Rosa das rosas, rogai por nós!

Assim como a rosa detém uma primazia de beleza sobre todas as flores, assim Nossa Senhora sobrepuja em formosura todos os outros seres saídos das mãos do Onipotente.

Por isso, Ela é a Rosa Puríssima, a Rosa Mística, a Rosa de Jericó, a mais bela das almas, a mais linda das criaturas de Deus.

Se nós nos puséssemos de joelhos diante de Nossa Senhora e Lhe ofertássemos uma rosa de esplendor paradisíaco, Ela certamente a tomaria em suas mãos virginais, e em seus lábios afloraria um  sorriso encantador. Porque  o que há no fundo d’Ela entrou em consonância e brilhou com a perfeição da rosa. Mas… quanto o sorriso d’Ela é mais belo e luminoso do que a luminosidade e beleza  da rosa! E quanto, portanto, o que existe no íntimo da alma d’Ela vale mais do que aquilo que A fez sorrir!

E se Ela condescendesse em nos dar de presente a rosa, nós a guardaríamos com todo o cuidado, depois de murcha, numa página de álbum em que escreveríamos: “A rosa diante da qual a Rosa  sorriu”.

E nos lembrando da Senhora desse sorriso, diríamos a Ela: “Rosa Rosarum, ora pro nobis”. — Rosa das Rosas, requinte de rosa, transcendência de rosa, a mais bela rosa do universo, rogai por
nós!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Quem encontra um amigo fiel, descobre um tesouro! – II

A verdadeira amizade, baseada no amor a Deus, é capaz de qualquer coisa. Porém, qual é a pessoa que, com sabedoria, sabe apreciar o companheiro quando este o admoesta justamente?

 

O homem, quando sentimental, admira em quem preza como amigo os aspectos nos quais se vê refletido, à semelhança de um espelho no qual se lhe torna possível observar-se. Tais indivíduos se cultuam uns nos outros, egoisticamente; esquecem-se de que onde há egoísmo certamente não haverá amizade.

A equivocada ideia de amizade caracterizava-se por uma afinidade completa de mentalidades. Duas pessoas eram amigas quando pensavam do mesmo modo e tinham uma benquerença proveniente do fato de ser uma o reflexo da outra.

No que consistia a autêntica amizade?

A amizade autêntica existe apenas quando se tem disposição interior para sacrificar-se pelo amigo. Caso contrário — quando o desejo de sofrer por outrem é nulo —, a amizade não será efetiva. Mesmo assim, o anseio de padecer por um amigo possuirá maior intensidade na medida em que seja vigoroso seu amor a Deus.

Por uma amizade fundamentada em tal amor, deve-se ser capaz de todas as formas de sacrifício, como também de perdão a qualquer ofensa ou até mesmo a quaisquer traições recebidas.

A finalidade principal da amizade não é de ser agradado ou bajulado por outrem. Considerando que o aspecto mais louvável de cada homem encontra-se no grau de união com Deus, o correto seria desejar a estima dos outros apenas quando houvéssemos trilhado as sendas do bem. Caso deixássemos de agir corretamente, não deveríamos aspirar à consideração de outrem.

O mito da “alma irmã”

Havia antigamente o mito da “alma irmã”, que consistia numa figura ideal, ou num reflexo perfeito, que as almas sentimentais faziam de si próprias em outrem a quem amavam romanticamente.

Formavam elas, a seu próprio respeito, uma figura irreal, imaginando-se como seres extraordinários, entretanto, mal compreendidos e pouco apreciados. Quando encontravam alguém que havia percebido o seu valor, ansiavam naturalmente a proximidade dessa pessoa, que supunham lhes proporcionar a verdadeira felicidade. Contudo, havia acontecido o mesmo ao outro.

Então, quando eram de sexos distintos, ficavam noivos. No primeiro período de noivado trocavam grandes confidências e incompreensões que sofreram na vida. Isso tudo culminava no casamento.

Desfazendo o mito da “alma irmã”…

Todavia, o mito da “alma irmã” despertava uma pergunta: Será realmente autêntica essa amizade? Caso seja autêntica, será então duradoura?

Pois ainda que sejam semelhantes em alguns pontos, não se diferenciarão em outros? E quando verificarem as diferenças pontiagudas, essa amizade permanecerá?

Ao prestar atenção em jovens casais de noivos, notei que nos primeiros dias de noivado tinham muito para dizer um ao outro. Porém passados os primeiros dias…

Amáveis até a completa decadência

A verdadeira seiva da amizade encontra-se no amor a Deus. Assim, a definição de amigo bem poderia ser esta: aquele a quem se considera, ama-se e estima-se por amor a Deus. O restante não é senão egoísmo. Estimar alguém pela diversão que proporciona, ou pelas vantagens que concede, não é ser amigo. Pelo contrário, é ser egoísta.

Alguém poderia objetar: “Os amigos que tenho são agradáveis, amáveis, e nunca me admoestam por nenhum defeito. Sempre se mostram com disposições de boa acolhida. Prefiro, portanto, estar com quem me seja agradável”.

Perante tal afirmação, poder-se-ia dizer: “É verdade. São estes os amigos que nunca corrigirão seus defeitos, e permitirão ademais sua completa decadência. Enfim, consentirão na sua perdição eterna. E quando não tiver utilidade alguma para eles, ainda o desprezarão. A isso você chama querer bem…?”

Infelizmente, não eram raros os que possuíam esse equivocado conceito de amizade.

“Alter Christus”

Com os autênticos católicos, passa-se algo distinto. São amigos na medida em que partilham a mesma Fé Católica, Apostólica e Romana. Daí provém uma intensa união de mentalidades.

Diferentes, mas não contrários, são os temperamentos e as psicologias dos diversos católicos: representam apenas um aspecto secundário em seu convívio. No convívio entre eles, o que há de mais importante é a Fé que possuem. Analisando-os, vê-se o varão observante dos Mandamentos e frequentador dos Sacramentos, que estima acima de tudo o caráter cristão que discerne em seus próximos.

Desponta, então, uma diferença fundamental no modo de considerar a amizade: não é na admiração de uma qualidade comum a dois amigos que ela consiste, mas, principalmente, em uma semelhança com Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Christianus alter Christus”; se é verdade que o cristão é um outro Cristo, nada há de mais gratificante do que poder afirmar: “Ele é como outro Cristo, é meu irmão!”

Na repreensão, o verdadeiro afeto

Segundo o venerável Tomás de Kempis, a verdadeira amizade baseia-se no amor a Deus, tanto para quem estima, quanto para quem é estimado. Deste modo, quando se progride na vida espiritual, não há ninguém mais alegre do que o verdadeiro amigo. Porém, quando se verifica uma decadência, não há ninguém mais temeroso.

O verdadeiro amigo tem por obrigação recorrer aos menores indícios, examinar os mais peculiares aspectos, com o objetivo de prestar algum auxílio no momento de dificuldade. Indicando os devidos cuidados a serem tomados, como também as precauções a serem observadas, ele o repreende a fim de que seu companheiro não venha a soçobrar.

Contudo, muitas vezes tais conselhos são ouvidos com ressentimento, pois atingem diretamente o amor-próprio. Assim, por mais que a retribuição pelo auxilio prestado seja o ressentimento, a consciência permanecerá em paz, pelo bem que foi realizado.

Aquele que admoeste ao próximo, não pelo descabido desejo de corrigir continuamente — que é a mais vil das vaidades —, mas com o sincero desejo de estimular o progresso espiritual, pode-se considerar como verdadeiro amigo.

A Sagrada Escritura afirma sabiamente: “Repreende o justo e ele te amará”. Quem possui a Sabedoria, quando corretamente repreendido, torna-se agradecido sem jamais guardar qualquer ressentimento. Ao contrário, quem se lamenta por ser admoestado, não possui a Sabedoria, pois na repreensão é que se mostra o valor do homem.

Advertência, mais valiosa que a congratulação

Demonstrar afeto na repreensão é inteiramente cabível. Todavia, afirmar que é sobretudo na repreensão que se demonstra a estima, é dificultoso acreditar.

Porém, mais do que se empenhar em mostrar-se alegre ou agradável, o verdadeiro amigo deve ansiar ser útil para a salvação de seu próximo. Obviamente, alegrar-se-á com o progresso daquele a quem deseja o bem. Contudo, alguém pode progredir sem que necessariamente o elogiem; mas, se está retrocedendo, caso não lhe seja apontada sua decadência, ele não prosseguirá em seu processo?

A palavra de advertência torna-se evidentemente mais valiosa do que a de congratulação.

Por isso Nossa Senhora concedeu ao venerável Tomás de Kempis palavras cheias de unção, para admoestar seus irmãos. Também a outros Ela poderá confiar essa edificante missão.

Tanto os que corrigem, quanto os que são corrigidos, que Ela auxilie e proteja nas vias da virtude, rumo à glória no Céu.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1968 e 5/4/1986)
Revista Dr Plinio 149 (Agosto de 2010)

 

O desenvolvimento da Teologia e o sensus fidelium

São Paulo, o incansável Apóstolo dos gentios, dirigindo-se a seus discípulos de Corinto não hesitou em afirmar: “Oportet haereses esse”(1). Tal afirmação parece paradoxal, não obstante, o mesmo Apóstolo esclarece: “…para que também os que são de uma virtude provada sejam manifestados entre vós”. (1Cor 11,19)

Com efeito, no decorrer dos tempos, o combate às heresias foi de grande valia ao desenvolvimento teológico; pois, para refutá-las, surgiram os Concílios que, através do Magistério infalível, definiam como dogma as mais importantes verdades de nossa Fé, constituindo assim o “depositum fidei”, repleto de inestimáveis valores doutrinários e morais.

Entretanto, quão mais oportuno do que a própria heresia foi a piedade popular, quando pujante e vigorosa. Anelando e interessando-se por conhecer as verdades da Fé, ofereceu ela precioso estímulo aos estudiosos, para que estes pudessem então encontrar a razão teológica das hipóteses originadas do “sensus fidelium”.

Proporcionando uma excepcional explicitação sobre tal questão, afirmava Dr. Plinio:

“O ensino da Igreja, ministrado aos fiéis, deve fazer uma distinção entre o que é teologicamente certo e o que é uma hipótese, apontando ainda os vários graus de certeza: dogma, verdade de Fé, teologicamente certo, etc.

“Porém, determinadas hipóteses piedosas — mesmo enquanto conjecturas — alimentam a piedade dos fiéis, fazendo com que o anelo e o interesse popular por tais assuntos estimulem os teólogos a estudarem, para depois o Magistério infalível dar a definição correta.

“Esse sopro de piedade dos fiéis, a respeito dos assuntos ainda não definidos pela Igreja, também faz caminhar a Teologia e o Magistério.

“Por exemplo, seria errado imaginar que a Mariologia progrediu apenas devido às heresias. Elas tiveram seu papel; entretanto, este progresso deu-se, sobretudo, pela crescente piedade da Santa Igreja para com Nossa Senhora.

“E como se deu este progresso? Aparecem mais perfeições de Nossa Senhora como hipótese; alguns zelosos a demonstram; e o Papa, quando de fato a hipótese é correta, em uníssono com este movimento, pronuncia-se.

“Quando há uma estagnação das explicitações teológicas, deve-se ao fato de muitos teólogos trabalharem num meio inteiramente fechado, entregues a pensamentos de caráter puramente técnico, sem o sopro da vida espiritual a esse respeito. Assim, o progresso da Teologia pode acabar se concentrando apenas em alguns especialistas.

“O perfeito seria as coisas passarem-se de maneira a os fiéis terem verdadeira apetência pelo dogma, à semelhança do Concílio de Éfeso, quando o povo saiu às ruas clamando e dando vivas à Maternidade de Nossa Senhora.”

(Extraído de anotações de uma conferência proferida no fim dos anos 50)

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 149 (Agosto de 2010)

Luís XIV e o Sagrado Coração de Jesus

Se o “Rei-Sol” houvesse atendido à mensagem do Sagrado Coração de Jesus, transmitida através de Santa Margarida Maria Alacoque, ele teria evitado a Revolução Francesa, e a História do mundo seria outra.

 

No prefácio de um álbum sobre Versailles, Jean d’Ormesson(1) faz o seguinte comentário:

Luís XIV, precursor da Revolução Francesa

Atrás da arte e da beleza de Versailles, há toda uma sociedade e toda uma política. Trata-se de desferir o último golpe contra o feudalismo, de reduzir a meros súditos os grandes senhores. De fixar as bases da burocracia monárquica, de abafar sob o brilho das festas as tentações de fazer fronda, de independência e de revolta… Por detrás da epopeia da arte clássica e da monarquia legítima, já se faz prenunciar a revolução burguesa que explodirá no fim do século seguinte.

Quer dizer, portanto, Luís XIV foi precursor da Revolução Francesa. E é bem exatamente isso.

Luís XIV em Versailles se coloca no alto de uma curva que não faz senão subir desde os primeiros capetíngios, e desta situação elevada já se percebe, numa perspectiva longínqua, os frutos do centralismo, do rebaixamento dos grandes e o reino dos escritórios instalados por Colbert…

É o Estado moderno, democrático, nivelador e ditatorial.

Em Versailles, entretanto, a pessoa quase sagrada do rei e sua corte bastam para obturar o horizonte…

Essa é uma expressão muito interessante do d’Ormesson: “Bastam para obturar o horizonte”. Quer dizer, para tapear, para disfarçar o horizonte.

Versailles é um mundo fechado dominado pelo rei. Não somente há um só Versailles, mas Versailles é o todo da França…

Ou seja, a centralização absoluta. Tudo esplêndido, o palácio é magnífico, mas a autoridade do rei serve para disfarçar a autoridade dos burocratas e dos burgueses que vêm subindo.

Isso é muito interessante porque se percebe uma coisa curiosa: um rei que não tivesse brilhado como Luís XIV não conseguiria disfarçar tanto a Revolução que subia, de maneira tal que o brilho dele serviu para tudo quanto viria depois.

Recusar ou aceitar uma graça pode fazer girar a História

Poder-se-ia perguntar se ele, sendo sensível ao recado de Santa Margarida Maria e atendendo ao Sagrado Coração de Jesus, não teria desfeito essa trama. Então, que momento histórico extraordinário esse em que ele recebeu o recado e, talvez depois de uma curta reflexão interna, disse não. Poderia ter dito sim, e talvez estivesse a um passo de dizer sim, mas disse não. A História do mundo mudou…

Ao contrário do que dizem alguns, que tudo depende do andamento da sociedade e os indivíduos influenciam pouco, etc., vemos como um ato interno de recusa ou de aceitação da graça pode girar a História do mundo. É lúgubre!

Para quem conhece este assunto, isso constitui um véu de tristeza ao visitar Versailles, pensando que o feudalismo teve ali seus últimos estertores, que foi sepultado no meio de um mundo de festas, que os maiores nomes do feudalismo eram rebaixados a uma condição brilhantemente servil diante do rei, e que este constituía o vazio em torno de si sob o pretexto de subir sozinho. Mas ninguém sobe muito sozinho sem ter feito o vazio em torno de si. Este é um princípio que não falha.

Compreende-se que ele, com sua grandeza real, brilhante, magnífica, estava fazendo os funerais da França do “Ancien Régime”(2).

O pior foi que isso se espalhou depois para todas as cortes do mundo. Todo rei queria ser um pequeno Luís XIV. Até mesmo no século XIX, o Rei Luís II da Baviera, meio desequilibrado, ainda construiu castelos com a ideia de ser uma espécie de Luís XIV. A figura deste monarca modelou tudo, e com isso o mundo monárquico caminhou num passo só para o mundo democrático. Mas caminhou com as próprias pernas!

Se um dia nós escrevêssemos uma História do mundo, teríamos que deslocar a história da Revolução: ela não foi, sobretudo, a história dos revolucionários que se levantaram e derrubaram, mas a história dos contrarrevolucionários que estavam em cima e se jogaram para baixo. Danton, Marat, Robespierre, etc. tiveram como precursor o “Rei-Sol”.

Recado de Nosso Senhor, por meio de uma freirinha

Na mensagem a Santa Margarida Maria, o Sagrado Coração de Jesus se referia assim a Luís XIV: “Vá dizer ao meu amigo, o Rei da França…” A certa altura a Santa transmitia o seguinte recado ao Rei:

“O Sagrado Coração de Jesus não pede senão a vossa confiança em sua bondade para vos fazer experimentar a doçura e a força de seu socorro.”

A fórmula tomada assim parece dar a entender que o rei estava precisando de socorro e tinha noção disso, e que Nosso Senhor lhe dizia que se dirigisse a Ele, e não pedia outra coisa senão a confiança em seu Sagrado Coração, para que o monarca tivesse a experiência de sua bondade e da sua doçura. Como se afirmasse: “Eu não estou pedindo sacrifício, mas rogo esse passo delicado: que creiais na autenticidade da mensagem desta freirazinha, vinda de um convento de um lugarejo — que naquele tempo devia ser de mínima importância. Acreditai nisso e tudo correrá bem”.

Entretanto, que título Nosso Senhor dava para Luís XIV acreditar nisso? Prova não saiu nenhuma, não houve milagre, não aconteceu nada.

São coisas que se passaram entre Deus e Luís XIV… É possível que o monarca tenha tido antes um sonho, indicando que ele receberia uma mensagem ou qualquer coisa assim; ou que ele tenha recebido uma dessas graças interiores com as quais o Altíssimo toca as almas, por onde estas não têm dúvida nenhuma de que foi Deus Quem as tocou. Mas vejam o sacrifício para um racionalista: em certo momento Luís XIV teve que acreditar num paradoxo, numa coisa que era quase uma aberração. O maior rei da Terra receber do Sagrado Coração de Jesus um recado, por meio de uma freirinha afundada num convento ignorado, e mudar uma atitude interior diante de Nosso Senhor:  acreditar num Deus que tem pena dele… Ele, o rei onipotente, que diante do Criador, não é senão uma formiga, e que precisa ser tratado com bondade, como uma criança doente é cuidada por sua mãe, e então será socorrido! Procurem colocar diante dos olhos a figura do rei com aquele “estilão” todo, e compreenderão o que isso representava. Mas era preciso passar por aí… Confiança, sim, mas ajoelhado e de mãos postas, confiando que seria tratado com bondade. Não é um meio colega de Deus, não; é de cabeça baixa, de chapéu no chão, pedindo perdão.

Atitudes da população de Paris em face de dois lances da Revolução

Quando Nosso Senhor declarou a Luís XIV “diga ao meu amigo, o Rei da França…”, isso tinha provavelmente vários sentidos: em primeiro lugar é que o Rei da França, por função, era amigo d’Ele. Mas tinha um significado pessoal também, quer dizer, Ele é amigo do Rei da França. Luís XIV tinha vários lados por onde ele podia ser chamado um homem que queria bem a Deus. Porque a contradição de certas almas muito chamadas é esta: têm coisas boas que conservam no meio do horror, e às vezes levam longe isto, e era o caso de Luís XIV.

Ele tinha uma concubina que, ao perceber estar sendo posta de lado pelo monarca, recorreu à magia negra, mandando até celebrar missa sacrílega para conservar-se nesse estado de pecado com Luís XIV.

Ao tomar conhecimento disso por meios seguros, Luís XIV teve uma espécie de náusea e de horror dela, e a ruptura se tornou definitiva.

O rei, portanto, chegou ao auge da humilhação, ao perceber que a mulher com a qual ele tinha prevaricado era dessa categoria e capaz disso por ambição. Na ponta do caminho Luís XIV encontrava satanás, porque ele tinha recusado um outro caminho em cujo extremo estava o Sagrado Coração de Jesus. É uma coisa tremenda!

Então, vemos nele aspectos bonitos, e depois lados horrorosos que metem medo. Também é verdade que, para a vista de um monarquista, Luís XIV é um sol que ainda não acabou de se pôr. Porque quando os povos se deslumbram com a monarquia e manifestam o desejo de que ela se restaure, é pelo anseio de ver restabelecida uma grandeza da qual o sol foi ele.

Uma coisa que chama a atenção é a diferença entre a conduta da população de Paris por ocasião das guerras de religião no século XVI, e depois no fim do século XVIII e início do XIX, durante a Revolução Francesa.

No tempo das guerras de religião, a população de Paris foi o grande baluarte da Religião Católica, para impedir que Henrique IV subisse ao trono como rei oficialmente protestante. Porque o problema da guerra era este: se ele, como oficialmente protestante, poderia ser Rei da França. E os católicos sustentavam que não; e uma parte ruim da população, bem entendido, todos os protestantes também, sustentavam que podia.

Paris ofereceu uma oposição invencível ao protestante Henrique IV. Aliás, é preciso dizer, essa oposição foi muito reforçada pelas tropas que Felipe II mandou para Paris. Afinal, vendo esta ultra catolicidade da população de Paris, Henrique IV assistiu a uma Missa — se não me engano em Notre-Dame ou em algum outro lugar público — para dar a entender que ele tinha se convertido. E teve esse dito cínico: “Paris bem vale uma Missa.” Daí por diante ele fingiu estar convertido, o tempo inteiro.

Entretanto, no fim do século XVIII não foi propriamente a população de Paris, mas uns aventureiros com um contributo de uma parte dessa população que fizeram a Revolução Francesa. Mas o grosso da população parisiense assistiu semi-indiferente, intimidada e desagradada a tudo isso até o fim.

Como é que Paris mudou tão enormemente?

A recusa de um convite

Se Luís XIV tivesse aceitado o convite de Santa Margarida Maria, ele restauraria a Paris do tempo das guerras de religião; não se pode pensar numa Revolução Francesa nesse clima. Creio que essa Revolução não teria arrebentado; as águas correriam para outro lado, simplesmente.

Em sentido contrário, a Paris da recusa dele foi a da Revolução Francesa. É uma coisa tremenda!

Nessa Revolução chegaram a promover esta blasfêmia: no dia seguinte ao assassinato de Marat, os revolucionários arrancaram-lhe o coração e ergueram uma espécie de altar improvisado, onde o expuseram, tendo embaixo a seguinte frase: “Sacré coeur de Marat, priez pour nous” — sagrado coração de Marat, rogai por nós. Como a dizer “não é o Coração de Jesus que vale, é o coração de Marat”.

Ora, quando consideramos a figura do Santo Sudário, vemos ali, segundo o dito de Bossuet, “un Dieu brisé, rompu et immolé” — um Deus ferido, quebrado e imolado —, mas com que majestade!

Embora Jesus esteja deitado, tem-se a noção do que seria Ele de pé. O busto ereto, o Corpo perfeito, o peito largo e o tronco que à medida que se aproxima dos quadris se torna mais estreito; a proporção perfeita entre a cabeça, os ombros e o tronco. Um aspecto que, para mim, aumenta a majestade d’Ele é o tamanho da cabeça. Por constituir exatamente a parte mais nobre, o fato de ser, a meu ver, quase um pouco grande para o conjunto, ainda é uma excelência na majestade e na nobreza.

O nariz, apesar de ter sido deformado pelas pancadas, reflete ainda uma lógica, uma coerência que chega até o último extremo. Toda a fisionomia d’Ele é lógica, coerente e, é preciso dizer, de uma severidade extraordinária!

Aquela boca que emitiu tantos ensinamentos, disse palavras tão carinhosas a Nossa Senhora, proferiu orações tão inexprimivelmente magníficas, não é verdade que, no Santo Sudário, essa boca parece estar fazendo uma censura? Esses olhos fechados estão ou não estão fitando a cada um de nós? É uma coisa evidente! É a majestade do Redentor que, através da face do Homem-Deus, julga quem está olhando e convida ao pedido de perdão e à penitência.

Pois bem, atrás desse peito pulsou um Coração Divino que seria revelado depois aos homens como símbolo do amor e da mentalidade d’Ele, e que fez a Luís XIV o convite que nós conhecemos…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/8/1991)

 

1) Jornalista e literato francês.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

Dom Sebastião, um rei de sonhos

Ao cumprirem-se 400 anos da batalha de Alcácer‑Quibir, Dr. Plinio faz uma descrição entusiasmada do rei Dom Sebastião de Portugal e de seu papel na história da Cristandade.

 

Na história do Portugal de hoje, e de amanhã, eu insiro a história do Brasil. Quaisquer que tenham sido as incompreensões e as separações políticas, uma coisa jamais deixou de ser verdade: Portugal e Brasil têm uma só alma e constituem, no conspecto de Deus e nos desígnios da Providência, uma única e grande realidade.

Sebastião foi o esperado de Portugal. Sua fisionomia e modo de ser me agradam enormemente.

Era neto de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano Alemão, rei da Espanha, rei da Hungria, com tantos senhorios que, conforme se dizia, nos seus domínios o sol jamais se punha.

Carlos V, que depois de Carlos Magno — e, diga-se, abaixo de Carlos Magno — foi a mais alta representação do poder e da dignidade imperial no Ocidente e, portanto, na Terra, transmitiu a D. Sebastião algo pelo qual — segundo alguns críticos dos quadros deste último — ele parecia, sob certo ponto de vista, um português — e o era de alma inteira —; e de outro, um príncipe da Casa d’Áustria. Rei delicado, sem dúvida; entretanto batalhador, de quem podemos dizer ter sido, caracteristicamente, o varão que lutou contra um aspecto da primeira Revolução, contra o qual poucos combateram tão adequadamente quanto ele.

Combate ao laicismo da Renascença

A primeira Revolução foi constituída pelo protestantismo e pela Renascença, ao mesmo tempo. A Renascença caminhava orgulhosa dos inegáveis talentos dos homens suscitados na ocasião em que ela se desenvolveu. Laica, voltada para os prazeres da Terra, tisnada de neopaganismo, ela representava uma recusa da medievalidade. O protestantismo foi esmagado pelo Concílio de Trento.

Começou ele [D. Sebastião] a reinar em 1557: portanto foi rei do Brasil; estas terras viveram sob seu cetro; é nosso monarca que aqui celebramos.  O Brasil tinha sido descoberto em 1500, na época de D. Manuel, o Venturoso, renascentista característico.

Uma das coisas mais belas da vida de D. Sebastião é sua afirmação, em mais de uma ocasião, de que seu grande desejo era lutar pela dilatação da Fé, de ir à África para trabalhar, a fim de que a Fé se alastrasse por todo o Norte do continente africano e atingisse a Ásia. Porque, dizia, a finalidade do rei é, antes de tudo, servir e dilatar a Fé.

Cruzado em África

Ele queria, por certo, a grandeza de Portugal, como meio para tornar Nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente Rei deste mundo. O amor de Deus era o ponto de referência de todos os seus sentimentos.

Em duas ocasiões, ele recebeu bulas de Cruzada do Papa, outorgando-lhe a missão de fazer uma Cruzada para conquistar a África. E foi no solo africano que ele desapareceu e morreu, como cruzado. Esse cruzado tinha tal noção de seu dever de rei que, em certa ocasião, agiu da seguinte forma. Algum tempo antes de embarcar para a África, cuidaram de seu casamento. Duas princesas pediam sua mão — os costumes da época eram bem diferentes dos nossos. Uma era arquiduquesa da Áustria, Infanta da Espanha, filha de Filipe II, a outra, uma princesa francesa da Casa de Valois. D. Sebastião mandou dizer que se casaria com aquela cujo pai apoiasse a Cruzada dele na África. Assim se deve fazer! E como as respostas não foram claras, ele não se casou com nenhuma das duas. E morreu passando para a História com a gloriosa alcunha de rei virgem. Porque sua vida privada era tão casta que sua virgindade era indiscutida.

Esse mesmo rei, sabendo que os huguenotes na França estavam a ponto de conquistar o poder, no reinado de Carlos IX, da Casa de Valois, teve um lindo gesto, sem nenhum interesse de Portugal, mas apenas para expulsar os protestantes do território da filha primogênita da Igreja. Mandou ao rei da França, espontaneamente e sem contrapartida, uma grande quantidade de ouro, com a mensagem: “Fazei o que quiserdes com esse ouro, contanto que seja para vencer os huguenotes.”  É o rei apóstolo, o qual compreende que o ouro e o poder são dados ao homem para servir à Santa Igreja, à causa da dilatação do Reino de Cristo; e ele era rei em Portugal para que Cristo fosse Rei no mundo inteiro. Que bela concepção de Portugal! Como nos dá alegria de termos sido Portugal!

O povo lusitano teve o mérito extraordinário de sentir que esse príncipe possuía algo de alcandorado, transcendente; que ele era a flor e Portugal, o tronco; que todas as gerações dos reis anteriores — desde D. Afonso Henriques, a quem Cristo apareceu nos campos de Ourique, até ele — existiram em ordem a ele. Portugal teve a nobreza de reconhecer em D. Sebastião o rei de seus sonhos.

Em 1578, ele saiu às ocultas de Lisboa, porque a despedida do povo seria muito dolorosa. E embarcou para a reconquista da África. Era uma reconquista, pois partes da África já haviam pertencido a Portugal.

Lá chegando, entrou numa batalha — de Alcácer-Quibir — a qual, em condições ainda muito misteriosas, resultou numa catástrofe para as forças portuguesas, e portanto, num desastre para os exércitos cristãos; nela desaparece o rei.

Por que esse homem, que poderia ter freado a Renascença, não foi socorrido pela Providência? Que desígnios misteriosos! Que sabedoria! Cabe-nos baixar a cabeça.

Fátima, realização do sonho de Portugal

Fátima é a realização do sonho de Portugal. Os portugueses sonharam com D. Sebastião, mas veio para eles algo incomparavelmente mais alto: Nossa Senhora. Não veio o rei virgem, mas apareceu-lhes a Virgem das virgens. E assim como Portugal, no tempo da Renascença, deveria ter dado, na pessoa de D. Sebastião, uma mensagem ao mundo, a Santíssima Virgem, tomando o território português como trono, transmitiu à Humanidade aquela mensagem, que não era de saudades, mas de advertência e esperança.

Glorificamos esse rei na esperança de que surja um novo D. Sebastião, uma nova Santa Joana d’Arc, confiando que, de algum modo, eles irão reviver com glória ainda maior.

Assim, chegamos ao ponto final desta meditação sobre a vitória de Alcácer-Quibir no seu quarto centenário — vitória, eu disse bem, porque morrer assim é ser vitorioso.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/8/1978)

Vossos olhos misericordiosos a nós volvei

Com um olhar de recriminação, mas cheio de misericórdia, Nosso Senhor converteu São Pedro. Também Nossa Senhora tem olhos de misericórdia, e um olhar seu pode salvar-nos.

Este é o sentido da Salve Rainha: Olhai a miséria de nossa situação, atendei a penúria em que estamos. Tende pena de nós, Vós que sois nossa advogada.

É preciso pedirmos, invocarmos, insistirmos que estes olhos se voltem para nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/5/1965)

Nos mares do ideal

Com sua habitual maestria em tecer metáforas, Dr. Plinio imagina um hipotético marinheiro numa das naus de Cristóvão Colombo, durante uma suposta viagem do grande descobridor, desde o porto de Barcelona até as Américas. E traça vívido paralelo entre os diversos estados de espírito daquele marujo com os de uma alma chamada a seguir um grande ideal, em meio às seduções do mundo que a atraem em sentido contrário à vocação.

 

Para seguirmos a linha de exposição que nos agrada adotar, isto é, valendo-nos das metáforas, lanço mão da imagem dos navegadores que partiram da Europa na perspectiva de descobrir e conquistar novos mundos. A estes se assemelham as almas que deixam a existência quotidiana comum e trivial, para se dedicarem a uma vocação que as conduz à conquista de horizontes mais altos, mais sublimes. Infelizmente, porém, nem todas se entregam com inteira fidelidade a esse chamado.

Nesse sentido, se me fosse dado narrar a história de quantas naus tenho visto partir na mesma direção em que me dirijo, à procura dos mesmos sóis que queremos ver nascer — os sóis do Reino de Maria —, e que se extraviaram, seria uma triste e lamentável descrição…

A lassidão no meio do caminho

Muitos navegantes principiam com entusiasmo, dedicação e, repentina ou paulatinamente, mudam de estado de espírito, remam cada vez com menor força e se deixam ficar pelo caminho. Desaparecem tragados por um torvelinho ou encostam junto a um porto onde se erguem estabelecimentos de diversões censuráveis.

Quantas promessas não realizadas! Quantas pessoas desabrocharam, depois decaíram e, em circunstâncias várias, não raro admiráveis, ainda tiveram ocasiões extremas de um reflorescimento, mas não corresponderam aos desígnios da Providência, tornaram-se insignificantes e afundaram em pantanais, numa vida vergonhosa, precisamente porque lhes aconteceu algo parecido com alguns participantes das expedições dos grandes conquistadores, como a de Cristóvão Colombo, o descobridor das Américas.

Esses maus navegantes praticaram uma ação reprovável, na aparência não ofensiva a nenhum dos Mandamentos, porém contrária diretamente ao primeiro, o mais essencial, “amar a Deus sobre todas as coisas”. Partiram repletos de entusiasmo. Em certo momento, contudo, começaram a se preocupar com bagatelas e, ao cabo de algum tempo, somente com elas. Ou seja, “ensabugaram”(1).

Se houvesse história dos homens que não merecem tê-la, a das navegações estaria semeada de narrações sobre aqueles que se transviaram e se perderam pelos mares, porque se tornaram medíocres. Quando os oceanos representavam um perigo, transformavam-se em sepulturas da mediocridade. Sem dúvida, há heróis sepultados no fundo dos mares. Mas, sobretudo, muitos insignificantes e pusilânimes, que pretenderam fazer uma navegação apenas gostosa, ou em certo instante pensaram apenas no agradável da viagem, e soçobraram em meio à tempestade, ao maremoto, ou a qualquer perigo que não souberam nem quiseram enfrentar.

Colhidos nas “Barcelonas” da vida

Suponhamos que as três naus de Colombo — “Santa Maria, Pinta e Niña” — deixaram Barcelona, então um dos portos mais ricos e movimentados do Mediterrâneo, para sua grande aventura.

Em certo momento, era natural que os navegadores começassem a sentir saudades daquilo que deixaram para trás. “Natural”, aqui, não quer dizer justo. Por exemplo, na natureza degradada de Caim, concebido no pecado original, era natural que invejasse Abel. E que, movido por esse vício, quisesse matar seu irmão, como de fato o fez. Donde se compreende que, muitas vezes, a palavra “natural” é empregada num sentido que significa o contrário de legítimo, por designar algo de acordo com a natureza decaída do homem.

Também nós partimos para uma grande “navegação”, visando não a conquista de terras, mas a do Reino de Maria, a conquista das almas e dos corações para Nossa Senhora. Cada um nasceu numa pequena “Barcelona” individual, onde julgávamos haver todos os aconchegos, todas as delícias, tanto mais deleitáveis quanto mais imaginárias. Mas, como sói acontecer, o homem se apega mais às ilusões fabricadas por ele mesmo do que às coisas reais.

E quantos de nós foram colhidos nas respectivas “Barcelonas” por um anjo que, com o rebrilhar dourado e prateado de suas asas, nos indicou um rumo o qual decidimos seguir, tomados de encantamento? Se alguém nos dissesse nesse instante: “Fique aqui, porque em Barcelona há um fio de linha especial para se costurar com ele…” Nós responderíamos com um riso sonoro: “Não quero seu fio de linha! Desejo, sim, caminhar em direção àquela luz!”

Saudades da mediocridade

Porém, assim como há no homem reservas boas, provindas de sua própria natureza, que o levam a atender o convite das asas do anjo, existem também algumas ruins, as quais o induzem a permanecer na inércia. Movido por essas últimas, ele, embora não proteste, pensa: “Vou avançar em direção ao bem, mais tarde…”

E asas de anjo são caprichosas. Passam iluminadas pelo sol, para que o homem as contemple e as siga. Se as deixa escapar, quando anoitece não as encontra mais. Batalha para alcançá-las, tem a impressão de que se esqueceram dele. Nestas horas de cansaço, de abandono, em que tudo lhe parece difícil ou trivial, emergem as saudades de “Barcelona”, sussurrando-lhe: “Lembra-se da sua Barceloninha? De sua caminha? De tal petisco, de tal elogio… recorda-se do fio de linha?!”

Se não resistir, é levado a pensar: “Ó asas de anjo, não me aparecei! Não quero os grandes panoramas, mas o fio de linha!”. E o homem acaba desertando da grandiosa caminhada que havia encetado. Ou pratica uma deserção velada, à maneira dos operários que fazem uma espécie de greve — legítima em certas ocasiões — freqüente nos dias de hoje: em vez de pararem inteiramente o serviço, adotam a chamada “operação tartaruga”, trabalhando de maneira incompleta, vagarosa, o que redunda na diminuição da produção.

Às vezes, as saudades do fio de linha de “Barcelona” não leva a pessoa a abandonar a vocação, ela não deserta do caminho, mas faz a “operação tartaruga”. Anda devagar e com preguiça, seus serviços são mal feitos, ama e espera pouco. Resultado: cada vez mais envereda nas trilhas da decadência.

Em determinando momento, dá-se conta de que a esquadra está longe, desaparecendo na zona do mar banhada pelas refulgências da lua. E a pessoa ficou para trás, onde a bruma impera, os escolhos perigosos se apresentam. E, apanhada pelas saudades de “Barcelona”, diz para consigo: “É preciso andar bem devagar, do contrário, como me arranjarei?”

Perde o contato com seus irmãos de ideal, tem pensamentos semelhantes aos de alguns marinheiros de Colombo: “Já estou tão longe da Europa que não vale a pena voltar para trás. E tão distante da esquadra que não consigo acompanhá-la. Vou remando lentamente. Quando meus companheiros voltarem, perguntar-lhes-ei como se chega até a América. Serei dos medíocres, dos que chegam atrasados e se arrastam. Desertor, não!”

A superior nobreza do ideal

É muito nobre ter sido chamado para descobrir a América. Porém, muito mais elevado é o ideal de lutar pela Santa Igreja, pela conquista das almas e para instaurar o Reino de Maria.

Imaginemos que fosse dado a alguém, não descobrir um novo continente, mas, através de um gesto, fazer surgir das águas a mais bela das terras que jamais existiu. Maravilhosa como o paraíso terrestre, ordenada e santa como uma catedral, sólida como uma fortaleza, atraente como um pedaço do céu!

Tal gesto poderia ser, digamos, o oferecimento da vida feito por um mártir, uma pessoa que morre por sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo e deposita este holocausto aos pés do trono do Altíssimo, pelas mãos de Maria Santíssima, a fim que Ele derrame graças superabundantes para o nascimento de uma nova civilização cristã. Poderia ser.

Entretanto, o gesto a que aludimos é, antes, uma postura de alma. Sentimos o roçar das asas de anjo ao nosso redor, as cintilações da graça da vocação no espírito deste ou daquele irmão de ideal, ou sentimos o brilho do nosso próprio chamado se acender, compreendendo que todos nos movemos na direção desse reluzimento. Não nos preocupamos com banalidades, procuramos ver em todas as coisas aquilo que nos conduz a Deus, e nos leva a alcançar a vitória que desejamos para Ele e Nossa Senhora. Desejamos o estabelecimento de uma ordem espiritual e temporal em tudo conforme os planos divinos para a criação, especialmente tendo em vista a exaltação da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Exaltar significa elevar, colocar no alto. Queremos que a Igreja seja posta no cume da mais avultada montanha, cujas vertentes se dobrem respeitosas diante daquele píncaro onde se ergue a Esposa Mística de Cristo. No melhor de sua correspondência ao ideal, nossa alma se dirige para essa glorificação da Igreja.

Um suave e brilhante corolário da vocação

No cerne desse chamado há um aspecto mais discreto que vale salientar. Quando se é fiel à graça da vocação, juntamente com o imenso desejo de implantar o Reino de Maria, lateja no interior da alma um sentimento que equivale a uma promessa feita mais aos nossos olhos que aos ouvidos: “Verás o triunfo de Nossa Senhora. É possível que imoles toda tua vida. Mas teus olhos não se cerrarão sem teres contemplado a terra prometida, ou seja, o Reino de Maria. Poderá haver mais demora ou menos, um número maior ou menor de batalhas, pouco importa desde que esta certeza continue em teu espírito”.

Essa promessa é um suave, brilhante e forte corolário da vocação, um efeito da ação de uma asa de anjo que não mente. E quando ela passa junto a nós, coruscando e nos assinalando que devemos segui-la, é preciso atendê-la, embora encontremos muitas dificuldades. No fim do caminho encontraremos o anjo!

Evidentemente, “asa de anjo” não significa sermos objeto de visão ou revelação. Trata-se de uma ação da graça pela qual se percebe, como conseqüência do chamado, uma promessa de triunfo: “Vencerás!”

Em qualquer situação, imensidade de confiança

Cumpre considerarmos, ainda, outro aspecto no caminho de nossa vocação.

Maria Santíssima se recorda de todas as graças que pediu a Deus em nosso favor e as obteve. Recorda-se da alegria que teve ao ver o thau(2)  iluminando nossas almas. Os poetas não se cansam de elogiar a beleza das auroras. A Santíssima Virgem, dando o devido valor às coisas espirituais, por certo se encanta muito mais vendo o alvorecer de um thau numa alma do que o de qualquer sol em qualquer lindo panorama do mundo.

Pelo contrário, percebendo o fenecimento espiritual de uma pessoa, a Mãe de Deus a acompanha solícita, desejando seu reerguimento, alcançado-lhe de Deus graças particulares de fervor e entusiasmo. Por exemplo, durante uma exposição como esta, Ela obtém da misericórdia divina que essas palavras produzam bons efeitos na alma dos ouvintes, e sejam depois lembradas, repetidas, e ajudem algum tíbio — alguém que se esqueceu do tesouro posto em suas mãos e começou a sentir saudades do fio de linha de “Barcelona” — a retornar ao caminho do ardor e do entusiasmo na vocação.

Seja como for, em quaisquer situações nas quais nos encontremos, devemos rezar à Santíssima Virgem com uma imensidade de confiança: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!”

Quem recorre a Ela é sempre atendido. Alguém poderá dizer: “Mas, Dr. Plinio, pedi e tive a impressão de que as coisas pioraram”. E eu respondo: “Meu filho, felicito-o, pois muitas vezes quem começa a melhorar tem a sensação de que está piorando. Na verdade, Nossa Senhora o está provando e o fez desejar mais aquilo que lhe parece estar escapando. Ela o está atraindo para si, no momento em que, na aparência, se retira de perto de você. Esteja contente, tenha coragem e confiança. Ela o atenderá.”

Além de Maria Santíssima, foram-nos dados anjos da guarda e santos padroeiros que igualmente intercedem por nós, através das orações de Nossa Senhora. Peçamos a eles, com não menor insistência: “Assisti-nos! Ajudai-nos!”

A oração feita nas devidas condições, humilde e perseverante, nunca será recusada. E se passarmos muito tempo pedindo, aparentemente sem êxito, de repente uma aurora surge diante de nossos olhos. É o resultado esperado que se nos apresenta, multiplicado por mil.

Lembremo-nos, então, desta palavra de esperança, desta promessa, deste conselho de confiança. E em todas as ocasiões ou circunstâncias, caminhemos sempre para frente e para o alto. Queira Nossa Senhora que vejamos juntos o advento do Reino de Jesus por Maria.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 101 (Agosto de 2006)

 

1) De “sabugo”, termo usado por Dr. Plinio para indicar o estado de alma de quem feneceu na vida espiritual, estagnando-se numa piedade medíocre e insípida. Ver “Dr. Plinio” número 79.

2) Nome da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir em favor da Igreja e da implantação do Reino de Maria.

Hediondez do pecado e beleza da confissão – II

Com seu dolorosíssimo padecimento na Cruz, Jesus Cristo pagou o preço de nossos pecados e nos reabriu as portas do Céu. Infelizmente, porém, o homem continua a ofendê-Lo, a cada vez que transgride os mandamentos divinos. E a cada vez, o infinito perdão de Nosso Senhor se oferece àquele que, com firme propósito de emenda, procura a assistência de um confessor.
Acompanhemos a conclusão das considerações de Dr. Plinio sobre o Sacramento da Reconciliação, dirigidas a um auditório de jovens ouvintes.

 

A  metáfora das esculturas de moços que adquirem vida insuflada por Deus, e modelam ou deformam sua fisionomia moral conforme pratiquem a virtude ou se entreguem ao vício, ajuda-nos a compreender como o pecado ofende o Senhor. Este, desde toda a eternidade, pensou em nos criar com as maravilhas que depositou em cada um de nós. Não há homem que não seja uma obra-prima d’Ele. O mais coxo e estropiado, o mais desagradável de trato, possui um lado de alma por onde foi chamado a ter determinada perfeição moral como nenhum outro teve nem terá.

Cada homem representa mais para seu genitor do que a escultura para o artífice. O pai ama mais o filho do que o escultor a escultura. Ora, criar é superior a gerar. Assim, Deus ama mais a criatura do que o pai ama o filho, ou o artista a sua realização em pedra. Com sua visão simultânea do passado, presente e futuro, Deus acompanha os passos de todos e cada indivíduo. E não apenas os nossos movimentos externos, nossas atitudes e gestos, mas, sobretudo, o que vai em nossa alma, a todo instante. Conhece o que pensamos, queremos, sentimos, seja em relação ao bem, seja quanto ao mal. Com sua onipresença augusta, vê cada criatura como se só esta existisse.

Nosso Senhor sofreu em vista dos nossos pecados

Como consideramos naquela metáfora, o escultor se aflige com a “escultura” que decai. O mesmo, entretanto, não se pode dizer de Deus com relação ao filho que peca. O Padre Eterno, causa de sua própria felicidade, possui no Céu o gáudio completo e imperturbável que nenhuma ofensa ou acontecimento contrário aos seus desígnios, neste mundo, é capaz de incomodar. Deus não sofre.

Podemos, contudo, dizê-lo no tocante ao Homem-Deus, unido hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnado no seio puríssimo de Maria Virgem, para redimir o gênero humano. Do alto da Cruz, Jesus Cristo discerniu todos os nossos atos de virtude, tendo-se dado por bem pago. E também todos os nossos pecados, sofrendo por causa deles, com gemidos e estertores, a ponto de exclamar: Meu Pai, meu Pai, por que me abandonastes? (Mt 27, 46), e, por fim, bradar: Tudo está consumado (Jo 19, 30).

Nosso Senhor padeceu com a intenção de nos salvar, acompanhando com sua presciência divina o que haveríamos de fazer. Conforme as explicações de alguns estudiosos da Paixão, do ponto de vista médico, Jesus, como todos os condenados à crucifixão, estava com os braços estendidos e os pés sobre um pequeno apoio, tal como aparece nas imagens do Crucificado. Permanecendo muito tempo nessa posição, a pessoa começa a sentir falta de ar. Para respirar melhor, é obrigada a se levantar ou abaixar um pouco. Ora, cada vez que o Redentor fazia esses movimentos — e à medida que o ar diminuía, eram eles mais freqüentes e intensos — os pregos cravados nos sagrados pés e mãos rasgavam mais os seus músculos. De maneira que Ele fugia de uma aflição para uma dor, e de uma dor para uma aflição.

Todo esse martírio, Nosso Senhor deu por bem empregado, por amor às suas “esculturas”. Como Lhe seria fácil ordenar às legiões de anjos do seu Pai que viessem libertá-Lo daquela situação, fazendo-O descer de modo triunfante do patíbulo ao qual fora condenado! Em seguida, caminharia serenamente em direção à casa de Anás e Caifás, ao pretório de Pilatos, com tanta suavidade que seus algozes ficariam estarrecidos de pavor. Que vitória magnífica!

Porém, quis padecer aquele tormento até o fim, transpor os umbrais da morte e nos abrir as portas do Céu. Tudo para salvar cada um dos homens. Esta é a realidade.

Nobreza e elevação do arrependimento

Devemos ter presente esse sacrifício inaudito que custou nossa salvação, quando fizermos o exame de consciência e trazermos a lume os pecados que cometemos. “Que fiz eu? Infligi outros tantos tormentos Àquele que tanto me amou! Desfigurei minha alma com as faltas cometidas. Fui relapso, mole, não evitei as ocasiões de pecado, cedi às tentações, ofendi a Nosso Senhor. Não combati como deveria os meus defeitos, e estes me dominaram. Ora, o Criador me concedeu tantos dons! Depois que fui batizado, e até certo tempo de minha infância, era uma pessoa inocente. Anjos esvoaçavam em torno de mim, cantando a nova maravilha que Deus havia criado. Ou seja, eu mesmo. E agora penso em que estado se encontra minha alma! Meu Deus, pequei!”

Essa atitude caracteriza o verdadeiro arrependimento. Como a contrição é nobre, razoável, elevada! Diante de alguém assim contrito, tem-se o desejo de ajoelhar ao seu lado e pensar: “Como eu quereria que essa lepra do pecado fosse curada em sua alma. Mãe de Deus, Maria Santíssima, Vós podeis tudo com vossas súplicas irresistíveis; sois a Co-redentora do gênero humano; por vosso intermédio, recorro a Deus. Salvai este meu irmão. Arrancai-o de tal pecado e de tal vício. Estou disposto a sofrer por ele, conquanto que melhore”.

Quão belo é ver alguém que, estando num triste estado de culpa, faz seu exame de consciência para em seguida se confessar! Que maravilha há nessa atitude de alma!

Porém, às vezes o espírito humano é tão miserável que todas essas considerações não lhe bastam. Ele não se arrepende. Pensa: “O pecado é tão agradável, que voltarei a cometê-lo”. Entretanto, sem que perceba, conserva no fundo do coração um resto de amor a Deus. Um anjo sussurra-lhe ao ouvido palavras de temor, recebe uma graça e cogita: “Que louco sou eu! Transformei-me num trapo moral. Se não me arrepender e continuar a pecar, e morrer nessa situação, serei condenado ao inferno por toda a eternidade. Oh! horror! Expulso da presença de Deus para todo o sempre, porque não O amei como devia. E a qualquer momento posso morrer… Com o auxílio da graça e a proteção de Nossa Senhora, não pecarei mais!”

A necessidade do firme propósito

Além do arrependimento, é necessário o firme propósito de nunca mais ofender a Deus. A palavra “nunca” merece ser analisada com profundidade. A pessoa tem de pensar no que lhe cumpre renunciar para não voltar a cair. E estabelecer um programa de emenda que a possibilite permanecer na prática da virtude.

Digamos, por exemplo, que ela seja obrigada a fazer determinado percurso, todos os dias, para ir ao trabalho, ao colégio, etc. No caminho há uma banca de jornal onde, além dos periódicos, estão também expostas revistas imorais que constituem para ela ocasião próxima de pecado.

Ou a pessoa se sente fortalecida pela graça e nunca mais deitará olhares para a banca, ou tem de tomar a deliberação de mudar seu trajeto, para evitar de uma vez por todas aquela perigosa proximidade com o pecado: “Andarei pelo outro lado, embora seja um caminho mais longo. Sirva para me humilhar e formar minha vontade na linha do bem”.

Importa, pois, estudar o que se deve fazer para não cair novamente.

Outro exemplo: as más companhias. O pecador arrependido deve pensar: “Tal indivíduo tem sobre mim uma péssima influência e me conduz ao pecado. Se ele portasse uma doença contagiosa, eu o evitaria? Provavelmente. Ora, com seus defeitos e maldades conscientes, ele transmite a pior das doenças, que é a falta grave contra Deus, e não vou evitá-Lo? Onde está meu firme propósito de emenda?”

Como é igualmente belo ver uma pessoa que pesa essas circunstâncias e sente no seu interior a força, inspirada pela graça, de dizer: “Não mais cometerei pecado”, e cumpre seu propósito!

O reerguimento após anos de quedas

Por vezes a pessoa não tem essa força, mas deseja seriamente não cair, e sabe que, na hora da tentação, pelos rogos de Nossa Senhora, obterá a graça de resistir. Diz à Santíssima Virgem: “Vede que mulambo sou eu. Sinto-me fraco, nem sinto desejo de que me concedais o vigor de alma necessário para vencer a tentação. Porém, rezarei tudo quanto possa e farei algum esforço, minha Mãe, para caminhar em direção a Vós. No momento, estou disposto a não cometer pecado. Estarei assim amanhã? Ah, minha Mãe…! Não sei. Mas desejo querer. Tende pena de mim e obtende-me o perdão”.

Após essa prece, ela recebe um graça e persevera no bom caminho.

Há casos de pessoas que caem inúmeras vezes no pecado e, por fim, se reerguem definitivamente. Já comentamos em outras ocasiões o fato tocante narrado por Louis Veuillot — célebre escritor católico francês do século XIX — em seu livro Perfume de Roma. Conta ele que, durante sua visita à Cidade Eterna, estando junto aos muros de uma velha igreja, reparou numa pedra na qual se distinguiam certas inscrições. Leu-as, anotou-as e as publicou: “Ano tanto, tal data: perdão, meu Deus, pequei! Confessei-me no dia tal. Dia tanto: perdão, meu Deus. Pequei e mais gravemente. Confessei-me…”

Em síntese, tratava-se de um diário de quedas e ascensões sucessivas, ao longo de anos. Aos poucos aquela alma ia melhorando, adquirindo novas energias morais, e subiu lentamente a imensa montanha da vida espiritual. Em certo momento, recebeu uma graça insigne, emendou-se de modo completo, e escreveu na pedra: “Aleluia! Magnificat! Neste ano, não pequei mais!”

Impressionado, Louis Veuillot comenta que, se essa pedra estivesse salpicada com sangue de mártires vertido no Coliseu, ele não a veneraria mais do que como então se apresentava a ele, “tingida” do sangue de uma alma contrita e humilhada.

Como isso é verdade!  E esse sangue, nós o podemos verter pela prática assídua da confissão, seguida da Comunhão.

A paz restabelecida entre Criador e criatura

Após o exame de consciência, contrita, detestando cada um dos seus pecados, a pessoa diz para si mesma: “Não tive vergonha de cometê-los, não devo ter vergonha de declará-los ao sacerdote. Vou contá-los para me humilhar”.

Dirige-se ao confessionário, ajoelha-se e afirma: “Padre, andei mal! Fiz tais coisas, com tais agravantes. Perdoai-me!”

Esta é a hora verdadeiramente celeste. O ministro de Deus ergue sua mão e traça o sinal da salvação, dizendo: “Eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.

Então sucede algo que escultor algum poderia dar a uma estátua viva: a graça para não pecar mais. O pecador se inclinara diante do padre como um miserável verme, uma larva que se arrasta na terra e, de repente, torna-se borboleta e começa a voar! É a indizível beleza da alma que se ajoelha desfigurada pelo pecado e se ergue limpa e justificada. Aceitando a penitência imposta pelo sacerdote, recebe a absolvição.

Uma vez mais, estão seladas as pazes entre o pecador e Deus, entre o Criador e a criatura.

Plinio Corrêa de Oliveira

Vós sois Rainha

“Em mim, ó minha Mãe, Vós sois Rainha. Eu reconheço o vosso direito e procuro atender às vossas ordens.

Dai-me ‘lumen’ de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas ordens sejam efetivamente obedecidas por mim. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1975)

Rainha dos Apóstolos

Como Nossa Senhora exercia sua realeza sobre os Apóstolos?

A situação era, debaixo de todos os pontos de vista, delicada; uma dessas situações que a sabedoria divina, por assim dizer, se empenha em resolver com brilho especial. A Santíssima Virgem era Rainha do Céu e da Terra. Portanto, Rainha e Mãe da Santa Igreja Católica. Porém, na Igreja, Ela não possuía um cargo especial de jurisdição.

Quer dizer, a Hierarquia Católica foi, desde o primeiro instante, constituída essencialmente pelo papa, pelos bispos e pelos sacerdotes incumbidos de participar, com os bispos e sob a ordem destes, do governo da Igreja. Ora, Nossa Senhora, sendo do sexo feminino, não podia pertencer à Hierarquia. Isso criava, então, uma situação bonita e complexa: Ela era Rainha da Igreja, mas na Igreja era súdita daqueles de quem Ela era Rainha. E Maria Santíssima devia prestar, enquanto membro da Igreja discente, homenagem, reverência, obediência àqueles de quem Ela era Rainha.

Mas, de outro lado, ponham-se, por exemplo, na posição de São Pedro — o Chefe da Igreja, o Príncipe dos Apóstolos: dar ordens a Nossa Senhora, sua Rainha? Ele ordenava e Ela obedecia. Mas, pensem um pouco… Que Rainha!

Imaginemos — para termos uma pálida ideia dessa situação — que a esposa de um rei fosse, de repente, parar numa ilha que é dirigida por um governadorzinho qualquer das terras de seu marido. A função de governador é dele, a rainha reinante propriamente não governa. Mas como ele vai dispor a respeito da rainha?

E essa comparação não é inteiramente verdadeira. Porque Nossa Senhora não era Rainha apenas, mas Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe do Rei da Igreja, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela possuía uma autoridade de outra natureza, de outro tipo, sobre a Igreja Católica.

Ela obedecia a São Pedro, de uma obediência efetiva, humilde, enlevada, cheia de entusiasmo; nunca ninguém obedeceu melhor à Sagrada Hierarquia do que a Santíssima Virgem, porque, sendo a obediência à Sagrada Hierarquia uma virtude essencial, então Nossa Senhora a praticou de um modo inconcebivelmente perfeito. Mas, de outro lado, Ela possuía esse reinado sobre as almas dos Apóstolos, que Ela exercia de modo perfeito.

Quer dizer, Nossa Senhora tinha um conhecimento, antes de tudo, profundo, bem entendido, sobrenatural, da mentalidade de todos os Apóstolos, sacerdotes e discípulos de Nosso Senhor. Ela privava, conversava com eles.

O que era esse conversar? Não pensemos que consistia apenas numas consultinhas. Devia ser normalmente um trato por onde eles e Nossa Senhora discorriam; não iam eles contar novidades insípidas, banais, mas falavam das coisas de Deus e de tal maneira que havia uma comunicação de alma, propriamente uma conversa.

Naturalmente, compreendemos como seria a conversa de qualquer pessoa com Nossa Senhora. Quer dizer, a pessoa balbucia alguma coisa e Ela se põe a falar. O resto é enlevo, veneração, admiração, é absorção e tudo quanto podemos imaginar.

Mas eles também diziam algo. Não eram solilóquios em que apenas Ela falava. Eles conversavam. E, como boa Mãe, Maria Santíssima gostava de ouvir o que eles tinham a dizer. E Ela sabia qual a missão de cada um na Igreja, porque conhecia o passado, o presente e o futuro; na economia da Providência, Nossa Senhora conhecia não só a função que eles tinham, ou teriam, mas o que Deus queria que fizessem: de um, que convertesse um povo; de outro, que morresse lapidado; de outro, que construísse uma igreja; de outro, que transpusesse o mar e fosse fundar uma cristandade num ponto remoto.

Conhecendo tudo isso, em todo trato que tinha com eles, Ela ia dispondo a alma de cada um de acordo com os desígnios de Deus. Daí decorria um convívio lindíssimo, maravilhoso, que os Apóstolos e os que se aproximavam d’Ela sabiam notar e respeitar no mais alto grau.

Vemos assim o efeito de Pentecostes. Os Apóstolos, que tinham tratado com Nosso Senhor, foram tão frios com o Redentor na hora extrema; dir-se-ia que não entenderam Nosso Senhor. Mas depois de terem recebido o Espírito Santo, a vista deles ficou inteiramente clara; conhecendo a Mãe de Deus, insondavelmente perfeita, mas infinitamente inferior a Nosso Senhor Jesus Cristo, eles, entretanto, sabiam admirá-La, dar-Lhe o apreço e a veneração que deviam.

Assim, na Igreja nascente Ela irradiava, para um círculo inicial de pessoas, toda essa beleza. Houve, então, um altíssimo grau de devoção a Nossa Senhora. E a primeira expansão da Igreja foi intensamente iluminada por este fogo maravilhoso: a presença e a ação de Maria Santíssima.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 31/5/1972)