Verdadeira cultura e santidade

Tudo quanto o homem admira e ama, de algum modo penetra nele. Por isso, embora um santo possa ser, sob muitos aspectos, menos culto do que um indivíduo não santo, a santidade é a seiva no tronco da verdadeira cultura.

 

A palavra “cultura” tem um sentido distinto daquele de palavras afins, tais como “inteligência”, “instrução”, “educação” e “civilização”. Empregarei o termo “cultura” não como este ou aquele especialista pode utilizá-lo, mas conforme ele é usado na linguagem portuguesa-brasileira e na dos povos ibero-americanos, tanto quanto eu possa conhecer.

A inteligência, como é fácil notar, é a capacidade do homem de penetrar, de tomar conhecimento da realidade. Ela se distingue da cultura porque a inteligência é uma qualidade nativa, e a cultura, enquanto tal, não o é.

Informação, instrução, erudição e cultura

A instrução é o conjunto de conhecimentos que o homem adquire mediante a inteligência. Quer dizer, não é uma pura memória, mas uma memória pela qual as coisas estão explicadas e entendidas. Não é, portanto, a memória de um bicho, nem a memória de uma criança.

A memória entendida, explicada, das coisas se atinge por meio do estudo e da reflexão; ou seja, por meio de um esforço intelectual que não é inteiramente o comum, feito pelo homem a qualquer hora do dia. É por causa disso que certas informações estão excluídas do conceito de instrução. Por exemplo, conhecer o horário dos trens, dos ônibus, não é instrução, mas sim uma informação corrente; não é uma informação sobre algo que a pessoa adquire por uma concentração, por um maior esforço do pensamento.

Erudição é o ápice da instrução, mas não é ainda propriamente a cultura. Chamamos de erudito aquele que tem um notável cabedal de conhecimentos adquiridos com um esforço intelectual árduo. Quer dizer, a instrução arduamente adquirida, de alta categoria e copiosa, se chama erudição.

A cultura está para o homem como a agricultura para a terra. Se quiséssemos fazer uma espécie de paralelismo implicante, poderíamos falar de “antropocultura”, ou de “homocultura”, quer dizer o cultivo do homem. O que é então cultura? É o aprimoramento que a alma humana recebe pelo fato de, não só ter uma grande instrução, mas degustar devidamente a sua instrução. De maneira que ela se enobrece, se eleva com a sua própria instrução.

Dou um exemplo. Na Europa há excelentes museus com excelentes guias. Através destes últimos pode-se compreender o que é uma instrução sem cultura. Em relação aos objetos de um museu, eles são notavelmente instruídos e transmitem o que sabem como verdadeiros papagaios. Um guia, por exemplo, se coloca diante de um quadro e diz: “Este quadro é de El Grecco; foi pintado em tal época e se destaca por tal tonalidade; no fundo está tal personagem; olhem tal jogo de luz…” Instruído ele é, mas não tem o mínimo de cultura. Quer dizer, a sua personalidade não assimilou nada daquilo; ele não teve uma admiração por aquelas coisas, não se deixou penetrar nem embeber por elas.

O erudito, muitas vezes, não é um homem culto; é um indivíduo que adquire uma grande soma de conhecimentos com um esforço árduo, mas não inalou aquilo, não assimilou. Ele não admirou, não amou e não se modelou de acordo com aquilo. O resultado é que a pessoa dele teve um aprimoramento apenas de superfície, meramente intelectivo, mas seu interior não é de um homem culto.

Aprimoramento do homem considerado como um todo

Então o que vem a ser a cultura? A cultura resulta do princípio de que tudo quanto o homem admira e ama, de algum modo penetra nele e se incorpora a ele. Aquilo que o homem rejeita faz crescer nele o contrário do que rejeitou. Se, por exemplo, eu entro num quarto imundo e tenho uma rejeição proporcionada àquela sujeira, o meu senso de limpeza cresceu. Se passando pela Rua Pará ou Avenida Angélica(1) percebo uma coisa imoral e a recuso, a minha pureza aumentou. Quer dizer, a rejeição do mal, do erro, do que não deve ser visto, aumenta em mim o contrário daquilo que vi.

Chegamos então à conclusão de que a cultura é o aprimoramento do homem considerado como um todo; ela é fruto da instrução, mas não se identifica com a instrução, porque o indivíduo pode ser muito instruído e nem um pouco culto.

Creio que as ciências naturais, como são estudadas habitualmente hoje em dia, proporcionam uma instrução sem cultura. Pois a pessoa que as estuda não é levada, senão raríssimas vezes, a ter uma admiração filosófica ou artística pelo objeto de seu estudo. De maneira que é um puro jogo de dados, o qual não traz um aprimoramento. É preciso outra posição diante das ciências naturais para que elas nos sejam enriquecedoras, porque, à força de estudar sem admiração e amor, a capacidade de admirar e amar se embota. Então a capacidade de ser culto desaparece. É uma banalização.

Estudo das ciências naturais e plenitude humana

Podemos agora perguntar de que natureza é essa penetração que a coisa admirada ou amada produz no indivíduo.

Na ordem cronológica, ela começa por um ato de inteligência; é antes de tudo uma flexibilização, um adestramento da inteligência.

Pode haver formas de instrução que são anticulturais. Porque se a instrução consiste apenas em enfileirar raciocínios, a alma desenvolve apenas um dos aspectos de sua personalidade. Ela fica capaz do raciocínio quadrado(2), que às vezes contém a verdade inteira, mas outras vezes até se afasta da verdade. A verdadeira instrução deve exercer na alma todas as faculdades que puder.

Por causa disso eu fico muito encantado quando vejo, ainda hoje, a existência de grandes sábios — às vezes especialistas em ciências naturais ou outras matérias — que têm um grande interesse por um ramo qualquer da Literatura, da Arte, da Filosofia ou da História; isto prova uma plenitude humana: além de serem capazes daquilo que cuidam, o seu espírito os remeteu em outras direções.

Acho bonito que um homem seja, digamos, especialista em formiga e tenha ao mesmo tempo interesse por Homero, por exemplo. Ele não ficou do tamanho de uma formiga, mas tem uma dimensão humana; possui uma cultura mais ampla do que a pura especialização que adquiriu.

Essa é exatamente uma das recriminações que o verdadeiro católico deve fazer ao estudo das ciências naturais como geralmente é feito hoje em dia.

Por exemplo, uma das faculdades intelectuais mais próprias do espírito católico, e que o espírito tecnicista poda, é a capacidade de distinguir. São Tomás de Aquino dizia que distinguir é pensar. Tomar coisas análogas, distingui-las uma da outra e depois ver por onde elas são semelhantes ou diferentes, exige sutileza, ponderação, indica uma plenitude do espírito humano; e quem é capaz de fazer isto é uma pessoa culta.

Plenitude dos modos de operar da inteligência e enobrecimento da vontade

Assim, a cultura não é unicamente uma plenitude puramente filosófica ou técnica, mas sim uma coisa muito mais vasta do que isso: a plenitude de todos os modos de operar da inteligência humana.

Em segundo lugar, a cultura é um enobrecimento do fortalecimento da vontade. Esse enobrecimento é algo de imponderável. Até agora não consegui uma definição que me satisfizesse inteiramente para a palavra “nobre”. O que é uma vontade nobre? Mais importante do que ser forte é ser nobre. Há alguns sintomas que caracterizam a vontade nobre. Um deles é ser mais capaz de querer, de ser ávida de se apossar mais dos bens do espírito do que dos bens da matéria. Por exemplo, um homem que tenha mais vontade de ser virtuoso do que rico revela nobreza de vontade. Porque esta vontade quer uma coisa mais nobre.

A virtude é intrinsecamente um bem da alma. E sendo um bem da alma, é mais nobre do que um bem para o corpo. Então um homem que quer as coisas do espírito tem uma vontade mais nobre.

Mostraram-me uma estrofe de uma poesia de Molière(3), a respeito do covarde. Entre outras coisas, o covarde dizia: “Eu prefiro viver dois anos desta vida a mil anos de História, de maneira que me deixem fugir”.

Essa é a vontade sem nobreza. Porque, colocado entre a realização de um grande feito, que a alma magnânima quer, e a prática de uma série de pequenas ações, ele prefere as coisinhas. Porque ele prefere a vida do corpo; a vida da alma, a grandeza das ações, não lhe dizem nada.

O próprio da cultura — fazendo-nos apetecer as coisas do espírito, e dentre elas as mais altas, portanto as maravilhosas, as metafísicas, as sobrenaturais, o próprio Deus — é dar à nossa alma uma nobreza cristã, uma nobreza católica, e nos fazer santos.

Ordenação da sensibilidade

A cultura tem uma repercussão na sensibilidade. Pelo fato de o homem estudar, pensar muito e querer coisas nobres, há uma repercussão destas coisas na sua sensibilidade. Esta deixa de apetecer as coisas puramente materiais e começa a apetecer as espirituais; e depois a apetecer as sobrenaturais e divinas. Quer dizer, a sensibilidade se eleva.

Por exemplo, ela perde qualquer coisa de grossamente natural, material, que ela tem nativamente, em virtude de nossa condição animal e do pecado original. E sua sensibilidade não só se eleva, mas fica então em condição de ser combativa. Para ser combativa, supõe-se que se desenvolva o que nela é ordenado. Somente desenvolvendo as forças de ordem, dentro da sensibilidade, é que se podem toldar os elementos de desordem. Temos assim uma noção de cultura que toma o homem inteiro.

Agora, me restaria perguntar que relação há entre esse conceito de cultura e a santidade. Evidentemente, a cultura perfeita equivale à santidade. Esta é a mais alta forma de cultura, embora — e aqui existem matizes que se devem conservar — um santo possa ser, sob muitos aspectos, menos culto do que um indivíduo que não é santo; e até do que uma pessoa que certamente vai para o inferno.

Grandes reflexões sobre fatos comuns da vida

Perceberemos melhor esta relação entre cultura e santidade se considerarmos um outro ponto da questão, que é o seguinte: a cultura é necessariamente filha da instrução? Um analfabeto pode ser mais culto do que um alfabetizado?

Considerem, por exemplo, o tapete hindu que está na Sala da Tradição(4). Este tapete foi provavelmente feito por um analfabeto. Este analfabeto era um homem menos culto do que um eleitor alfabetizado, que saiba desenhar seu nome ou até ler um jornal? Que relação há nesse caso entre instrução e cultura?

Há certos povos onde o ambiente de muito pensamento, numa atmosfera de muita orientação da atenção para as coisas do espírito, leva o indivíduo a refletir notavelmente sobre coisas que estão ao alcance de todo mundo. E a deduzir, a partir delas, consequências muito altas, de ordem metafísica, religiosa, e também estética, ou de qualquer outra ordem.

Não está absolutamente provado que Homero soubesse ler e escrever. Há quem sustente até que Homero não existiu — eu acho que existiu —, e que a Ilíada foi um conjunto de canções populares compostas por analfabetos da Grécia primitiva, reunidas depois no período da literatura clássica num só todo. Seja como for, a pessoa que compôs a Ilíada, por exemplo, teve uma alta cultura ao lado de nenhuma instrução. Quer dizer, soube tirar grandes reflexões, grandes consequências de realidades que estão ao alcance de todo mundo. E na linguagem corrente, a meu ver, erroneamente, isto não é considerado instrução.

Segundo nos mostra o Evangelho, um espírito muito elevado, apetente das grandes coisas, pode chegar a uma grande cultura sem ter tido propriamente o que a linguagem corrente chama de instrução. Todas as parábolas do Evangelho são altíssimas conclusões tiradas dos fatos comuns da vida: um filho que foge e gasta a herança, fica reduzido à mendicância, e que volta para a casa do pai; o lírio do campo que não tece, não fia, cujas pétalas formam um tecido mais bonito que o manto de qualquer rei. Estas são observações comuns da vida do homem, há mais de mil anos, a partir das quais Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Sabedoria eterna e encarnada, soube tirar altíssimas consequências.

Santa Teresinha e Viollet-le-Duc

Então, estamos obrigados a reconhecer o seguinte: o conceito de instrução como é hoje apresentado — segundo o qual é necessário saber ler e ter um estudo sistemático num estabelecimento — é pobre. Pois um homem pode adquirir uma grande instrução sem ler nem escrever, pela consideração elevada de coisas puramente naturais e comuns.

Nesse sentido, convém lembrar Santa Teresinha do Menino Jesus, que tinha uma instrução como as moças então possuíam, e conhecia muito bem a Doutrina Católica. Ela fazia reflexões de um grande alcance, capaz de deter a atenção de teólogos de fôlego. Mais ainda, de abrir, de traçar um caminho novo para as almas e mostrar que este caminho tem uma cidadania no firmamento da vida espiritual. É uma literatura intelectual muito delicada, sendo que a instrução dela certamente não estava na proporção do que tudo isto significa. Já em pequena, ela era uma pessoa que tinha muito enlevo pelas coisas da natureza, enquanto conduzindo a Deus.

Somos então levados a perguntar se o verdadeiro nervo da instrução e da cultura não está exatamente nesta apetência que a alma deve ter das coisas elevadas que conduzem a Deus. Com esta apetência, a pessoa, mesmo não estudando, acaba, em certo sentido da palavra, se cultivando. Se estudar, ela se cultiva também, porque será capaz de uma análise profunda e elevada das informações que a instrução lhe dá.

Houve pessoas não santas que foram mais cultas do que Santa Teresinha?

Sem dúvida! Por exemplo, Viollet-le-Duc(5), um grande especialista em arte gótica, era um homem que pegou algo do espírito da arte gótica, do contrário não poderia ter feito a obra que realizou. Entretanto, possuindo um senso artístico provavelmente mais afinado do que Santa Teresinha, Viollet-le-Duc não viu no gótico o que Santa Teresinha veria, desde que a sua atenção se pusesse nisso. Porque o mais fundo, o mais elevado, não puramente estético, mas que estava além da estética, isso Santa Teresinha via, e ele, mesmo sendo artista, não via. Quer dizer, em um sentido minor da palavra, Viollet-de-Duc foi mais culto do que Santa Teresinha; no sentido major da palavra, não.

Cultura católica

A santidade é a seiva no tronco da verdadeira cultura. As outras formas de cultura são apenas manifestações de tal ou qual elevação de alma, mas que não chegam ao fundo como a santidade chega. Embora mereçam o nome de cultura, não são falsas culturas, mas cultura minor.

A consequência disto é que a única cultura, no sentido pleno da palavra, é a cultura católica. É evidente. A santidade é o que mais leva os homens à cultura, embora não se possa afirmar — seria um pouco simplório — que basta ser santo para ter uma grande cultura. São José de Cupertino(6), por exemplo, não daria origem, por ele mesmo, a uma grande cultura. Mas uma sociedade que tem santos é capaz de cultivar de modo incomparável seus próprios dotes naturais como ela nunca cultivaria não possuindo santos.   v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1971)
Revista Dr Plinio 161 (Agosto de 2011)

 

1) Situadas em São Paulo, no bairro Higienópolis.

2) Adjetivo empregado por Dr. Plinio, proveniente do termo “quadratice” com o qual ele significava uma inveterada estreiteza de vistas e, em consequência, de iniciativa (cf. “Dr. Plinio” nº 103).

3) Um dos grandes escritores franceses do Grand Siècle das artes e letras.

4) Sala existente na então Sede principal do Movimento fundado por Dr. Plinio

5) Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814 – 1879), francês, arquiteto famoso por suas restaurações de edifícios medievais.

6) São José de Cupertino, Presbítero, séc. XVII (cf. “Dr. Plinio” nº 150).

Santa Monica

Nas “Confissões” de Santo Agostinho há um trecho especialmente magnífico: é chamado o “Êxtase de Óstia” ou o “Colóquio de Óstia”. Hoje em dia se diria o “diálogo de Óstia”.

O episódio é o seguinte: a mãe de Santo Agostinho, Santa Mônica (331–387), passou uns trinta anos ou mais chorando a pedir a Deus a conversão de seu filho. Parecia que quanto mais ela rezava, esta conversão se tornava mais longínqua. Até que, de desatino em desatino, Santo Agostinho acabou por comer as bolotas dos porcos e começou um processo de conversão que fez dele o grande Doutor da Igreja.

Santo Agostinho, já convertido, e Santa Mônica resolveram voltar para a África do Norte, naquele tempo inteiramente romana, e mais especificamente para a cidade de Cartago, de onde eram naturais, para ali residirem. E assim percorreram uma certa parte da Itália para tomar um navio em Óstia, que é um porto pequeno perto de Roma, mas que tinha naquele tempo uma certa importância. De lá iam seguir para a África.

Encontravam-se então numa hospedaria de Óstia, encostados junto a uma janela e começaram a conversar a respeito de Deus e das coisas do Céu, quando os dois juntos tiveram um êxtase.

Santo Agostinho relata este colóquio extraordinário e é um dos trechos mais famosos das “Confissões”. Poucos dias depois Santa Mônica morria, ainda estando na cidade de Óstia. Sua missão na terra estava cumprida e Nosso Senhor a chamou ao Céu para gozar do prêmio que merecia.

Então, o último lance de sua vida foi exatamente a alegria de ter na terra com o filho este colóquio, que era um prenúncio, um antegozo da visão beatífica. Tenho a impressão que qualquer um de nós que passasse por Óstia, gostaria de ver se ainda existe essa hospedagem.

Resolvi ler aqui a narração desse colóquio, porque é um página célebre e abre os nossos horizontes para os grandes portentos na perspectiva da hagiografia e da doutrina católica. O trecho é extraído diretamente das “Confissões”:

“Próximo já do dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos…”

Estas interpelações diretas de Santo Agostinho a Deus são magníficas. Os senhores deveriam ler os “Solilóquios” de Santo Agostinho, que há em nossa biblioteca e que são qualquer coisa de absolutamente estupendo.

“…sucedeu, segundo creio, por disposição de Vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para nos embarcarmos.

“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e dilatando-nos para o futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que ‘nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou’.”

Vejam que beleza: dois santos conversando sobre qual seria a vida eterna dos santos, e a alegria de Santa Mônica em sentir aquele filho perdido que agora estava incendiado de desejos de contemplar o Céu. É uma verdadeira maravilha!

“Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da nossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”

Faço notar aos senhores a maravilha da expressão “os lábios do coração”… quer dizer, aquilo por onde o coração bebe, por onde o coração sorve, estavam abertos para receber de Deus aquilo que nesta vida terrena se pode receber a respeito das alegrias do Céu.

“Encaminhamos a conversa até a conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem mesmo que delas se faça menção. Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra.”

É uma verdadeira procura do absoluto. Eles começaram a considerar: primeiro as coisas da terra, que lisonjeiam os sentidos, porque estavam no Império Romano decadente, em que havia fortunas fabulosas e pessoas que tinham luxo para deleitar os sentidos de que os Srs. não têm ideia. Então, o primeiro confronto é da felicidade celeste para a felicidade dos homens, que no tempo do Império, eram tidos como felizes. Resposta: isto não é nada. Então, começam a perguntar: como é então (a felicidade verdadeira)? E começam a percorrer os céus, a imaginar com os dados do céu material e visível, como seria o paraíso celeste material, mas invisível, e como seria a glória da visão beatífica que neste paraíso se goza. É este o esquema da conversa deles. Então continua:

“Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as Vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por Quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela ‘ter sido’, nem ‘haver de ser’, pois simplesmente ‘é’, por ser eterna.”

Ou seja, depois de ter considerado todas as coisas materiais, começaram então a considerar a alma como elemento para se ter algo da ideia da beleza, da perfeição de Deus. E depois de considerar a alma, chegaram à conclusão de que no ápice de tudo isto figurava a Sabedoria Eterna e Incriada. Essa Sabedoria que é eterna, que não tem passado, nem presente e nem futuro. Foi nessa consideração sapiencial, suprema, que os espíritos deles se detiveram.

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria…”

Quer dizer, visando conhecer a Deus enquanto Sabedoria, enquanto fim e explicação de todas as coisas.

“…atingimo-la momentaneamente num vislumbre completo do nosso coração.”

É o êxtase. Enquanto conversavam a respeito dessas coisas, conduzidos pela graça de Deus, em certo momento a Sabedoria se revelou a eles, e tiveram um fenômeno místico por onde viram Deus.

Os senhores vêem que é algo muito natural: são dois santos que tem uma conversa que é uma oração; esta vai subindo de voo, de ponto em ponto, e quando chega ao seu ápice, então lhes aparece Deus Nosso Senhor, mas aparece de maneira a fazê-los conhecer enquanto Sabedoria Eterna. E tudo isto com tanta simplicidade,   numa janela de uma hospedaria de Óstia…

“Suspiramos e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”

Quer dizer, o que havia de melhor neles ficou na visão, não voltou para a terra.

“…Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao Vosso Verbo, que subsiste por si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando?”

Aqui está uma insinuação de que Deus lhes disse uma palavra. Naturalmente é o Verbo. E que isto que foi dito por Deus sobre Sua própria Sabedoria, foi qualquer coisa tal que o que continuassem a conversar seria um balbucio. A visão cessou e as palavras deles eram umas coisas vazias à vista do que Deus havia revelado de Si mesmo.

“Dizíamos pois: suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu…”

É a doutrina dos quatro elementos.

“Suponhamos que ela guarde silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.

“Imaginemos que nessa mesma alma existe o silêncio completo, porque se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: ‘Não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos O que permanece eternamente’. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Ele sozinho fala, não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de Anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.

“Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabávamos de experimentar, atingindo num voo de pensamento, a Eterna Sabedoria que permanece imutável sobre todos os seres.”

Quer dizer, ele imagina uma alma que não cogita de nada mais criado, que consegue abstrair de tudo e que de repente ouve uma palavra de Deus que diz alguma coisa a respeito de Si próprio.

“Se esta contemplação continuasse e se todas as outras visões de ordem muito diferente cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a absorvesse, de modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo – a visão beatifica – pelo qual suspiramos, não seria isto a realização do “entra no gozo do teu Senhor”? E quando sucederá isto? Será quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados?”

Ele afirma então que se uma alma pudesse ficar eternamente apenas naquele vislumbre, já teria um prazer paradisíaco inefável, extraordinário.

“Ainda que isto, dizíamos, não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo, bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis, naquele dia quando assim conversávamos. Minha mãe acrescentou ainda: ‘Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem porque ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar um pouco a minha vida: para ver-te cristão e católico, antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça super abundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço, eu, pois, aqui?’”

Dias depois ela morreu.

Santa Mônica, nesta visão, teve o prenúncio de sua própria morte, compreendeu que não tinha nada mais para fazer. Agora os senhores considerem a diferença de uma grande santa com uma mãe piegas (excessivamente sentimental). Esta última diria: “Agora que meu filho está convertido, começou para mim a vida! Eu vou ouvir os sermões dele, vou ver suas obras, vou viver com ele uma vida gostosinha na casa episcopal, admirando a virtude e o talento daquele que eu gerei para a vida natural e que eu arranquei, pelas minhas orações, à morte eterna, para dar um grande santo. Agora é que está bom…”

Santa Mônica não queria ver seu filho para nada disso. Ela o queria para Deus. Quando sentiu que Santo Agostinho estava nas mãos de Deus, não quis perder  tempo vendo-o servir a Deus. Alguns dias depois ela expirou.

É uma grande santa e seu último grande lance da vida narrado por um grande santo.

Aí vemos um pouco o que é a vida de um santo, quando não é descrita por um “heresia branca”. Os senhores vêem quantas coisas há de comum com essa narração – e das quais já tinha me esquecido inteiramente – com as conferências sobre a “Procura do Absoluto” e temas conexos que temos feito aqui ultimamente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Santo do Dia, 31 de agosto de 1965)

 

A nostalgia de uma Inglaterra católica

No dia 28 de agosto de 1952, Dr. Plinio desembarcava em Londres, na única vez  que esteve em terras inglesas. Depois, em diversas ocasiões, compartilhou com seus amigos recordações dessa  viagem, na qual ele discerniu uma Inglaterra mítica, que esperava voltasse um dia ao redil da verdadeira Igreja.

 

Quando estive em Londres, vi, no tapa-vento — portanto, no lado de fora — de várias igrejas anglicanas, fotografias do Papa. Entre eles há sempre uma tendência para estabelecer um “tertium genus” entre protestantismo e catolicismo, como uma necessidade de toda uma família de almas. A Igreja Anglicana, de Henrique VIII até hoje, ficou dividida em duas tendências, que representam duas famílias espirituais. Uma delas é nostálgica do catolicismo e sempre quer voltar a ele.

É curioso que eles não se reputam protestantes, mas se dizem católicos anglicanos. Eu sempre tivera dificuldades em relação à Inglaterra, a tal ponto que realmente só vim a compreendê-la melhor quando já era bem maduro, ao visitar Londres. Ao chegar ali, soube que o país teve muitos mártires. Pensei: “Sim senhor! aqui há valores que eu não conhecia”.

Levaram-me para ver, numa esquina muito comum de um bairrozinho de terceira ordem de Londres, um local em que havia um quadrado de madeira branca, posto em torno de um certo ponto com metal cravado na pedra. Quando vi, gravado nessa placa, a informação de que ali morreram tantos mártires da Igreja Católica na perseguição anglicana de tal época assim, compreendi o que era tudo aquilo, e comecei a ver uma outra Inglaterra.

Na Abadia de Westminster

Lembro-me da surpresa que tive visitando a, infelizmente hoje protestante, Abadia de Westminster. Entrei de repente numa espécie de capelinha lateral, toda ela como uma imensa palmeira, tendo ao centro uma coluna cujo capitel parecia girar e dele saírem mil nervuras que se agarram no teto. Embaixo havia jazigos de reis e rainhas orantes, dormindo seu sono eterno. Achei isso maravilhoso, uma das mais ousadas concepções da arte gótica.

O que isso me lembrou? As tiradas de Santo Agostinho, sobretudo nas Confissões, “elancés”, belas, ousadas, elegantes, dignas, superiores como aquela capela. A alma dele já tendia, pois, para a arte gótica. É um exemplo de onde ela nasceu: nos primeiros que começaram a originar essa sede de beleza que depois resultou numa abadia como aquela. O gótico que floresceu foi criado gradualmente, do fundo para cima, como os bancos de coral que vão sendo formados ao longo dos tempos por tais e quais animais até aflorarem na superfície do mar e constituir ilhas. Assim também o banco de beleza foi se formando do ponto inicial até o momento em que aflorou o estilo gótico, a arte maravilhosa.

O Big Ben e o amor à pontualidade inglesa

Emocionei-me ao ver o Big Ben. Uma torre lindíssima, além de ser o próprio símbolo da pontualidade britânica, ela mesma símbolo de uma porção de qualidades da alma inglesa. De tal maneira que, se um dia derrubassem o Big Ben, a Inglaterra se desfaria. A Inglaterra inglesa — naquilo que ela se diferencia dos outros povos, com seu gosto da exatidão, da precisão, da coisa bem-disposta, bem organizada  — deixaria de ser a Inglaterra.

A meu ver, no gênero dela é uma torre perfeita à qual nada há que acrescentar, nada que tirar, e que paira acima da contingência da vida humana. Sinto-me apoiado no meu desejo de  continuidade, ou seja, sinto-me apoiado nas fontes de minha própria fortaleza, sabendo que a torre do Big-Ben está de pé. Se eu soubesse que ela foi arrasada, ficaria indignado. Tenho ideia de que Ela representa tão bem a estabilidade, e faz tanto bem à alma do homem contemplar essa qualidade de vez em quando, que o senso da estabilidade encontra uma certa nutrição em saber que  a torre do Big Ben está sempre de pé e não mudará.

Lembro-me de que comprei um jornal a esmo e vi uma fotografia da “Place de l’Étoile” — um dos lugares mais civilizados da Terra — em Paris, onde está o Arco do Triunfo, num dia de trânsito  engarrafado. Uma fotografia tirada com toda a objetividade, bem cheia de fleuma, e o cabeçalho em cima dizia o seguinte: “A África começa na França”. Eu achei a tese muito singular. Como é que a  África começa no litoral francês? No subtítulo vinha: “Vejam a desordem do trânsito, na ‘Place de l’Étoile’. Isso indica que a ordem britânica não vigora na França. Já é a África!” Achei muito pitoresco, porque era evidentemente um exagero intencional. Mas ilustra como a exatidão do trânsito e outras coisas estão na alma inglesa. O Big Ben é o símbolo de tudo isso.

Florzinhas com gosto de alfazema

Fui convidado pelo diretor do jornal católico “The Tablet” — naquele tempo, um dos maiores jornais católicos do mundo — para jantar no “Catholic Club”.

Ele perguntou-me de que queria servir-me. Escolhi, não propriamente um “beef”, mas um assado. Desejava saber ele o que eu queria para acompanhar esse assado, e sugeriu-me uma hortaliça. Não entendi a sugestão, mas disse: “Quero!” Pensei que fossem batatas ou similares… De súbito, vejo chegar um tufo de umas ervinhas fininhas, de um verde muito tenro e delicado, na ponta de cada qual surgia uma florzinha branca. Percebi que era uma ervinha com um gosto muito especial, e comê-la era quase maltratá-la, mas certamente uma delícia. Meti a faca sem dó nem piedade naquelas ervinhas, e as degluti.

Tinham um gosto de alfazema delicioso. Era um verdadeiro petisco, e nunca me esqueci delas. Essa ervinha muito delicada tornava mais saboroso o avanço, um tanto brutal, de um homem de muito apetite em cima de um pedaço de carne. Era um traço de suavidade. A sua fragilidade tornava-a preciosa. Quanta sabedoria e maravilha na desigualdade!

O simbolismo do “five o’clock tea”

Estive presente a um “five o’clock tea’ — o chá das cinco da tarde — num hotel médio onde eu estava hospedado. Em certo momento começou a chegar gente, a chegar gente… Perguntei a um brasileiro que estava comigo: “É uma recepção?” Ele respondeu: “Você está esquecido?  É o ‘five o’clock tea’”. Então deitei um olho em cima para ver como é que transcorria aquilo. Nessa hora tudo se interrompe, todos vão para o chá com aquela pontualidade que supõe um estado de espírito, uma mentalidade que — metafisicamente falando — é de uma cor de cristal.

O chá é de preferência ligeiramente ácido, um tanto forte, num momento em que mais se bebe do que se come. Come-se apenas para a bebida não fazer mal. Mas não é hora de se alimentar truculentamente com gordos sanduíches de pão preto com língua e mostarda, por exemplo, mas com uns biscoitinhos “plutôt” secos. O “five o’clock tea” é animado por certas idéias levadas a uma unilateralidade exagerada, mas que constituiriam qualidades do povo inglês se ele fosse católico. Por exemplo, a ideia de saborear uma bebida, comendo pouco, dá um certo primado do espírito.

Olhem que sou levado ao contrário por minha natureza, mas de bom grado reconheço que isso representa um certo primado do espírito. Depois, não ser álcool, mas sim uma bebida que simboliza a inocência do não-alcoólico, e cuja preparação permite pôr matizes de toda ordem, de modo a se poder fazer uma degustação discreta desses matizes, eles mesmos discretos…

E a conversa é num meio tom em que as pessoas comunicam meias palavras, e comunicam sensações tamisadas ¹ num ambiente silencioso no qual uma gargalhadona, depois de uma piada, seria considerada uma violação.

Há nisso algumas coisas que têm sua morada, seu habitat, no mundo do cristal.

Quando numa nação inteira, numa hora certa, blocos de pessoas tomam essa atitude e orientam seu espírito de maneira a refletir esse lúmen, passa-se algo na ordem de uma realidade superior e mais profunda.

No fundo, dá-se que as perfeições divinas se espelham nos homens. E essas perfeições, na medida em que os homens as refletem, atraem graças de Deus. Se todos os homens praticassem as perfeições que lhe são próprias, o Céu se rejubilaria, porque a vida dos Anjos é essa. Os Anjos são o cristalino puro, e eles têm uma densidade de ser e um modo de ser pelo qual irradiam tudo isso.

Esse hábito, que é característico do espírito inglês, produz uma consonância de todas aquelas almas naquele mesmo estado de espírito. E dá ao observador a sensação de que essa consonância faz todos esses espíritos se fundirem num como que espírito mais eminente e mais alto, que paira sobre aquilo. E que há uma permeação de cada alma com aquele espírito coletivo, e daquele espírito coletivo com cada alma, dentro daquela sala de chá.

Um homem que percebesse esse “unum”, teria compreendido a beleza do “five o’clock tea”. Há na criação miríades e torrentes de coisas assim, que são realidades psicológicas, espirituais, que se revestem de aparências materiais, ao alcance dos homens. Quem entendesse que isso não é senão o símbolo de um Anjo, e soubesse degustar o símbolo, poderia praticar um ato de piedade  excelente para com esse Anjo.

Um país de lordes

Todo inglês tem qualquer coisa de “gentleman”, até o plebeu. Não posso me esquecer de algo que vi, logo após desembarcar em Londres. Os aeroportos costumam ter, nas saídas, o que vulgarmente se chama de “borboleta”, uma catraca. Em Londres, diante de cada borboleta se achava um homem, sentado sobre uma espécie de banco alto, para controlar a saída.

Quem passava tinha de apresentar a ele a passagem. Na minha passarela, olhei maquinalmente e encontrei um “mister”, muito bem vestido: gravata borboleta, que ninguém usava mais naquele tempo; uma risca de cabelo bem-feita no centro da cabeça, impecavelmente bem penteado dos lados; camisa rapada, mas sem nada de costurado nem de manchado; roupa muito usada, mas bem conservadinha. Aquele homem e seus colegas estavam tão bem-arranjados, tão limpos, com tanta dignidade, que se tinha a impressão de verdadeiros “gentlemen”. Fiquei encantado de ver um funcionário exercendo uma função tão humilde e, entretanto, com tanta dignidade.

Tinha o ar de um lorde sentado na Câmara dos Lordes  para assistir a uma sessão. Quando passei perto dele, entendi: “Este é um arquétipo”. Compreendi as funções, a psicologia, o papel e o efeito do papel sobre a psicologia desse homem e dos congêneres dele no mundo inteiro. Para mim, a partir desse momento, o arquétipo de um homem que toma conta de uma borboleta ficou sendo  esse.

Os Couraceiros da Rainha

Eu quis ver a Guarda da Rainha, e para isso fui relativamente cedo para diante do Palácio de Buckingham. Era uma manhã brumosa, mas de tempo bonito. Não era o famoso “fog” londrino, que é  tão escuro e denso de fumo e nevoeiro, que às vezes as pessoas esbarram umas nas outras; pelo contrário, era uma neblina prateada, bonita e leve. Uma banda de música militar, no parque da rainha, tocava uma qualquer coisa para se ouvir. De repente, eu vejo emergir de dentro da bruma, parecendo heróis míticos e demiúrgicos, os Couraceiros da Rainha.

Andavam — digamos, pois não me lembro bem — em filas de quatro, com aquelas couraças e elmos reluzentes, com aquela crina caída atrás, espada, e guiando o cavalo. A música militar tocando. Passaram como se não houvesse ninguém. O povo rebentava de bater palmas, mas eles eram superiores a tudo isso. Cavalgavam dentro de seu próprio mito. Quando se abriram os portões do  parque da rainha, entraram solenemente e sumiram sob um arco…

Nostalgia de uma Inglaterra ideal

Perante toda essa cena, compreendi bem a nostalgia que os ingleses têm da Inglaterra como ela devia ser, e não é. Ainda ficam de pé na Inglaterra restos esplendorosos de um passado pré-anglicano, que justificam a exclamação de São Gregório Magno no mercado de Roma: “Non angli, sed angeli, si fuissent christiani”. [“Não anglos, mas anjos, se fossem cristãos”, exclamação do Pontífice à vista de uns meninos ingleses não batizados, que iam ser vendidos como escravos.]

Quer dizer, existe no espírito inglês uma ideia teórico-prática (não é meramente teórica) de como as coisas deveriam ser. E um desejo muito grande e muito exigente de que elas sejam assim, adaptando a isso todas as exterioridades.

Alguns dizem que agir desse modo é hipocrisia, porque eles não observam a moral que as aparências parecem simbolizar. A questão é um pouco diferente: por maior que seja a decadência  moderna, na qual estão engajados,  ainda lhes resta uma nostalgia de como as coisas deviam ser. E isto é um ideal. Ele será atingido no dia em que a Inglaterra for novamente católica.

Plinio Corrêa de Oliveira

Confiança

Nas graves circunstâncias de nossa vida, o que a Santíssima Virgem deseja de nós, acima de tudo, é um imenso ato de confiança.

Por isso, genuflexo, peço a Ela nos tornar cada vez mais os que — na tormenta, na aparente desordem, na aflição, na quebra aparente de tudo o que poderia representar para nós a vitória —, sempre confiaram na misericórdia d’Ela.

(Palavras de Dr. Plinio em uma de suas últimas conferências, em agosto de 1995)

Admiravel perfeição da Igreja Católica

Quem quisesse ver a Igreja compendiada ou espelhada cabalmente no coração de qualquer de seus Santos, Doutores ou Pontífices, erraria. Ela não se deixa conter em nenhuma das múltiplas manifestações de sua fecundidade sobrenatural. Seu espírito não está só no recolhimento dos anacoretas, na sabedoria dos Doutores, na paciência dos Mártires, na pureza das Virgens, na intrepidez dos Cruzados, no ardor dos Missionários, ou na suavidade dos que se dedicam aos enfermos.

Ela é tudo isso ao mesmo tempo. E só com estas e outras justaposições que se pode ter noção da admirável perfeição da Religião Católica.

Plinio Corrêa de Oliveira

Onde está o auge do esplendor: na forma ou na cor?

As civilizações expressam suas peculiaridades e características próprias também através das artes. Assim sendo, a arquitetura constitui outrossim um modo de se compreender pensamentos, inclinações e até mesmo intenções, existentes por detrás de meras pedras.

Quem admira os monumentos góticos se compraz em ver não só as suas linhas definidas e suas harmoniosas proporções, mas também as pedras com as quais foram eles edificados. Em geral granitos, de cor um tanto indefinida, constituem massas enormes e fortes, que parecem jorrar da terra. Assim são catedrais, castelos e torres da Idade Média, que muito impressionam quem se detenha a contemplá-los.

Entretanto, tais monumentos não seriam mais belos caso fossem pintados? Pois,  embora exista uma indiscutível beleza própria ao granito cinzento, poder-se-ia perguntar se numa catedral não seriam cabíveis outras formas de beleza, como a pintura.

Os fanáticos pelo purismo gótico — que nem sempre abarcam todo o seu valor — afirmam não raras vezes: “Pintar? Nunca! Seria uma blasfêmia! Elas devem ser de granito natural; do contrário perderiam completamente sua beleza”.

É bem verdade que o granito, com sua cor natural, é belo, e ademais seria uma lástima que desaparecesse. Dizer, entretanto, que esta é a única forma de beleza possível, contraria, antes de tudo, a realidade histórica dos fatos. Estudos acurados, em outros monumentos, têm demonstrado que as estátuas outrora eram pintadas. Em razão de chuvas, tempestades e neves, as tintas foram, aos poucos, desaparecendo; e devido ao esfriamento da apetência que o povo possuía pelo gótico, não foram renovadas. Isso não impediu, entretanto, que para várias dessas figuras fosse possível reconstituir parte da pintura.

Ora, os homens que conceberam essas maravilhas, fizeram-nas com cores. Assim, não se pode admitir que os sonhos e os hinos de entusiasmo dessas almas foram concebidos na atmosfera de uma blasfêmia.

Por que dissociar a forma da cor?

Foram encontradas, no subsolo de um banco em Paris, há não muito tempo, cabeças das esculturas de reis do Antigo Testamento que ficavam no pórtico de Notre-Dame, formando uma galeria.

Durante a Revolução Francesa foram elas decapitadas e as cabeças jogadas ao chão. Possivelmente uma pessoa piedosa recolheu-as e enterrou-as o mais fundo que pôde.

Deu-se, então, um fato maravilhoso. As cabeças foram retiradas e, ao serem analisadas, verificou-se que partes delas ainda estavam pintadas. Portanto, deve-se conceber a possibilidade e a coerência de monumentos em estilo gótico com pintura: catedrais, edifícios públicos como paços municipais, e castelos evidentemente, na medida em que não eram fortalezas, e sim residências. Mesmo sendo fortaleza, a casa de residência do senhor feudal e a capela no recinto do castelo podem ter sido pintados.

A alma enlevada do medieval não poderia deixar de pensar o seguinte: se a forma é tão linda, não haverá um ornato de cor para ela? Por que dissociar a forma da cor?

O cinzento da pedra é bonito por seu aspecto resoluto e batalhador, e também porque nos permite pensar em qualquer cor. Quando se vê uma catedral cinzenta, o subconsciente nos sugere, sucessiva e vagamente, várias cores para ela.

Esse é um dos encantos do cinzento, como, aliás, das antigas fotografias em branco e preto. Sob certo ponto de vista, eram mais poéticas do que as coloridas, pois subconscientemente era possível imaginar as cores.

É lindo ver o reflexo de um vitral incidir sobre o granito cinzento do interior de uma igreja! A pedra fica momentaneamente, como que, cravejada de pedras preciosas. Não haveria, então, um modo de perpetuar este colorido magnífico?

Orvieto: o gótico colorido

Grande ilustração do gótico policromado, uma das mais famosas catedrais góticas existentes na Itália — onde se costuma dizer que não houve o estilo gótico —, cuja fachada é colorida com mosaicos de alto a baixo, é por certo dos edifícios góticos mais belos do mundo: a Catedral de Orvieto.

Estritamente gótica, traz ela em sua fachada uma feeria de cores. Mesmo a rosácea que está no interior de um quadrado, o qual não se diria exatamente gótico, tem qualquer coisa de clássico; ambos se encaixam perfeitamente no conjunto.

Para a decoração foi escolhida a mais esplendorosa das cores: a do ouro. Em toda a fachada há um fundo dourado. O mosaico é de tal qualidade, tão rutilante e magnífico, que esta igreja, edificada no século XIV, causa a impressão de ter sido finalizada há poucos dias. Ela não apresenta a poesia do granito, que desafia todos os tempos, todas as intempéries e fica mais belo à medida que envelhece. Dir-se-ia que os invernos e as tragédias da História passaram sobre a Catedral de Orvieto sem a atingir em nada. Ela está magnífica, esplendorosa, sem alterações.

O granito fala da eternidade, na medida em que resiste ao tempo. O mosaico de Orvieto evoca a eternidade, no sentido em que ignora o tempo.

Causando viva impressão cromática, as diversas cenas se reportam à vida de Nossa Senhora. Há várias figuras coloridas em ambos os lados da rosácea, no alto das portas laterais, dentro e fora das ogivas, no cume da porta central. No alto do frontispício, a coroação de Maria Santíssima. O colorido pode ser encontrado por toda parte.

São cores ao mesmo tempo temperantes e muito vivas. Quem policromou a catedral não tinha o gosto pelas cores pálidas, ou discretas, que se confundem e se fundem umas com as outras, o que possui sua beleza. Mas o que há nela é a beleza das cores definidas, que têm individualidade e vida própria. Em cada grupo há uma sinfonia de cores.

A beleza que representa essa distribuição colorida sobre a fachada, com as linhas do gótico, proporcionam a ideia do que seria uma síntese entre a forma e a cor. Antiga disputa entre os artistas: o que apresenta mais esplendor, a forma ou a cor? Num quadro, o que é mais notável, o desenho ou o colorido?

Florença ou Veneza: cor ou forma?

Existem duas grandes escolas italianas divergentes a esse respeito: a florentina, toda feita de desenho, intencionalmente pobre em cores, para que o desenho seja ressaltado; e a veneziana, magnífica em coloridos, tendo apenas o desenho necessário a fim de dar pretexto para as cores se mostrarem.

Muito antes das duas escolas se diferenciarem e polemizarem, já havia uma magnífica síntese delas, na Catedral de Orvieto.

Os detalhes são profusos nas colunas, na rosácea, nos florões, nos rebordos, e em todos os outros lugares, pois que seus executores trabalhavam sem pressa de acabar, sem o desejo de serem aplaudidos pelo povo. Morriam em paz diante da igreja inacabada, com a certeza de que as gerações futuras haveriam de completá-la.

Esta catedral representa de um modo proeminente a beleza do gótico, tornando-se inatacável por todo o seu esplendor. Podem-se preferir outras — depende do gosto individual —, mas não é possível fazer alguma reserva ou ter algum desacordo em relação a ela.

 

Continua em um próximo artigo…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/1/1981)

O Império Romano nos planos de Deus – II

Após discorrer acerca das “continuidades esplendorosas” existentes na História, Dr. Plinio, dotado de profundo senso de reversibilidade, imagina a “esplendorização histórica” do Céu empíreo.

 

Essencialmente falando, eu acho que aquele traço dado de algum modo se projeta no Céu empíreo. Não posso imaginar o Céu empíreo como se os homens tivessem vivido atemporalmente, sem nenhuma civilização, meio parecido com aquelas indecências do Olimpo, onde as pessoas se portavam como índios selvagens…

A meu ver, nossas almas não têm uma plena atração por essas coisas, porque não se sentem inteiramente refletidas.

Pergunto-me se não há infiltrações de Renascença nesses modos de apresentar o Paraíso. Não posso admitir um Céu empíreo onde a Igreja não esteja representada em tudo aquilo por onde ela se materializou, para as delícias dos sentidos humanos. É Igreja Triunfante. Haverá ordens religiosas no Céu? Enquanto tais, não; mas como famílias de almas, sim. Portanto, isso tem que ter continuidades, as quais devem se refletir no Céu empíreo. Eu gostaria de imaginar um Céu empíreo que fosse uma esplendorificação, além de todos os aspectos da natureza, também da História: as intenções de Nosso Senhor com aquilo que ficou em estado potencial, as mostras de coisas que foram de determinado modo, e como poderiam ter sido.

Não concebo — claro que se a Igreja disser o contrário, eu me inclino com delícias — que o Céu empíreo seja simplesmente como ele é apresentado, por exemplo, pelo Cornélio(1): tem-se a impressão de que os anjos produzem sons, emitem cores etc., dando aos bem-aventurados a ideia que são uns artistas convencionais. Tudo isso é verdade, mas deve haver algo a mais.

Que relação existe entre o Céu empíreo e o Paraíso terrestre, que não vai ser destruído? A própria ideia do Céu empíreo precisaria ser muito enriquecida. Talvez fosse missão de nosso Movimento fazer tal enriquecimento, para glorificar a obra total de Deus e também atrair mais as almas para o Céu.

Juízo Final: grande aula de História

Volto a dizer, tenho pânico de não manter a ordenação católica verdadeira — submeto-me de muito bom grado a tudo quanto a Igreja ensine —, mas a História deve ser consoante com o Juízo Final. E o Céu, visto por esse lado, seria uma espécie de condensação da História, não porque fiquem pedaços menos importantes de lado, mas em razão de ser feita de modo denso, de maneira a apresentar um panorama com as várias glórias sucessivas, que Nosso Senhor foi determinando para Si ao longo dos tempos, e que iriam recompondo de algum modo o plano que Ele teve com o Paraíso terrestre, o qual não se realizou. E depois do Juízo Final todas essas coisas ficariam, por assim dizer, paradas, e de algum modo vivendo no Céu o que na Terra não foi vivido.

Alguém poderia dizer ser imprudente ensinar isto assim, porque desvia a ideia daquilo que é a essência do Céu: a visão beatífica. Eu me pergunto se desvia ou encaminha. É uma cogitação de caráter pastoral, e não doutrinário, que se pode pelo menos discutir.

Percebe-se que há no Céu, dentro de todas as fixidezes de uma eternidade perfeita, tal ou qual acontecer que é, creio eu, o festejamento de algumas dessas luzes que aparecem sob algum aspecto especial, em função de Deus que se compraz. Deus atua como a Igreja faz com suas glórias passadas: ela se alegra em remexê-las, extraindo delas sua glória. Quer dizer, a História teria um papel, no plano divino, que não se esgota. Algum teólogo poderia objetar: “Acabou o tempo e agora é a eternidade”. É magnífico, mas o que quer dizer isso? Eu gostaria de lhe dizer: “Não quer estudar um pouco esse assunto, ó teólogo venerável, e condescender com essas minhas babugens de criança envelhecida? Vamos conversar um pouco sobre isso”.

Dou um exemplo com os mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. No Céu, Ele está fisicamente presente em sua Humanidade Santíssima, com a idade perfeita que atingiu. Mas o Divino Redentor vive dentro do Céu com os esplendores próprios de cada uma das idades, que se fundem dentro da idade perfeita d’Ele. Há no Céu uma alegria por Jesus Menino, que não é a alegria por Jesus Adolescente.

Quer dizer, seria preciso encontrar um modo, uma forma de exprimir isso, de juntar ao mistério da eternidade. E compreender que, assim como essas coisas, de certa forma, coexistem no Céu, a História tem também, de um modo minor, um existir contínuo no Céu, que explica o Juízo Final, a grande aula de História final! O Juízo não será apenas para separar uns homens de outros, mas a fim de dar a cada um o seu quinhão.

Como seria agradável fazer um simpósio sobre História, para tratarmos a respeito disso! E se quiséssemos, poderíamos estender o quadro até suas últimas consequências.

O pulcro das obras de Deus e o hediondo dos feitos do demônio

Também o demônio engendrou seu plano: fazer que a cada aspecto de Deus corresponda um “hediondum” para o qual ele procura levar o povo de certa época, e que ele pode mostrar à luz do Sol, neste “nunc”, neste agora, com o efêmero brilho de mentira das coisas terrenas. E esse hediondo, como historicamente existiu, é atirado ao inferno, punido permanentemente. Por isso, eu acredito que haja um reflexo celeste do Império Bizantino e também um reflexo infernal da podridão bizantina, do “hediondum” bizantino. E, no que diz respeito aos homens, imagino um inferno historicamente ordenado para tudo quanto Bizâncio teve de podre, de horroroso.

Então, há o inferno dos podres, dos chicanistas, dos sofistas, dos incapazes porque não quiseram ter valor, que são eternamente atormentados por esses vícios.

Essas considerações seriam úteis para uma aula de catecismo. Por exemplo, o inferno de Hollywood, que não forma ali um império, mas o “hediondum” dele traz a lama do que foi esse império. Como os franciscanos no Céu não formarão uma ordem, mas o “pulchrum” deles será o que a Ordem Franciscana teve de belo. Não preciso dividir um fio de cabelo em quatro para fazer compreender o que é isso; uma comparação simples, despretensiosa, o torna claro. Mais ainda, há festas no Céu e tormentos simétricos no inferno.

Às vezes, o Paraíso é representado com anjinhos ridiculamente gordinhos — a ponto de formar dobras nos joelhos. Entretanto, com a visualização que apresentei, todos desta sala tomamos atitudes de quem pela primeira vez está conseguindo respirar até o fundo dos pulmões. Por quê? Não será alguma coisa para indicar que há um caminho nessa direção?

No Reino de Maria a sociedade será semelhante ao Céu

Compreendendo tudo isso se poderá proceder à construção do Reino de Maria, com todo amor e virtudes que são necessários. Aqui está o “tal enquanto tal” de nosso Movimento, quer dizer, temporal enquanto espiritual, espiritual enquanto temporal, expresso por inteiro. E no Reino de Maria uma pessoa bem persuadida de todas essas coisas deve ter certa noção, difusa — que uma boa mãe cozinheira e um bom pai padeiro possuem ao executar seus trabalhos —, mas com verdadeiro espírito sobrenatural, de por onde sopra o Espírito Santo, e da necessidade de construir uma sociedade terrena semelhante ao Céu. É o “pendant” de um Céu algum tanto parecido com a sociedade nesta Terra. No Padre-nosso se pede: “…venha a nós o vosso Reino… assim na Terra como no Céu”. O Céu vem à Terra, mas a Terra está construindo para o Céu.

Como tudo isso é apaziguante para a alma; é distensivo!

É bonita a distinção entre duas coisas: as civilizações que morrem, resultando numa espécie de purgatório dos respectivos povos, e as civilizações que morrem, dando numa espécie de inferno.

Existiram civilizações que pararam, estancaram, ninguém sabe que fim tiveram, onde foram parar seus habitantes; há mistério a respeito delas. Em outras sucedeu algo parecido com o que aconteceu com o Império Romano: vieram os bárbaros, remexeram, passaram o açoite sobre ele, mas aquilo de algum modo revive. Enquanto revive, reassimila o que caiu.

Enfim, os bárbaros fizeram com os romanos o que estes realizaram com a Grécia. Quer dizer, eles mesmos se civilizaram, tiraram daqueles escombros o que era aproveitável, reconstruíram outra ordem. Já com os bizantinos isso não foi feito. Pior, o que deles sobreviveu apodreceu o Ocidente.

Esta é uma distinção que importa: há os povos que desaparecem apodrecendo, os que desaparecem fulminados no isolamento, e os que desaparecem renascendo. São coisas parecidas com o inferno, o purgatório e o Céu; com os demônios que caem no inferno e depois tentam os homens. Civilizações misteriosas que desaparecem, fulminadas não se sabe como, são infernos.

É uma batalha enorme que em seu conjunto, no Juízo, terá sua movimentação e uma retificação. Tudo o que era para ser acabado, embora não idêntico ao que seria se tivesse correspondido, de algum modo se completa. E a obra de Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, Profeta e Sacerdote, chega a seu fim. É o pináculo.

Acho que tudo isso tem “pulchrum” realmente extraordinário!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1982)
Revista Dr Plinio 161 (Agosto de 2011)

 

1) Cornélio a Lapide (Cornelissen Cornelis van den Steen) exegeta flamengo, pertencente à Companhia de Jesus (18/12/1567 – 12/3/1637).

Os tempos de São Luís, Rei da França

Assim como Deus deseja encaminhar o desenvolvimento da Igreja para a realização de seus planos, é natural que esteja nos desígnios d’Ele, correlativamente, estabelecer, proteger e desenvolver a civilização católica. Em virtude dessa disposição divina, desperta o maior interesse uma análise da história à procura das pessoas providenciais, dos problemas, das crises, dificuldades e êxitos que a formação e conservação dessa civilização encontrou diante de si.

Vejamos hoje um de seus períodos-auge, aqueles anos do século XIII nos quais desabrochou um sábio governante e um grande herói da Fé: São Luís IX, rei da França.

Santidade e infâmia numa mesma dinastia

Ele era filho de Luís VIII e de uma princesa cercada de uma auréola bem medieval e poética, tanto pelo seu  nome como pela origem, pelo estilo e pelas qualidades morais: Branca de Castela.

Parece-me um nome de contos de fadas, que faz pensar num lírio particularmente alvo, brotado no alto da torre de uma fortaleza sobranceira e inexpugnável! Branca de Castela…

Dela nasceu, em 25 de abril de 1215, um filho igualmente lirial, do qual se podem fazer todos os elogios.

Por ocasião da morte de seu pai, em 1227, Luís tinha 12 anos. Com esta idade foi proclamado rei, bem antes do reconhecimento de sua maioridade, que sobreviria apenas em 1235. Neste mesmo ano casou-se com uma princesa de nome também literário, Margarida de Provença. Situada no sul da França, a Provença, além de rica e bela, é  uma  região de clima suave, terra dos trovadores e da poesia. E assim como a mãe era um lírio desabrochado nos cumes de uma fortaleza, a esposa era uma margarida nascida no meio dos encantos provençais.

Pelo lado materno, era primo-irmão de Luís outro monarca santo, o rei Fernando de Castela, grande herói da reconquista espanhola contra os mouros. Quanto a seus descendentes, São Luís foi pai do rei Filipe III, o Ousado, e avô de um dos piores reis de toda a história, Filipe, o Belo. Quer dizer, uma virtuosa mãe na origem, um primo santo no ramo colateral e um neto iníquo. É a confirmação de uma triste regra no existir das dinastias, segundo a qual a santidade e a infâmia costumam disputar lugar numa mesma genealogia…

Temas candentes no tempo de São Luís

Viveu São Luís numa época em que alguns temas eram candentes, revestindo-se de importância transcendental e ocasionando as mais profundas repercussões na organização da Idade Média. Não se tratava, portanto, de problemas meramente especulativos, nos quais o santo soberano deve ter tomado parte relevante, embora haja carência de dados históricos para situar essa participação.

Para mencionar apenas alguns desses temas, havia, em primeiro lugar, a luta entre o Império e o Papado, que atingia então seu estágio mais delicado.

Luís IX, rei de França ou seja, da “Filha Primogênita” da Esposa de Cristo santo, terceiro franciscano, cheio de zelo pela causa da Igreja, acompanhou com apreensão essa querela que envolvia os poderes espiritual e temporal. Infelizmente, não se conhece muito de sua atividade diplomática, nem da força política ou material que tenha empregado para assegurar a preponderância do Papado sobre o Império, questão absolutamente nevrálgica para a Civilização Católica daquela época. Seria preciso esclarecer ainda alguns pontos, para se poder chegar a uma conclusão acertada sobre a atitude do monarca francês nessa controvérsia.

Outro tema interessante é o seguinte: São Luís viveu no ápice da Idade Média. Sabemos que foi contemporâneo de São Tomás, de São Boaventura, e que no tempo dele a sociedade orgânica e corporativa atingiu o máximo de seu desenvolvimento. Ora, gostaríamos de saber se ele teve consciência de todo esse florescimento que se dava na sociedade, e de sua importância.

De modo mais particular é preciso abordar outro ponto.

Sabemos que o regime feudal, para corresponder à concepção católica da sociedade que o engendrou, devia ser constituído pelo inteiro equilíbrio de forças entre suseranos e vassalos. Sobretudo, entre o rei e os nobres. Esse equilíbrio é garantido por dois fatores: é necessário que o rei tenha uma autoridade efetiva e, por isso, que seja bastante vigoroso para impor sua vontade aos senhores feudais. Mas é preciso também que estes últimos sejam bastante fortes para poderem conter os eventuais abusos do monarca. Assim se mantinha a harmonia social na Idade Média.

Tal situação era possível em virtude do ascendente do Papa sobre toda a sociedade, pois, sendo o Pontífice superior aos reis e aos senhores feudais, podia servir de árbitro. E um rei que tinha sobre si esse poder pontifício (maior que a própria tutela exercida pelo Imperador do Sacro Império), não era inteiramente livre para estrangular os vassalos e nobres inferiores.

No tempo de São Luís, esse equilíbrio social parece ter atingido um apogeu. Segundo conceituados historiadores, no século XIV portanto, no período imediato ao de São Luís o feudalismo alcançou na Europa a sua posição ideal. Se isto é assim, deve ter havido uma preparação, realizada pela geração anterior, precisamente a que viveu sob a influência direta do virtuoso monarca francês.

Um santo no trono da França

Logo após a morte de Luís VIII, Branca de Castela, tão enérgica quanto jeitosa em política, assumiu a regência do governo. Depois de enfrentar vitoriosamente algumas crises, deixou o caminho livre e bem calçado para que as jovens mãos de seu filho continuassem a magna tarefa de governar a França. Os contemporâneos de São Luís afirmavam que a melhor distração do rei era cantar no coro da Igreja e conversar a respeito de assuntos religiosos com os cortesões. Costumava servir comida a 200 pobres, cujos pés lavava. Cuidava de bom grado dos doentes e tinha uma predileção especial em tratar dos leprosos, numa época em que esta doença era epidêmica e dificilmente curável.

Quando se pensa na aparência de um desses pobres enfermos, com as carnes em decomposição, cobertos por um manto grotesco e esfarrapado, agitando um guizo para afugentar as pessoas sãs, e se imagina um rei, no esplendor de seu poder, aproximar-se dele para tratá-lo com todo o carinho e solicitude, pode-se vislumbrar a autenticidade de suas virtudes.

Além de sua admirável caridade e paternal benevolência, São Luís era também louvado pela justiça e equidade com que governava seus súditos. Tornou-se quase legendário o fato de proceder pessoalmente a julgamentos e decisões, sob um grande carvalho nas proximidades de seu palácio, em Vincennes. Igual retidão marcou também outro episódio de sua vida, no qual esteve em jogo a integridade territorial francesa. Tratava-se de uma rebelião levada a cabo nada menos do que pelo próprio sogro do rei, Raimundo VII, Conde   de Tolosa, que se aliara a outro importante nobre francês revoltoso, Hugo de Lusignan, ambos simpatizantes de Henrique III, soberano inglês com pretensões não pequenas de conquista na França.

São Luís, para quem os interesses do reino contavam acima de quaisquer sentimentos familiares, partiu em luta contra seu sogro, derrotou-o e o obrigou a assinar um tratado ratificando os direitos da coroa francesa. Por fim, em 1243 se estabeleceu a chamada “paz de Bordeaux”, pela qual o rei da Inglaterra foi obrigado a ceder terras a São Luís. Aproveitando-se da ocasião propícia, os conselheiros do santo monarca quiseram convencê-lo a exigir mais do que o razoável. Prevaleceu, no entanto, o equilíbrio e a honestidade de São Luís, decidido a exigir apenas aquilo a que tinha direito, isto é, o proporcional à sua vitória.

Diante desse modelo de desprendimento, o ímpio e ganancioso Voltaire fez este interessante comentário: “É impossível ao homem levar mais longe sua virtude…”

Rei cruzado e penitente

Não se pode falar de São Luís IX sem mencionar um  dos aspectos mais rutilantes de sua personalidade: o de cruzado.

Depois de enfrentar e vencer as mais duras batalhas no seu reino, viu-se na contingência de conquistar vitória ainda mais árdua, ou seja, aplacar as resistências e as injunções maternas que tentaram demovê-lo da promessa feita de abraçar a cruz. Afinal, prevaleceram suas inabaláveis disposições, e São Luís acabou vestindo a túnica de cruzado e partindo com seus guerreiros para a Terra Santa.

Nessa  campanha, semeada de reveses e pontilhada de poucos sucessos, São Luís lutou como herói, mas acabou sendo preso por causa da imprudência de um irmão seu, que não seguiu as ordens do rei sobre a tática a ser empregada na batalha decisiva. No cárcere, São Luís deu provas de heroísmo ainda maior, edificando os próprios inimigos que o mantinham cativo. Após um longo período de sofrimento, recobrou a liberdade e pôde voltar ao seu reino, cujos súditos rezavam e ansiavam por seu feliz retorno.

Sem fundamento, São Luís pensou haver cometido alguma imperfeição, algum pecado, em punição do qual Deus permitira o inglório fracasso daquela Cruzada. Sua delicadeza de consciência e sua profunda piedade o faziam pensar numa reparação, quando lhe chegou o oferecimento de uma preciosa relíquia, vinda diretamente da Terra Santa: um espinho da dolorosa coroa que, na Paixão, cingira a fronte adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que fez São Luís?

Não mandou confeccionar apenas um precioso escrínio, mas ordenou a construção de uma verdadeira joia de arquitetura, a Sainte Chapelle (Capela Santa), no interior da qual fosse abrigada aquela relíquia de inestimável valor. E como se tal não bastasse, resolveu partir para as fronteiras de seu reino com a Itália, onde recebeu pessoalmente o es-

pinho sagrado, a fim de conduzi-lo a pé, em trajes de penitente, até Paris. Tudo isso, em reparação pela suposta falta que ele teria cometido nos campos de batalha, defendendo a Terra Santa.

Eis a verdadeira fisionomia de um santo, e de um santo que era rei! Autêntico monarca, que dizia  “mea  culpa, mea culpa, mea maxima culpa”, quando não tinha culpa alguma. Possuía, sim, um senso moral tão desenvolvido, uma aversão tão completa ao pecado, que se julgava na obrigação de reparar uma pretensa falta, em virtude da qual Deus não havia sido glorificado como merecia.

Foram almas dessa categoria que levaram a Civilização Cristã aos seus dias de maior esplendor. Foram personalidades assim, santas e providenciais, que procuraram realizar neste mundo a sociedade humana perfeita, regida pelas leis de Deus e pelos ensinamentos da santa Igreja.

O santo monarca entregou sua alma ao Criador em 1270, aos 55 anos, após ser atingido pela peste, em plena guerra, durante outra Cruzada que ele comandou. Até chegar a seu leito de morte foi um batalhador, a respeito do que haveria muito a dizer noutra oportunidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Onde está o auge do esplendor: na forma ou na cor? – II

Após séculos de esplendor, de feeria de formas e cores, como foi possível abandonar o gótico em favor de outros estilos? Entretanto, apesar de relegado a segundo plano em favor do estilo clássico, das ruínas do “Ancien Régime” ressurgiu a arte gótica.

 

As considerações que fizemos sobre a forma, a cor, em síntese, sobre o estilo gótico existente na Catedral de Orvieto, nos levam a analisar algo colateral, mas que também possui grande importância para a História: Como explicar que, em determinado momento, as almas se tornaram de tal maneira incompreensíveis para com o gótico, que durante séculos não se construíram mais edifícios nesse estilo?

Mais ainda, ergueram-se incontáveis igrejas, mosteiros, abadias, edifícios públicos, residências particulares em estilo clássico, com os antigos arcos em semicírculo ou a linha reta dos pórticos, porém nunca em estilo gótico, o qual permaneceu esquecido durante séculos.

Muitas das obras clássicas revelam incontestável talento — seria errado não reconhecê-lo —, mas também demonstram, de modo espantoso, uma falta de piedade sob vários aspectos. Como realizaram todas essas coisas que parecem ignorar completamente as impressionantes obras da arquitetura medieval?

Tudo quanto a Idade Média realizara em matéria de arte estava esquecido em favor das figuras nada combativas, ou sérias, apresentadas pela Renascença.

Havendo um caminho tão bem trilhado por medievais de inegável gênio, como os grandes da Renascença não pensaram em continuá-lo? E tenham revolvido o pó das ruínas clássicas, arrancadas debaixo da terra, ou esqueléticas em sua superfície, e restaurado uma antiguidade que o Cristianismo havia de muito superado?

Qual é o estado de espírito de quem, passando diante de edifícios góticos, não se encanta, mas se desvanece de admiração para com os monumentos da era clássica? Sem negar de forma alguma a beleza dos monumentos da Renascença, se compararmos uma com a outra…

Das ruínas, um novo gótico

O gótico, incontestável por sua beleza, permaneceu, entretanto, sepultado no esquecimento durante todo o período do “Ancien Régime”, período em que desabrochou a arte barroca.

Suponhamos que houvesse nessa época alguns entusiastas pelo gótico em Orvieto, os quais começassem a fazer propaganda de sua catedral para que o povo a compreendesse, a amasse e passasse a produzir coisas em continuidade com o gótico, e não com o estilo renascentista. Eles procurariam os “medievalizáveis” em Orvieto, para à noite, no reflexo do luar, comentar a igreja.

Imaginemos que eles organizassem um apostolado de difusão, de simpatia por esse estilo e, ao cabo de alguns anos de trabalho, conseguissem, em Orvieto, cinquenta pessoas entusiasmadas pela catedral, e mais umas mil com simpatia por ela. E todos a olhassem com uma saudade sonolenta e risonha: “É mesmo bonita, não é?”

Explode a Revolução Francesa. Aproxima-se o Diretório, surge Napoleão, não obstante volta a realeza na pessoa dos Bourbons, e a História continua seu curso. Entretanto, por coincidência ou não, pela Europa inteira começa a renascer o gosto pelo gótico.

O Conselho de Estado de Luís XVI havia decretado o arrasamento da Catedral de Notre-Dame, para fazer ali uma igreja em estilo grego, como digna de ser a catedral de Paris; pois julgavam o gótico indigno para tal.

Passando pelo palco da História as figuras de Robespierre, Danton, Marat, ouvindo-se nos gongos do passado o “Ça ira”, “La carmagnole”, a “Marseillaise”, o troar dos canhões de Napoleão a derrubar coisas veneráveis pela Europa inteira, e eis que das ruínas emerge um estado de alma simpático ao gótico!

Assistimos, então, à restauração de inúmeros monumentos góticos, e os estudos desse estilo florescerem. Edifícios góticos se constroem, não só na Europa, mas na América, como a Catedral de Saint Patrick, em Nova York, a Basílica de Quebec, como também a própria Catedral de São Paulo, e quantas igrejas, ainda que pequenas, com reminiscências góticas, em terras onde, durante a Idade Média, só havia índios!

Ainda um último aspecto

Vista de lado, percebe-se sob outro ângulo o esplendor da fachada, um pouco menos vistoso, pois a luz dos mosaicos não incide tão diretamente sobre quem está olhando. Por isso, possui uma forma de pulcritude, que não é a evidência viçosa, mas a discrição nobre do belo, o qual não se proclama, mas se insinua. Essa forma de beleza tem o encanto do que é insinuado, enquanto a outra possui o esplendor do que é proclamado.

Nas fotografias da Catedral de Orvieto, sempre há algo que nos chama a atenção: elas procuram isolar a catedral completamente do contexto. Isso é inteiramente compreensível, pois ela não permite vizinhança, exceto de outros edifícios também em estilo gótico.

Pode-se ter uma pequena ideia disso, considerando como os edifícios que existem à sua volta são mesquinhos, e até depreciados em relação à catedral. A catedral, como que, diz a eles: “Vós me ignorais? Mais ainda eu vos ignoro! Se não me quereis olhar e reconhecer minha beleza, ela aqui está de pé para vos julgar. Um dia prestareis conta ao Juiz eterno, deste estado de alma que está no fundo de vós. Quanto a mim, minha conversa é com o sol, com as estrelas e com Deus!”

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 23/1/1981)

São Luís IX

Em tudo correspondendo ao seu título de Rei Cristianíssimo, pleno de zelo pela causa da Santa Igreja, São Luís IX de França foi suscitado por Deus a fim de se tornar um perfeito modelo de governante para o seu tempo e os séculos sucessivos.

Viveu no auge da Cristandade medieval, e com sua combatividade, sua fé, esperança e caridade exemplares, contribuiu para o grande florescimento dos melhores valores da Idade Média.

 

Plinio Corrêa de Oliveira