado de sonolência excessiva. O motivo é simples: no avião, eu não estava conseguindo dormir por causa do barulho do motor. Naquela época, distribuíam a todos os passageiros uns comprimidos para dormir.

Resolvi tomar uma pastilha, pensando: “Acordo onde Deus quiser!” O remédio teve um efeito prodigioso, causando-me uma dessas sonolências invencíveis que durou o dia inteiro. Quando o ônibus  da “Air France” estava ia sair para o passeio pela cidade, pensei: “Vou acabar dormindo no caminho. Porém, tenho tanta vontade de ver um pouco como é Dakar… Vamos lá. Se eu adormecer…”

Com efeito, estava sonolento demais durante o trajeto. O passeio foi, pois, em certo sentido, uma pequena tragédia. Muitas vezes passávamos por um trecho interessante do deserto, e puf! dormia. E nessa situação de despertar diante de panoramas interessantes, e novamente adormecer, fiquei quase durante todo o giro. Um dos lugares aos quais nos levaram foi a praia. Tanto quanto o Saara, eu queria ver também esse meu Oceano Atlântico, tão familiar, para o qual olho quase como para um parente, quando bate nos cais ou nas areias da praia do Zé Menino, em Santos. “Quero ver como ele é quando bate nas penedias e nas praias da África. Como é esse Oceano, quando ele acaba a viagem Brasil–África, e se quebra de encontro ao litoral africano?” Era uma de minhas grandes curiosidades.

Ora, o mar no Senegal é absolutamente igual ao de Santos, sem diferença alguma. É muito agradável de ver. Gosto de Santos. Mas, ficar na África para ver a mesma coisa que se vê em Santos, para mim, que não gosto de  viajar, foi outra decepção.

A grande recompensa: ver os africanos

Minha grande recompensa foi ver os africanos. As Áfricas são muito diferentes entre si. Um mundo que teria de ser reinterpretado, porque há certos tipos de negros que fazem pensar em civilizações ignotas, enigmáticas. Dakar, uma grande cidade, sob influência da França, modelou-se muito, sem deixar de ser uma grande cidade africana. O talento francês arranjou um jeito de fazer a moldura para os negros de Dakar, e eles ali são mais civilizados do que no restante do continente. Quando meu sono passou, o ônibus havia parado no jardim zoológico, e desci com os  outros passageiros. Vi que era mais ou menos como os daqui. Parece que a Arca de Noé parou entre o Brasil e a África: saíram os mesmos bichos em ambas as direções.

Caminhei com um certo tédio. Mas o zoológico estava cheio de visitantes, e, como gosto muito de analisar as psicologias… De repente, notei um certo movimento, e percebi que era uma celebridade que estava chegando. Realmente, cercada de um grande grupo de africanos, vinha caminhando uma mocinha, de uns dezoito a vinte anos, na flor de sua juventude, e negra como ébano.

Estava vestida de um modo que, creio, nunca me esquecerei na vida: uma saia meio rodada, de cor-de-rosa muito mimoso, muito leve, muito seco; um cor-de-rosa de sonho, parecido com uns esmaltes franceses que se faziam antes da Revolução Francesa, uma espécie de aurora imaginada que só eles eram capazes de fazer. E com panejamentos abundantes e um turbante da mesma cor.

Dir-se-ia que o cor-de-rosa delicado faria um contraste violento com o negrume, e poderia parecer esquisito. Mas não. Combinava maravilhosamente! Pendentes sobre o colo, ela trazia uma porção de colares, miçangas com vidros coloridos – via-se que ela sonhava com jóias mitológicas – com as quais brincava meio distraidamente, com muita graça. Modo indireto de chamar a atenção.

Caminhava e tomava atitudes com muita graça, mantendo uma postura graciosa, e com modos dignos e distintos, sem arrogância . Seu desembaraço e afabilidade, sabendo manter os outros a distância (pareceu-me bem moralizada), criava em torno de si uma atmosfera de gracejo leve, inocente, como uma brisa vinda do mar. Tinha um grande poder de expressão. Seu sorriso era como um perfume que, sem ser importuno, era penetrante, irresistível. Perfume de bom humor,  de graça. Era literalmente encantadora, e tinha alguma coisa quase como o charme francês.

No seu rosto redondo, uns olhos redondos também às vezes olhavam para além da realidade material, exprimindo uma forma peculiar de refletir. Era uma sonhadora. Refletia olhando para cima,  diferentemente dos brancos, que refletimos olhando para baixo. E havia nela uma doçura que os brancos não têm. Foi só ela aparecer no meio dos  passageiros da “Air France”, que todos tiraram suas máquinas fotográficas e só se ouvia o barulho dos “clics” dos botões disparadores. Só faltava subirem uns nos ombros dos outros para poder fotografá-la. Ela, com muita categoria, olhava para um quati qualquer, preso lá numa jaula, e, fingindo que prestava atenção no animal, se punha numa pose de três quartos  para os fotógrafos.

O quati fazia qualquer movimento, e ela dava risada, pegava o maço de colares e sacudia como quem se diverte, olhando para os que estavam mais distantes, sorrindo também, como que perguntando: “Não é mesmo engraçado?” E as miçangas fazendo seu ruído característico. Resultado: ficava interessantíssima! E tinha a amabilidade de deixar-se fotografar por todo mundo que quisesse levar dela uma recordação.

Professores catedráticos e janízaros

Chegamos ao centro da cidade, e eu estava muito interessado em observar o povo. Os negros do Senegal são altos, verdadeiras torres humanas, bem constituídos e com cara séria. Portavam fez,  um chapeuzinho em forma de cone, truncado bem perto da base, mas o qual, se fosse comprido, tenderia a se fechar numa ponta. A cor era de um vermelho um pouco escuro, e alguns homens, talvez os mais cotados, traziam no alto um pompom preto.

Não sei se era moda, tradição ou um dia de festa, mas todos estavam vestidos de um mesmo modo: esse fez, e uma túnica que chegava até os pés, de diversas tonalidades da cor creme, e listas verticais um pouco espaçadas e de cores diferentes, mas muito discretas, através das quais víamos o fundo bem claro da túnica. Esse traje acentuava a altura deles, e lhes dava uma distinção e um  ar de quem olhava de cima para baixo, inclusive para nós, brancos. À distância, os tecidos me pareciam feitos de lã, no meio daquele calor tremendo. Fiquei sem uma explicação. Além do mais, por  cima da túnica tinham outra cobertura, sem mangas, e não fechada na frente. Era uma espécie de colete.

Tudo lhes dava a atitude meio de professor catedrático de uma grande universidade, meio de janízaro. Na maioria, os senegaleses são maometanos. Em certo momento, às seis horas da tarde, hora do Angelus, ouço um sinal qualquer, e percebo uma movimentação entre os homens que andavam por ali. Todos pararam, e pareciam guardas colocados à porta do palácio de um rei.

Não tinham espadas, mas espiritualmente estavam com um iatagã na mão, para abater qualquer um que tentasse entrar sem licença. Deitaram-se no chão, literalmente, e começaram a rezar, com gestos de mãos, e curvaturas, etc. A mim me cortava o coração vê-los rezar algo que não era católico. Mas, é preciso dizer, a cerimônia era bonita.

Todas essas cenas que vi em Dakar mostram que os africanos são capazes de construir uma realidade parecida com a fantasia. O ônibus seguiu e eu pensei em três coisas: “Se pudesse, faria tudo para convertê-los já!” Segundo: “Como é pitoresca a raça negra!” E, por fim: “Como é grande a França, que soube emoldurar tudo isso!” O charme da tulipa negra Saí de Dakar, pois, com o espírito repleto de observações, que deram origem a uma série de reflexões. Por exemplo, tendo em vista as qualidades que os africanos demonstram hoje, pode-se perguntar: se o continente inteiro fosse convertido, e sofresse a influência civilizadora da Igreja, como brilharia? Temos a esperança de que, um dia, Nossa Senhora reine sobre toda a terra. Numa era assim marial, que papel  representaria a raça negra no conjunto dos povos? Poeticamente, a pergunta poderia ser feita assim: no conjunto das flores que Deus criou, como conceber uma flor negra? E que relação ela teria com as harmonias do universo?

Certa vez, andando de automóvel em Paris, creio que a caminho do aeroporto, ia atravessando bairros da periferia. É preciso dizer: o centro de Paris tem as maravilhas que sabemos, mas suas periferias deixam muito a desejar.

O comércio vai escasseando, a riqueza das vitrines é menor também, e muitas vezes o bom gosto. Observava isso quando, de repente, dei com a vista num bonito e pitoresco vaso, arranjado com aquela nota picante que os franceses sabem pôr em tudo: no centro, uma tulipa negra, e, em torno dela, tulipas de vermelho cor de sangue, outras de vermelho menos acentuado, amarelas e brancas, formando uma policromia em que a cor preta era a nota firme, dando encanto a todo o resto. Não é de espantar que eu me tivesse lembrado da raça negra.

Em certas circunstâncias e ocasiões, ela manifesta uma capacidade de expressão que não é tanto a da palavra, mas a do porte, do movimento e do gesto, do riso, da compenetração, que lhes dá um poder inigualável. E, pensando particularmente nos negros do Brasil, eles têm uma forma de sentimento, de bondade, de afabilidade, de desejo de servir, que também é inigualável. Deus quis que o gênero humano fosse capaz de conter e desdobrar todas as formas de beleza específicas e próprias, de modo a formar uma coleção completa. A cidade de Dakar, com o que tem de original e característico, ilustra bem como a coleção dos homens ficaria como uma boca na qual falta algum dente, caso Deus não tivesse criado os negros.

Através dos senegaleses, e sobretudo daquela moça do jardim zoológico, cresci na compreensão daquilo que os negros podem produzir de elevado, e que por muitos lados seja supremo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

E ASTUTOS COMO AS SERPENTES

Para muitas pessoas, a mera suspeita a respeito de alguém já constitui juízo temerário. Trata-se de um equívoco, que Dr. Plinio procura esclarecer.

 

Grande número de incompreensões a respeito do assunto “juízo temerário” provém de uma análise superficial da palavra “juízo”. Muitas são as pessoas que receiam fazer uma suspeita desfavorável a terceiros, porque, caso a suspeita  não seja comprovada ulteriormente, terão cometido um juízo temerário. Mas uma suspeita poderá ser considerada juízo?

Para decidir a questão, basta recorrermos às noções correntes. O juízo, ou sentença, implica uma afirmação.

Só fazemos um juízo acerca de alguém quando chegamos a uma certeza a respeito desse alguém. Uma suspeita não constitui um juízo, e, assim, quem suspeita de outrem não pode, propriamente, formar um juízo temerário, e isto pela simplicíssima razão de que não chegou a estabelecer juízo algum.

Com efeito, a suspeita é uma hipótese que formulamos a respeito de uma pessoa. E a hipótese evidentemente não é uma certeza.

Assim, ainda que tenhamos feito sobre uma pessoa uma suspeita infundada, não teremos com isto cometido um juízo temerário. …

Virtude, e não fraqueza de princípios

Andam erradamente, e muito erradamente, os que dizem que não querem formar juízos ou suspeitas sobre os outros, porque a tal não têm direito. Distingo. É inconveniente que andemos a fiscalizar as pessoas cuja conduta não se encontra sob o raio de nossa autoridade. Mas que sejamos obrigados a não formar impressões sobre aquilo que naturalmente nos salta aos olhos, na vida  de todo dia, quem ousará sustentá-lo? … Um homem de caráter firme e varonil sente uma dissonância interior cada vez que nota que, em torno de si, as coisas se passam de modo contrário à glória de Deus, à exaltação da Santa Igreja, e da doutrina católica. …

Assim, formar juízo e formar suspeitas, quando isto é dirigido pelas virtudes cardeais, e não se orienta pela ação de qualquer inclinação viciosa, é virtude e alta virtude. E deixar de formar juízo ou suspeita quando o caso se apresenta, pode ser defeito, e grave defeito.

O irretorquível exemplo dos Santos Liricamente, muita gente costuma sustentar que “isto compete à autoridade, e que, como não tenho autoridade, posso dispensar-me dessa tarefa ingrata”. E muito tolo comentará de si para si: “Que coração generoso é esse, como lhe dói ver a maldade do próximo!”

Certamente, há muita generosidade em doer-se alguém da perfídia do próximo. Mas haverá generosidade em fechar os olhos à evidência, para não sentir essa dor? Ah, como os Santos abriram e até escancararam os olhos a essas dolorosas evidências! Como lhes cortava o coração ver a malícia, a ingratidão, a perfídia, a lascívia dos homens! Quantos juízos encontramos, nas obras dos Santos, juízos severíssimos e tremendos, não só a respeito de um ou outro indivíduo nominalmente considerado, mas ainda a respeito de cidades, povos e países inteiros!

Os Santos se doíam, mais do que ninguém, dessa realidade. Mas, em vez de lhe fechar estupidamente os olhos, abriam os olhos para as misérias da terra e o coração para o Céu, em magníficos atos e reparação e desagravo a Deus.

Como está longe da conduta dos Santos certo romantismo piegas com que, tantas vezes, nos defrontamos na vida! … Quando Nosso Senhor Jesus Cristo chamou os fariseus sepulcros caiados, o que fez senão juízo? E quando aconselhou que tomássemos cuidado com os falsos profetas e os lobos metidos em pele de ovelha, o que fez senão impor-nos a suspeita como importantíssimo meio para a nossa salvação?

Uma vítima da Revolução Francesa teve a exclamação famosa: “Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!” Com quanto direito poderíamos dizer por nossa vez: “Ó caridade, quanta sandice e quanto crime em teu nome se tem praticado!”

Inocentes como pombas, mas astutos como serpentes

Mas, sobretudo, o que importa notar é que um observador sagaz não se improvisa. Que espécie de autoridade será quem esteve de tapa-olhos, ininterruptamente, durante todo o tempo em que foi súdito? Não é, porventura, quando se é súdito que se deve adquirir as qualidades de um chefe? A tal ponto é isso verdade, que todos os exércitos e todas as engrenagens das empresas comerciais,  etc., têm sua linha fixa de promoções. Não valerá isso para nós? Ingênuos como crianças de berço até o dia em que não cai sobre os ombros uma função de responsabilidade, o que faremos quando depender de nós a defesa dos mais importantes interesses espirituais ou temporais, contra os lobos disfarçados na pele da ovelha? …

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo do “Legionário”, nº 476, 26/10/1941. Título e subtítulos nossos.)

Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

A IGREJA: FORMADORA DE UMA CIVILIZAÇÃO

Dulcificação do trato humano, harmonização do relacionamento entre grandes e pequenos, extinção da escravidão na Europa e elevação das classes sociais mais modestas. Estes sãos alguns dos benefícios conquistados pela Igreja nas áreas sob sua influência, fazendo daquele mundo pagão cruel e impiedoso uma comunidade de nações cristãs regidas pela lei do Evangelho. É o que veremos ao terminar a série de artigos extraídos de aulas e conferências de Dr. Plinio sobre o mundo antigo.

 

Todas as civilizações anteriores a Nosso Senhor Jesus Cristo foram caracterizadas pelo predomínio do egoísmo. Se bem que, de vez em quando, os povos da Antiguidade tenham podido contar com grandes heróis que sacrificavam seus interesses individuais ao amor da Pátria, era o egoísmo que inspirava a organização política, social e as relações internacionais antes da vinda do  Redentor.

Tudo o que temos estudado nas últimas aulas sobre o poder despótico dos reis, a crueldade com que o exerciam, a depravação, o excesso de riqueza, o ócio e o brutal desprezo professado pelas aristocracias em relação à plebe; o espírito de revolta furioso da plebe, que explodiu em Roma, na Grécia e na Fenícia em sanguinolentas revoluções populares; o horror ao trabalho, a indisciplina agressiva e o insopitável ódio das classes pobres contra toda e qualquer instituição ou classe social que trouxesse consigo a ideia da autoridade; a crueldade inenarrável com que aristocratas e plebeus tratavam os escravos, aos quais era dada uma sorte não reservada nem aos animais — tudo isso é, em última análise, fruto do egoísmo.

Uma renovação do mundo

Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, pregou no mundo o amor ao próximo. E, sobre esta base inteiramente nova, Ele renovou a terra, a tal ponto que a história ficou dividida em dois grandes  períodos: a era anterior ao nascimento d’Ele e a Era Cristã.

Qual foi a doutrina política e social pregada por nosso Salvador?

Certos escritores que não O compreendem costumam chamá-Lo de revolucionário. Ora, revolução é, por definição (no sentido sociológico do termo), uma insurreição de súditos contra a autoridade, uma luta entre inferiores e superiores em que, ou saem vencendo os primeiros ou os segundos.

A transformação que Nosso Senhor veio trazer ao mundo não foi uma revolução, porque não implicou em revolta contra qualquer autoridade, nem levantou os oprimidos contra os opressores. O Cristianismo não trouxe uma revolução, mas uma renovação. Também não tomou partido pelo despotismo contra os oprimidos. Em lugar disso, transformou oprimidos e opressores, fazendo cair-lhes das mãos as armas com que se feriam reciprocamente, e unindo-os num afetuoso abraço de irmãos.

Essa transformação moral e essa reconciliação entre classes sociais que pareciam irremediavelmente desunidas foi, na realidade, a base da grande mudança política e social que Jesus Cristo trouxe ao mundo. Mas essa transformação não era a finalidade da missão d’Ele. Seu fim era essencialmente religioso. E as outras transformações que o cumprimento dessa obra acarretou não foram senão conseqüências da doutrinação religiosa.

O equilíbrio trazido pelo Cristianismo

O mundo antigo parecia vacilar entre excessos igualmente reprováveis. De um lado, o despotismo excessivo, de outro a anarquia demolidora. De um lado, a exagerada concentração de riquezas, e de outro a sua conseqüência indireta, uma plebe paupérrima e revoltada. Finalmente, de um lado, impérios poderosíssimos que viviam na opulência a mais completa, e de outro lado povos que gemiam na miséria, sob o jugo de sua opressão. A todos estes excessos, a pregação da Igreja Católica veio trazer uma solução que representou o equilíbrio.

No terreno político, o Cristianismo afirmou a autoridade, mas condenou o despotismo. No terreno econômico, afirmou a propriedade, mas condenou a excessiva concentração de haveres nas mãos  de poucos proprietários. No terreno familiar, afirmou a monogamia contra a poligamia e, sujeitando embora a mulher e os filhos ao marido, proclamou a sua dignidade eminente, proibindo o chefe da família que os tratasse como escravos ou criados.

O caso da escravidão

Aliás, foi também o Cristianismo que mudou a sorte dos escravos, quando a Igreja começou a se espraiar pelo mundo antigo. Em primeiro lugar, recomendando muito que a escravidão não poderia chegar ao ponto de dar a uma pessoa o direito de vida e de morte sobre outra, nem o de feri-la, mas era preciso respeitar os direitos que são naturais ao homem. Isso já representava um  considerável alívio para a condição de escravo.

Mas a Igreja começou também a trabalhar para que os donos libertassem seus escravos em grande quantidade. Começam, pois, a aparecer os testamentos em que o testador declarava que, quando  morresse, tais e tais de seus escravos ficavam livres. Às vezes determinavam que ficavam livres todos os escravos que possuíam na África, por exemplo, ou na Ásia, ou na Europa. A partir da expansão da Religião Católica, portanto, a libertação dos escravos passou a se tornar freqüente, e o número de servidores não-escravos cresceu muito, o de escravos diminuiu e a própria condição destes últimos ficou menos terrível do que era outrora.

O servo da gleba: mitigação da condição de escravo

Com o tempo, entrando pela Idade Média adentro, houve uma atenuação — sempre por efeito da ação da Igreja — ainda mais sensível da qualidade de escravo: foi o estabelecimento de uma condição  chamada servo da gleba.

Servo é propriamente es- cravo. O sujeito era, portanto, escravo da gleba, isto é, de uma certa porção indefinida de terra. Assim, um servo da gleba já não era mais escravo do dono, mas da terra. Acontece, porém, que a terra não mata, a terra não fere, enfim, é uma forma muito adoçada da servidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 41 (Agosto de 2001)