Lugar onde a Providência quis reunir suas maravilhas – I

Dr. Plinio sempre teve encanto pelo mar. Eis uma das razões pelas quais apreciava sobremaneira Veneza, a cidade construída sobre as águas. A causa mais profunda do surgimento de tal maravilha é o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem resulta tudo quanto há de bom e de belo na Terra.

 

Antes de comentarmos alguns aspectos de Veneza, parece-me conveniente considerarmos um pouco o que se passa no interior de nossa alma, vendo essa cidade. Externo aqui minhas reflexões ao visitá-la, pois o que vou dizer a meu respeito se dá mais ou menos com todo mundo.

Fascínio pelo mar

Tanto quanto me lembro, em pequeno eu tinha impulsos que me levavam a lamentar de não poder viver, não propriamente no mundo da fantasia, mas num mundo que não era aquele no qual eu vivia. Portanto, levar uma vida real numa atmosfera diferente da qual eu vivia.

Assim, por exemplo, recordo-me de, muitas vezes, estando em Santos ou, muito mais modestamente, numa estação de águas hidrotermal que eu frequentava por causa de minha mãe, onde havia um riachinho um pouco nutrido, corria um pouco de água, formava uma ilhota e umas coisas assim; olhava para as águas e sentia o fascínio que esse elemento produz. A água salgada do mar me fascinava além de todo limite. Foi toda a vida o encanto de minha alma considerar o mar.

Lembro-me do meu tempo de deputado, quando o prédio onde se reunia a Assembleia Constituinte ficava numa praça do Rio de Janeiro, no fundo da qual há um braço de mar. Meu gosto pelo mar era tal que, às vezes, eu estava sentado assistindo à sessão e me vinha à mente:  “Como seria interessante se eu pudesse estar olhando para o mar, por exemplo, sobre uma espécie de terracinho de madeira amarrado em estacas, posto na água de maneira a acompanhar o movimento da maré!” Aquilo me distraía a ponto de ter que fazer esforço com a minha inteligência para prestar atenção nas arengas, tanto era o meu gosto pelo mar.

Entretanto, nunca me passou pela cabeça imaginar um homem que, estando no mar, começasse a pensar na terra. Então, alguém se encontrando num navio, vendo a terra de longe, pensasse: “Ah, que delícia aquela terra! Pisar em solo firme…” O chão não é firme, mas duro; é diferente de firme. Para acharmos graça no chão é preciso calçá-lo com pedras bonitas, pôr um tapete para disfarçá-lo a fim de nos sentirmos à vontade em cima dele.

Pelo contrário, no mar não. Ele é delicioso! Debaixo de certo ponto de vista, quanto mais a pessoa possa estar no mar, sem pisar em nada que lembre a terra, melhor é. Se ela estiver nadando, metida na água que exerce sobre ela uma atração extraordinária, tanto melhor. É o fascínio produzido por um elemento onde o homem realmente não vive, mas no qual ele tem a impressão de que a vida seria ideal.

Palácios e jardins, nostalgia do Paraíso

Certa ocasião, estando em Petrópolis, no Rio de Janeiro, vi pela primeira vez um homem voar em asa delta. Percebi que do local onde me encontrava até o panorama marítimo da Baía de Guanabara não levava muito tempo. E notei que lá de cima o homem estava olhando para aquela baía, realizando assim a convergência de dois sonhos: a água e o ar. Pareceu-me delicioso estar lá em cima, apesar de umas inseguranças não pequenas. Mas ele se movia com tal desembaraço no ar, que percebi estar inteiramente seguro. Então, a ideia de estar seguro, planando no ar, longe da terra e olhando o mar, era uma coisa deliciosa.

De outro lado, há uma coisa que também atrai o homem. Não é propriamente a terra, mas o palácio. Folheando álbuns, vendo palácios lindamente decorados, os mais antigos com belos vitrais, os outros com pinturas lindas, ou tapeçarias bonitas, com um chão precioso, macetado com madeiras de cores diferentes, formando desenhos, com quadros, móveis luxuosos, e com o teto alto, o homem tem sedução por algo que esconde de todos os modos a realidade comum da terra onde ele vive. O palácio é uma espécie de esconderijo onde, sem sentir a instabilidade da água e da flutuação no ar, a pessoa também foge de algum modo da terra concreta e constrói um sonho dentro do qual ela entra. Este é o palácio.

Ademais, para encobrir ainda de algum modo a terra, o homem elabora jardins, por vezes ornados com chafarizes que fazem a água brincar no ar, caindo depois em tanques onde o elemento líquido fica refletindo o céu, o próprio jardim e o palácio.

Como se explica que o homem goste tanto de disfarçar a terra? A meu ver, porque ela é exatamente o elemento que mais traduz a punição e o desterro do homem por causa do pecado original. “Amaldiçoada será a terra por tua causa. Com sofrimento tirarás dela o alimento todos os dias de tua vida. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até voltares à terra da qual foste tirado” (Gn 3, 17.19).

A terra é apresentada como um lugar de degredo onde é duro trabalhar, é preciso regar com o suor do rosto, ou seja, é penoso obter algum resultado. Ela é prosaica, não apresenta cores lindas, nem maravilhas de nenhuma espécie. A meu ver, por onde mais sentimos a nostalgia do Paraíso é precisamente no contato com a terra.

Palafitas para se proteger contra as feras

Reportemo-nos, agora, a uma remota reminiscência para compreendermos os desígnios da Providência, e como Ela dispõe tudo de modo maravilhoso.

Como demonstram as pesquisas arqueológicas, na Pré-História houve povos que, levados pelo receio dos animais ferozes, construíram as chamadas palafitas, conjuntos de estacas que sustentavam habitações construídas sobre as águas. Durante a noite, eles retiravam uma espécie de tabuleiro que lhes servia de ponte entre a palafita e a terra, e assim os animais podiam rondar em torno deles, mas não incomodavam. A água protetora os separava.

Podemos imaginar a sensação de progresso experimentada por esses primitivos quando eles construíram a primeira casinha e, à noite, ouviam as feras uivar dentro do mato; ao invés de ficarem apavorados, como no tempo em que viviam em grutas ou cabanas, dentro das quais um animal feroz podia de repente irromper, eles dormiam sossegados e se abanando deliciosamente, porque a fera não constituía mais um perigo. Que “civilização”!

Foi de uma situação análoga a essa que, do pânico de primitivos habitando um lugar pantanoso e inconsistente, nasceu uma das maiores belezas do universo. O local hoje ocupado por Veneza, outrora era muito pantanoso.

Um dos lugares mais bonitos da Terra

Em certo momento, um guerreiro terrível, Átila, desceu com seus hunos através da Hungria, invadiu a Itália e foi surrando tudo no caminho. O pavor que os latinos civilizados tinham dele era tal que se exprimiu por uma metáfora muito poética: por onde a patas do cavalo dele pousavam nunca mais nascia erva.

As populações daquelas regiões ficaram com pavor de Átila e se aprofundaram em seus pântanos, procurando lugares de mais resistência para se fixarem. Ali mais ou menos repetiram as palafitas.

Esses povos depois foram batizados, e o Batismo operou em suas almas o efeito regenerador que lhe é próprio; e de primitivos, mais ou menos vagabundos, passaram a ser homens de trabalho que, seduzidos pelas águas do Mar Adriático, entregaram-se à navegação. Tornaram-se grandes navegantes e se dedicaram ao comércio, passando a ser a maior potência marítima do Mar Mediterrâneo.

As riquezas voltavam para Veneza e com elas as possibilidades de trabalho, de organização. Aquelas ilhas resultantes do antigo pântano foram consolidadas, ajeitadas, fizeram correr água onde havia lodo outrora. As casas foram melhorando, as águas se tornaram de trânsito fácil e, no lugar do antigo pântano, constituiu-se um arquipélago que foi se enchendo de palácios de uma beleza famosa no mundo inteiro.

E ali, em vez do jardim que Veneza não tem, nasceu para o homem este sonho que se realizava: morar num palácio à beira d’água, com um céu lindíssimo. O céu de Veneza é uma espécie de céu dos céus, o colorido e as brumas são uma beleza, os anoiteceres são lindíssimos. E realiza-se assim esse ponto de eleição que é uma espécie de paraíso feito pelo homem, pela sua fantasia, pelo seu talento, pela sua capacidade de trabalhar, pelo seu desejo do maravilhoso, coisa tão distante do homem contemporâneo.

Então, realizou-se em Veneza esse ponto de encontro onde a terra feia, outrora pântano, é disfarçada pelo chão dos palácios, o pântano é coberto pelas águas do mar que correm, o céu maravilhoso e as águas se osculam, formado um dos lugares mais bonitos da Terra.

Maravilha que nasceu do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo

No centro desta narração está o desvendar de um enigma. Como povos tão primitivos puderam realizar uma coisa tão maravilhosa? Será por que se mesclaram com outros povos? A meu ver, se eles não fossem batizados isso não saía. Pode ser que se tenham mesclado com latinos decadentes. Mas do pântano do primitivismo e da decadência das grandes cidades em decomposição sair uma coisa assim, não era preciso um terceiro elemento que fizesse uma coisa verdadeiramente mais bela?

A meu juízo é evidente que sim.  É o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imolação no alto do Calvário obteve as grandes regenerações morais. É deste Sangue, a propósito de cuja efusão Nossa Senhora chorou e do qual resulta tudo quanto há de bom, de grande, de belo na Terra, que nasceram maravilhas dessas, pela regeneração do homem. Batizou-se, ficou trabalhador. Intensificou e disciplinou o seu desejo do maravilhoso, as maravilhas começam a nascer.

Foi à procura desse auge de realização do maravilhoso na Terra que me pus a sonhar sobre Veneza e a querê-la. Desde minha primeira viagem àquela cidade, meu espírito estava tomado por esta ideia: eu estava visitando uma junção incomparável e paradisíaca de coisas maravilhosas.

Poder-se-ia dizer, entretanto, haver mais algo ocupando no meu espírito um grande espaço, um ponto importante que procurarei condensar: das várias obras-primas existentes em Veneza, – oh, mistério! – nenhuma é tão grande e tão maravilhosa quanto o homem.

A “Sereníssima República de Veneza”

Se Deus tivesse criado Veneza, mas a cidade houvesse ficado sozinha para ser habitada pelos pombos, que valor ela teria? Muito mais do que simplesmente aquilo, há em Veneza o estilo de vida, o estilo artístico veneziano, a cultura, as instituições venezianas, que modelaram as fisionomias dos palácios. E, no plano da Providência, o palácio é modelado pela cultura do homem, mas o auxilia a modelar depois a sua própria cultura. Ajuda-o a se requintar. O céu, o mar e a terra foram feitos para, iluminando a casa ou o palácio do homem, iluminar a alma de quem ali reside.

Esta é a dignidade do ser humano. Tudo isso nos reporta ao fato de que a chamavam de “Sereníssima República de Veneza”. “Sereníssima” é quase mais bonito do que Imperial e Real. Dá a impressão de orvalhada por todas as calmas da noite. “Sua Alteza Sereníssima”, por exemplo, eu acho um título lindíssimo! E a República de Veneza, por ser soberana e querer se encaixar na hierarquia nobiliárquica e feudal da Europa, considerando que seu chefe tinha uma verdadeira dignidade de um duque, tomou para si o título de “Sereníssima”.

Veneza era uma república aristocrática, dirigida por uma nobreza inscrita num livro chamado “Livro de Ouro”. As famílias promovidas à nobreza tinham seus nomes inscritos nesse livro, e pertenciam a uma classe social que elegia uma espécie de Câmara dos Lordes. Havia também, para as várias categorias da plebe, câmaras, conselhos, etc.

Casamento de Veneza com o mar

À testa disso estava o Conselho dos Dez, chefiado por um doge que usava o barrete frígio das repúblicas contemporâneas, cercado de uma pequena coroa. Tratado como um príncipe, eleito de dez em dez anos, podendo ser reeleito, o doge era o ponto de partida de politicagens finíssimas, rasteiras jeitosíssimas, mais elegantes do que passos de minueto; com a beleza de quem se habituou muito cedo a burilar a política como quem burila um cristal. Aliás, por uma coincidência bonita, as fábricas de cristal começaram a aparecer. Daí vem o famoso cristal Murano. Há qualquer coisa de cristalino na República de Veneza.

Todo mundo conhece a festa anual de esplendor de Veneza. O doge, vestido com trajes fabulosos, ia até o alto-mar num navio todo folheado a ouro, chamado Bucentauro, seguido de um cortejo de embarcações com gente a bordo tocando violinos e outros instrumentos. Ao chegar a certa altura, fazia-se o casamento de Veneza com o mar, lançando no fundo do Mar Adriático um anel. Nesse momento, a música dava o seu todo, o pessoal aclamava. Ao cair da tarde, todos voltavam, em meio aos reflexos da água do mar de Veneza, e a festa continuava na terra. Aqueles canais eram percorridos por gente em gôndolas, lanternas bonitas iluminavam os terraços, de fora dos palácios se percebia a luz das festas que se estavam dando ali dentro. O tilintar dos copos de cristal, os vivas, os cânticos se prolongavam pela noite afora.

Se passarmos daí para as palafitas que constituíram a primeira Veneza, compreenderemos a enorme trajetória percorrida nesse lugar verdadeiramente privilegiado, onde a Providência quis reunir as suas maravilhas.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/12/1988)

Natividade de Nossa Senhora

Fonte de toda elevação e grandeza, Nosso Senhor escolheu por Mãe aquela que, abaixo d’Ele, veio ao mundo para ser o píncaro da criação. E um ápice com esta característica de particular excelência: possuía tudo na ordem do necessário, acrescido da elegância que se alça para o terreno do supérfluo.

Ela nasceu com o florilégio de todos os charmes possíveis, mil graciosidades, mil distinções, mil belezas que constituem, também, a sua incomparável glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Os Céus se alegram, os Infernos estremecem

Há um hino a Nossa Senhora do qual gosto muito, cujas estrofes afirmam:
“Se tu queres o Céu, ó alma, invoca o nome de Maria.
“Aos que invocam Maria, as portas do Céu se abrem.
“Pelo nome de Maria os Céus se alegram, os Infernos estremecem.
“O Céu, a Terra e os mares, o mundo inteiro se rejubila.
“Fogem as culpas e as trevas, as dores da doença e as úlceras.
“Aos vencidos se desatam os pés, e para os navegantes as águas se tornam mansas.
“Glória a Maria, Filha do Pai, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.”
É muito bonitinho, tem muita candura. Ao dizer isto, não o dissocio de Nossa Senhora altíssima, puríssima, reinando no Céu e, por causa disso, exercendo sobre a Terra essa ação benfazeja, mas enorme! Não há mares, não há trevas, não há coisas que Ela não domine, em razão de ser tão boa e estar tão alto.

 

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 6/7/1985)
Revista Dr Plinio 234 (Setembro de 2017)

Pedindo a união com Nossa Senhora e seus Anjos durante a luta

Ó Mãe Santíssima, são tão poucos os que perseveram na luta por Vós, pela Santa Igreja, pela Cristandade! Bem compreendemos que, sem o especialíssimo auxílio vosso, seria impossível alcançarmos qualquer vitória para vossa Causa.

Mandai vossos Santos Anjos para que lutem contra os vossos inimigos. Que cada um de nós seja tão receptivo à ação dos Anjos e à vossa, gloriosíssima Rainha, que nossos golpes contra vossos adversários tenham a força que teriam se fossem de vossos Anjos, ou até mesmo vossos.

Assim, vendo-nos humildes, desapegados, infatigáveis, intrépidos, arrojados na luta, os vossos inimigos humanos e infernais compreendam que pertencemos à raça da Virgem, à grei santa que sob vossas ordens exterminará a Revolução, levará à vitória a Contra-Revolução e implantará o vosso Reino. Não por força nossa, mas porque tudo podem aqueles a quem dais intrépido vigor.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 1977)

Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

Requinte e amor à Cruz

Por falta de amor à Cruz, as modas começaram a visar apenas o gozo da vida e foram perdendo a pompa e a majestade. Passaram do majestoso para o “raffiné”, do “raffiné” para o gracioso, do gracioso para o vulgar. A decadência da civilização se deu, no fundo, devido ao excesso de moleza que se projetou na arte, na literatura, na moda, na vida social.

 

Temos aqui um texto tirado da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, no qual São Luís Grignion, com uma linguagem inflamada, inculca mais especialmente a ideia das tribulações, por ver quanto o homem é tendente a fugir delas.

Deus nos visita por meio dos sofrimentos

[24] Não vos ufanais, caros amigos da Cruz, de serdes amigos de Deus ou de tal poderdes vos tornar? Resolvei, pois, beber o cálice que é preciso necessariamente beber para se tornar amigo de Deus. “Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt(1)”. O bem-amado Benjamin teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o frumento (cf. Gn 44, 1-12). O grande favorito de Jesus Cristo, [São João Evangelista], teve seu coração, subiu o Calvário e bebeu o cálice. “Potestis bibere calicem?(2)” É bom desejar a glória de Deus, mas desejá-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante: “Nescitis quid petatis(3)”.

“Per multas tribulationes oportet nos intrare in Regnum Dei” (At 14, 21): é preciso, “oportet”; é necessidade, é coisa indispensável, é preciso que entremos no Reino dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.

[25] Gloriai-vos com razão de ser filhos de Deus. Gloriai-vos, pois, das chicotadas que esse bom Pai vos deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia os seus filhos.

Como a ideia de um Deus que chicoteia seus filhos é destoante e pouco afeita à falsa piedade sentimental! Mas Ele chicoteia por meio das provações e das tribulações. Evidentemente temos que nos resignar a essa ideia de que são presentes dos melhores que Ele dá quando nos faz sofrer. Devemos permitir que Deus nos castigue, flagele, exatamente por ser o que convém aos homens.

Havia na linguagem portuguesa antiga uma expressão muito bonita que me lembro de ainda ter ouvido as beatas da Igreja do Coração de Jesus usarem. Então, uma velha conversando com outra diz: “Deus tem me visitado…” Eu era ainda menino e pensava: “Será que ela teve uma visão?” Mas a expressão ficou-me na memória e indica uma coisa muito bonita: cada dor que nos vem é uma visita de Deus. Ou então, Ele nos visitou por meio de alguém que nos fez sofrer. Esta é a visita de Deus; devemos recebê-la de boa vontade, abrir a porta para ela, amá-la, manter a nossa alma em alegria enquanto durar essa visita.

Essa ideia de que Deus visita alguém nós a encontramos no Antigo Testamento, quando das visitas que o Todo-Poderoso faz ao povo de Israel por meio de profetas. Mas há outra coisa que é essa visita de Deus pelo sofrimento. Então, a expressão me parece muito bonita.

Quem não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si

Se não sois do número de seus filhos bem-amados, sois – oh! que desgraça, que golpe fulminante! –, como o diz Santo Agostinho, do número dos réprobos. Aquele que não geme neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro como cidadão do Céu, diz o mesmo Santo Agostinho. Se Deus Pai não vos enviar, de tempos em tempos, algumas boas cruzes, é que já não Se preocupa convosco, está irado contra vós, olha-vos tão somente como a um estrangeiro fora de sua casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo que, não merecendo sua porção na herança de seu pai, não merece da parte d’Ele nem cuidados nem correção.

No Antigo Testamento acreditava-se que quando uma pessoa sofria era por ter cometido algum pecado. Portanto, sobre o sofredor recaía a suspeita de ser uma pessoa má. Pelo contrário, quem era feliz nesta Terra considerava-se como sendo bom, porque Deus estava premiando as boas ações que a pessoa tinha praticado.

Porém, aos poucos foi-se tornando mais explícita no Antigo Testamento a revelação de que havia uma vida eterna. Com isso, essa impostação foi-se modificando.

Já no Novo Testamento encontramos a ideia contrária: o homem sofredor é o amado por Deus, enquanto aquele que não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si.

Esse pensamento é muito importante, porque a maior parte das pessoas têm admiração por quem não sofre e um certo desprezo por quem padece. Essa é uma visão errada, pois quem é sofredor merece admiração, mas aquele que não sofre nada merece desconfiança, ou em breve Deus irá visitá-lo com o sofrimento.

Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria

[26] Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da Cruz é desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos. É, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em vão, em todas as academias da Antiguidade, um filósofo que o haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.

Isto é bem verdade. Nós encontramos alguma coisa histórica a respeito do sofrimento, mas é uma impostação diversa, uma espécie de faquirismo. Não é tomar a Cruz como Nosso Senhor Jesus Cristo a recebeu e, sobretudo, a graça para desejar a Cruz, pois sem a graça não se compreende isso. É uma coisa toda sobrenatural.

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre, e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente.

Este é um ponto fundamental para se entender essa sabedoria. Quem tem horror ao sofrimento, o espírito desmortificado, não é capaz de ter sabedoria. Pode participar de um curso sobre a sabedoria, fazer o que quiser, não adianta. Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria. Vou dizer mais: toda forma de aquisição intelectual ou de vitória moral, sem sofrimento, não tem valor nenhum. A única coisa que dá a isso algum valor é exatamente a Cruz.

Senhoras que transmitiam ao lar um perfume moral

É a Cruz a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa pedra filosofal que muda pela paciência os metais mais grosseiros em metais preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas em riquezas, as humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que melhor sabe levar a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B, é o mais sábio de todos.

Antigamente se encontrava um estilo de velha senhora sofredora. Às vezes, casada com um marido péssimo, colérico, que perdia a fortuna e o filho fazia coisas más. Muitas delas eram beatas de igreja, mas com estilo diferente das beatas sentimentais. Eram mulheres piedosas, que iam muito à igreja em dias de semana. Olhava-se para algumas delas e via-se que possuíam verdadeiramente uma resignação, uma dignidade de alma de chamar a atenção. Esse tipo de mulheres tinha sua respeitabilidade pelo fato de serem sofredoras. Assim, procurava-se bordar a mulher com a ideia de que ela deve sofrer, que habitualmente o casamento é um martírio, pois com frequência os maridos são ruins. Isso não é uma coisa normal, embora seja habitual. É justo que a mulher sofra com isso e ela deve aceitar esse sofrimento. A condição dela é, dentro de casa, levar todas as cruzes para dar ao lar a dignidade que a má conduta do marido não proporcione. Essa era a impostação de espírito existente em um bom número de senhoras, antigamente.

Então essas senhoras tinham uma dignidade de alma e uma elevação de vistas que excedia imensamente aos maridos. Eram elas que davam ao lar um perfume moral, um recolhimento, um recato, uma atração de que não se tem ideia mais hoje em dia. Mas é porque o espírito de sofrimento desapareceu. O pressuposto da ideia errada é justamente de que a mulher não deve mais sofrer, jogando de lado a Cruz de Jesus Cristo. Entretanto, o tipo feminino anterior a isso era, às vezes, de comover de tanta dignidade.

Alguém me contou o caso de uma senhora de minha geração que tinha um irmão sem-vergonha. Ambos eram solteiros. E ela aguentou o irmão a vida inteira, sendo ele, ao que parece, desse tipo de homens que chega bêbado em casa, derrubando objetos. De tanto beber, ele arruinou a família completamente e acabou morrendo. Pouco antes de falecer, o irmão chamou um criado muito fiel a ele e lhe disse: “Eu vou morrer. Logo após a minha morte, a primeira coisa que você deve fazer é ir à casa de minha irmã, ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe que mandei agradecer tudo o que ela fez por mim. E que eu até nem tenho palavras para agradecer tantos benefícios, e por isso mandei você ajoelhar para prestar esse ato de gratidão”.

A atitude desse homem, esta sim, dá uma certa esperança de que ele tenha se arrependido nos seus últimos instantes, e ainda tenha tido um último perdão antes de morrer. Terá sido, então,  a graça do perdão obtida por uma das tais mulheres a quem os maridos sem-vergonha, antes de morrer, pediam perdão, e os filhos, ao vê-la falecer, imploravam perdão também e levavam, chorando, o caixão dela para o cemitério.

O verdadeiro apóstolo é uma alma crucificada

Não há nada num ambiente que valha o tesouro da presença de uma alma resignada a sofrer. Esse gênero de pessoas dá bons conselhos. Pode até ser gente simples, sem experiência e, mesmo sendo a última da família, os outros a ela se dirigem na hora de uma crise moral para pedir um conselho. Almas assim são sempre, no fundo, as mais alegres do lar, e são elas que consolam as outras pessoas da família.

Já vi gente nadando em felicidade e dinheiro chorar junto desse tipo de pessoa, e pedir consolação. Esse é o fascínio, essa é a influência sem nome, a ação prestigiosa da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o tesouro das famílias. E porque acabou até isso, a família praticamente morreu.

Queira ou não queira, quando a alma aceita bem o sofrimento ela toma uma tal autoridade que se diria ser a pessoa crucificada um outro Crucificado. Quer dizer, diante da pessoa que aceita o sofrimento seriamente até o fim, os outros se alteram. Pode durar mais tempo ou menos, mas eleva a alma a uma grandeza que lhe dá uma força divina, e exerce uma influência sobre as almas que arrasta tudo.

Tome-se, por exemplo, um padre que seja verdadeiramente um penitente, um homem que carrega a cruz do sacerdócio de um modo sério. Pode ser o último padrezinho do interior, de batina já rota, esmolambada. Ele entra num ambiente, sente-se ser um sacerdote que aceita contente o papel de vítima. Podem rir dele e até matá-lo, ele dominou a situação. Na alma que tenha aceito a sua própria cruz há qualquer coisa de divino que nos leva a pensar o seguinte: o apostolado verdadeiramente vem do fato de que uma alma resolve e aceita sofrer. Aí se prepara o campo para os melhores discursos, as mais bonitas tiradas, as melhores coisas que sejam feitas. Mas é preciso que se trate de uma alma crucificada.

Isso nós precisamos sempre lembrar. No Reino de Maria, se não houver numerosas almas crucificadas, ele morre. Porque o prestígio da Igreja e a força da Civilização Cristã vêm das almas que sofrem.

O pobre que sofre alegremente e o doutor da Sorbonne

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre…

Escutai o grande São Paulo que, ao voltar do terceiro céu onde conheceu mistérios ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer pregar senão Jesus Cristo crucificado.

Regozijai-vos, pobre ignorante ou pobre mulher sem espírito e sem ciência: se souberdes sofrer alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne, que não soube sofrer tão bem quanto vós.

Podem imaginar o que era, naquela época, um professor da Sorbonne e qual o desafio que uma coisa dessas representava! Era a época em que os formados, já não digo os empossados no cargo, na maior parte das cidades onde havia universidade, eram montados num animal, acompanhados pelos parentes e toda a cidade em desfile. Vestidos de um traje de formatura, de alguém que está por cima, o doutor passeando no meio de todo mundo. E um membro da classe profissional era ainda muito mais. Chegar a dizer que o pobre ignorante é mais do que um doutor da Sorbonne…  Se os doutores da Sorbonne fossem levar a sério o que São Luís dizia, que injúria! É um desafio atirado ao espírito mundano.

[27] Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disso! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfume? A cabeça não tem um travesseiro para repousar, e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminhos? Seria uma monstruosidade inaudita.

Não, não, meus caros companheiros da Cruz, não vos enganeis, estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos, nem verdadeiros membros de Jesus crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ah, meu Deus! Quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são de coração seus inimigos. Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, Cruz – porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma coroa de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Isso deve ser visto como dito àquela gente de um século que levou o “raffinement(4)” o mais longe possível. E como merecido por eles por causa exatamente do sentido de gozo desse “raffinement”. Era um requinte que não vinha acompanhado de espírito de Cruz e, como resultado, causava horror à Cruz verdadeira. E que, por isso mesmo, dava em decadência. Cada vez mais, as modas iam sendo feitas apenas para o gozo da vida e perdendo a pompa e a majestade, passando do majestoso para o “raffiné, do raffiné” ao gracioso, do gracioso ao vulgar. Realmente, a decadência da civilização se deu, no fundo, devido a esse excesso de moleza dentro da arte, da literatura, da moda, da vida social.

Vemos, assim, em São Luís Maria Grignion de Montfort um homem que possivelmente não era um sociólogo, mas que percebia de longe coisas que homens de seu tempo não sabiam ver. Por quê? Não por ser ele muito inteligente, mas porque era um amigo da Cruz. A Cruz dá a possibilidade de ver as coisas que os outros não sabem ver.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1967)

 

1) Do latim: Beberam o cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus (da antífona de entrada na Solenidade de São Pedro e São Paulo).

2) Do latim: Podeis beber o cálice? (Mt 20, 22).

3) Do latim: Não sabeis o que estais pedindo (Mt 20, 22).

4) Do francês: requinte.

 

Moisés, prefigura do Redentor

Profeta, legislador e autor inspirado, Moisés surge como uma das maiores figuras do Antigo Testamento e extraordinário símbolo do futuro Messias, ao lado do qual apareceria no Monte Tabor, no dia da Transfiguração de Jesus. Um belo artigo do escritor e jornalista católico André Frossard (1915-1995), sobre Moisés, oferece a Dr. Plinio o ensejo de comentar significativas passagens da vida desse grande líder do Povo Eleito.

A revista francesa Historia publicou um artigo intitulado “Moisés”, de autoria de André Frossard, do qual selecionamos alguns trechos para lermos e comentá-los.

Tragédias e doçuras

Moisés, talvez o maior homem que tenha existido, pois Jesus Cristo é Deus.

Essa entrada, simplesmente magnífica, tem aquela síntese que caracteriza o espírito francês.

Sua vida pública iniciada aos 80 anos, se desenrola sob um céu tempestuoso, apenas iluminado de quando em quando pelo interlúdio pastoral de uma doçura sem amanhã.

Quer dizer, sua existência foi de tragédias, com alguns episódios dulcíssimos, mas logo depois seguidos por outras catástrofes. Após sua morte, que foi uma verdadeira beleza, houve sua glorificação. Pode-se dizer que caíram mil homens à esquerda e dez mil à direita dele (cf. Sl 90, 7).

Ele fez de Israel um povo, (…) uma religião em marcha, perfilado ao redor de sua lei, como um exército em torno de sua bandeira.

Como está bem expressa a obra de Moisés! Os judeus que viviam no Egito eram um mundaréu de escravos, sem direitos, sem constituição, formavam apenas um segmento racial, um magma étnico que ele transformou em povo e numa religião em marcha. Porque esta, realmente, adquiriu outra consistência, amplitude, outro porte ao longo dos 40 anos de peregrinação no deserto, que parecem inúteis. Porém, no decurso dessas quatro décadas eles se prepararam para ocupar a terra prometida.

Tiveram de percorrer um “rio chinês” para alcançar o objetivo. E, com uma síntese toda francesa, esse escritor expõe logo no início o que aconteceu. Quer dizer, durante essa prolongada espera eles se transformaram num povo e depois numa religião em movimento, “perfilado ao redor de sua lei como um exército em torno de sua bandeira”. Quando entraram em Israel, já estavam completamente estruturados para se tornar a grande nação que foram depois.

Vê-se, portanto, como o “rio chinês”, transitado pelos israelitas durante 40 anos, foi fecundo, e uma condição para chegarem à terra prometida. O que se aplica ao nosso movimento, pois também para nós o “rio chinês” é muito formativo. Um dia meus ouvintes o compreenderão melhor do que hoje.

Uma eloqüência que encheu o Antigo Testamento

A eloquência prodigiosa desse gago encheu o Antigo Testamento de sua sonoridade de bronze cujo estrondo wagneriano rola eternamente suas vagas possantes sob os céus pacíficos do Evangelho.

É fenomenal e dispensa qualquer comentário. Moisés de fato era gago, mas um gago de grande eloqüência!

Ele nasceu sob o signo da primeira perseguição anti semítica registrada na História, numa data que se hesita em fixar entre os séculos XV e XII antes da era cristã. Roma não era senão um débil ondulado de colinas desertas à beira do Tibre, e a Acrópole, um terraço desnudo, uma espécie de escabelo avançado junto ao mar, para uma representação de gênio que ainda não começara. A civilização seguia dois rios — o Nilo, o Eufrates — e começava a enxertar alguns frutos promissores numa ilha do Mediterrâneo, Creta, plataforma inicial das artes, das leis e das técnicas do mundo ocidental.

O Egito oferecia então  o modelo acabado dessas sociedades antigas, onde  se encontravam harmoniosamente combinadas, para a frágil felicidade de uma elite, uma alta inteligência religiosa curvada  para a magia, o mais extremado refinamento dos  sentidos e a mais refulgente dureza de costumes políticos. (…) Os judeus tinham sido atraídos um após outro para o Egito pela esperança segura que lhes dava o poder de José, filho de Jacó e Raquel, o qual se tornara, pela lucidez de seu gênio, o primeiro-ministro do reino. Receberam boas terras no país de Gessen, entre o delta do Nilo e os Lagos Amargos, onde atualmente passa o Canal de Suez. Em algumas gerações o país foi inundado por esses protegidos de José, multiplicados pela felicidade, até o dia — diz a Escritura — em que subiu ao trono egípcio um “rei que não conhecera José”…

Essas expressões da Bíblia Sagrada têm beleza poética característica. É o Espírito Santo que fala. “Um rei que não conhecera José”, quer dizer, se o tivesse conhecido, tal era José,
que a perseguição aos judeus seria impossível. Não se poderia lhe fazer maior elogio do que esse: “Não conheceu José”.

Mas, aqui não se trata de talento nem de gênio; é a inspiração. O tema sobe para outros páramos.

Cauteloso e esperto

…e que começou a lançar um olhar descontente sobre essa população exótica, cuja massa crescente ameaçava pouco a pouco o recenseamento. Então se iniciaram as desditas de Israel. (…) Um povo, outrora feliz, olha estupefato seus pulsos acorrentados; e, em milhares de peitos descarnados pelas galés, forma-se e sobe o soluço do exílio.

Portanto, devido aos maus tratos que passaram a receber, os judeus percebem que estão desterrados. Uma realidade descrita de modo extraordinário: “forma-se e sobe o soluço do exílio”.

Israel, extenuado em sua miséria, recebe a ordem oficial: todos os meninos recém-nascidos deverão ser lançados ao rio. Moisés é um deles. (…)

O destino de Israel flutuava sobre as águas, protegido da corrente por um fraco leque de caules. À pequena distância, a irmã da criança espreitava, e a própria mãe, um pouco mais longe, temerosa de denunciar o filho com sua presença, mas incapaz de se resignar a perdê-lo de vista, esperava um milagre. Foi então que apareceu a filha do Faraó, a qual viera banhar-se, seguida de suas servas. Tendo se aproximado do rio, ela percebeu a caixa entre os caniços, mandou que lha trouxessem, ergueu vivamente a leve cobertura do junco e descobriu, sobre um leito de folhas, um bebê que chorava. (…) Desde logo a filha do Faraó tratou o menino como um filho e lhe deu o nome de Moisés, “porque o tirei das águas”, dizia ela. O nome de Moisés é, com efeito, composto de “moj”, que significa água, e do final “esés”, salvo. (…)

Educado pelos melhores mestres, filho adotivo da princesa tornou-se um personagem muito importante, até o dia em que o espírito de justiça, que a convivência com os grandes deste mundo não pudera afastar de seu coração predestinado, o fez arriscar sem hesitação e perder de um só golpe, todas as honras e benefícios da proteção real.

Vendo um dia um egípcio maltratar um desses hebreus, seus irmãos, cujos sofrimentos lhe haviam sido ocultados até então, Moisés esperou ficar a sós com o que torturava, matou-o e enterrou-o na areia. Não havia ninguém nos arredores, e ele acreditou estar seguro de sua impunidade. Mas, no dia seguinte, iria medir a extensão de seu erro. Dois hebreus iniciaram uma discussão diante dele. Procurando separá-los, o mais agressivo dos dois gritou-lhe: “Quem te fez juiz? Terás, por acaso, intenção de me assassinar como o fizeste com o egípcio?”

Assustado e não duvidando de que o Faraó logo o buscasse para condená-lo à morte, Moisés fugiu para o país de Madian, do outro lado dos lagos, em algum lugar ao norte da península do Sinai.

Observem como Moisés era cauteloso. Hoje, dir-se-ia medroso. Na realidade, ele era esperto. Quer dizer, vendo que seu crime foi proclamado por um, pensou: “O Faraó me apanha!”. E imediatamente fugiu para longe, para um lugar seguro. Os que amam a segurança não tenham vergonha, pois Moisés, um herói, sabia amá-la. Prenúncio e símbolo de Nosso Senhor Durante muitos anos, Moisés levará, nas terras de Madian, uma existência obscura, que tudo permite supor feliz e faz lembrar, pela humildade de sua condição e pelo véu de intimidade que a encobre, a vida oculta de Jesus na oficina de Nazaré.

A vida dos profetas que antecederam a Nosso Senhor, não só prenunciava, mas prefigurava a do Redentor.

Na vida de Jesus e na de Moisés, um longo período de silêncio preludia as tempestades da vida pública, ilustrada inúmeras vezes por prodígios inesperados. Jesus multiplica os pães, e os flocos de maná caem ante Moisés; este atravessa o Mar Vermelho a pé enxuto, e Jesus caminha sobre as águas. Ambos surgem no meio de um povo subjugado, ao qual eles mostram a trajetória de um reino da libertação. Ambos dão uma lei ao povo judeu, ambos se transfiguram no alto de uma montanha.

Mas as verdadeiras concordâncias místicas escapam à fraqueza de nosso olhar e o paralelismo histórico limita-se às imagens. O sacrifício pedido à mãe de Moisés, a Mãe de Cristo dele sentirá todo o horror sobre o rochedo do Calvário.

Quer dizer, Nossa Senhora teve de fazer por Jesus um sacrifício semelhante ao da mãe de Moisés: esta expôs seu filho ao perigo, junto às correntes do Nilo, e a Santíssima Virgem entregou o Redentor à morte.

Os milagres de Cristo manifestam sua divindade, os milagres de Moisés testemunham a onipotência de um Outro. A Lei do Sinai, destinada unicamente ao povo judeu, distingue-o das outras nações, separa-o e lhe imprime o selo de uma elevação coletiva; a lei do Evangelho se dirige a todos os homens através do povo judeu e dá a cada ser humano vindo a este mundo o poder extraordinário de participar da existência de Deus.

Para o cristão, a terra prometida é uma prefigura do reino dos Céus, e a grande caminhada sangrenta dos hebreus para Canaã — com sua refulgente orquestração de heroísmos, de cóleras, de apostasias fenomenais, de arrependimentos e de perdões incomensuráveis — anuncia esta lenta aproximação da alegria pelo sofrimento e pelo amor, que se chamará vida cristã.

É a constatação de que o trajeto de nosso “rio chinês”, como o da maioria dos católicos, é muito parecido com o dos judeus daquele tempo.

Moisés lançou as bases da Bíblia, formidável trabalho de embasamento sobre o qual repousa para sempre a continuidade dos textos sagrados. Jesus nada escreveu, mas quando o último profeta colocou seu último vitral na noite da espera, ele fez entrar sua luz no edifício.

A imagem é lindíssima. Depois de São João Batista ter posto o último vitral, raia o Sol da Justiça, que é Nosso Senhor Jesus Cristo!

Único profeta escolhido face a face por Deus

Foi no sul do país de Madian, no maciço do Sinai, que Deus se revelou pela primeira vez ao pastor Moisés, através do crepitar de uma sarça ardente, mas cujos ramos não se consumiam no ardor das chamas. Aproximando-se para ver esse prodígio, Moisés ouviu uma voz que o chamava do meio da sarça, como uma mãe chama seu filho: “Moisés! Moisés!”

Linda interpretação dessa voz. À primeira vista, ter-se-ia a impressão de que ela deveria incutir medo; porém, o escritor a interpreta como a voz da mãe que chama o filho: “Moisés! Moisés!”
O missionário resiste à sua vocação. Sua humildade apresenta ao Eterno toda uma série de argumentos, dos quais o mais tocante surge como um refrão: ele gagueja. Quem escutará um líder atingido por uma tal enfermidade? (…) “Senhor, enviareis assim mesmo um gago como profeta?”

Sim, exatamente. O gago será profeta, e tão grande que — dirá o Deuteronômio — não haverá outro em Israel que se assemelhe a este sofrido “que Deus em seu amor escolheu, face a face”. É um elogio fabuloso, e uma belíssima ideia: Moisés foi o único profeta que Deus suscitou, face a face. O Criador lhe apareceu, conversou com ele e o elegeu.

Ladeado por seu irmão Aarão, munido de poderes sobrenaturais simbolizados por um bastão, Moisés foi pedir a liberdade de Israel ao Faraó, que respondeu por um acréscimo de maldades.

Ele vai, portanto, com Aarão, para que este falasse ao Faraó. Aarão é a palavra e Moisés, a presença. Percebe-se, assim, como a presença é mais do que a palavra. Vai munido apenas de uma vara. Imaginemos o palácio do Faraó, Moisés entrando, tomado de coragem — embora ele fosse um criminoso conforme a lei do Egito — e anunciando ao soberano a vontade de Deus. Houve então a conhecida luta entre os anjos, que praticavam milagres por ordem do Altíssimo, e os demônios que, através dos magos egípcios, imitavam os prodígios de Moisés.

Moisés enfrenta as resistências do seu próprio povo

Seguiram-se as nove pragas do Egito, e nem assim o Faraó se deixou tocar. Quando sobreveio a décima e a mais terrível — todos os primogênitos morreram numa só noite —, o soberano egípcio se declarou vencido e concedeu a liberdade aos judeus, a “passagem” (Páscoa, segundo o hebreu) ao povo de Moisés. Descreve o articulista:

Antes da aurora, grandes colunas de povo se puseram a caminho, sob o olhar fúnebre dos egípcios, que na porta de suas casas enlutadas os forçavam a apressar sua marcha. Fora da cidade de Ramsés, todas as colunas se uniram, formando ao redor de Moisés e de Aarão um mar imenso.

Que cena majestosa! Os judeus ficaram a noite inteira acordados, e os egípcios, humilhados, esmagados por um poder sobrenatural, deixaram sair de madrugada esses homens que para eles eram animais de carga. Depois de já terem perdido o rebanho, ficaram privados dos escravos. Era uma depauperação terrível para o Egito.

Cumpre ressaltar que Moisés, produzindo esses fatos, obteve grande vitória aos olhos dos seus perseguidores, mas diante dos judeus seu prestígio foi insignificante. É uma lamentável constatação: com freqüência as pessoas são prestigiadas quando praticam o mal, e não quando realizam o bem. Com o extraordinário Moisés não se deu de modo diverso:

Israel, precedido por uma coluna de nuvem, escura de dia, brilhante à noite, que lhe indica o caminho, ouviu de repente o ruído surdo do exército egípcio lançado ao seu alcance. A nuvem de pó que se elevava no horizonte trazia-lhe a morte, e pela primeira vez o povo apavorado se volta contra Moisés: “Não havia suficientes cemitérios no Egito para que nos conduzisses aqui tão longe para morrer? Não te dizíamos com razão, quando nos falavas de liberdade, que a servidão valia mais do que esse fim miserável no deserto?”

Aqui transparece como Moisés precisou vencer resistências para convencê-los a sair do Egito. Eles entraram, portanto, no deserto com alma minguada. Assim que se apresentou uma ocasião, cometeram infidelidade e demonstraram sua ingratidão. O normal seria que dissessem a Moisés: “Tu que provaste ser enviado de Deus, por favor, reza agora conosco e nos salva”. Não. Fizeram recriminações: “Nós é que tínhamos razão e não tu. Vamos nos render e nos entregar!”

É uma espécie de aversão a Deus, chegando ao ponto de querer regressar ao cativeiro. Em vez da solução confiante, tão suave e doce, optaram pela desconfiança e a vontade de voltar para a escravidão.

Antepor os egípcios a Moisés não é a mesma coisa que preferir Barrabás a Jesus? Pois isto o faz todo aquele que se deixa tentar na Fé ou numa virtude decorrente dela: a confiança.

Moisés opera o milagre da travessia do Mar Vermelho, e os judeus voltam a peregrinar pelo deserto:

Um solo árido, semeado de uma vegetação mirrada, onde os sofrimentos da sede e da fome levantaram contra Moisés novos tumultos, acalmados por outros milagres.

Assim é toda criatura humana. Recebe favores de Deus e, se não corresponder à graça, na primeira vez em que estiver acuada, diz: “Olha lá, vai acontecer o desastre que eu estava prevendo!”

É o “profeta de desgraças”, que atua de modo sempre errado.

Está-lhe reservada uma maravilhosa ressurreição

Os quarenta anos de êxodo que se seguiram serão feitos dos mesmos combates contra o desânimo, das mesmas adorações indignas perdoadas pela intercessão do profeta, e dos mesmos retornos violentos à santidade da Lei, tesouro supremo encerrado em sua arca de madeira e dirigida, de etapa em etapa, para as terras longínquas da felicidade. Apesar de sua estupenda familiaridade com o Céu, Moisés experimentou um momento de dúvida: nas terras ressecadas de Meriba, ante as tribos ameaçadoras que reclamavam água, Moisés, sob as ordens de Deus, tocou um rochedo com seu bastão para dele fazer jorrar uma fonte. Entretanto, em lugar de dar um só golpe, bateu duas vezes. Durante um instante imperceptível sua Fé cambaleou. E esse desfalecimento público, mal observado, lhe fechou a entrada da terra prometida.

Se já existisse Nossa Senhora com sua prerrogativa de Medianeira junto a seu Divino Filho, Moisés obteria através d’Ela o perdão, e entraria em Canaã…

Moisés era chefe de estado, juiz das doze tribos, patriarca, legislador e general, sem nada perder de sua humildade profunda, que estava na raiz de todas as suas virtudes, e à qual a própria Escritura prestará homenagem após a sua morte.

Foi um povo forte, enfim, que chegou à extremidade do planalto da Transjordânia, olhando para essa terra onde Moisés não entrará. Ele tinha 120 anos. Sua missão estava cumprida. Ele atingia o fim de sua viagem terrena. “Sua vista não se tinha enfraquecido, suas forças estavam intactas”. E, entretanto, ele sabia que não iria longe. A dúvida de Meriba o deteve na soleira de Canaã. Mas, não são os bens deste mundo que foram prometidos ao profeta, e a amizade de Deus se reservava o direito de consolá-lo em sua justiça.

Então, enquanto Israel fascinado lançava seus olhares em direção à planície de Jericó, “Moisés, o servidor de Javé, morreu no país de Moab, segundo a vontade do Eterno. E foi enterrado no vale. Ninguém até agora descobriu o seu túmulo”.

Os séculos passam, o túmulo de Moisés está intacto. Até hoje ninguém o encontrou. Podemos imaginar como será a linda ressurreição de Moisés, no dia do Juízo. Embora muitos pensem que todas as ressurreições serão iguais, devemos supor que todas serão esplêndidas para os eleitos, e horríveis para os outros, como o despertar de um frenético.

Assim como existirão ressurgimentos diferentemente hediondos, haverá os desigualmente belos. O de Moisés será belíssimo, maravilhoso, cercado de uma corte de anjos, etc., como convém à grandeza de sua vocação.

Conquistador suave e chefe humilde…

Na planície de Moab, os filhos de Israel choraram Moisés durante trinta dias, antes de caminharem para o Jordão, luto e alegria misturados em seus corações. Sem dúvida, a possante beleza desse caráter, o extraordinário gesto de energia que exige o governo de um povo fugitivo entre os terrores e os sofrimentos do deserto, sugeriram aos historiadores retratos de um Moisés como chefe de guerra e como ditador inspirado. Mas toda a força de Moisés lhe vinha de sua Fé em Deus, a qual sua humildade fazia brilhar. Não foi um déspota esclarecido nem um general infalível que Israel chorou nas portas de Canaã. Este conquistador era suave e este chefe era mais humilde que mais humilde de seus companheiros de caminho.

Em meio ao brilho fulgurante das armas e até sob a tempestade dos anátemas, sua vida tremulou ao sopro de uma imensa ternura vinda de outro lugar. Os homens reconhecerão este mesmo acento nas palavras de um outro, o próprio Amor desprezado expirando na Cruz sobre uma colina de Jerusalém.

A meu ver, mais não se poderia dizer de um homem. Está tudo dito, tudo feito.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Sob o signo da Cruz

E a vida e obra de Dr. Plinio, tanto em seu labor apostólico quanto nos combates pela Fé, encontraremos a inspirá-lo um acendrado amor à verdadeira Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como podemos atestar pelos pronunciamentos selecionados a seguir, ele concebia o trabalho e a luta sempre sob o signo da Cruz.

Professor de História que sou, habituado desde minha remota juventude a me debruçar sobre os fatos históricos à procura das Leis com que Deus pauta a existência, o porvir dos povos, e neles inscreve os sinais de sua misericórdia e de sua justiça, sempre me chamou a atenção um fato que tem a sua projeção sobre a realidade natural, até mesmo no mundo animal e vegetal.

Não é verdade que atinge a grandeza efetiva, durável e plena o povo que apenas trabalhou pela sua própria grandeza. A grandeza verdadeira se adquire quando, ademais, o homem, tomando conhecimento de que ele encontrará em seu caminho o adversário a agredi-lo na justiça de suas vias e na santidade de seus propósitos, prepara-se para a luta, enfrenta-a, confia na Providência e vence nessa luta.

Os povos que sabem aliar a luta ao trabalho, sob o signo da Cruz, tornam-se verdadeiramente grandes.

Quando o Brasil tomar para si esse dever de aliar luta e trabalho, qual será a sua grandeza? Ninguém poderá dizê-lo. Ele terá a grandeza de alma proporcionada ao vigor da luta que as circunstâncias lhe tenham imposto e ele saiba travar.

Sobre ele, eterno, imutável, brilhará o Cruzeiro do Sul, que já Pedro Álvares Cabral viu quando as naus com o signo de Cristo vieram aportar em nosso território. E o Brasil de hoje, voltando o olhar para o Brasil de ontem, e enlevado com o Brasil de amanhã, poderá exclamar: “Vivemos dias amargos, mas, pela graça de Deus, soubemos ser grandes, à altura de nosso povo, de nosso território, do Sinal da Cruz esculpido nos nossos céus!”

Contudo, em nossos dias, mais do que nunca, a grande cruz do homem é a espada. Ser combativo até o fim, com toda a energia, sem nenhuma tolerância podre, sem qualquer defecção, nem recuo medroso, isto é carregar a nossa cruz. Por vezes, devemos representar dentro da Igreja a espada.

Há, por assim dizer, três seções da Igreja: a Igreja gloriosa está no Céu, ela já venceu tudo, está na glória de Deus por toda a eternidade; a Igreja penitente está no Purgatório; a Igreja militante está na Terra, no combate. Se deixa de combater, não é militante. E se não é militante, não é Igreja Católica.

O desabrochar de uma alma não é um processo pacífico como o de uma flor. As almas desabrocham crucificando-se. A cruz para nós tem forma de espada. Nossa cruz é lutar!

Palácio esplêndido, digno, amplo, confortável, severo e forte

Meditando sobre o Palácio Comunal de Siena, Dr. Plinio imagina um varão de Fé que ocupa importante cargo municipal, à noite, passeando sozinho em seus belos salões, enquanto toda a cidade dorme, e apenas de vez em quando um tilintar dos relógios e dos sinos fazem entender a hora que passa. Ele está rezando, quer prestar serviços à Igreja e em certo momento se interroga: “Quantos homens vão sair para a Cruzada?”

 

Com seu isolamento naquela natureza agreste de Subiaco(1), São Bento estaria preparando graças para uma quantidade incontável de pessoas mais fracas, chamadas para coisas menores, mas assim mesmo atraídas para o Céu.

Talvez não para tomarem assento entre os Serafins e os Querubins, mas entre os Anjos, tão respeitáveis e esplendorosos, de menor posição na hierarquia que compõe a celeste e harmoniosa desigualdade dos coros angélicos. E que nessas condições, toda uma coorte de almas menores haveria de vir e viveriam em condições menos heroicas, mas que deveriam ter um reflexo daqueles esplendores meditados pelo grande São Bento na solidão.

Sociedade temporal marcada pela sociedade espiritual

Era preciso, portanto, que houvesse uma vida religiosa no ápice de toda a existência humana, e abaixo dela a vida temporal, dos homens que se entregam às atividades temporais. Porque Deus quis que fosse assim, que esses religiosos tivessem também um alto pensamento, uma alta mentalidade, altos anseios, e engendrassem uma sociedade temporal toda marcada por aquela sociedade espiritual.

No Paço Municipal de Siena notam-se esplendores nascidos com São Bento e sua obra, na solidão de Subiaco. Consideremos alguns aspectos desse belo edifício destinado a ser uma simples prefeitura municipal.

Creio que esses dois relógios do Palácio Comunal não funcionam mais. Nessa fotografia, o Sol parece indicar qualquer coisa de matinal, de um dia que nasce, e não aquele calor meio pesadão do meio-dia. A praça está praticamente vazia, percebem-se algumas pessoas, mas que se perdem na vastidão do local. Por isso, se tem a impressão de que toda a História conseguiu fugir do século XX e voltar, afinal reconfortada e quase sem fôlego, para os séculos nos quais ela não tinha em torno de si a não ser homens com Fé.

Um poder exercido em nome de Deus

Notem a vastidão lisa da praça e o contraste entre os dois aspectos: o palácio e o resto. O resto é decente, mas o palácio se ergue como um rei dominador, pronto para governar as outras casas. Dir-se-ia que ele tem quase um olhar, através daquele relógio que lhe serve para ver as coisas. Um olhar ordenador, de quem conhece qual é o lugar próprio para cada coisa, qual é o bem decorrente de que ela esteja em seu posto, e que cobra pelo olhar a cada coisa que se mantenha no lugar em que se encontra, não tolerando que desça quem deve estar em cima, nem que suba quem precisa ficar em baixo.

Vê-se, assim, o palácio esplêndido, digno, amplo, confortável, severo e forte, que não depende a não ser de si para governar, e que exerce essa função tão parecida com a de Deus: governar os homens. O poder que se aloja ali representa eminentemente o poder divino de governar os homens. É um poder exercido em nome de Deus, embora se trate de um poder temporal.

O poder espiritual tem uma investidura divina. O cargo foi criado por Deus que investe, pelas mãos da Igreja, o homem que o exerce. É o que se dá com o papa, o bispo, o pároco também. A dignidade de papa, de bispo ou de pároco é criada pela Igreja. Nosso Senhor Jesus Cristo criou o cargo de São Pedro e dos Apóstolos; portanto do papa e dos bispos. A Igreja criou o dos párocos. É ela quem investe. Tudo se faz no puro terreno natural.

Mas há a autoridade terrena, que preside a ordem temporal, rege as coisas temporais e nasce da ordem natural das coisas posta por Deus. O Criador dispôs as coisas de tal maneira que o homem precisaria ter uma autoridade para governá-las, ainda que não houvesse pecado original. Mas essa autoridade indispensável no Paraíso terrestre é clamorosamente indispensável nesta Terra com pecado original. Ou as pessoas são governadas segundo Deus, orientadas por Ele, e se salvam, ou, rejeitando a Deus, elas vão para o Inferno. O que eu estou dizendo não é nada autogestionário. É um dos melhores aspectos do que estou afirmando.

A natureza e a graça se osculam

Esse poder se exprime aqui não com a leveza e o esplendor das coisas sobrenaturais, como, por exemplo, na Igreja de Orvieto, com aqueles mosaicos coloridos. A natureza é mais pesada do que a graça. Ela nasce do chão, santa e legitimamente, mas é do solo que ela vem. A graça baixa do Céu. Elas se encontram e se osculam, como a natureza serva oscula os pés da graça que é senhora.

Mas os homens que exerciam o poder no tempo em que esse palácio foi construído, e a mentalidade dos que moravam nesse lugar, estavam profundamente compenetrados da ideia de que quem governa, ainda que seja na ordem temporal, governa por ordem, por desígnio de Deus. Ele quer que isto seja assim, que alguém governe os outros homens, seja obedecido, pois esse alguém governa em nome de Deus.

Ele precisa para isso, além da graça, também da força. Não estou dizendo que ele necessita mais da força do que da graça, mas afirmo outra coisa. A graça precisa, nas vias da Providência, algum tanto da força para completar a sua obra. Mas a natureza necessita muito mais. Um governo não tem o dom de persuasão para mover as almas, como possui a graça. E quem não pode persuadir e precisa mandar, deve agarrar pelos ombros e se fazer obedecer. Por isso vemos um ligeiro ar de fortificação, de quartel, de palácio, em cujo porão bem pode caber uma prisão. Isso não se dissocia do conjunto de majestade desse edifício.

Além de governar os homens, o Estado tem a missão de defender a Igreja

Mas há uma coisa interessante. Vistos nesse aspecto, aqueles dois torreões que estão nos ângulos do corpo central parecem braços e mãos erguidos para o Céu, pedindo a ajuda de Deus para o exercício de mando das coisas temporais.

O palácio assim é, como deve ser, muito ligado às coisas temporais, porque o poder do Estado é este. Mas o que fica por detrás, o pressuposto religioso da autoridade do Estado, a missão deste de velar, para proteger a Igreja contra as agressões, garantir a expansão dos missionários por toda a Terra, de maneira a poderem pregar livremente a palavra de Deus sem que ninguém use da força contra eles, o poder de coibir as heresias declaradas como tais pela Igreja e de impedir que elas se expandam, apenas tolerando que tenham um lugar encafuado e envergonhado sobre a face terrestre, isto indica quase que a missão de Cruzado do Estado.

O Estado tem, ao lado da finalidade de governar os homens, uma missão muito mais alta, a de servir para defender a Igreja. Este lado altíssimo do poder do Estado é muito bem representado pela torre, que vai alto, alto e alto, e diz: “Vós, olhando para o lado temporal das coisas, notais toda a minha figura temporal. Vede como ela é bela! Mas vós não vistes nada, não conheceis minha missão divina: Olhai!”

Esta seria uma pequena meditação sobre a praça do Paço Municipal de Siena.

Tal meditação se opõe à atitude psicológica de um número incontável de turistas que enchem isto durante o dia. Eles não têm nem sequer essas ideias, nem esses pressupostos, não se colocam nesses antecedentes históricos. Em consequência, cuidam de chupar – porque a palavra é bem essa – uma orchata, ou de beber uma cerveja, comer um sanduíche ou qualquer coisa nas numerosas mesas que, nos dias de verão, coalham essa praça.

Dir-se-ia que esse palácio, atualmente, é apenas um remanescente histórico o qual, à maneira de um animal pré-histórico, os arqueólogos tiram do meio dos gelos e dizem: “Esse é um mamute”. Aqui são os ossários da Civilização Cristã…

Erguer as almas para o Céu

O interior do palácio está coberto de pinturas de um grande valor. É interessante notar como o espírito católico aproveita os ambientes. Em Subiaco foram as vastidões que, tendo como cúpula o céu, alimentaram a meditação de São Bento. Aqui o teto, que parece baixo em virtude de quão baixos são esses arcos, convida a uma outra forma de meditação: é o recolhimento do espaço pequeno.

As pinturas assemelham-se a um grande livro que trata de cenas eclesiásticas, históricas, etc., em que o homem pode meditar sobre as coisas de Deus. E um espírito meditativo e pensativo sobre as grandes responsabilidades, os grandes serviços que pode prestar para a salvação das almas e para o bem dos homens e, sobretudo, para o serviço da Igreja, encontra aqui um lugar ideal para passear sozinho enquanto toda a cidade dorme, e apenas de vez em quando um tilintar dos relógios e dos sinos fazem entender a hora que passa, e ele está rezando e pensando, rezando e pensando: “Quantos homens vão sair para a Cruzada?”

Parece haver no interior do palácio um dossel para um altar, e que no fundo há um quadro sacro com velas e figuras de Anjos, ou outros personagens com auréolas de Santos. Tenho a impressão de que se trata de uma capela onde se realizam cerimônias religiosas, notadamente a Missa. Não me espantaria que, em todas as manhãs, os trabalhos da municipalidade fossem abertos por uma Missa oficiada por um capelão da Prefeitura; e nos dias de festa o próprio Arcebispo de Siena, seguido de seu clero, seus cônegos, a celebrasse. E para além da grade ficassem as autoridades e, olhando entre os desvãos da grade, o “popolino” de Deus. E que a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário precedesse, todos os dias, e a bênção do Santíssimo Sacramento encerrasse, todas as noites, os trabalhos da Prefeitura.

Comparem com qualquer Prefeitura de hoje, e eu pergunto: Qual das duas levantam mais as almas para o Céu? E no erguer as almas para o Céu, há um “élan” dado pela graça, que homens como São Bento conquistaram, sofrendo e se tornando solitários nas grutas de Deus.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1988)
Revista Dr Plinio 245 (Agosto de 2018)

 

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 244, p. 27-35.

 

O Santo da combatividade e da caridade

São Vicente de Paulo era, ao mesmo tempo, o Santo da combatividade e da caridade.

Da combatividade em dois terrenos: o doutrinário, no qual ele combateu meticulosamente os jansenistas, de maneira política e estratégica, em Roma, na corte do rei, na nobreza, no clero, no povo, com sua imensa influência pessoal. Além dessa forma de combatividade intelectual, ele também quis armar uma Cruzada contra Túnis, e com este intuito dirigiu-se ao Rei de França.

Ao mesmo tempo, ele era o Santo da caridade, da compaixão. Encontramos nesta conjunção uma rara manifestação de bom espírito. Segundo a opinião corrente, quem é muito combativo é pouco compassivo, e quem é muito caridoso não é pugnaz.

Ora, se a combatividade e a compaixão são virtudes, não pode haver entre elas uma incompatibilidade. Pelo contrário, todas as virtudes são irmãs. Por isso, quem é santamente compassivo é combativo; e quem é santamente combativo é compassivo.

Nessa junção entendemos o que é o bom espírito envolvendo virtudes aparentemente antitéticas. Isso nos explica a alma do grande São Vicente de Paulo, ao mesmo tempo tão combativa e compassiva, bem como a de todos os outros Bem-aventurados, inclusive dos Santos cruzados, inquisidores e os que fundaram ou se santificaram em Ordens de Cavalaria.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/7/1965)
Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

 

São Gregório Magno – Fundador da Idade Média

No início da Idade Média, o povo romano, embora participante dos males da época, discernia o homem santo do não santo e ia ao encalço do varão virtuoso para colocá-lo no Papado, como sucedeu na eleição de São Gregório Magno.

 

São Gregório Magno foi considerado o fundador da Idade Média no Ocidente. A respeito dele temos as seguintes indicações biográficas(1).

Enviado a Constantinopla pelo Papa

São Gregório nasceu em Roma, filho do rico senador Jordano. Uma juventude estudiosa o tornou, pela variedade dos conhecimentos, digno de ser elevado à dignidade de pretor pelo Imperador Justino, o Jovem. Ele se tornou, no cargo, tão notável pelas luzes de seu espírito, a maturidade de seu julgamento e o amor extremo da justiça, que ficou conhecido na Cidade Eterna.

A única coisa que se imputava a ele era um grande luxo e um esplendor inteiramente mundano em suas roupas e em seus hábitos, e tudo fazia temer que ele dissipasse a imensa fortuna que lhe tinha deixado seu pai. Mas, por ocasião da morte de seu progenitor, Gregório, cuja piedade tinha lutado incessantemente contra seu fausto, apareceu, de repente, como um homem novo. Ele fundou sete mosteiros, dos quais seis na Sicília e um em Roma; distribuiu aos pobres seus ricos trajes, seus móveis preciosos e tomou o hábito monástico no claustro de Santo André, do qual se tornou abade, contra sua vontade, pela escolha de seus irmãos.

O jejum, a oração e outras práticas de piedade tornaram-se suas ocupações únicas. Impressionado pela beleza de alguns jovens ingleses expostos como escravos, à venda no mercado de Roma, e sabendo com dor que esses insulares não eram cristãos, ele obteve do Papa Bento I a autorização de ir pregar a Fé na Grã-Bretanha. Entretanto, mal ele se pôs a caminho, o clero e o povo o obrigaram a retroceder.  

Feito diácono da Igreja Romana no ano de 578, ele foi enviado a Constantinopla pelo Papa Pelágio II, mais ou menos no ano de 580. Várias negociações importantes o detiveram por muito tempo na capital do Império do Oriente, onde ele adquiriu a estima de toda a corte.

Por ocasião de sua volta a Roma, o Papa Pelágio se esforçou para retê-lo junto a si, na qualidade de secretário. Mas Gregório não quis aceitar esse cargo e por isso, à força de orações, ficou, afinal de contas, com a liberdade de se retirar junto a seus monges. Porém, por ocasião da morte de Pelágio, as aclamações de Roma inteira o chamaram ao papado. Gregório estremeceu de temor. Ele fugiu da Cidade Eterna e escreveu ao Imperador para suplicar que não confirmasse sua eleição, e escondeu-se numa caverna. Mas o povo o descobriu, levou-o a Roma e o entronizou, apesar de sua oposição, no dia treze de setembro de 590.

Converteu os lombardos e destruiu o arianismo

Esse santo homem tinha, entretanto, inimigos que o acusaram de dissimulação e de hipocrisia. A sua vida inteira repudia essas acusações. Sua modéstia, sua humildade se manifestaram pela simplicidade de sua casa. Suas rendas foram consagradas ao alívio dos pobres. Sua constante ocupação era a instrução do povo.

De acordo com o Imperador Maurício, ele terminou com o cisma dos bispos da Ístria. A conversão dos lombardos e a destruição do arianismo foram também seu trabalho; e ele testemunhou uma alegria extraordinária pelo fato, nas cartas à Rainha Teodolinda. Gregório não tinha esquecido a Grã-Bretanha. Seus missionários que partiram em 595, sob a conduta do monge Agostinho, chegaram dois anos depois ao Reino de Kent, onde a Rainha Berta tinha preparado o ambiente. O Rei Etelberto e uma grande parte de seu povo se converteram.  

Gregório teve menos trabalho em reformar a Liturgia do que a disciplina. Depois de ter composto um Antifonário, ele elaborou o Psalmodius com salmos, orações, cânticos. Instituiu uma academia de cantores e, de chicote em punho, ele mesmo dava aos jovens clérigos lições de cantochão.

Quanto aos templos pagãos, ele queria que fossem respeitados, mas transformados em igrejas. Tantos trabalhos e fadigas não eram próprios a curá-lo das enfermidades que não cessavam de o assediar. A gota o retinha frequentemente por longo tempo de cama, e as horríveis dores causadas por essa doença não detinham sua atividade prodigiosa. Nenhum Papa escreveu mais cartas do que ele. Gregório tinha um tato maravilhoso para distinguir a verdade e a calúnia, nas acusações que lhe levavam contra os padres. Os falsários, os bruxos, os simoníacos, os cismáticos, tiveram nesse Papa um adversário terrível.

Esse grande pontífice morreu no dia doze de março de 604, depois de treze anos, seis meses e dez dias de pontificado. Os comentários que ele fez da Sagrada Escritura exerceram no pensamento cristão da Idade Média influência considerável, que lhe valeu o título de Doutor. É, com Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerônimo, um dos quatro grandes Doutores da Igreja latina.

Verdadeiro fundador da Idade Média

É muito merecida a consideração de que São Gregório Magno foi o verdadeiro fundador da Idade Média, porque, quer enquanto era um simples sacerdote, ou ainda um diácono, quer depois de ser elevado ao pontificado, notamos nos traços de sua vida que ele, de algum modo, acabava de fechar a última réstia da porta que separava os homens da antiguidade pagã, e abria, por outro lado, a porta para a idade nova que ia nascer.

Do ponto de vista da antiguidade pagã, vemos como São Gregório combateu os restos do paganismo. Determinou que as últimas igrejas pagãs ainda existentes não fossem destruídas, mas transferidas para o culto católico.

Ele exterminou o arianismo, que era uma praga proveniente ainda do tempo do Império Romano do Ocidente, quando os arianos penetraram na Europa, perverteram os bárbaros que invadiram esse Império. Liquidou com a imoralidade e com outros inconvenientes decorrentes da era antiga e, ao mesmo tempo, nos aparece como o construtor da era nova. Foi um grande fundador de conventos, e a expansão da vida cenobítica é um dos fatos mais característicos do começo da Idade Média.

São Gregório, de outro lado, trabalhou pelo cantochão. E é interessante imaginar o grande Papa, Doutor da Igreja, político eminente, ensinando cantochão para os seus alunos, não de vareta em punho, mas de chicote. A imagem é pitoresca e pediria uma iluminura, ou talvez um vitral.

Com a fundação do cantochão ele propriamente deu voz à Idade Média. Porque o cantochão foi a grande voz cantante da Idade Média, de ponta a ponta. E transmitiu o seu caráter à vida beneditina que São Bento tinha lançado, mas que ainda não tinha tomado todo o seu cunho de firmeza e definição que adquiriu com ele.

Todos os problemas do tempo passaram pela sua mente

É admirável, na vida de São Gregório Magno, o sentido missionário impulsionando as missões na Inglaterra e na Irlanda. Daí o deflúvio da grande corrente dos missionários que, da Inglaterra e da Irlanda, voltam para o continente onde iriam desbravar a Germânia e deitar as sementes da Idade Média.

Vemos, ao mesmo tempo, esse homem tratar, mas inutilmente, da grande chaga da Cristandade naquele tempo: o Império Romano do Oriente, cada vez mais tendente ao cisma. Esse império cambaleava sempre entre a heresia e a verdade católica. E por fim, como todos sabem, acabou ruindo. Mas ele tentou segurar esse muro da cidade de Jesus Cristo que ameaçava cair, e aí vemos mais um exemplo da suma ingratidão de Bizâncio diante do zelo dos Papas.

Mandar para lá homens como esse, que chegam até a ser benquistos e a conquistar influência, mas não conseguem arrancar a cidade maldita, a cidade pervertida, da sua imoralidade, moleza, imprevidência e de seu pendor para a heresia. Assim, pode-se dizer que todos os problemas do tempo passaram pela mente desse grande homem. Ele os analisou, os enfrentou e, ao mesmo tempo, escreveu obras que foram pilares do pensamento medieval.  Vida riquíssima, admirável, toda voltada ao sentir da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

São Gregório se encontra no Céu. Se ele ressuscitasse, o que diria deste mundo de hoje tão diferente do mundo que conheceu?

Ele viveu numa época dura, de desordem e até de crimes berrantes. Contudo, o povo que participava dos males da época ao mesmo tempo aclamava um santo como Papa. O santo fugia do povo e este ia ao encalço do santo, e o colocava no papado. Era um povo capaz de discernir o santo de quem não era santo, e de preferir o santo em relação ao não santo. Hoje seria a mesma coisa? O povo iria ao encalço do santo para levá-lo ao papado? Como tudo mudou…

Roguemos a São Gregório Magno que interceda para conseguir que a nossa época, depois das punições purificadoras pelas quais deve passar, se transforme numa nova Idade Média, ainda mais requintada. Pedido que ele compreenderá, pois foi um dos fundadores da gloriosíssima Idade Média!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1967)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos.

Errata: Na seção “Hagiografia” do n. 233, p. 21, na legenda onde está escrito “Papa São Silvestre”, leia-se “Papa Silvestre II”.