Meu filho, aqui estou Eu, sozinha, no canto a que teu desprezo me relegou, repleta daquele amor materno que tua rejeição comprime em Mim e impede que se expanda; daquele afeto que se conserva intacto em sua abundância e intensidade, palpitando de compaixão, à espera de que retornes para te purificar, te envolver e cumular com sua misericórdia inesgotável…
A Santa Igreja
Em sua essência, a Santa Igreja é totalmente imutável e incontaminada. Em meio às confusões, Ela é como uma coluna de brilhantes envolta pelas chamas de um incêndio. Podem as labaredas se elevar a qualquer altura, podem se expandir e se intensificar: pouco importa, a Igreja permanece de pé.
As chamas não fazem senão iluminá-la…
Plinio Corrêa de Oliveira
Uma devoção de luta!
Nossa Senhora do Rosário: a invocação é lindíssima!
O Rosário faz de Maria Santíssima a grande fonte de inspiração de nossa meditação e o alvo imediato de nossa oração durante a meditação.
Por causa dessa focalização muito especial de Nossa Senhora, o Rosário é a devoção marial por excelência.
Foi revelada pela Santíssima Virgem a São Domingos de Gusmão, que estava lutando contra uma “lepra” que infectava o Sul da França, com penetrações no litoral mediterrâneo da Espanha: a heresia albigense.
Para vencer esta heresia, Nossa Senhora revelou o Rosário que ficou, assim, o símbolo da alma ortodoxa e devota d’Ela.
Aquilo que matou o prenúncio da Revolução, adiando durante alguns séculos a eclosão da Revolução protestante, é indicado pela Mãe de Deus para o adiamento do fim do mundo e para obtermos a nossa própria fidelidade.
O Santo Rosário é, pois, uma devoção de luta!
Estamos numa época de luta. Peçamos a Nossa Senhora que faça de nós lutadores inteiramente d’Ela.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/10/1966 e 12/4/1985)
A prece dos fortes
No dia 7 de outubro celebra-se a festa de Nossa Senhora do Rosário, estabelecida pelo Papa São Pio V a fim de manifestar a jubilosa gratidão da Igreja para com a Santíssima Virgem, cuja solícita intercessão determinou a vitória da causa católica na batalha de Lepanto.
Ardoroso devoto do santo Rosário, por ele rezado diariamente, Dr. Plinio não perdia oportunidade de enaltecer as excelências dessa prática mariana, sendo-lhe — como afirmava — “motivo de sumo agrado” recomendá-la e incentivá-la entre seus filhos espirituais. Nesse intuito, fazia-lhes compreender como o Rosário “ocupa privilegiadíssimo papel na história da piedade católica. Em primeiro lugar, porque une o fiel a Nossa Senhora, e atrai para ele toda sorte de graças celestiais. Em segundo lugar, porque afugenta o demônio. Alguém que se sinta tentado, tome fervorosamente o Terço em suas mãos, e ver‑se‑á forte contra a investida do inimigo de nossas almas.
“Excelente meio de venerar a Mãe de Deus, é incalculável a torrente de bênçãos que a recitação do Rosário efundiu sobre a Cristandade. Por isso, Papas e autoridades eclesiásticas não se cansam de elogiá‑lo. Se tal não bastasse, a Santíssima Virgem, querendo Ela mesma incentivar essa inestimável devoção, mais de uma vez apareceu trazendo em suas mãos virginais o piedoso instrumento. De modo particular, nas aparições de Fátima, em Portugal, quando recomendou aos homens, com tocante insistência, a recitação diária do Terço. Além disso, a Igreja enriqueceu o Rosário com muitos privilégios e indulgências, inclusive plenárias, de maneira a fazer dele um verdadeiro tesouros de bênçãos inapreciáveis.
“A recitação do Rosário se dilatou de tal maneira que, durante muito tempo, identificou-se com a piedade católica: uma e outro eram a mesma coisa. Fosse nos atos cotidianos da vida espiritual, fosse nas festas e celebrações de maior significado, o Rosário — ou o Terço — sempre esteve presente como expressão do fervor das almas devotas.
“São Domingos recebeu da Rainha do Céu este mesmo Rosário cuja forma hoje conhecemos: começando pelo Crucifixo, que devemos oscular pedindo à Mãe de Deus que seja nossa intermediária e apresente a seu Filho nossas orações; em seguida, três Ave-marias, um Glória, e depois as cinco dezenas em que meditamos nos principais Mistérios da vida de Jesus e de Maria Santíssima — Gozosos, (Luminosos[1]), Dolorosos e Gloriosos.
“Ainda que rezado por almas mais frágeis, o Rosário é a prece dos fortes, é a súplica dos batalhadores, porque é um conjunto de orações de tal eficácia que faz avançar o bem e recuar o mal. A par das riquezas espirituais que encerra, temos a pluralidade dos feitios e coloridos com os quais é utilizado: rosários pequenos, graciosos, delicados, para crianças de trato; modestos e rústicos, mas fortes, dedilhados por mãos vigorosas que passam sobre aquelas contas; sério, varonil; rosários de princesas, de rainhas, lavorados como verdadeiras jóias, preciosos como esses que pendem das mãos das imagens de Nossa Senhora. Todos nos fazem ver algo da suavidade e da bondade régias de Maria, protetora dos débeis, amparo dos fortes, como foi o próprio São Domingos, enfrentando e vencendo com o Rosário a heresia albigense.”
E após recomendar com incansável empenho a recitação do santo Rosário, necessária aos fiéis de todos os tempos, Dr. Plinio ainda oferecia este tocante conselho:
“Nunca nos separemos do Terço. Que ele esteja sempre junto a nós, em todos os momentos: quando dormimos, quando descansamos, quando estivermos lendo ou fazendo toda e qualquer coisa. Jamais o larguemos. E quando nossas mãos não puderem mais nem se abrir nem se fechar, mas forem fechadas por outros para a nossa última atitude de oração, que o Rosário esteja entrelaçado em nossos dedos. De sorte que, chegado o momento da grandiosa Ressurreição dos mortos e nosso corpo recobrar vida, nosso primeiro gesto possa ser o de oscular o Terço que encontraremos cingidos às nossas mãos…”
[1]) Dr. Plinio faleceu em 1995, antes de o Papa João Paulo II enriquecer o Rosário com os Mistérios de Luz, na sua Carta “Rosarium Virginis Mariae”. Motivo pelo qual acrescentamos os mesmos entre colchetes, para o presente comentário adquirir ainda mais atualidade.
Guerreiros na grande luta que se aproxima
Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, exercer especial papel na realização de minha vocação. Vós, com todos os espíritos celestes, possuís uma missão altíssima na luta contra a Revolução. Dirijo-me a todos vós tendo presente a vinculação que estas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco.
Em nome desse vínculo eu vos peço: Obtende da Rainha do Céu que vossa ação se intensifique e tome toda a magnitude proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, fraquezas, com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Igreja Católica e da Civilização Cristã.
Eu vos peço, portanto, que intervenhais quanto antes sobre as pessoas e os acontecimentos de maneira que, libertos da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, possamos pertencer-vos inteiramente e ser vossos guerreiros na grande luta que se aproxima.
Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)
O convívio dos Anjos
A iconografia de Anjos da Renascença e do barroco, bem como certas imagens muito difundidas no século passado não representam autenticamente os espíritos angélicos; os da Idade Média e os de Fra Angélico exprimem a realidade. Os Anjos estão dispostos numa hierarquia, em que os superiores transmitem aos inferiores “jornais falados” a respeito do que viram em Deus.
Ao tratar sobre os Anjos, devemos antes estabelecer alguns princípios que nos ajudarão a nos aprofundarmos no assunto.
Mosteiro de Saint-Michel
O primeiro princípio que convém lembrar é o seguinte: a Providência está permitindo ao demônio ter um arrojo e uma extensão de ação como jamais se viu ao longo da História. Nós podemos ter as mais variadas impressões a respeito do passado, a História narra as ações mais estranhas, mais censuráveis, mais condenáveis. Entretanto, quando comparamos essas ações a algumas que se dão no mundo contemporâneo, vemos que o passado era simplesmente diáfano e encantador, mesmo em seus aspectos mais censuráveis, em comparação com os lados reprováveis do presente.
Há dois mil anos a Igreja cultua os santos Anjos e, de quando em quando, eles aparecem e dão de si alguma manifestação. Recordemos o Mosteiro de Saint-Michel, na França, o qual, visto no seu total, é como que a fotografia, em pedra, de um espírito angélico.
Aquela ponta que se ergue e depois a abadia com suas várias construções, junto àquele mar variado, ora mais mar do que terra, ora mais terra do que mar, às vezes restos de poça de mar no meio de braços de terra que vão secando e emergindo no meio daquilo tudo; e depois se percebe um vento uivando e silvando na parte do mar que é sempre mar. No meio de tudo isto o Mosteiro de Saint-Michel de pé, solene, tranquilo e firme, agarrado e dominando a rocha, mostrando aos mares a inanidade de seus movimentos e com a flecha apontada para o céu.
Como o espírito humano conhece bem por meio do contraste, vamos tomar certas noções comuns, correntes, pouco precisas e infelizmente um tanto infantis a respeito dos Anjos presentes na mentalidade de todo mundo — oriundas de uma apresentação muito sumária do tema — e transpô-las para o que imaginamos de um Anjo.
Com isso trataremos de ter alguma ideia daqueles Anjos cuja vinda e intervenção nós esperamos. Fica assim indicada a nossa meta, e nossas almas, ao menos por uns instantes, apontarão para essa hora da vinda deles como a torre do sino do Monte Saint-Michel.
Anjo gorducho e despreocupado…
Quais são as ideias que há a respeito dos Anjos? A criança forma a noção de que as figuras de Anjo que ela recebe correspondem às ideias que os pais — e também o vigário — têm do Anjo. Tanto mais que a criança sabe de um modo instintivo e confuso que, em última análise, o pai e a mãe conferem com o vigário as ideias da Religião. De maneira que toda estampa, todo medalhão, toda figura que representa um Anjo, a criança julga mais ou menos subconscientemente que significa o ensinamento da Igreja Católica sobre o Anjo.
Então devemos nos reportar à estatuária, às estampas, às coisas habituais a respeito dos Anjos — e que não são muitas. Podemos cogitar um pouquinho também nos magníficos Anjos da Idade Média, passando muito rapidamente pelos Anjos do barroco. Consideremos, em primeiro lugar, como os Anjos eram apresentados na nossa infância.
Havia duas casas em São Paulo, ainda do centro velho, que vendiam relógios, algumas joias e objetos religiosos de luxo: a Joalheria Michel e a Casa Bento Loeb. Aquela imagem do Coração de Jesus que há em minha residência, por exemplo, foi comprada numa dessas lojas. Eu me lembro de que o fornecimento de artigos religiosos para crianças do meu tempo era encaminhado por essas duas casas. E eram, em geral, fábricas francesas que enviavam esses objetos para São Paulo.
Então, eu me recordo de um medalhão que representava um Anjo e me chamou muito a atenção. Era circular, bom para presentear a uma senhora que acabava de ter um filho, a fim de amarrar o medalhão na cúpula do berço; para conceder a uma criancinha de três, quatro, cinco anos que faz aniversário; próprio também para dar a uma criança um pouco mais velha que recebe a Primeira Comunhão. Nem me lembro mais se esse medalhão era meu ou de minha irmã ou de algum de meus primos. Sei que esse medalhão conviveu comigo. E no promíscuo da infância entre parentes, em que a propriedade individual existe confusamente e os objetos são trocados, passam da gaveta de um para a mão do outro, nesse turbilhão tenho a impressão de que isso acabou sendo meu, mas não estou certo.
Era um Anjo tipo, ainda, “Belle Époque”(1): gorducho, com a face cheia, cabelos ligeiramente ondeados, braços bem roliços, trançados, e uma cara de inteira tranquilidade, debruçado sobre algo que era como que a base do medalhão, tendendo um pouco para o tédio, incapaz e não desejoso de qualquer esforço. Como quem olha de um terraço para um ponto vago, mas que não está muito interessado na cena que se passa embaixo e diz: “A minha batalha eu já travei e agora estou aqui gozando; você se arranje como puder!”
Lembro-me de que eu olhava para o Anjo e me vinha uma ligeira perturbação ao espírito, no seguinte sentido: “Se um Anjo é assim e conhecesse bem o interior de sua alma, ele discordaria de você; porque você tem a respeito do Anjo umas ideias que esta imagem não simboliza. Logo, ou essas ideias são contra a realidade do que é um Anjo e você está errado, ou elas são a favor dessa realidade; mas então o Anjo está errado e, portanto, alguma coisa não acerta bem nisto.” A saída era, naturalmente: “Eu vou procurar”. E olhava, olhava, olhava para ver se encontrava no Anjo alguma coisa que tivesse relação com isso.
…ou sentado sobre uma nuvem e tocando harpa
Então, uma primeira ideia a respeito dos Anjos: vida realizada, sem futuro, numa eternidade sem grandes atrativos, um certo fundo de tédio. Esforço, não! Mas outros quadros, outras coisas de uma arte religiosa que já caminhava a passos largos para sua decadência, afirmavam isso.
Por exemplo, quadro clássico, tantas vezes comentado entre nós: Anjos sentados em cima de nuvens, sobre um céu azul, tocando harpa. Quando acaba de tocar a harpa? Como é que essa nuvem não afunda?
E, no total, tem-se a impressão de que eles eram pintados com uma cara animada, mas à maneira de pessoas muito bem educadas que estavam atravessando uma fase de tédio, com ar distraído, mas que no fundo eles estavam se aborrecendo…
Por outro lado, há a ideia reta, insinuada, de que eles são de uma natureza inteiramente superior à nossa, apresentados em carne e osso apenas porque a arte não pode pintar o puro espírito, mas gozam da presença de Deus e da familiaridade nos inefáveis do Altíssimo e são muito bem intencionados, muito bem dispostos em relação aos homens. Prontos a ajudar, a socorrer.
Tornei-me adulto e as imagens de Anjos foram se repetindo no mesmo gênero. Eu me lembro de uma estampa impressa, bastante popular colocada no parlatório de um convento que frequentei muito, representando uma criancinha atravessando uma ponte, e o Anjo da Guarda, por detrás, tomando atitudes para ela não cair da ponte, com uma solicitude, um desvelo extraordinário.
Eu olhava e pensava: “Essa imagem insinua, sem afirmar explicitamente, que o Anjo se preocupa muito com que a criança não quebre a perna, mas para que ela não peque e ame de fato a Deus, não estou vendo preocupação. É um pouco securitário. Onde está o zelo do Anjo pela causa de Deus?” Não formulava isto à maneira de censura, mas de perplexidade. Era algo que eu não encontrava. Então, suspendia o meu juízo e dizia: “Não, depois veremos”.
Os Anjos de Fra Angélico
Foi algo em minha vida meu encontro com os Anjos da Idade Média e, sobretudo, com os de Fra Angélico. E refleti: “Aqui há algo com outro pensamento, outra altura, outra classe, diferente daqueles Anjos que eu vira, de uma iconografia decadente. Ora, como Fra Angélico é beato, ele fez tudo direito”.
Mas aí vinha outra perplexidade: os Anjos de Fra Angélico, os de que eu me lembro, estão sempre na bem-aventurança eterna, expressa, é verdade, de um modo perfeitamente delicado, nobre, sobrenatural, de tocar a alma. E foi esse o aspecto dos Anjos que ele procurou e nos apresentou. Eu pus em uma de nossas salas mais nobres quatro cópias de Anjos pintados por ele, e me regozijo em estarem lá. Aquilo corresponde à imagem que eu teria a respeito de um Anjo.
Mas só naquela postura? Não há outras? Não reluzem nos Anjos também outras perfeições que a minha alma procura há tanto tempo? Como são essas perfeições?
Apenas uma ideia me ficou no espírito: Por que Fra Angélico os pinta assim? Ele mesmo viveu num período em que a Idade Média já ia caminhando para seu declínio, e o heroísmo dos guerreiros medievais tinha qualquer resto ainda da ferocidade selvagem. A Europa ia afundar, dentro em breve, no que se chama anarquia feudal, quer dizer, a explosão da revolta dos senhores contra seus reis, dos senhores menores contra os senhores maiores e um mata-mata fenomenal de uns contra os outros, em parte fermento de ferocidade revolucionária que começava a crepitar, e de outro lado uma disposição de alma para a luta que tinha sido levada além do meridiano comum.
Naturalmente se compreende que Fra Angélico não poderia, a uma humanidade assim, apontar Anjos em plena ação de batalha, pois acabaria por incitar aquilo que não era para estimular. Naquele tempo, os Anjos deveriam inspirar mansidão, ser distensivos, convidando à doçura. Assim como o violino de São Francisco Solano tocado para os índios do Peru os tranquilizava, e se compreende que o Santo não lhes ensinasse marchas guerreiras, pois eles já tinham aquele borbulhar em excesso. Entende-se, assim, que Fra Angélico tenha pintado os admirabilíssimos Anjos dele.
Anjos da Renascença
Às vezes olhamos pinturas, esculturas de Anjos da Renascença — e do Barroco, continuador em alguns sentidos da Renascença — e não sabemos se representam cupidos pagãos… Lembro-me do caso de um grande pintor da Renascença, a quem um romano famoso encomendou um São João Batista increpando os fariseus. O artista disse que possuía um quase concluído e poderia entregá-lo em breve, digamos em dez dias. De fato, passado esse prazo, o quadro estava terminado.
Como se explica que um quadro, que leva muito tempo para pintar — não devido às pinceladas, mas para ir excogitando cada traço, pois é uma verdadeira composição —, estava pronto em dez dias?
Ele tinha pintado um Baco, o deus indigno do vinho e da bebedeira. Como não encontrou comprador, ele pintou por cima uma pele de camelo para cobrir um pouquinho o Baco e, com a mesma expressão de fisionomia do deus da bebedeira, ele o apresentou como sendo São João Batista.
Compreende-se que Anjos concebidos nessa escola de arte muito facilmente não tenham nada de católico. E são uma deformação do conceito de Anjo.
Então, devemos pôr de lado essas noções, conservar na retina os Anjos de Fra Angélico e perguntar: Se um desses Anjos se zangasse, que expressão de fisionomia tomaria? Colocado em presença do mal, da Revolução, que aspecto teria?
Isso nos poderia dar alguma ideia de como seria um Anjo, caso nós o víssemos. Assim preparamos nosso espírito para a cogitação sobre como deve ser um Anjo.
O corpo impõe limitações ao homem
O que nos diz a Doutrina Católica sobre os Anjos?
O homem tem misérias de toda ordem e, quando vigia muito sobre si, ele as mantém acorrentadas e presas; mas só se livrará delas na ressurreição dos mortos quando, tendo ido para o Céu, estiver com a sua integridade perfeitamente em ordem e os efeitos do pecado original sobre ele tiverem desaparecido completamente, e o homem só se inclinar para o bem. Então não estará mais dividido. Realmente o homem é dividido e, por causa disso, hesita, duvida. Ora é propenso a querer uma coisa, ora a desejar outra; ele precisa, quase, de coisas contrárias para encontrar seu equilíbrio.
Eu estou numa cadeira com dois braços e um encosto. O que isto representa de limitação humana! Preciso ora me apoiar sobre a direita, ora sobre a esquerda, ora nas costas; necessito apoio variado o tempo inteiro. É uma necessidade do corpo que simboliza as hesitações, as limitações e as misérias da alma humana.
Pior. Se o homem apenas hesitasse… Às vezes ele hesita e erra, duvida e peca. E às vezes nem duvida, mas delibera e peca! Até lá chegam as coisas!
Diante dessa situação podemos fazer a comparação com o Anjo. Este, por não estar ligado à matéria, não tem as limitações que a matéria nos impõe. Quanto a carne limita e condiciona o homem: bons e maus humores, nervos, etc.!
Evidentemente, a carne não é má; ela é boa, sendo uma criatura de Deus. “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Está tudo dito! Qualquer crítica que se faça da carne expira na entrada, ao pé do monte desta afirmação. Portanto, estou longe de falar contra a carne, eu a respeito.
“Não desprezes a tua própria carne”
Vem-me à memória o seguinte fato. Havia antigamente na região central de São Paulo muitos salões de engraxate, e fui a um localizado na Rua da Quitanda. Enquanto o rapaz engraxava meus sapatos, eu estava distraído, pensando em outras coisas. Não sei se eu não punha o pé no lugar adequado, mas em certo momento notei as duas mãozonas do engraxate que pegavam o meu pé e o colocavam sobre sua perna, para ele engraxar o sapato ali, sob seu controle. Quando percebi que meu pé pousava sobre a perna do engraxate, tive um sobressalto e pensei: “Não se faz isso com a carne humana! Trata-se de um simples engraxate, mas é um homem! E o respeito à natureza humana deve levar-me a tirar o pé de cima da perna dele”.
Olhei para o engraxate e percebi que seria um duelo, porque ele queria terminar o serviço e não estava pensando em sua perna, mas nos sapatos que precisava engraxar. Era uma luta que eu não venceria, pois ele agarrava meu pé. Então refleti: “Bem, é por conta dele; se o engraxate me obriga, ele está me desrespeitando e não sou eu que estou pisando nele. Ele quer ser pisado”.
Mas fiquei com esta pergunta no espírito: Qual é o princípio em virtude do qual essa minha reação foi reta? Algum tempo depois me chegou às mãos, por circunstâncias fortuitas, uma citação da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne” (Is 58,7). Eu disse: “Olha lá! Está aí justificada minha reação no caso do engraxate!”
Eu não poderia desprezar a carne humana; não era minha, mas carne da qual também eu sou feito. Não posso desprezar a minha própria carne. Por isso não tenho o direito de pisar noutro homem, de tal maneira nós devemos respeito à carne.
A graça prepara a alma para ser o reflexo de Deus
Além da carne, há um outro fator que condiciona o espírito humano: é a graça. Quer dizer, é uma participação criada na vida divina que dá a cada um de nós lampejos, pensamentos, reflexões, volições que Deus sopra em nossa alma e por onde Ele, com muita delicadeza, prepara a alma humana para ser o reflexo d’Ele mesmo.
Assim, a graça respeita a nossa fragilidade, as nossas limitações, ama essa natureza humana composta de alma e corpo que seria a natureza humana de Nosso Senhor e a de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra. Deus, por meio da graça, de um lado, e do corpo, de outro lado, faz com que a alma, se ela se deixa conduzir, se eleve a considerações altas, pense coisas nobres, sua vontade tome força; o homem pode tornar-se um santo, ainda que muito pouco inteligente.
Houve um santo famoso por sua carência de inteligência, São José de Cupertino, que viveu na Itália. Ele era muito pouco inteligente, mas dava conselhos tão acertados que havia peregrinação para o local onde ele morava. E milagres ele praticava a jorro contínuo. É a graça superando ou compensando o que a carne não dava e fazendo dele esta maravilha de Deus: um homem de grandes horizontes, mas burro!
Era preciso que isto existisse na ordem do criado, e assim compreendêssemos bem o que é a limitação, a fragilidade e o esplendor do homem.
Alguém dirá: “Limitação, fragilidade, Dr. Plinio, eu vejo; esplendor não estou vendo…”
Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação, e por isso Ele tomou a condição daquele tipo de seres que reúne as duas pontas da Criação. O homem, enquanto ser espiritual, toca no Anjo, e enquanto ser material tange no animal, na planta e na pedra. Ele é um resumo de tudo quanto Deus fez.
Quem é capaz de ver o mar sem se enlevar especialmente com aquela fímbria onde ele parece tocar no céu? Ora, este é o homem! É um horizonte composto.
Não deixa de ser verdade que todas as coisas brilham por causa do Sol, e se o homem é o conjunto, o que há neste de mais nobre, de mais luminoso, de mais belo é a alma humana, elemento espiritual que nos assemelha aos Anjos. Entretanto, estes são de tal maneira que cada Anjo é, por natureza, distinto de outro. Puros espíritos e tão desiguais entre si que são como espécies ou gêneros diferentes.
Jornal falado dos Anjos superiores aos inferiores
Os Anjos estão dispostos perpendicularmente em hierarquia. Cada superior vê mais, quer com mais força, ama com mais ardor, combate com mais eficácia, seu louvor tem mais ressonância, sua presença mais calor, sua missão mais glória do que o inferior.
O gráfico verdadeiro dos Anjos não seria uma pirâmide que encosta sua base noutra pirâmide e assim por diante. A perspectiva seria um fio de linha luminoso de puros espíritos que chegariam até o lugar aonde ninguém chega, nem eles mesmos: o trono de Deus.
E no ápice — mas tão mais no ápice que nem sei o que dizer! — está Nossa Senhora. Nosso Senhor Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Sua natureza humana está ligada à divina pela união hipostática. Nossa Senhora é mera criatura. Ela está num píncaro em relação aos Anjos, os quais cantam enlevados sem poder entender inteiramente.
Mas eles, ao longo deste fio esplendoroso, têm secções. Uma é a dos Serafins, outra dos Querubins, depois dos Tronos, das Dominações, das Potestades, das Virtudes, dos Principados, dos Arcanjos e dos Anjos. Estes são denominadores comuns entre os quais há hierarquia. Cada Anjo vê Deus face a face, entretanto os mais elevados contam aos inferiores o jornal falado sobre o Onipotente que não foi possível eles verem. Então o mais alto diz ao inferior, com amor e solicitude: “Príncipe, meu irmão, vi tal coisa e tal outra”. E o que recebe a notícia conta ao colocado abaixo: “A ti, Príncipe, meu irmão…”, e lá vai a mensagem, a informação celeste. Cada um que fala com o mais baixo conta o que os Anjos mais elevados lhe disseram e o que ele próprio viu de Deus.
De maneira que quando chega à base — quanto acima de nós! —, esta recebe uma caudal de comunicações, de incitamentos, de estímulos, de nobilitações, e canta a glória das hierarquias superiores como modo de cantar a Deus. E todo afeto, todo respeito que desce, sobe à maneira de ação de graças e louvor.
É o eterno convívio entre os Anjos em que, apesar de ver Deus face a face, cada Anjo é razão de uma alegria enorme para outro, e a corte angélica nada nas suas alegrias eternas.
Viver é sentir saudades dos píncaros
Devemos lembrar de passagem que existem vagas nessa corte, e serão almas de criaturas humanas que preencherão esses lugares. E há, por exemplo, a tese indizivelmente simpática de que São José faz parte do coro dos Serafins. Ele está no mais alto, mais alto, mais alto que possa existir, pois é o esposo da Santíssima Virgem!
Assim, esses vagos são preenchidos por gente da plebe da Criação enobrecida pelos planos de Deus, pela Igreja Católica e pela graça. E na Terra, ao longo do tempo, aqueles para isso designados, talvez todos os homens, não se sabe bem como é essa distribuição, estão sendo promovidos para obterem o trono que os espera no Céu, segundo os planos de Deus.
Nunca percebi em concreto nada que me desse a impressão mais especial de um Anjo me ajudando, mas sei que eles auxiliam e lhes agradeço com todas as profundidades que em minha alma haver possa. Tenho a certeza de que os nossos Anjos da Guarda têm por especial preocupação elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes. Não é o mero anseio de levar boa vida no Céu, mas um desejo de conhecer as coisas celestes até mesmo independentes da felicidade que o Paraíso concede. De maneira que Santa Teresa — bem espanhola na sua santidade — dizia a Deus: “Ainda que não houvesse o Céu eu Te amaria, e ainda que não houvesse o Inferno eu Te temeria!” É assim que devemos conceber o Paraíso.
Para considerarmos bem as coisas do Céu, precisamos observar as coisas da Terra, criadas por Deus à maneira do Céu. Antes de tudo a Igreja Católica e depois os vários seres materiais.
É mister termos um feitio de alma pelo qual, por um seletivo bem realizado, conhecemos o que devemos conhecer olhando sempre para o que de mais alto aquilo conduz. Este é o movimento de nossa alma para o Céu.
Tenho certeza de que o Anjo da Guarda de cada um nos ajuda especialmente nisso.
Uma alma “angeliforme”, consoante com seu Anjo da Guarda, é aquela que em cada circunstância procura o que há de mais elevado, e vive à procura do mais elevado.
Assim, devemos entender que nossos Anjos da Guarda querem isso de nós, e que só formamos um com eles se toda nossa vida for orientada ao mais alto. Para a alma ser assim é evidentemente necessária a ajuda dos Anjos. E eu agradeço do fundo da alma ao meu Anjo da Guarda, a Nossa Senhora e a Deus Nosso Senhor, de Quem parte todo o bem que a Santíssima Virgem distribui. Viver não é comer, beber e dormir, passear, vegetar. Viver é sentir essas saudades dos píncaros.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1980)
1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.
Símbolos, fantasia e realidade
Sendo constituído de corpo e alma, o homem não se sente plenamente satisfeito enquanto seus sentidos não puderem captar aquilo que seu espírito concebeu. Essa necessidade se torna ainda mais intensa e primordial quando se trata dAquele que nos criou: mais do que tudo, temos o desejo de ver a Deus com os olhos da carne, depois de o termos percebido através dos olhos da alma.
Acontece, porém, que Deus não pode se manifestar visivelmente ao homem, pois este se desconjuntaria inteiro diante da sua infinita e sobrenatural magnificência. Para remediar essa impossibilidade, o Senhor dispôs de sentidos tivessem de alguma forma o conhecimento dEle. Essa percepção nos é dada através dos símbolos. O que é, pois, o símbolo? É aquilo que nos faz conhecer as perfeições do Criador, as realidades sobrenaturais ou as meramente espirituais, de maneira tal que nos tocam no corpo, dão movimento à nossa sensibilidade e satisfazem os nossos anseios de distinguir fisicamente o que compreendemos pelo intelecto.
Por exemplo, o heroísmo é um elemento da virtude da fortaleza. Podemos ter todas as noções teóricas sobre o heroísmo, mas sentiremos o que ele é se analisarmos um leão. Deus incutiu neste animal certos movimentos, élans, vais-e-vens, que são aná- lagos, à maneira de bicho, aos gestos e atitudes de um herói. O rei das selvas é, portanto, um símbolo que tem em si uma misteriosa semelhança com coisas da alma, e que nos faz conhecer o espírito de um homem leonino, como terá sido Carlos Magnos e tantos outros personagens históricos que se distinguiram por seu heroísmo e sua fortaleza. Como nos faz conhecer um pouco mais Aquele que é a Coragem, a Fortaleza e o Heroísmo, Deus Nosso Senhor.
O que se disse do leão, pode-se aplicar a uma águia. Contemplando esta ave que começa a levantar voo, teremos ideia do que é a ousadia soberana, que não duvida, que não toma precauções pequenas e mesquinhas.
O alçar da águia rumo ao sol é semelhante a determinadas atitudes da alma também audaciosa, e tal analogia faz com que entendamos pelos sentidos aquilo que já compreendemos pela inteligência.
Essas simbologias permitem que o homem não julgue monstruoso, mas compreenda e goste de algumas figuras da heráldica que são imagens de altos valores morais e espirituais. Por exemplo, poucos símbolos heráldicos são mais bonitos do que a águia bicéfala. Criatura que, se existisse, seria tomada como uma aberração da natureza, adorna entretanto o escudo e as coroas dos mais elevados soberanos do mundo. Pintada, ela faz sentir uma universalidade de poder: tantas são as coroas que é preciso mais de uma fronte para sustentá-las. Transmite uma impressão de nobreza, na qual o elemento pensante a cabeça é tão mais valioso que o elemento corpo, que existem duas, imperando sobre o resto da matéria física.
Outro belo símbolo de heráldica é o leão alado de Veneza. Olha-se para ele e não se o julga um monstro. É a força conjugada com a leveza, o arrojo com a graça e a distinção, é a superioridade de quem pode se impor pela robustez temperada pela elegância de quem pode voar.
Conta-se um episódio célebre, passado na Veneza sob dependência austríaca, nos velhos e bons tempos da diplomacia cavalheiresca. Um nobre veneziano e um representante da Áustria conversavam num daqueles encantadores balcões da cidade das águas, e os olhares de ambos se detiveram na imagem do leão alado. O austríaco virou-se para o veneziano e disse num tom de pouco caso, como quem graceja: Curioso este país onde os leões têm asas… O outro respondeu ato contínuo, na mesma toada: Mais curioso o país onde as águias têm duas cabeças…
Na verdade, estavam fazendo uma brincadeira quase que de salão, porque, de si, nem uma coisa nem outra é ridícula. Tratam-se de símbolos, aos quais se permite uma ousadia que não se concede aos seres vivos. Com efeito, o universo dos símbolos, embora exprima uma realidade, é até certo ponto o mundo da fantasia. Ele se situa entre a fantasia e a realidade: não podendo ser inteiramente fantasia, não será senão mais raramente uma mera realidade. De fato, o símbolo será tanto mais artístico quanto mais exprima o fundo da realidade, distanciando-se ao mesmo tempo das aparências desta.
Qual é o papel do leão alado ou da águia bicéfala? É, novamente, fazer repercutir na nossa sensibilidade algo que a mente já compreendeu, tornando essa compreensão ainda mais completa. Por isso o símbolo é tão conveniente para o conhecimento humano. E, a meu ver, talvez a mais alta expressão da arte, sobretudo a arte inspirada pela Igreja, seja a de proporcionar ao homem a manifestação dos símbolos que tanto enriquecem sua inteligência e seu espírito.
Havia uma escola de pintura do século XIX que costumava apresentar a realidade sempre envolta numa espécie de névoa. Na verdade, esta missão da arte tinha em vista apresentar um certo caráter simbólico que a névoa confere aos ambientes e aos objetos por ela abarcados.
Imagine-se, por exemplo, um castelo gótico no alto de um monte ou na encosta de uma colina, meio agasalhado na bruma. Assim ele diz mais o que deseja expressar do que se estivesse sem a bruma. Por quê? Porque esta apresenta o lado irreal, que é preciso a fantasia juntar ao real, para a sensibilidade ser inteiramente tocada. Numa palavra, o símbolo ajuda a sensibilidade a se elevar às alturas, onde o intelecto do homem foi conduzido pela razão, e, sobretudo, pela fé.
Para concluir, lembremos que Deus outorga a certos homens e mulheres a missão de simbolizar. E, curioso, nem sempre são pessoas de muito valor. Porém, possuem uma estampa, um modo de ser, que, se corresponderem à graça, externam e tornam particularmente atraentes determinadas virtudes. Por causa disso, são chamados a praticá-las eximiamente, transformando-se em anúncios luminosos da perfeição moral. Estes são os Santos. E um Santo nunca se apagará da história.
Plinio Corrêa de Oliveira
Como um magnífico nascer da lua…
O nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo representou uma honra incomparável para toda humanidade. Guardadas as proporções, também a vinda de Nossa Senhora ao mundo conferiu particular nobreza ao gênero humano. Foi Ela a criatura mais perfeita nascida até então, concebida sem pecado original, a quem foi dada, desde o primeiro instante de seu ser, uma superabundância de graças.
Compreende-se pois, a afirmação de que Maria Santíssima está para Nosso Senhor, assim como a lua para o sol: Ela representa a suave e amena luminosidade da lua, e Ele, a onipotente e deslumbrante claridade do sol.
Há, sem dúvida, imensa beleza no despontar do fulgurante astro. Contudo, em certas ocasiões, o aparecimento da lua tem também seu encanto, sua poesia e sua grandeza. A natividade de Nossa Senhora foi, pois, para toda a humanidade, como magnífico nascer da lua: sol das sombras, sol do repouso, sol das longas meditações e das extensas digressões do espírito…
Plinio Corrêa de Oliveira
Santa Teresinha: Vítima Expiatória
Dr. Plinio fechou seus olhos para esta terra em 3 de outubro. Pelo antigo calendário litúrgico, nessa data caía também a festa de Santa Teresinha (atualmente comemorada no dia 1º do mesmo mês). Desde a sua mocidade Dr. Plinio foi grande devoto dessa insigne carmelita francesa. O presente artigo para o “Legionário”, em 1947, deu-lhe ocasião de expressar sua profunda veneração por ela.
Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer, de nossos dias: daqui a pouco celebraremos o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós, são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos 24 anos. Felizmente, a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme, semblante resoluto, sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas entre si — ao menos segundo a mentalidade liberal —, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si, e a mais atraente naturalidade.
Fisionomia e biografia deformadas
Se não possuíssemos fotografias da santa rosa do carmelo, que ideia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens: doce de uma doçura sentimental e quase romântica, boa de uma bondade puramente humana e sem o menor sopro de sobrenatural, enfim, uma jovem de boas inclinações, se bem que exageradamente sensível… nunca uma santa, uma autêntica e genuína santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja de Deus Verdadeiro. Se não toda a iconografia, pelo menos certa iconografia, sem alterar os traços da Santa, lhe alterou contudo a fisionomia.
O mesmo se dá com sua biografia. Certa literatura sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente certos episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma mesma direção: ocultar o sentido profundo, admirável, heroico e imortal da vida da imortal Santinha.
Os tesouros da Redenção
No 50º aniversário de sua morte, alguém que muito e muito lhe deve procura saldar com respeitoso amor esta dívida, fazendo como que um comentário doutrinário à sua vida.
O pecado original cometido por Adão, e os pecados posteriormente praticados pela humanidade, constituem ofensas a Deus. Para resgatar essas ofensas, e aplacar a ira divina, era preciso que a humanidade expiasse.
Esta expiação era como que o pagamento que compensasse a falta cometida. Há nisto de certo modo uma restituição. Pelo pecado, o homem como que se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar estes pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.
Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas materiais. É um tesouro moral e espiritual, como exige a natureza moral das faltas que se trata de resgatar. Este tesouro se compõe antes de tudo, e essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus, e produziram a Redenção da humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma simples gota do precioso sangue bastaria para redimir a humanidade inteira. Contudo, por desígnios insondáveis da Providência Divina, de fato a Redenção não se operou no momento em que se verteu para nós o primeiro sangue do Redentor, mas só quando Ele expirou por nós na Cruz, depois de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa de Deus, Ele não se contenta com o sacrifício super-abundantemente suficiente do Redentor.
A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da Redenção está concluída. Mas, para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para que as almas transviadas aproveitem o Sacrifício do Homem-Deus, é necessário que também nós alcancemos méritos.
O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas. Uma infinitamente preciosa e super-abundantemente eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra pequeníssima, desvaliosíssima, insignificante: é a dos méritos dos homens, adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas — mistério de Deus — em si mesma perfeitamente dispensável, esta parte é indispensável, porque Deus o quis: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”, diz Santo Agostinho. Deus nos criou sem nossa cooperação, mas, para nos salvar, Ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também cooperação na prece e no sacrifício.
Sem os méritos dos homens, o tesouro da Igreja não estará completo, e a humanidade não aproveitará inteiramente os frutos da salvação.
A necessidade do auxílio da graça divina Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz do menor ato de virtude cristã sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e pela graça de Deus ajudado.
Em outros termos, a primeira ideia, o primeiro impulso, toda a realização do ato de virtude sobrenatural se faz com o auxílio da graça. E isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã — nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria — sem o auxílio sobrenatural da graça. Tudo isto é de Fé, e quem o negasse seria herege. Nossa vontade coopera com a graça, e sem o concurso de nossa vontade não há virtude possível. Mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de praticar a virtude sobrenatural.
Ora, como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação. Todos os homens recebem graças suficientes para se salvar. Também isto é de Fé. Mas, de fato, pela maldade humana, que é imensa, muito poucos se salvariam só com a graça suficiente. É preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do livre arbítrio humano.
A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja. Mas, como vimos, esse tesouro se compõe de duas parcelas, uma das quais perfeita e imutável — a de Deus — e outra mutável e imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for deficiente, tanto menos abundantes serão as graças.
Quanto menos abundantes forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que esteja sempre cheio, de méritos produzidos pelos homens, o tesouro da Igreja. Os grandes pecadores são os filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo momento, no tesouro da Igreja, riquezas novas que substituam as que se empregam pelos pecadores.
As admiráveis vítimas expiatórias
Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos são supridos por novos lances de generosidade de Deus e
das almas santas, ou as graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.
Daí se deduz que nada mais necessário, para a dilatação da Igreja, do que enriquecer sempre e sempre seu tesouro sobrenatural com novos méritos. Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há, no jardim da Igreja, almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus, e a expiar pelos pecados dos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas.
Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que trabalham, muitos que rezam: mas quem tem a coragem de expiar?
Heroica missão de Santa Teresinha
Este é o sentido mais profundo da vocação dos Trapistas, das Franciscanas, Dominicanas e Carmelitas entre as quais floriu a suave e heroica Teresinha. Seu método foi especial. Praticando a conformidade plena com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que dela afastassem qualquer dor. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras qualquer mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida espiritual, plena submissão equivale a plena santificação.
Seu método se caracteriza ainda por outra nota importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se limitou apenas simplesmente às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos sacrifícios. Jamais a vontade própria. Jamais o cômodo, o deleitável. Sempre o contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei: cada pequeno ato consistia no amor de Deus com que era feito.
E que amor meritoso! Santa Teresinha não tinha visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam por vezes tão amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz, sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito…
Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir? Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa Teresinha foi de nos mostrar uma via que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela nos auxilie a percorrer esta estrada real, que levará aos altares não apenas uma ou outra alma, mas legiões inteiras.
Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do“Legionário”, nº 790, de 28/9/47. Os subtítulos são nossos.)
Coliseu – Magnífico Palácio Espiritual
Não é raro visitarmos algum ambiente, monumento ou lugar histórico, e termos a impressão de ali estarem presentes algumas pessoas que muito o marcaram. Além de dar uma dimensão mais pro- funda à nossa visita, essa experiência nos leva a compreender melhor o espírito dessas personagens do que se houvéssemos diariamente convivido com elas.
Esta reflexão me vem à mente, de modo especial, quando me lembro das ruínas do Coliseu romano. Ao penetrarmos nelas, sentimos, por uma ação da graça divina, a presença dos mártires que ali padeceram e verteram seu sangue, para se tornarem – no inspirado dizer de Tertuliano – sementes de novos cristãos. Heróis da Fé, admirados por todo o mundo, em todos os séculos, desde os tempos da Igreja catacumbal até o dia de hoje! E mesmo homens que se vangloriam de seu ateísmo, quando vão a Roma, não deixam de passar pelo Coliseu, para ver de perto o lugar onde aqueles valentes enfrentaram as feras para se manterem fiéis à religião católica apostólica romana.
Que palácio espiritual magnífico! Imenso e faustoso, é uma das matrizes de maravilha nesta terra.
Sua maior beleza aparece à noite, quando as sombras e trevas atenuam o prosaísmo das coisas modernas que o circundam, e o silêncio das altas horas envolve os ruídos cacofônicos da cidade que adormece. Em certo mo- mento, enquanto uma lua graciosa e amiga esparge suas aveludadas cintilações, ouve-se o demorado silvo de uma ave noturna, aninhada sob um dos arcos do Coliseu. Aquela espécie de brado nos faz lembrar o gemido dilacerante de um mártir, a derradeira prece lançada aos céus por uma alma a caminho da suprema imolação…
Contemplar aquele anfiteatro de tragédias e de heroísmos leva nossa imaginação a reproduzir um dos mais belos episódios de martírio que registra a hagiografia católica.
É noite na Roma dos Césares. Aqui e ali, as tochas que a iluminam vão se apagando. Pouco a pouco, esmorecem os barulhos das festas, extinguem-se conversas e risos. Na soberana metrópole do mundo, tudo é calma e tudo repouso. Despertos, em meio a densas trevas, ficam apenas os mártires do Coliseu, orando e se encorajando mutua- mente. Por vezes a noite é borrascosa, o tempo inóspito, tornando ainda mais horrorosa e dorida aquela vigília para a morte.
De súbito, ouve-se o bramido de uma fera ecoando pelos lúgubres porões do grande circo. Rugido de animal faminto, há dias privado de ali- mento para que mais encarniçado se atire sobre sua vítima, na hora do fatídico encontro. E o urro do tigre, do leão, da pantera ou da hiena repercute como um estremecimento de terror nos corpos dos católicos. Alguns choram, com medo de lhes faltar a coragem no momento decisivo. Suplicam a Deus, com toda a alma, forças superabundantes para não cometerem a pior das infidelidades, para não apostatarem da verdadeira religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sereno em meio a tanta apreensão, um dos cativos, já entrado na ancianidade, percorre as fileiras de prisioneiros, dirigindo a cada um palavras de ânimo e esperança. Certamente re- corda-se ele, nesse extremo de vida, daquela voz suave e paternal que – conforme reza a tradição – um dia, em sua remota infância, penetrou no mais íntimo de seu ser: “Deixai vir a Mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”. Agora, imitando o Divino Redentor, promete àqueles ir- mãos de Fé a mesma bem-aventurança eterna.
Aos poucos vão se atenuando as trevas, e a claridade da manhã traz consigo o ponteiro que marca a hora do sangrento suplício. Os rugidos das feras tornam-se mais intensos e aterradores; as súplicas, mais prementes e fervorosas. Soam os clarins, anunciando a chegada do César. Abrem-se as prisões, e os mártires são conduzidos ao local da imolação. Ao vê-los, trôpegos e maltratados, o povo pagão que lota as arquibancadas do Coliseu explode em vaias e apupos.
Libertas de suas jaulas, as feras esfomeadas se precipitam sobre as carnes dos católicos. Exceto uma. Dando provas da autenticidade da Fé que professa, aquele velho cativo detém miraculosamente o leão que cresce para ele. Abre seus grandes braços e eleva aos céus uma extraordinária prece: “Senhor, assim como o trigo é esma- gado para se transformar na Sagrada Eucaristia, assim esta fera triture o meu corpo, por Vós, ó meu Deus!”
Só então, desvencilhado da misteriosa força que o retinha, o animal se atira sobre o mártir, despedaçando-o. O herói foi Santo Inácio de Antioquia, aquele que, quando menino, fora acariciado pelo Mestre Divino, recebendo d’Ele a pro- messa do Reino dos Céus.
E a noite recai uma vez mais sobre a grandiosa mole do Coliseu. As areias do circo pagão, embebidas de sangue católico, transformam-se de novo em campo arado e fértil, de onde germinarão muitos outros filhos da Esposa Mística de Cristo.