“Meu filho…”

Ao tecer enlevados comentários a uma passagem do livro do Eclesiástico, Dr. Plinio nos mostra a Sabedoria divina ensinando aos filhos de Deus — verdadeiro Pai e protetor dos que O amam — a paciência, a humildade e a confiança, especialmente nos momentos de infelicidade e provação nos quais a alma se edifica e se modela, conformando-se aos desígnios que lhe reserva a Providência.

 

Inspirados pelo Divino Espírito Santo, os livros da Bíblia estão permeados de uma riqueza de ensinamentos, aliada a uma beleza literária e poética, que nunca cansamos de admirar e haurir para o engrandecimento de nossa alma.

A título de exemplo, consideremos os seguintes versículos do Eclesiástico (2, 1-6;11-12):

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Inefável timbre da Escritura

A Escritura como que possui um timbre de voz próprio, em virtude do qual quando diz “meu filho”, sente-se realmente o desvelo materno ou paterno para com seu filho. Quase nos tomamos de remorso ao ler tais palavras em voz alta, acrescentando nosso verbo ao inefável, mas verdadeiro, que os livros sagrados expressam.

Nota-se, aliás, um reflexo desse predicado na frase que São Bento escreveu na introdução de sua regra: “Escuta, filho meu,  os preceitos do mestre, e inclina o ouvido do teu coração. Recebe de bom grado o conselho de um bom pai, e cumpre-o eficazmente, para que, pelo trabalho da obediência, voltes Àquele de quem te havias afastado” (Regra de São Bento, Prólogo).

Dever-se-ia aprender a exprimir frases semelhantes, não se fazendo a pergunta: “Qual o melhor efeito que posso tirar de minha voz pronunciando essas palavras?”, mas formulando outra indagação: “Qual o timbre com que a Escritura afirma tal coisa? De que modo posso obrigar minha laringe a emitir os acentos dessa voz inspirada por Deus?”

Esta última seria a disposição correta para se saborear a beleza do texto do Eclesiástico acima citado.

Humildade e paciência

Então diz o autor sagrado:

Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação.

Ou seja, na prática das virtudes e no temor de Deus, preparamos nossa alma para o momento da tentação. É um esplêndido conselho! “Começastes a amar o Criador? Atenção: prepara-te, pois a provação virá.”

E prossegue:

Humilha teu coração, espera com paciência…

É interessante notar a correlação estabelecida pela Escritura entre humildade e paciência. O homem humilde espera com paciência; o orgulhoso se exaspera com a demora.

Dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade.

Ou seja, no tempo difícil, não tenha pressa em sair dele. É o que a sabedoria sussurra em nosso espírito. Trata-se de outro ensinamento admirável.

Suportar a demora com heroísmo

Sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

“Sofre” aqui significa aturar, suportar. Pelo que se depreende do texto, a vitória é concedida a quem sofreu com paciência. Paciência esta que não é indolência, mas a virtude forte por onde se aguenta a dor da espera. E ai do homem para o qual a demora não representa uma dor! Ai daquele, portanto, que não suporta pacientemente o sofrimento da espera!  Deve fazê-lo como um herói. Nisto se acha a beleza desse conselho do Eclesiástico, numa íntima conexão com aquele da humildade.

O homem reto poderia pensar: “Minha paciência me dá o direito de presenciar em vida a realização de tudo que desejo, o triunfo da Igreja no Reino de Maria”. É verdade… Porém, por humildade, devo compreender que Deus faz de mim o que quiser. Posso, inclusive, ser posto de lado em seus divinos planos. Resultado, essa provação me granjeará riquezas no fim de minha existência: “…no derradeiro momento tua vida se enriqueça”.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência.

Em outros termos, sinta a dor, sofra, porque é terrível o que te acontece. Não sejas um inerte e tolo que, à força de apanhar, não tens mais dor. Não. Suporta teu sofrimento, por amor a Deus. Adiante!”

Não se trata de uma atitude simples de ser tomada, mas é profundamente formativa.

Deus prova aquele a quem ama

Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Quer dizer, a quem Deus ama, fá-lo passar pela humilhação. Como diz o Salmista, “de torrente in via bibet” (Sl 109, 7) — “beberei da torrente do caminho”, isto é, sofrerá grandes abatimentos, depois dos quais poderá chegar aos píncaros. Tais humilhações hão de estar no seu caminho nesta ou naquela ocasião, ou durante a vida inteira, conforme os desígnios do Altíssimo, que por isso aconselha: Sê paciente e caminha!

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Outra bela expressão do autor sagrado, indicando que devemos, até o fim dos nossos dias, cultivar não apenas nossa confiança no socorro divino, como também o temor filial e reverencial a Deus.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?

Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram.

Para dizer tudo numa palavra, esses versículos se compaginam de modo maravilhoso com a tocante súplica dirigida por São Bernardo a Nossa Senhora, no Lembrai-Vos: “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenham recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado…”

Guiados pela sabedoria, ao encontro da Santa Igreja

Para concluir esses comentários, recordo outra linda passagem da Escritura, desta feita do Livro da Sabedoria (6, 12-17):

Resplandecente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente. Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam. Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta. Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado. Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos, porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

Desdobrando o luminoso pensamento contido nesse trecho, pode-se deduzir que se um homem, ao longo de sua existência, encontrou o que deveria procurar, no fim de seus dias poderá dizer: “Eu vivi!”. Do contrário, lamentar-se-á: “Andei pelas ruas como um cão sem dono, comi nas latas de lixo, bebi nas sarjetas, dormi na garoa, na chuva e ao sol, porém não vivi. Porque não encontrei a mão amiga que me agradasse, o dono que me afagasse. O cachorro foi criado para ser fiel e eu, para servir. Mas, não achei senhor. Tive uma via vazia e morro de modo desprezível”.

E se a pessoa, em qualquer etapa de sua existência — infância, juventude, idade madura, ancianidade — procura realmente o que deve, ela encontra, na proporção de seu entendimento em cada uma dessas etapas, a sabedoria. Esta se acha à nossa porta, esperando-nos despertar. Ao acordarmos, ela, com seu esplendor de rainha, suas carícias de mãe e iluminações incomparáveis, convida-nos a segui-la.

E, deixando-nos guiar pela sabedoria, encontraremos os esplendores ainda maiores da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 102 (Setembro de 2006)

 

Protetores e advogados do homem

Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Força e doçura

Objeto de nosso enlevo e admiração, a extraordinária figura do Imperador Carlos Magno se destaca na história da Cristandade, por ser ele o grande protetor da Igreja no seu tempo, e um dos fundadores da Europa católica. Já tive ocasião de externar o quanto seu exemplo se fez valioso em minha formação, desde aqueles remotos dias em que o “encontrei” pela primeira vez, numa revista comprada na estação ferroviária de São Paulo(1).

Entre outras inestimáveis marcas deixadas por ele na cultura e na arte da Civilização Cristã, temos o legado de sua presença em Aix-la-Chapelle (a atual cidade alemã de Aachen), aonde fazia tratamento com águas minerais e ali residia num palácio do qual restam lindos vestígios. Foi igualmente de sua iniciativa a construção da esplendorosa catedral da cidade.

Como se sabe, a escultura foi uma das manifestações artísticas mais desenvolvidas pela Idade Média, de modo especial cultivando e desenvolvendo o estilo gótico. Na Catedral de Aachen, assim como em outros importantes templos medievais, percebemos isto de curioso: nas imagens que adornam os pórticos e as fachadas há sempre uma junção de paz e serenidade profundas. Sobretudo em se tratando de personagens masculinos, temos homens grandes, fortes, vigorosos, dando-nos a impressão de serem netos ou bisnetos de um bárbaro. Ou serão protagonistas de cenas bíblicas, patriarcas veneráveis, de barba possante e a coragem de guerreiros.

Entretanto, neles transparece a doçura e a tranqüilidade. É a nota componente da Idade Média, um tanto esquecida no mundo contemporâneo: a ligação harmoniosa entre a fortaleza e a doçura. Homens fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos bárbaros — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E dão origem a esse ambiente de suavidade, nascido de um passado repleto de lutas e sofrimentos, mas também pleno de oração, de piedade, de obras de caridade e misericórdia. Foi na Idade Média que se construíram os primeiros hospitais no mundo.

Tudo isso se eternizou nas pedras e nas recordações históricas, como as da Catedral de Aachen. No seu interior, ela nos mostra altas arcadas, com dois andares de colunas, atrás das quais reluzem bonitos vitrais, e o majestoso lustre, acrescentado no século XII pelo Imperador Frederico I, como símbolo da Jerusalém celeste, pendendo do teto adornado de mosaicos com cenas sacras.

Na catedral se conservam dois objetos de imenso valor. Um, a mais bonita peça de ourivesaria por mim conhecida, é o relicário contendo os restos mortais de Carlos Magno.

O desenho é de uma basílica, toda lavorada com aplicações de prata dourada, verniz, filigranas com pedras preciosas e esmalte. Circundam-na as imagens de oito reis do Sacro-Império, sucessores do grande Carlos, desde Luís o Piedoso até Frederico II. Na parte da frente, sobre a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo triunfante, vê-se o Imperador no seu trono. Na face posterior aparecem a Santíssima Virgem com o Menino. Além disso, os relevos do teto representam cenas da vida de Carlos Magno. O conjunto desta peça impressiona pela proporção e a harmonia perfeitas dos seus vários elementos.

O outro objeto de que falamos é uma gloriosa reminiscência do Sacro-Império: o famoso trono de Carlos Magno, sobre o qual, a partir de meados do décimo século, os reis medievais recebiam a dignidade de soberanos.

Do ponto de vista estritamente artístico, é mais rústico e, portanto, menos bonito que o relicário. Porém, a preocupação de se produzir algo belo e nobre está presente na quantidade de mármores de que é feito. Como esse gênero de pedra não era achado na região de Aachen, era preciso importá-lo de outros territórios, transportando-o a dorso de mulas por estradas difíceis, escoltadas por grupos armados, enfrentando-se o perigo de saques e de acidentes provocados pelas intempéries e precipícios.

Depois dos longos trajetos, o mármore afinal chegava e vinha enriquecer o trono do magno Imperador. Uma vez terminado, Carlos o mandou instalar no andar superior da catedral, num ponto de onde ele, assentado, podia ver o altar e assistir à Missa. Então, posto nessa conveniente eminência, o monarca acompanhava o Santo Sacrifício que se celebrava.

E nós nos comprazemos em imaginar o que seria essa linda catedral repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando cânticos religiosos, ou aguardando num silêncio meditativo a hora da Consagração. E o grande Carlos sentado em seu trono, resplandecendo de piedade e de glória…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

¹ ) Cf. “Dr. Plinio” número 8.

Meiguice e bondade extremas

Um fato ungido pelo perfume dos antigos tempos em que a Fé predominava nas almas, tocou-me de modo especial, e merece ser por nós comentado. O episódio milagroso ocorreu em Prato, na Toscana, em 1484, e dele originou-se a expressiva invocação de Nossa Senhora das Prisões.

Numa certa manhã daquele ano, um menino sentiu-se atraído por uma cigarra e correu atrás dela, até se deter diante do muro da prisão de Prato, no qual se achava estampado lindo quadro da Santíssima Virgem.

Esta é, aliás, uma das belas coisas a se admirar na Itália: as pinturas e imagens da Madonna, expostas um pouco por toda parte, em Roma e noutras cidades italianas. Nos ângulos externos das casas, sobre as portas ou no centro das fachadas, de repente o transeunte se surpreende com um oratório desses, ornado de flores, sob as refulgências de pitoresco lampadário, etc. É algo deveras estupendo.

No quadro em questão, a Virgem trazia em seus braços o Menino Jesus, que, por sua vez, segurava nas mãos uma flor e um passarinho. Subitamente, para o maravilhamento da criança que a contemplava, a imagem começa a tomar vida, a animar-se. Nossa Senhora desce do muro, deposita no chão seu Filho e este se põe a brincar com o passarinho, diante do olhar atônito do pequeno italiano. Aquela cena extraordinária é então tocada por um raio de sol que abre uma passagem para o interior da prisão. Seguindo-o, entram a Santíssima Virgem, o Divino Infante e o bambino.

Nossa Senhora percorre várias celas obscuras e as ilumina à sua passagem.

Terminada essa indescritível visita, Mãe e Filho, sempre acompanhados pelo menino, deixam o recinto do cárcere e retomam sua imobilidade original no quadro suspenso ao muro.

Esse milagroso espetáculo se renovou diversas vezes, diante de uma multidão de fiéis que viram assim confirmada sua devoção à Rainha do Céu e da Terra. Consta que o fato foi relatado pelo bispo local ao Príncipe Lourenço de Médici, quem fez construir em Prato magnífica igreja, um dos mais belos monumentos italianos do século XV.

O episódio é em extremo gracioso, e nos fala, de modo ímpar, da benignidade e da bondade de Nossa Senhora. A cena inicial já nos encanta: um bambino, daqueles gorduchos, mas, ao mesmo tempo, tão vivaz que não parece sujeito à ação da gravidade, e por isso esvoaça por todos os espaços que encontra diante de si, correndo ao longo do muro de uma prisão, atrás do quê? De uma cigarra… Que cena sumamente pitoresca!

Outro aspecto digno de nota: na muralha de uma penitenciária, do lado de fora, sorri uma imagem de Maria Santíssima com seu Divino Filho. Então é o contraste maravilhoso entre o vulto austero e duro de uma prisão e a afabilidade materna da Virgem aconchegada naquele muro. E os muros italianos constituem um encanto à parte: alguns por assim dizer leprosos, de pedras tão velhas, tão escangalhadas por toda sorte de tempestades, lavradas de um modo tão bruto que se diria estarem morrendo, mas… lindíssimas! Por sobre elas, ou se estendendo pelo seu corpo, crescem vinhas que frutificam em uvas apetitosas; o sol se deleita em aquecê-las, dando ensejo a que se produzam atraentes sombreados em volta delas. E aí temos o panorama de um tal milagre.

O menino se esquece da cigarra e se detém diante da imagem de Nossa Senhora. E a Virgem começa a se mover… O pequeno Jesus brinca com um passarinho, e podemos imaginar com que delicadeza, com que candura e vivacidade! Ele, o criador, se compraz em se divertir com a sua criatura. Tudo isso fornece elementos para recrear e extasiar a piedade dos homens.

De repente, um raio de luz transpõe as rudes muralhas da prisão e leva atrás de si o passarinho, o Menino Jesus, Nossa Senhora, o bambino. Todos entram no cárcere, e aquelas soturnas penumbras vão sendo iluminadas pela passagem da Mãe de Deus, provavelmente tocando os corações dos presos e os libertando, a uma vez, do castigo e do vício.

Eis, portanto, um fato encantador que nos apresenta Nossa Senhora enquanto extremamente meiga, doce, que socorre os indivíduos mais distantes d’Ela, os menos afortunados, mais pobres e mais abandonados. Mãe de todos os homens, Ela sempre encontra a forma, o jeito, a circunstância, enfim, artes maravilhosas para protegê-los, ampará-los, salvá-los.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/5/1967)

Uma conversa de Jesus…

Imaginando a vida quotidiana de Jesus, Dr. Plinio realiza como a Alma de Nosso Senhor se elevava às mais altas cogitações, sem entretanto abandonar a proporção normal de um homem.

 

Suponhamos que o Redentor estivesse descansando em casa de Lázaro; Ele comia e mantinha uma conversa normal, quer dizer, propriamente conversa à “bâton rompu”.

Nosso Senhor deveria dar um discreto valor à comida. Então, nesta perspectiva, como seria o trato com Ele, que impressão causaria?

Parece-me que todas as suas expressões seriam sumamente coerentes umas com as outras, em que o olhar, a voz, os gestos, o porte, a atitude da cabeça e o modo de se dirigir às pessoas, ou de ouvir o que elas Lhe falavam, tudo isto deveria apresentar um “unum” perfeito, dando a ideia de uma harmonia completa. De maneira que Jesus devia causar aquela impressão vitorina de emoção estética total, porém ainda mais alta porque não era só a estética física, mas através desta, a estética psicológica, moral. Quer dizer, com uma proporção, uma beleza perfeita, e a Alma que se via por detrás era incomparável, causando a impressão de se tocar no divino, no inefável, embora não fosse a visão beatífica. Era propriamente a ética estética total.

Figuremos Nosso Senhor à mesa, comendo um cordeiro que Lhe tivessem preparado. Ele faz um comentário qualquer: “Este cordeiro foi alimentado com tal coisa assim, na perspectiva de nosso encontro.” E alguém diz: “Aliás, foi difícil laçá-lo, o cordeiro saltava muito”, e conta que o cordeiro pulou do colo de um escravo para fugir. E o Redentor, na sua natureza humana, ouve entretido a narração desse fato.

E no entretenimento veríamos aquela espécie de bondade, do enormemente maior que sente coesão e continuidade com o tema pequeno, e não julga que este seja indigno d’Ele.

Pelo contrário, Nosso Senhor, tomando conhecimento do fato, compreenderia. Durante a conversa se perceberia que ora sua humanidade santíssima transparecia mais, quer dizer, subia em considerações comunicadas pela natureza divina, ora transparecia menos, mantendo, entretanto, uma proporção com a conversa. De maneira que no ambiente havia um fundo discreto, que não convidava a fazer Teologia, mas a sentir o tema concreto do cordeirinho, túmido de outras coisas nas quais o Redentor não entrava, mas apenas — para usar uma expressão que não indica bem o que eu quero dizer — aromatizava. Ele punha molho naquilo, mas não deslocava o assunto, e a conversa continuava caseira.

Noção divina das correlações

Notar-se-ia a transição suave, harmônica da Alma do Divino Mestre para o mais elevado, com lampejo do mais alto, e depois voltar ao comum, a propósito das várias coisas tratadas na conversação. Uma flexibilidade de alma e uma noção divina das correlações: o modo pelo qual um tema encaixa, imbrica com outro; o valor simbólico das coisas; tudo posto tão bem, e correlacionado com tanta suavidade, harmonia, facilidade — todas as palavras são impróprias para falar d’Ele, por causa da excelsitude —, com tanto “dégagé”, que nossa alma ficaria simplesmente encantada de sentir os espaços interplanetários que separam um assunto do outro, transpostos por Nosso Senhor com tanta facilidade e conduzidos de um lado para outro com uma naturalidade, sem deixar as pessoas propriamente — note-se bem — extasiadas e fora do teor da conversa privada.

O êxtase viria pouco depois que o Redentor tivesse ido embora, quando as pessoas se sentissem sem Ele e percebessem o diferente de tudo. Teriam vontade de dizer: “Por que fiquei aqui e não fui atrás de Jesus, uma vez que viver é estar ao lado d’Ele?” E se alguém levanta um assunto prático, nem se interessam.

Todo mundo está discretamente deliciado, mas é uma autêntica conversa doméstica, na superfície.

As várias teclas através das quais Jesus tratava os assuntos

O melhor dessa conversa seria os momentos nos quais se percebia que a Alma de Nosso Senhor tocava nas mais altas cogitações. Era um olhar, um timbre de voz, talvez um comentário ligeiro, deixando entrever outras ideias, mas sem nada da indireta de salão, que é trabalhosa, porque nada disto deve ser imaginado trabalhoso. Tudo normal, magnífico e facílimo, que é o próprio d’Ele, evidentemente.

E as pessoas ficavam verdadeiramente maravilhadas pelo seguinte aspecto, entre mil outros: sentir como Jesus tomava o tamanho das várias teclas por onde fosse tratando os assuntos; quando falava de um tema comum, Ele tinha uma proporção do auge da beleza daquilo, deixando apenas entrever muito vagamente outros auges, que na Alma de Nosso Senhor residiam.

Quando Ele falava apenas de raspão do maior dos assuntos, sentiriam que tratava aquilo de igual a igual. De maneira que aquele Homem, há pouco tempo tão igual aos outros, de repente aparecia como num píncaro de uma montanha, mas por instantes, e logo depois estava de novo misturado com as pessoas. Em seguida, tratando de alguma coisinha, o Divino Mestre ficava de tal maneira comprazido, condescendido, que se diria que Ele descia até a coisa e esta se elevava até Ele. Por exemplo, se enquanto Nosso Senhor falava entrasse um passarinho na sala — aquelas salas eram muito abertas — e pousasse perto d’Ele, sem milagres, cena comum, o Redentor acharia graça em ver o passarinho comer uma migalha de pão.

Ele sorriria com isto, de tal modo que tudo aquilo que simboliza o passarinho comer a migalha de pão se perceberia que Ele relaciona com o mais alto, mas achava interessante ver o mais elevado enquanto simbolizado no menor. Não é de nenhum modo, portanto, efetuar uma abstração, e passar a fazer Filosofia ou Teologia, mas comprazer-se em ver o mais alto simbolizado, alojado, se quiserem, dentro do menor e como que um com o menor.

Então, Jesus diria uma palavra encantadora qualquer, mas também não de arrebentar.

Insinuando que era o Cordeiro de Deus

De repente, a respeito do cordeiro, tema da conversa, Nosso Senhor faz uma insinuação de que Ele era o Cordeiro de Deus, um dia seria morto, e que todos se preparassem. Mas, digamos, durante a conversa, talvez falasse disso uma só vez.

Os Evangelhos não fazem referência a uma conversa assim. Acho que cinco quintilhões de livros não dariam para registrar uma conversa com Ele, porque tudo era memorável, com o ar mais natural do mundo. Tenho a impressão de que isto é muito mais reconstituível pela piedade do que escrevível e legível.

Então, quando Jesus fizesse tal afirmação, haveria um frêmito, mas não à maneira de uma cena renascentista: uma pessoa se levanta, outra faz não sei o quê. Não. Todo mundo continua a conversar. Penetrou-se até ao fundo, ao extremo de Nosso Senhor; depois aquilo passa e fica uma tinta depositada nas almas.

Alegria, seriedade, tristeza

Jesus dava assim uma noção conjunta de sua divindade — a conaturalidade d’Ele com o divino — e a relação de todas as coisas com Ele, como se tudo existisse apenas para ser relacionado com Nosso Senhor. Aqui está o que eu quereria exprimir, mas não sei se conseguirei fazê-lo.

Tal era seu modo de ser que se notaria uma hierarquia de valores harmônica e sumamente bem encaixada, procedente do mais alto, com uma gravidade extraordinária e uma luminosidade impossível de ser qualificada; e descendo depois degrau por degrau, de maneira que em cada degrau por onde passasse, a Alma d’Ele deitasse outro reflexo de si mesma, mas não se sentisse esgotada; manifestando-se nos mais altos e deitando um reflexo novo e adequado em cada degrau menor até o último, formando propriamente no contraste entre o maior e o menor e todos os pontos intermediários, certa forma de imbricamento e de harmonia que fosse no mais alto cheia de gravidade e, ao mesmo tempo, de uma felicidade transbordante. Jesus não devia irradiar só tristeza; de vez em quando Ele transluzia um fulgor de felicidade.

Se, por exemplo, na sala onde Nosso Senhor estivesse comendo entrasse uma brisa refrigerante, Ele faria um comentário, com um gáudio apenas insinuado; aquele zéfiro era apenas um símbolo de uma alegria fulgurante: a visão beatífica. Mas tudo nas proporções de uma conversa comum; não são de nenhum modo os grandes momentos do Evangelho, mas os momentos normais da vida d’Ele.

Então haveria esse entrelaçamento de alto a baixo. No alto, a alegria esplendorosa e seriedade enorme, acompanhada de uma tristeza noturna, que era uma espécie de prenúncio do Calvário.

Nos graus intermediários, a conaturalidade com o homem: a seriedade, as alegrias e as tristezas proporcionais a nós. E nos graus menores, a alegria de todas as coisas pequenas e graciosas com aquela forma de dor e de sofrimento própria da inocência da criança.

E notar isto passando de um lado para outro daria uma espécie de noção de hierarquia, como nenhuma ordem social, nem política, nem estética, ou qualquer outra pode dar. Tal noção seria transmitida pela voz, pelo olhar, pelo modo de ser de Nosso Senhor, com uma espécie de plenitude do que o homem deve sentir a cada momento.

Após a saída de Nosso Senhor, recordar as diversas cenas

Em qualquer dos estágios se notaria a tristeza, a seriedade, a proporcionalidade e também a alegria, que a tudo acompanhava. E quando Jesus saísse, uma pessoa que tivesse critério se destacaria cuidadosamente da roda e, andando sozinha pelo jardim, se sentaria no beiral de um poço; não faria nenhuma reflexão, mas deixaria aquelas cenas voltarem ao seu espírito e, à tardinha, depois de esgotados os últimos reflexos, ela começaria a pensar. Ou seja, muito depois de degustar é que viria a reflexão.

E no final da reflexão, esta ideia: “Eu vou deixar tudo e segui-Lo. Não quero mais saber daquele plano de passar uma quinzena em Jerusalém na minha bonita casa. É verdade que estou precisando comprar uma túnica nova, mas deixarei isto para depois. Onde é que Ele está?” E possivelmente o indivíduo não esperaria a aurora para ir ao encalço de Nosso Senhor.

Continuidade entre os pequenos e os grandes momentos da vida de Jesus

Embora não escrito, algo disso ficou transmitido e permanecerá até o fim do mundo. Sempre que um católico verdadeiro, um bom professor de catecismo, um bom sacerdote, bons pais pronunciam a palavra “Jesus” ou “Jesus Cristo”, todos esses imponderáveis, por uma tradição meio avivada por carismas, continuam e caminham nesta linha.

Falando a respeito de Jesus, o protestantismo toca com o piano quebrado, faltam sempre algumas notas. O calvinismo faz hipertrofia da seriedade e o luteranismo da bonomia d’Ele, não um simples exagero, mas uma hipertrofia leprosa.

A “heresia branca”(1) julga que essas pequenas coisas da vida de Nosso Senhor são impróprias de serem contadas, porque toldam a atmosfera dos grandes momentos. Pelo contrário, tudo isto está numa espécie de continuidade com os grandes momentos.

 Se de repente Nossa Senhora entrasse na sala…

E a cena que eu não ousaria imaginar: Nossa Senhora entrando de repente na sala. Quando Ela se dirigia ao local, Jesus em sua humanidade acutíssima, capacíssima, sem revelação dos Anjos nem manifestação do sobrenatural, sentiria de longe que Maria Santíssima para lá caminhava.

Nosso Senhor vai Se iluminando para a chegada d’Ela, tomando um ar de quem entra em contato com a companhia das companhias; é o mundo inteiro para Ele. Em certo momento, Ele se levanta e vai de encontro a Ela.

Também Nossa Senhora já O pressentiu e, quando Ela se aproxima, os dois Se olham e Se saúdam. Mas acho impossível descrever, eu ao menos não consigo. Todos os encontros de Jesus com sua Mãe não são descritíveis. Ora, só em função da descrição desses encontros, digamos comuns, é que se compreende o relacionamento d’Ele com Ela durante a Paixão, quando se encontraram, e até a morte de Nosso Senhor.

Tenho a impressão de que as sete palavras d’Ele na Cruz, exceto as últimas, foram de um sofredor nesta clave. Mesmo quando Jesus disse: “Mãe, eis aí teu filho; filho eis tua Mãe”, o fez com a tal naturalidade que acabo de referir. Apenas o último grande brado d’Ele e depois o ato pontifical — “Meu Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” — devem ter sido ditos com uma solenidade, uma grandeza dentro do gemido. Aqui seria preciso mais se tocar música ou pintar do que falar.

Também a atitude de Nossa Senhora, creio que se deduz adequadamente a partir da imaginada conversa comum.

Nesta Terra, não devemos querer viver apenas de apogeus

Repito: o convívio quotidiano com Nosso Senhor era proporcionado à capacidade receptiva da natureza humana, como será no Céu. Digo mais. Acho que há algo de enfermiço no fato de uma pessoa só se sentir bem nos apogeus. Na realidade, devemos ter fome e sede dos apogeus, mas não de viver em apogeus, porque não é de acordo com a nossa natureza; e estas situações intermediárias precisam suceder-se aos apogeus e precedê-los, numa sucessão que só Deus mede adequadamente. A Providência gradua através dos fatos.

Suponho que no Céu, pela ação da graça, a alma está elevada a tal estado que é conatural com ela o pináculo permanente. Isso se fará de um modo que não podemos entender, porque o Paraíso celeste vai ser infinitamente repousante.

Voltemos ao tema da vida quotidiana de Nosso Senhor. Se uma pessoa que tivesse assistido à refeição de Betânia desta maneira e depois pensou em Jesus, vendo alguém que lançasse contra o Divino Salvador uma ironia ou chacota, sua reação normal seria a bofetada. Isso só se compreende devido ao efeito que o Redentor causou a uma pessoa que O viu. E a reação dela foi à maneira da desintegração do átomo.

As perfeições de Nosso Senhor na mais eleita das criaturas

Toda criatura, individualmente, é incapaz de refletir adequadamente todas as perfeições de Deus. Daí a necessidade de haver várias criaturas, como sabemos.

E a recíproca disto é que Deus não pode, nesta Terra e nesta ordem, fazer aparecer todas as suas perfeições aos homens num grau que vá além do que a natureza humana comporte, porque, por assim dizer, lota demais as pupilas dos olhos.

Por causa disto, há certas perfeições em Nosso Senhor que, sem dúvida, se notam n’Ele, mas com a seguinte circunstância: se o Redentor fizesse perceber mais ainda, o olhar humano como que estalaria. Então, Ele faz notar estas perfeições na mais eleita de suas criaturas. E esta criatura é como que um desmembramento — como que, entenda-se bem, porque é uma criatura, não o Criador —, um suplemento de Nosso Senhor, fazendo notar algo que no texto principal não caberia pela diminuição de olho do indivíduo que lê.

Então, tudo quanto se diz de maravilhoso sobre a bondade de Nossa Senhora, seu amor materno, seu ódio ao mal — entretanto não é a principal missão d’Ela, ao longo da História, exprimir este ódio, mas a bondade materna, a afetividade — e cem outras coisas, tudo isto Maria Santíssima, como que, exprime em separado de Nosso Senhor, num grau menor do que Ele, forçosamente, mas insondável para nosso olhar, para termos uma ideia ainda mais global do que é Jesus. Tudo quanto estou dizendo aqui fica naturalmente sujeito ao julgamento da Teologia.

Parece-me que, de algum modo, olhando-se para Ela, veem-se excelências que não se percebem tão claramente n’Ele.

Entretanto, como pintá-las? Em que grau? De que modo? Sob que formas? No momento eu quase não teria o que dizer, porque são de algum modo coisas quintessenciadas de Nosso Senhor, as quais, não permitindo que apareçam tão claramente, Ele as exprime por meio de um ser inferior, o qual, por mais alto que seja, é uma criatura.

Correlação entre a Cristologia e a Mariologia

Seria preciso tomar uma clave em extremo delicada para considerar a relação exatamente em sua nota, pois na verdade nenhuma meditação cristológica poderia ser feita em completo sem uma espécie de superposição de Nossa Senhora; sobretudo nenhuma meditação mariológica seria adequadamente feita sem ter a Ele como fundo de tudo quanto se dissesse. E à falta de estabelecer essa correlação, tornam-se muitas vezes pobres a Cristologia e a Mariologia na piedade popular,

A Santíssima Virgem é, sob certo ponto de vista, o lago no qual se mira o castelo. Toda a beleza que o lago mostra, de fato reside no castelo, mas a pulcritude da água se soma para embelezar a figura do castelo. Pode-se dizer também que, de certo modo, a pulcritude da criatura se soma à do Criador, mas a desproporção é muito maior, evidentemente.

Aqui está a imagem da piedade como nós a entendemos. Quer dizer, densa de reflexão e inteiramente equilibrada, em que o homem não precisa se espremer para adquirir piedade, mas ele se põe na boa natureza que Deus lhe deu, na tranquilidade e no bem-estar de sua alma.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/5/1978)

 

1) Ver nota 1 no artigo “São Vicente de Paulo, perfeita harmonia de espírito”, página 17.

 

Sério, altaneiro e intrépido

Pregador da Boa Nova, São Mateus é o modelo de varão sério, altaneiro, intrépido, corajoso, que fala em nome de uma verdade eterna e, por isso, não se sente acanhado nem diminuído diante de ninguém.

Eis a graça que devemos pedir a São Mateus para difundirmos a verdadeira Boa Nova da Religião Católica, Apostólica, Romana, nesta época de tanta decadência religiosa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/9/1965)

Nossa Senhora

Neste exílio, em meio à humanidade corrompida, aparece uma criatura concebida sem pecado original, um lírio de incomparável formosura que deveria alegrar os coros angélicos e a Terra inteira.

Nossa Senhora trazia consigo todas as perfeições naturais que dentro de uma mulher possam caber: uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima. Se a isso tudo juntarmos os tesouros das graças que vinham com Ela — as maiores que Deus Nosso Senhor tenha concedido a alguém, graças verdadeiramente incomensuráveis —, compreenderemos então o que representa o advento de Maria Santíssima ao mundo.

O nascer do Sol é uma realidade pálida em relação à entrada de Nossa Senhora nesta Terra. Os mais grandiosos fenômenos da natureza, mesmo os que representem algo de precioso e inestimável, nada são em comparação com isso; a entrada mais solene que se possa imaginar de um rei ou de uma rainha em seu reino, ainda é nada em confronto com esse advento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

São Mateus, Apóstolo Evangelizador da Etiópia

Varão sobrenatural, nobre, forte e acolhedor. Assim aparece o Apóstolo São Mateus nas páginas da “Legenda Áurea” que relatam a evangelização e o martírio do discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras da Etiópia. Comentários de Dr. Plinio.

 

Em 21 de setembro celebra-se a festa do Apóstolo São Mateus, a respeito do qual lemos na “Legende Dorée”(1) ter sido o evangelizador da Etiópia, onde conseguiu desmascarar e apontar como agentes do demônio os magos que iludiam o rei e o povo.

O lendário reino do Preste João

Cumpre assinalar que, excetuando o Oriente Próximo, na gentilidade asiática e africana a Etiópia possuía uma peculiaridade extraordinária: de todos aqueles mundos, era o único país cristão. As outras nações onde os Apóstolos estiveram, e até deixaram recordações — como a Índia, por exemplo — não se converteram. Durante algum tempo a Etiópia permaneceu católica, mas, infelizmente, acabou cedendo à heresia dos monofisitas(2). Contudo, hoje é ainda uma nação cristã, e cabe-lhe a glória de ter sido evangelizada pelo Apóstolo São Mateus.

É interessante considerar, também, como os medievais tinham certa noção de um reino cristão situado além do Egito, onde, segundo as notícias trazidas pelos navegantes portugueses, vivia o famoso Preste João — Padre João, em português arcaico. Tratar-se-ia, pois, da Etiópia.

Nobre, poderoso, suave

De acordo com a “Legende Dorée”, este país e seu rei estavam desviados do culto do verdadeiro Deus por obra dos mencionados magos. A estes enfrentou e desmascarou São Mateus, provando que eram incapazes de fazer qualquer coisa sem auxílio do maligno.

Somos levados a imaginar esse confronto, com o Apóstolo tendo penetrando na Etiópia através do mar, do deserto ou pelas nascentes do Nilo, e só pela sua presença já causando grande mal-estar nos sequazes do demônio. Os magos logo perceberam naquele homem um poder, uma força de Deus que os contrariava de modo irretorquível.

Provavelmente, esses magos praticavam muitos prodígios e induziam o povo a acreditar que participavam de um poder divino.

São Mateus, operando autênticos milagres, confundiu aqueles impostores diante do mesmo povo, demonstrando a farsa com que a todos iludiam. Quiçá a população, sabendo-se objeto de tamanho ludíbrio, tenha querido punir os feiticeiros, sendo então impedida pelo Apóstolo, que a fez compreender que aquilo seria um crime. Tal houve de ser a influência desse varão sobrenatural, nobre, poderoso, suave, acolhedor, sobre aquela gente admirativa.

Conversão de todo o povo

Pouco depois, conforme a narração do biógrafo, São Mateus ressuscita o filho do rei Egipo, e este, querendo-o adorar como deus, oferta-lhe grande tesouro. Claro, o Apóstolo não permitiu tal veneração e, com o ouro e a prata que haviam levado, construiu uma grande igreja, na qual viveu 33 anos para converter a nação. O rei Egipo, sua mulher e todo o povo se fizeram batizar. Ifigênia, a filha do rei, foi consagrada a Deus e colocada à frente de duzentas virgens num convento.

Não nos é difícil compreender o imenso alcance desse fato. Uma nação imersa durante séculos no paganismo e em toda espécie de vícios, com a simples pregação de um Apóstolo, converte-se, se faz batizar, e duzentas virgens de ébano, ao lado da própria filha do rei, recolhem-se a um convento para se tornarem esposas do Rei por excelência, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Outro detalhe: quão bela deve ter sido a primeira igreja da Etiópia, construída diretamente sob a inspiração de São Mateus, e como essa edificação deve ter alegrado no Céu aos anjos, a Deus e a Nossa Senhora!

Martírio do Apóstolo

Entretanto, o rei Egipo morreu e seu sucessor, Hírtaco, desejou esposar Ifigênia, por considerá-la a única jovem digna dele e de sua posição. O novo monarca pediu a São Mateus que convencesse a princesa em aceitá-lo como marido, e prometeu ao Apóstolo, em caso de sucesso, metade do reino.

Vê-se a vã e frustra tentativa de suborno. Para quem converte um povo inteiro, do que adianta riquezas e poder temporal sobre ele? Incomparavelmente mais do que isso, São Mateus possuía a alma desse povo e a entregara a Deus.

O Apóstolo pediu então ao rei Hírtaco que fosse à igreja no domingo seguinte, quando daria uma solução ao caso. O soberano anuiu e compareceu ao templo, encontrando-o repleto de fiéis que começaram a ouvir dos lábios de São Mateus um maravilhoso sermão sobre os benefícios de um casamento.

Figuremos um Hírtaco de beiços grossos e vermelhos, dentes alvos, sorrindo de contentamento enquanto São Mateus elogiava o matrimônio. Certamente, pensava lá consigo: “Agora não preciso lhe dar metade do meu reino, como prometi, porque me fez o serviço adiantado. A princesa será minha, e depois ele se entenderá comigo”.

O rei estava seguro do assentimento da jovem. Porém, continuando seu sermão, em determinado momento disse o Apóstolo: “Sendo o casamento tão sagrado e inviolável, alguém que quisesse possuir a mulher de seu rei, mereceria um castigo. Assim, Hírtaco, sabendo que Ifigênia é esposa do Rei eterno, como ousas tomar a mulher do infinitamente mais poderoso do que tu?”

Ao ouvir essas palavras, Hírtaco se retirou da igreja, tomado pelo ódio. Terminada a Missa, o rei enviou um carrasco que com a espada atingiu São Mateus, o qual se encontrava orando de pé diante do altar e com os braços estendidos para o céu. O povo, indignado, correu ao palácio real para vingar o crime, mas os outros sacerdotes o detiveram, aconselhando que em lugar disso se unisse numa grande celebração em homenagem ao santo mártir.

Com a fé católica, a semente de todo o bem

Enquanto isso, Hírtaco ordenava que ateassem fogo ao redor do convento de Ifigênia, para fazê-la perecer juntamente com as outras virgens. Mas, São Mateus apareceu e desviou o fogo para o palácio do rei, que foi inteiramente consumido. Somente o soberano e seu filho único escaparam ao incêndio. O príncipe correu imediatamente ao túmulo do Apóstolo para pedir perdão, e o rei, atingido por horrível lepra, suicidou-se. Depois desses episódios, o povo escolheu como soberano o irmão de Ifigênia, o qual reinou durante 60 anos, difundindo o culto de Cristo e construindo igrejas por toda a Etiópia.

Assim termina a narração da vida de São Mateus. Creio que meus ouvintes sentem, como eu, a beleza contida nesse epílogo: o novo rei governou durante seis décadas, edificando igrejas pelo país inteiro. Tem-se a impressão de um reinado sereno, tranqüilo, elevado. Claro, não se pode dizer que basta construir igrejas e tudo estará resolvido. Mas, erguendo-as, e sendo frequentadas por um povo fiel, praticante da religião verdadeira, tudo aquilo que é necessário para a sua prosperidade, virá.

Ou seja, instaurando autenticamente a Fé católica, está colocada a semente de todo o bem. Tal foi a obra do Apóstolo São Mateus na terra por ele evangelizada.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/10/1976)

 

1) “Legenda Áurea”, coletânea de vidas de Santos escrita pelo bem-aventurado Jacopo de Varazze, dominicano e Arcebispo de Gênova (1229-1298).

2) Heresia difundida por Eutiques (378-454), que afirmava haver em Cristo uma só (mono) natureza, a divina.

 

A Idade Média em todo o seu esplendor

Ávila, em Espanha, onde nasceu a grande Santa Teresa de Jesus, é uma maravilhosa cidade medieval.

É muito agradável, ao contemplar a cidade durante a noite, notar o contraste entre a cidade que dorme — lembrando uma vida calma, tranquila, pacata, sem as excitações da vida contemporânea, séria, mas ao mesmo tempo cheia de bonomia — e a muralha magnificamente iluminada, onde se nota a beleza do gótico e do medieval.

A iluminação faz sentir muito a força da muralha e qualquer coisa de épico, de heroico que nela existe. Imaginamos de bom grado essa muralha e os muros que ligam as torres guarnecidos de guerreiros, com couraças, elmos, estandartes, instrumentos de música e que ali estão postados para homenagear algum personagem ilustre que chega, ou para receber na ponta da lança adversários que podem querer tomar Ávila.

Essas muralhas falam de toda a beleza da firmeza de alma, da coerência, da seriedade e da sacralidade. Está tudo representado aí, de um modo verdadeiramente magnífico. Em suma, é a Idade Média.

Em ambos os aspectos há muita harmonia. Temos a guerra e o direito, a legítima defesa de uma população que na guerra é protegida, a quem suas muralhas amparam, e por isso pode tranquilamente dormir. A muralha garante o sono, como o guerreiro garante a ordem, o direito e a paz. É verdadeiramente esplendoroso.

Nessa síntese entre a guerra e a paz, o direito e a luta, o repouso e a batalha, há algo de síntese celeste que nos deixa verdadeiramente maravilhados. É a Idade Média em todo o seu esplendor.

Devemos notar que suas muralhas foram construídas com preocupação exclusivamente estratégica. Quer dizer, o intervalo entre as torres não foi feito com o objetivo de ficarem bonitas, mas calculado para que o adversário atacante pudesse ser atingido de vários lados. Primeiro, pela reação que vem dos defensores do muro. Depois, dos defensores das torres, de maneira que se torna difícil tomar as muralhas.

A torre é muito mais forte do que o muro. Ela se defende por si mesma. E pelo seu feitio redondo, ela de certo modo dispersa o adversário. Por outro lado, o muro, que é mais fraco, fica defendido pela muralha. Tudo foi estritamente calculado de acordo com o necessário e ficou lindo. Ao contrário do que se faria hoje, a forma da muralha é meio indecisa, não retilínea, e abrange como uma cintura o povoado que está dentro.

Tem-se a impressão de que cada torre é uma garra que segura o monte e domina a terra; é uma verdadeira beleza.

Com a solidez de suas portas, a entrada da cidade estava bem protegida. E com que robustez! Tratava-se de duas portas, uma frente à outra, que protegiam a passagem. Quem conseguisse entrar — debaixo de uma saraivada de pedras, de azeite fervente, etc. — esbarrava com a outra porta, onde havia outro passadiço para jogar pedras e flechas sobre os atacantes.

Muitas vezes, quando o adversário passava pela primeira porta, descia uma grade e ele ficava encurralado, porque não podia mais voltar para trás. E aí era pancadaria grossa. Compreendemos o senso de defesa que isso traduzia.

No topo da muralha estão as ameias, tão bonitas! Tudo estritamente técnico. Um homem lançava uma flecha e, quando o assaltante respondia com outra flecha, ele ficava escondido. Percebendo que o inimigo estava mais ou menos desprotegido, dava nova flechada.

Compreende-se o quanto era duro invadir uma cidade assim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/5/1972)

O Coração de Jesus no interior do Coração de Maria

Na época histórica em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, Nossa Senhora apresentava-Se geralmente como a Rainha da Contra-Revolução. A nós foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

 

Nós, seres humanos, estamos colocados na junção entre o mundo material e o mundo espiritual; vemos abaixo de nós o mundo material em várias gamas e sabemos pela Fé da existência do mundo espiritual em muitas outras gamas. Temos ciência de que participamos do grão de areia, como da própria vida divina pela graça. Percorremos com nossa natureza todas as escalas.

Superioridade participada

Se temos um senso do ser inocente, este nos dá uma noção de nossa própria dignidade que nos faz medir, em nós mesmos, a superioridade de nossa alma sobre nosso corpo, e tudo quanto temos de mais digno por possuirmos alma, sem que sintamos vergonha por termos corpo. Mas notamos tudo quanto há de belo em possuirmos uma alma, e como ela é um céu em comparação com nosso corpo.

Nós sentimos a superioridade de nosso corpo sobre os animais, as plantas e os minerais. Percebemos que é uma superioridade participada. Eles e nós temos algo de tudo quanto existe, mas estamos no ápice da matéria, a tal ponto que somos uma montanha no alto da qual arde a chama denominada alma.

Estamos, portanto, num ápice, mas por cima dessa chama há o céu inteiro. Então a montanha é ao mesmo tempo altíssima, porém se medirmos a distância com as estrelas veremos que é um “formigueiro”. Tendo o senso do ser reto a pessoa sente ordenadamente tudo isso em si, todas essas grandezas, como todas essas pequenezes, proporcionando-lhe uma espécie de maravilhamento discreto, interno.

Lembro-me de que isso se deu em mim, por exemplo, quando pela primeira vez comecei a pensar a respeito do olhar humano, o que é o olho humano e tudo quanto confere de dignidade ao corpo o fato de ter olhos.

Acho que realmente a parte mais sensivelmente nobre do corpo humano são os olhos. Não se pode negar. E como o olho é bonito, quanta coisa exprime! É o único traço que o homem tem o qual nunca é feio! Pode existir um olho machucado, doente, mas um olho feio não há! A fisionomia, o porte, o passo e tantas outras coisas são reflexos da alma no corpo; os olhos espelham a alma.

Consideremos os bichos. Deus quer que alguns animais inferiores a nós sejam mais bonitos do que nós; mas são de uma beleza de segunda classe. De beleza de primeira classe somos nós.

O pavão, por exemplo, como ele é distinto, diplomata, se mexe com jeitos! Um certo modo que tem o pavão de jogar para trás a cabeça e o pescoço; os olhos  quase que se dilatam, e ele olha de frente e de cima, com nobreza. Ele de certo modo finge não estar vendo bem as coisas que se encontram diante dele, como se estivessem distantes. Depois ele se volta bem devagarzinho para receber o aplauso das multidões… É muito bonito!

As mais marcantes diferenças existentes entre os homens

Possuindo um senso do ser bem construído, nós sentimos essas hierarquias e compreendemos que umas estão para as outras numa forma de relação que deve encher de admiração as menores, porém de uma admiração grata! Porque sempre que a maior toca na menor não a humilha, mas a beneficia e honra.

Prestando bem atenção, ao considerarmos a relação entre nós e os Anjos, põe-se muito clara a seguinte pergunta: Como é o Anjo em face de quem é superior a ele? Ora, superior a ele, enquanto natureza, só Deus. Como natureza, Nossa Senhora não é superior ao Anjo, e nem sequer a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

As mais marcantes diferenças que há entre os homens são de ordem sobrenatural. É o batizado para o pagão, depois o clérigo para o leigo. São relações como que divinas.

Somos membros do Corpo Místico de Cristo e em nós vive a graça de Deus; somos templos do Espírito Santo, escravos de Maria Santíssima, filhos d’Ela, portanto, a um título e de um modo todo particular.

Nós estamos para um pagão, na ordem da graça, mais ou menos como na ordem da natureza o Anjo está para nós. Somos “anjos” para um pagão. E um pagão que dissesse a um de nós: “Vou dar-lhe uma bofetada porque você é batizado”, ele esbofetearia em nós o sacramento do Batismo conferido indelevelmente. Sobretudo o bispo, que possui a plenitude do sacerdócio, é como que Deus para nós. Ele ensina, governa e santifica. Todos os sacramentos, toda verdade, a direção de nossos passos no rumo da vida eterna vêm por ele. É como que Deus presente entre nós, e algo de divino habita o bispo.

Na ordem natural há algo disso na relação pai-filho. Mas a Doutrina Católica sempre entendeu que honrar pai e mãe é honrar adequadamente todas as autoridades, na medida em que elas tenham um poder análogo à paternidade, por exemplo, o patrão, enfim, todos os superiores devidamente. Porque quando a autoridade é de um certo gênero, ela participa, na ordem natural, de uma superioridade análoga — não idêntica — à superioridade existente nas relações Deus-homem.

É isto que devemos saber reconhecer nos nossos superiores, e tocá-los, inclusive fisicamente, com respeito, porque neles habita isso.

Respeitabilidades amigas, o contrário da luta de classes

Dou um exemplo claro de ver: o professor e o bedel num colégio. O professor, enquanto está dando aula, tem uma superioridade pura e simples sobre o aluno. O bedel possui uma superioridade, mas uma superioridade que até é um título de inferioridade. Ele é um empregado do colégio para tomar conta dos alunos e, portanto, não imita, a não ser de um modo muito indireto, um vislumbre, o poder de Deus. Mas o poder do professor imita o poder de Deus, e um aluno que esbofeteasse seu professor, enquanto este ensina, pecaria contra Deus.

Sirvo-me, agora, de uma metáfora muito familiar: a nata e o leite.

Uma quantidade abundante de leite de alta qualidade posta numa panela, por exemplo, dá origem, por um lento, discreto e nada artificial processo de diferenciação, à nata que fica acima dele e constitui uma camada. Se cada gota de leite pudesse falar, diria para a dona de casa: “Olhe a nata!” E se a dona de casa sorrisse para a nata, esta falaria: “Mas olhe também de que leite eu fui formada!”

Disseram-me — e me parece bem provável — que as qualidades do ar têm algum efeito para a formação da nata. Logo, o céu atmosférico, a seu modo, age sobre o leite para que destile a nata. Portanto, esta não é puro produto do leite, mas do leite “tocado” pelo céu.

E notem: isso ocorre na ordem meramente natural, mas que nos ajuda a ter uma ideia do que significa essa superioridade divina, do que é Deus em relação a nós, e o que é um de nós perto de Deus, para compreendermos todos os abismos onímodos de inferioridade e de hierarquia e, depois, os graus intermediários como são.

Tomemos outro exemplo: o mármore. Dir-se-ia que o mármore é nata da terra, reservada por Deus em blocos e dada aos homens para fazerem suas igrejas, seus monumentos, palácios etc. Por isso eu falo do mármore com respeito.

Esta visão do mundo como uma espécie de jogo de respeitabilidades amigas, que se perdem quase ao infinito, é o contrário da luta de classes.

Respeitabilidades amigas que a mil títulos reluzem aos olhos do homem, fazendo entender tudo quanto vai desde a pequena respeitabilidade do bedel, quando ele transitoriamente dirige a fila, até a autoridade de um reitor de universidade. Há mil aspectos da superioridade que ficam cintilando como estrelas no céu, cada uma com um brilho próprio e, no fundo, cantando a glória do Superior dos superiores que é Deus.

Resolvendo um problema até o fundo

Tive um professor que, em certa ocasião, pôs a seguinte questão, de um modo inteligente e atraente:

“Nós existimos para Deus, mas hoje em dia não se tem uma ideia clara do que significa existir para alguém. Por isso, vou dar-lhes um exemplo. Se uma galinha tivesse inteligência, ela de tal maneira saberia ter sido criada para ser comida por um homem que, enquanto estivesse no galinheiro, ficaria frustrada de ver as outras galinhas irem para a panela e ela não. Agora, qual seria a reação dessa galinha inteligente quando fosse chamada para a panela? Seria uma reação de pavor, porque nenhum ser escapa ao instinto de conservação; ou uma sensação de alegria, porque afinal seria comida por um homem?”

Ele dizia que a galinha, ao se imaginar comida, sentiria ao mesmo tempo o horror e o gáudio da imolação, e desaparecia num sentimento contraditório.

De fato, ele não resolveu o problema até o fundo. O professor imaginava uma hipótese absurda de um ser que, ao mesmo tempo, é inteligente e mero animal. Daí as reações são contraditórias, porque o ser inteligente existe para Deus, mas não para ser comido por Deus. Aquele que é o fim do ser inteligente é tão superior a este que não o mata, mas lhe dá a vida. Isso o professor não soube dizer; donde um certo mal-estar que a pergunta causava.

Entretanto, este ponto me parece que ele viu bem: se a galinha fosse capaz de conhecer o homem, ela reconheceria nele, com encanto, o seu dono.

Quando o homem, por exemplo, agrada um cachorro, o animal toma, muitas vezes, uma atitude deliciosamente submissa, o que é um símile da posição que tomaríamos em relação a um Anjo. Um vegetal que pudesse sentir e compreender faria o mesmo com um animal, e um mineral a mesma coisa com um vegetal. Há uma regra que forma um certo gênero de relação que, conservadas as proporções, é sempre de sentir-se pequeno, mas repleto de honra.

Subindo ao ápice da Criação, vemos isso até nas relações de Nossa Senhora com Deus. Convidada a um título muito especial para ser Filha do Padre Eterno, Mãe do Verbo e Esposa do Espírito Santo, a resposta d’Ela foi: “Ecce ancilla Domini — Eis a escrava do Senhor” (Lc 1, 38). Ela Se sente muito pequena, porque, de fato, diante de Deus ainda que seja Ela, é-se infinitamente pequeno. Então um gesto, uma postura de respeito deliciado é uma atitude de alma que hoje as pessoas quase não sabem mais medir.

O Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes

Ora, o Sagrado Coração de Jesus tem algo que predispõe o espírito em todas as gamas para essa posição.

Evidentemente, as pulsações mais sublimes do Sagrado Coração de Jesus eram quando Ele rezava. As orações d’Ele citadas no Evangelho eu acho tudo quanto há de mais bonito!

Sempre o modo de dizer “Pai” sai com uma grande doçura e, ao mesmo tempo, tão honrado de ser Filho d’Aquele Pai. Ele, como Homem, dizendo “Pai” é quase que rezando para a sua própria natureza divina. É uma coisa tão bonita que prepara a alma para receber essas superioridades genéricas com uma espécie de devoção carinhosa e cheia de veneração.

É interessante notar que no período em que o Sagrado Coração de Jesus aparecia com doçuras de mãe para com o gênero humano, em suas manifestações Nossa Senhora apresentava-Se menos como Mãe de Misericórdia do que como a Rainha da Contra-Revolução e preparando a batalha. Ela é “castrorum acies ordinata”(1).

Com exceção de duas aparições d’Ela no século XIX — uma enquanto Nossa Senhora das Graças, em Paris, para Santa Catarina Labouré, e outra na Igreja do Miracolo, que é uma reversão, corresponde à mesma devoção, mas são dois milagres diferentes —, essa sensação de misericórdia requintada Maria Santíssima dá menos do que manifestava aos medievais, a São Bernardo, por exemplo.

Mesmo em Lourdes, onde a Santíssima Virgem difunde a misericórdia como sabemos, a nota dominante é a apologética. Diante dos séculos de ateísmo, Ela entra em luta contra este produzindo milagres a jorro e confirmando a Imaculada Conceição.

A nós, porém, foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

Certa ocasião observei uma pintura representando Santa Gertrudes em cujo coração se via o Menino Jesus, o que deveria fazer referência a algum fenômeno místico que se deu com ela.

Se é legítimo apresentar o Menino Jesus vivo no coração de Santa Gertrudes, a um título muito mais literal, muito mais cogente, com outra ênfase, é legítimo mostrar o Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria. É claro! E nós encontraremos tudo quanto estou dizendo — e muito mais — emoldurando o Sagrado Coração de Jesus dentro do Coração Imaculado de Maria.

De todas as boas imagens de Nossa Senhora que conheço, nenhuma delas me satisfaz inteiramente, porque não visam apresentar Jesus vivendo em Maria, concebendo tanto quanto possível a Santíssima Virgem como parecida com Nosso Senhor, fisicamente, mas de uma semelhança que era apenas uma imagem da similitude espiritual.

Sabe-se que muitos cristãos queriam conhecer São Tiago porque era primo de Jesus e muito parecido com Ele. Ora, se assim ocorria com São Tiago, primo em segundo ou terceiro grau de Nosso Senhor, imagine com Nossa Senhora o que era essa semelhança!

Eu me pergunto se não seria uma graça do Reino de Maria algum artista ou algum místico chegar a imaginar, na perfeição, uma imagem de Nossa Senhora inteiramente “cristiforme”, mas conservando toda a delicadeza da natureza feminina. Porque nós vemos isso pelo Santo Sudário: Ele era Varão, no sentido mais nobre da palavra; Ela, Mãe e Senhora, Dama e Rainha. Saber representar essa variedade em uma versão marial de Nosso Senhor!…

Assim, mesmo cenas da vida de Nosso Senhor se tornam muito mais cheias de vida e muito mais explicáveis. Por exemplo, os dois se abraçando na hora do encontro da Via Sacra, com essa semelhança de corpo e de alma entre ambos. Ele com a face como que d’Ela, desfigurada; e Ela com a face como que d’Ele, íntegra. De maneira que se olhava e percebia-se o contraste. Ela nobremente invadida pelo pranto sem que nada A descompusesse, e Ele aviltado pelas bofetadas e pela dor sem que nada Lhe diminuísse a majestade.

Um ósculo de Nosso Senhor na França

Quando falo com calor de Luís XIV e da devoção que ele deveria ter tido ao Sagrado Coração de Jesus, há pessoas que julgam entrar nisso uma espécie de atitude mundana, ou pelo menos terrena. Mas não é. A razão é que eu vejo nele o lampadário perfeito onde a lamparina do Sagrado Coração de Jesus deveria ter sido acesa.

Se ele fosse o devoto perfeito do Sagrado Coração de Jesus, nós teríamos tido uma figura de homem como não houve na História.

Para compreender o “meu” Luís XIV, a “minha” Versailles e o “meu” Ancien Régime é preciso entendê-los enquanto o Rei-Sol tendo sido fiel. E mais: foi no reinado de Luís XIV que São Luís Grignion de Montfort construiu o calvário dele, pregou aos camponeses e que Marie des Vallées(2) fez a troca de vontades com Nosso Senhor. Isso tudo tenderia a uma só coisa.

Então, era preciso concebê-lo criando uma atmosfera pela devoção ao Coração de Jesus, onde a escravidão a Nossa Senhora tivesse voado como uma águia em céu próprio.

É uma coisa maravilhosa! Não se tem ideia do que a infidelidade de meia dúzia de almas rateou na ocasião… Não se tem ideia da oportunidade perdida!

A partir disso fica compreensível também o meu furor contra a Revolução Francesa.

O Dauphin Luís(3) mandou colocar atrás do altar da capela do palácio uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. Ele não teve a audácia de colocar na frente…

Mas isso significa durante quantas gerações se manteve a ideia de que uma consagração ainda salvaria a França. E a consagração que Luís XVI fez da França ao Sagrado Coração de Jesus, na Torre do Templo, prova que ele ainda levava no espírito essa ideia de que, se correspondesse, poderia ter salvado o país.

Durante todo esse tempo, a Casa Real e o “Ancien Régime” conservaram uma capacidade de receber. Essa receptividade era um ornato, e aquela possibilidade, naquele tempo, um “lumen”.

O grande pranto pela Revolução Francesa era o da esperança que não se realizaria mais, e pela extinção desse “lumen” que acompanhou a Casa Real até o fim.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus ficou com uma ligeira nota francesa, é um ósculo de Nosso Senhor na França.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/9/1980)

 

1) Do latim: exército em ordem de batalha (Ct 6, 10).

2) Mística francesa (*1590 – †1656).

3) Luís Fernando de França, Delfim de França (*1729 – †1765), filho de Luís XV e pai de Luís XVI.