Práticas da perfeição cristã

Dando continuidade aos seus comentários à “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, de São Luís Grignion de Montfort, Dr. Plinio salienta a necessidade de nos compenetrarmos de que nascemos, antes de tudo, para cumprir a missão e o plano de Deus a nosso respeito. E tal desempenho envolve o sofrimento que devemos abraçar, “sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos”.

 

Na segunda parte de seu opúsculo destinado aos Amigos da Cruz, São Luís Grignion de Montfort estabelece o programa de santidade que o próprio Divino Mestre nos deixou. Escreve ele:

Toda a perfeição cristã, com efeito, consiste:

1º) Em querer tornar‑se santo: “Se alguém quiser vir após Mim”.

2º) Em abnegar-se: “renuncie a si mesmo”;

3º) Em sofrer: “carregue sua cruz”;

4º) Em agir: “siga‑me” (Mt 16, 24; Lc 9, 23).

Portanto, ao interpretar a admirável frase de Nosso Senhor no Evangelho, São Luís demonstra como ela encerra um desejo de santidade, uma renúncia, um padecimento e uma ação. São os elementos fundamentais da conquista da perfeição cristã. A seguir, o autor comentará cada um desses componentes.

Muito poucos querem abraçar a cruz de Cristo

“Se alguém quiser vir comigo” — “Alguém” e não “alguns”, para marcar o pequeno número dos eleitos que querem se identificar com Jesus crucificado, carregando sua cruz. É tão pequeno esse número, tão pequeno, que se o soubéssemos, ficaríamos pasmados de dor.

É tão pequeno, que há apenas um em cada dez mil, como foi revelado a vários santos — entre outros a São Simão Estilita, segundo narra o Santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, São Basílio e alguns outros. É tão pequeno, que se Deus quisesse reuni‑los, gritar‑lhes‑ia, como o fez outrora pela boca de um profeta: reuni‑vos um a um, um desta província, outro desse reino (Is 27, 12).

Cumpre notar que São Luís Grignion não se refere apenas ao seu tempo, mas considera todas as épocas, em todos os lugares: assim mesmo, o número de pessoas que verdadeiramente querem tomar a cruz de Nosso Senhor e segui-Lo, é pasmosamente pequeno.

Sem o auxílio da graça não se aceita uma vida de renúncias

São Luís prossegue:

“Se alguém quiser” — se alguém tiver vontade autêntica, firme e determinada, não pela natureza, pelo costume, pelo amor próprio, pelo interesse ou respeito humano, mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo, que não se dá a todos. O conhecimento do mistério da cruz, na prática, só é dado a poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e aí se deixar pregar na cruz, com Jesus, em sua própria pátria, é preciso que seja um corajoso, um herói, um determinado, um homem formado em Deus, que despreze o mundo e o inferno, seu corpo e sua vontade própria; disposto a deixar tudo, a tudo empreender e a tudo sofrer por Jesus Cristo.

Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles dentre vós que não têm essa determinação, andam com um pé só, voam com uma asa só e não são dignos de estar no meio de vós, porque não são dignos de serem chamados Amigos da Cruz, à qual devemos amar com Jesus Cristo, “corde magno et animo volenti”. Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai‑a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

Esse pensamento de São Luís Grignion é muito importante, porque nos revela a necessidade de uma graça especial para determinar os homens a seguirem a cruz de Nosso Senhor.

Quer dizer, se alguém julga que somente fatores humanos são capazes de levar uma pessoa a aceitar uma verdadeira vida de sacrifícios, esse se acha completamente enganado. E igualmente errado estará quem pense que a tal nos inclinará o costume, a natureza ou o “ânimo dedicado”. Não existe ânimo dedicado nessa matéria. Há homens que, às vezes, demonstram certa facilidade para algumas formas menos penosas de dedicação. Mas entregar-se até o sangue nas grandes dificuldades, não se consegue sem o auxílio da graça.

Sabemos, pela experiência pessoal de cada um, como é dura a batalha pela perseverança na virtude: luta e entrega individuais, em que a tradição e o ambiente doméstico podem ajudar um tanto, mas não são fatores determinantes para nos levar à pratica da virtude. É preciso a força da vontade secundada pelo socorro divino.

A graça “toda vitoriosa” do Espírito Santo

Curioso notar como São Luís Grignion se refere também ao interesse e ao respeito humano — tomado aqui no sentido de honras e regalias que se prometem a alguém — como ineficazes para convencer o homem a tomar a Cruz. Ou seja, nenhuma razão natural, nenhum valor terreno e mundano é capaz de determinar uma pessoa a cumprir estavelmente os Mandamentos de Deus. Só mesmo com o amparo do Céu, como o próprio autor insistirá na frase seguinte:

Mas por uma graça toda vitoriosa do Espírito Santo que não se dá a todos.

Agrada-me salientar essa bela expressão de São Luís: “graça toda vitoriosa”.

Com efeito, há certas graças que o Espírito Santo concede aos homens, em geral graças de conversão, que trazem consigo a vitória na vida espiritual. Graças tão ricas, tão eficazes, alcançadas por meio de Maria Santíssima, que nos fazem sentir um desejo quase irresistível de progredir na virtude e de abraçar as vias da santidade de modo mais resoluto.

Certo, mesmo sob o influxo dessa graça poderemos conhecer eclipses, enfrentaremos toda espécie de ventanias, de tropeços, mas, afinal, aquela luz divina nunca se apagará inteiramente no nosso horizonte. E acabaremos por segui-la e por atingir nosso bom porto, conduzidos pela misericórdia de Nossa Senhora.

Prudência sobrenatural

Continua o santo autor:

Basta uma meia vontade nesse caso, para corromper todo o rebanho como uma ovelha negra. Se em vosso aprisco já existe uma delas, vinda pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai‑a como a um lobo que se esgueirou entre os cordeiros.

É interessante analisarmos a razão pela qual São Luís Grignion se refere à “má ovelha”. A meu ver, uma razão de prudência sobrenatural, que se explica nesses termos: quando um grupo forma um todo homogêneo, a presença nesse conjunto de um elemento heterogêneo pode maculá-lo por inteiro.

Imaginemos, por exemplo, um lindo tecido sobre o qual cai uma gota de tinta. Diríamos: “o pano está manchado”. E estranharíamos se outro objetasse: “Não, desculpe-me, mas apenas um centímetro quadrado desse tecido está sujo; o resto está limpo”. Ora, um centímetro quadrado de mancha num tecido branco, implica em que todo ele está manchado. Se se deseja a alvura inteira do pano, é preciso remover a mancha.

Se aceitarmos a cruz, cumpriremos nossa missão

“Se alguém quiser vir comigo”, que tanto me humilhei e aniquilei, que me tornei mais semelhante a um verme, que a um homem;  comigo, que só vim ao mundo para abraçar a cruz, para colocá‑la no centro de meu coração, para amá‑la desde a minha juventude; para suspirar por ela durante a minha vida; para carregá‑la com alegria, preferindo‑a a todas as alegrias do céu e da terra, e que, enfim, só me contentei quando morri em seu divino abraço.

Eis um dos sublimes pensamentos de São Luís Grignion de Montfort, pois se refere à posição do homem perante a missão que ele recebeu de Deus; missão que sempre traz uma cruz, à qual deseja carregar. Aqui está, expressa em termos magníficos, a vocação do verdadeiro Amigo da Cruz.

Trata-se, portanto, de termos a compenetração de que viemos ao mundo, não para nos divertir nem para satisfazer caprichos. Viemos, antes de tudo, para cumprir nossa missão, o plano de Deus a respeito de cada um. E o desempenho dessa missão envolve o sofrimento que devemos abraçar, agarrarmo-nos a ele, sem fugas, sem fraudes, sem contrabandos, mas tomá-lo por inteiro. Claro está, suplicando a Nossa Senhora que nos alcance de Deus as forças necessárias para beber o cálice das dores como Ela e seu Divino Filho o fizeram na Paixão, sem deixar escapar uma gota sequer. Seja o que for, por mais duro, mais difícil, mais enigmático e incompreensível aos nossos olhos, aceitarmos.

E não é apenas aceitar a cruz, mas nos adiantarmos e a agarrarmos, nos prendermos a ela, com todo o amor e toda a força de nossa alma. Amo minha missão e o sofrimento sacrossanto que ela traz consigo. O resto me importa menos ou não me importa nada. Quero a cada uma dessas gotas de sacrifício, com integridade de coração, sem me esquivar de nenhuma. Devo preferi-las “a todas as alegrias do céu e da terra”, e “amá-las desde a minha juventude”.

Outra expressão de extrema beleza. Na verdade, muitos podem dizer que desde a juventude, desde os albores da infância, sentiram o sopro da graça que lhes convidava para sua vocação. E se corresponderem, no momento de deixarem este mundo, poderão olhar para trás e dizer a Deus:

“Senhor meu Pai,  ao menos, de um modo ou doutro, amei a vocação que me destes desde o começo de minha vida. E esta não foi outra coisa senão procurar o cumprimento da missão que me confiastes. Agora morro nas vossas mãos e nas de Maria Santíssima; aquilo que me mandastes fazer, eu fiz. Dai‑me, pois, Senhor, o prêmio da vossa glória.”

É a missão realizada. Mas, missão aceita é, antes de tudo, a cruz aceita. Abraçada a cruz, está cumprida a missão. E é a graça de tomarmos a cruz que devemos pedir a Deus, de toda a alma e com toda a confiança, por meio de Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/7/1967)

 

Oração: Nossa Senhora Aparecida, glória, alegria e honra do nosso povo

Ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças e, mais do que todas, concedei-nos a graça das graças: Ó Mãe, uni intimamente a Vós este vosso Brasil!

Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes. Tornai sempre mais largo e misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

Fazei-nos sempre mais fortes na luta por Cristo-Rei, Filho vosso e Senhor nosso. De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para Lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina do cêntuplo nesta Terra e da bem-aventurança eterna.

Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil, com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece? Onde encontrá-las senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superiora a qualquer louvor humano? De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito palavras que amorosamente aqui repetimos: “Tu gloria Ierusalem, tu lætitia Israel, tu honorificentia populi nostri” (Jt 15, 10).

Sois Vós a glória, a alegria, a honra deste povo que Vos ama!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do Jornal “Última Hora” de 12/10/1983)

Com Nossa Senhora não se brinca

Há certos temas que nos são tão familiares e caros ao coração que se tornaram objeto de inúmeros comentários de nossa parte. Porém, não poderíamos deixar passar o dia 13 de outubro sem determos um instante nossa atenção no assunto Fátima. Desta vez não vou comentar tanto a Mensagem quanto a atitude do mundo perante ela.

A Santíssima Virgem documenta a autenticidade de seu anúncio de dois modos. Em primeiro lugar, Ela a confia a pastorezinhos incapazes de compreender seu significado, limitando-se a repetir o que ouviram. Por vezes, discursos longos e complexos que eles transmitiam sem se contradizerem, mesmo submetidos a inquéritos policiais brutais.

De outro lado, Nossa Senhora produziu milagres que provavam à multidão ali reunida, e mesmo a gente de muito longe, que algo de sobrenatural se passara, como, por exemplo, a famosa “dança” do Sol. Tudo atestado por pessoas que moravam muito distante de Fátima.

Entretanto, chama a atenção no modo de o mundo receber a Mensagem de Fátima, não só a incredulidade de muitos à vista de episódios tão impressionantes, mas o fato de não se encontrar quem fizesse o seguinte comentário: tomada a Mensagem em si mesma, apenas pelo seu conteúdo, abstração feita de todos os prodígios que a cercaram, já havia todas as razões para admitir sua veracidade.

Quem conhecesse um pouco de Moral não podia duvidar que o mundo estava imerso num processo de pecados gravíssimos, cujo dinamismo permitia antever aonde levariam a humanidade.

Portanto, teologicamente falando, bastaria raciocinar um pouco para se ter a certeza de que, a não haver uma grande conversão, viria um castigo.

Assim, com um pouco de conhecimento da Teologia da História, ver-se-ia tratar-se de uma mensagem condizente com o que um homem de Fé, analista dos acontecimentos da época, dotado de alguma profundidade, deveria pensar.

Ora, as crianças transmitiram, assim, uma comunicação sábia e verdadeira em si mesma, de uma sabedoria e uma riqueza de conteúdo que excedia a capacidade delas. Logo, a mensagem é intrinsecamente verdadeira.

Em última análise, alguém que observasse o mundo daquele tempo à luz da Revolução e da Contra-Revolução distinguiria na Mensagem três aspectos: uma descrição teológica dos pecados daquele tempo, o anúncio de um castigo e a indicação dos meios de escapar deste, isto é, a penitência e a consagração ao Imaculado Coração de Maria.

A Porta da misericórdia é precisamente Nossa Senhora, chamada a Porta do Céu. Quer dizer, é ultra teológico que Ela tenha dito: “Cessem de pecar e recorram a Mim que obtenho a eliminação do castigo”. Nada mais razoável.

Contudo, a humanidade recebeu a Mensagem de Fátima com orgulho, quando ela exigia um ato de humildade, ou seja, que os homens reconhecessem: “Nós pecamos, andamos mal”. Exigia a emenda, o abandono da impiedade e da imoralidade na qual iam caindo. Por isso houve uma rejeição global em relação a essa Mensagem. Os resultados, vemos por toda parte.

Façamos um exame de consciência. Temos os olhos suficientemente abertos para a Mensagem de Fátima? Compreendamos que com Nossa Senhora não se brinca, e peçamos a Ela que tenha pena de nós(*).

Plinio Corrêa de Oliveira

* Excertos da conferência de 13/10/1970.

 

Nossa Senhora

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou! Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no  fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te  faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira

O ideal de Cavalaria, plenitude do espírito católico – I

O principal elemento do ideal de Cavalaria é o alto sentido pelo qual o cavaleiro combate: a Santa Igreja Católica e a Civilização Cristã. Pelo senso católico o verdadeiro cavaleiro discerne a necessidade mais preeminente da Igreja e luta por ela. Um dos traços mais característicos do cavaleiro é o gosto pelo risco que o faz, por assim dizer, tocar em Deus.

 

A palavra “Cavalaria” traz consigo uma série de ressonâncias heroicas e brilhantes. Ao falar sobre ela temos a impressão de ouvir o tropel de vários cavalos que seguem garbosamente rumo à aventura e ao adversário.

Um homem que atingiu a sua plenitude

Por cima do cavalo, naturalmente, o cavaleiro. Nós o imaginamos um homem que realiza o seguinte estado de espírito: atira-se sobre desconhecidos, em direção à luta e aos riscos. Está encantado com o que faz, embora possa lhe ocorrer as piores coisas: ser ferido, morto, ficar estropiado a vida inteira. Entretanto, vai alegre para essa aventura, porque deseja a vitória de um ideal e almeja ser cercado de uma grande glória. O cavaleiro nos parece, debaixo desse ponto de vista, o homem que atingiu a sua plenitude.

Há uma forma de admiração pelo cavaleiro que não se tem por todas as outras plenitudes que o homem possa realizar. Por exemplo, a plenitude da sabedoria de quem alcança uma grande ciência, do senso diplomático, do tato político, do gosto artístico ou da oratória. Nenhuma dessas plenitudes parece ter importância quando as comparamos com a do cavaleiro que parte para a Cruzada tendo marcado o peito com uma cruz, a cabeça protegida pelo elmo de metal prateado e encimado por um penacho, portando o escudo e cingindo a espada, e sobre quem bate o Sol enquanto ele avança para a luta. Este parece realizar a plenitude humana de um modo insuperável!

O ideal da Cavalaria: a Igreja Católica

Poderíamos nos perguntar o que há de tão extraordinário no ideal de Cavalaria para entusiasmar tantos homens ao longo da História. Ainda hoje, quando se quer fazer o elogio de alguém, afirmar que é um homem completo, no sentido mais nobre da palavra, diz-se ser um perfeito cavaleiro. Ou seja, ele é ao mesmo tempo corajoso e cortês, condescendente, amável, cheio de bondade, mas valente, audacioso e seguro de si.

Poder-se-ia dizer que a noção de Cavalaria está para nós como o penacho para o elmo de um cavaleiro. O elmo pode ser o mais bonito, mas sem o penacho flutuando ao vento ele não realiza toda a sua beleza. Assim, também, todos os nossos ideais podem ser comparados a um elmo. Entretanto, o penacho é o ideal do cavaleiro.

O que é, precisamente, o ideal de Cavalaria? Seu principal elemento é o alto sentido pelo qual o cavaleiro combate. Ele é antes de tudo um católico apostólico romano, vive para a causa da Igreja e quer que ela vença.

Porém, não se trata de um querer sob qualquer aspecto. Não é, por exemplo, como um missionário, um pregador, um indivíduo que se preocupe com a arte sacra. Todas essas coisas são excelentes para a causa da Igreja, mas o cavaleiro é aquele que considera a maior das necessidades dela no presente momento e a atende.

Assim, no tempo das Cruzadas, vemos que a luta contra os maometanos constituía uma necessidade primordial. De que valeria ter universidades, construir catedrais, castelos, fazer uma civilização esplêndida, se os maometanos entrassem e derrubassem tudo? Não teria adiantado de nada. Ou seja, as lutas contra os mouros era um ponto de importância tal que todo o resto dependia disso. Se nessa luta os católicos vencessem, tudo poderia se esperar; se não vencessem, tudo se perdia.

O cavaleiro é dotado de uma particular forma de senso católico que o leva a tratar da causa essencial, ir diretamente ao mais importante, ao mais exato e ali aplicar os seus recursos. É um homem que se dedica à salvação pública e ao que é supereminente dentro da causa católica.

O gosto pelo risco e pelo sacrifício

Outro elemento essencial dentro da Cavalaria é o gosto pelo risco. O cavaleiro luta por sua vida, mas não hesita em expô-la pela causa à qual serve. É o herói católico que vai de encontro à morte para defender a Igreja e a Civilização Cristã naquilo que ela mais precisa. Tem-se, assim, a ideia de Cavalaria inteiramente posta. Essa noção de gosto pelo risco, pelo sacrifício precisa ser especialmente acentuada, porque nela encontramos o traço mais característico do cavaleiro.

De si, o homem tem pânico do risco. O instinto de conservação e o bom senso levam-no a poupar-se. Qualquer pessoa colocada diante de um perigo tem medo e razoavelmente procura fugir. Alguém com muito heroísmo pode até enfrentar o adversário ou o perigo com resignação. Por exemplo, durante uma epidemia de meningite, cuidar de pessoas que contraíram essa doença contagiosa é um ato de coragem, porque a moléstia pode matar quem está tratando dos outros. Apesar disso, a pessoa pode ir resignadamente tratar dos atingidos pela meningite.

Um cavaleiro vai resignadamente para a guerra? Não. Mais do que uma resignação, ele tem euforia, alegria! Qual o fundo dessa euforia do cavaleiro com o risco? Como um perigo pode transformar-se numa alegria para um homem?

No fim da vida, todo ser humano deve deixar esta Terra e ir para o Céu

Todo homem sente em si a condição de criatura contingente e sabe que vai morrer. A morte é inerente à natureza humana, assim como respirar, comer, dormir. O homem precisa morrer, e nisto há um ditame da Sabedoria Divina. Por natureza, Adão e Eva eram mortais. Deus concedeu-lhes a graça da imortalidade por um dom gratuito. Quando, em punição pelo pecado, o Criador retirou deles esse dom, passaram a estar sujeitos à morte. O primeiro homem que morreu foi Abel, assassinado por Caim. Depois, os outros começaram a morrer por doenças, acidentes e por tudo quanto morrem os homens.

Se Adão e Eva não tivessem pecado, como teria sido o fim da vida deles? Teria sido, ao pé da letra, uma apoteose, uma glorificação. Eles iriam subindo de virtude em virtude, e quando tivessem alcançado perfeição para a qual foram criados, Deus os chamaria a Si para o Céu, e eles se elevariam aos olhos de todos os descendentes numa festa paradisíaca extraordinária, e passariam do Paraíso terreno para o celeste.

Podemos imaginar essa apoteose da seguinte maneira: Adão, por exemplo, com novecentos anos, tendo chegado ao ápice de sua virtude, iria se tornando cada vez mais luminoso, elevado, mais unido a Deus que, em determinado momento, o avisaria: “Tu, agora, vais deixar o mundo.” Adão convocaria todo o gênero humano em torno dele, centenas ou milhares de descendentes que povoariam o Paraíso. Então, do alto de uma montanha, começaria a subir lentamente. Os homens glorificando-o e ao mesmo tempo ouvindo cantos dos Anjos descendo para chamá-lo até Deus. Assim o primeiro homem subiria até o Céu. Seria uma verdadeira maravilha.

Entretanto, mesmo sem morrer, Adão teria de deixar esta Terra e tudo quanto é dela, e ir para o Céu.

Glória: o efeito que se volta para a própria causa

Que princípio está por detrás disto? Como explica São Tomás de Aquino, o movimento perfeito é aquele cujo ponto terminal volta à própria causa. Assim, a criatura atinge sua perfeição quando, percorrendo todo o seu périplo, retorna à Causa que a produziu. Nesta volta do efeito à sua própria causa encontra-se a definição de glória.

Por exemplo, uma bela escultura é a expressão do talento do escultor, e nisso há uma glória, porque aquela obra, a seu modo, louva quem a fez. Isso se dá com ainda mais propriedade nas criaturas racionais. Assim, também o homem criado por Deus deve voltar a Ele para glorificá-Lo.

Por este princípio, se Deus não tivesse dado a imortalidade a Adão no Paraíso e, sem ter pecado, ele tivesse de morrer, ainda assim seria muito bonito. Debaixo de certo ponto de vista, talvez tivesse uma beleza maior, apesar do lado sinistro da morte. Seria a bela atitude do homem que, terminada sua trajetória na Terra, compreende que precisa passar por uma destruição, isto é, a separação entre alma e o corpo, e por esse meio dar glória a Deus. Ele imerge nessa destruição por um ato de adoração e diz: “Ó Deus, sois tão perfeito, tão celeste, numa palavra só, tão divino, que quero me unir a Vós, mesmo tendo de passar por esse vale profundo. Já que me criastes, mereceis a minha destruição. Eu a aceito em louvor a Vós, meu Criador! Sei que sobreviverei à minha própria destruição e ressuscitarei, e me unirei a Vós por toda a eternidade.”

Há, portanto, uma espécie de gosto nessa destruição que é o voltar para nossa Causa e dar glória a Ela, compreendendo a sublimidade desse ato pelo qual o homem, por amor e para a glória de Deus, aceita ser destruído. E, no ato de destruição, ele é como que assumido, colhido e levado por Deus.

Por pior e mais triste que seja, a morte do homem em estado de graça é uma coisa sublime. Podemos imaginar tudo: a saúde que vai se retirando, os sentidos desaparecem, os suores finais, a última agonia… Morreu, a alma é colhida por Deus e levada ao Céu. Há o fim espetacularmente belo, embora o meio para chegar a ele seja tremendo. Mas o homem que tem Fé conhece a beleza desse fim e imerge na morte com decisão.

A morte é o mais belo lance da vida

Eu conheço a morte de uma senhora que foi assim. Ela estava extremamente idosa, o estado de saúde dela por um fio, movimentos indecisos. Quando ela sentiu que a hora da morte se aproximava, fez o Nome do Padre com toda a decisão de uma pessoa sadia. Morreu, Deus colheu a sua alma.

Aceitar essa separação, compreendendo que é uma sublimação e uma elevação para o Céu, há nisto um ato de adoração a Deus e de plenitude do homem que faz da morte o mais belo lance da vida. Então, mais belo do que viver é morrer. A morte é o ápice. É isto que está no alto da noção de Cavalaria.

O cavaleiro que caminha a todo tropel rumo ao adversário para libertar o Santo Sepulcro sabe que pode ser morto, mas compreende que ele atinge a sua finalidade morrendo em holocausto a esse Deus que lhe deu a vida. Assim ele é colhido por Ele, entra na glória e se une a Deus por toda a eternidade.

A beleza desse salto no escuro e no desconhecido para encontrar do outro lado a luz eterna, a lógica e a clareza de entendimento com que a pessoa se atira têm uma força que é a mais bela ação do homem na vida. Essa alegria do homem no morrer e, portanto, no risco é propriamente o que dá dignidade à Cavalaria.

Um cruzado paraquedista que luta e se imola por Deus

Quando o homem sabe que está correndo risco com esta finalidade, o perigo é como que raspar pela Divindade, sentir-se envolto já em Deus por todos os lados para eventualmente ser colhido por Ele de qualquer forma e a qualquer momento. Eis o modo pelo qual o homem se eleva acima de todo o contingente e transitório, e compreende que a única coisa válida é Deus e aquilo que é eterno. Esse estado de espírito é de uma altura, uma pureza, uma nobreza que não se compara com nada.

Pode-se entender, por estas considerações, a beleza do que seria um paraquedista cruzado em nosso século. Abre-se a porta do avião, vinte homens pulam no vácuo. O paraquedista fica esperando o paraquedas abrir – há casos em que não abre –, e vai descendo para o abismo. Por baixo, veem-se os tiros de metralhadora e os jatos de luz para focalizá-lo e matá-lo. Ele está sobre um fio e a morte o cerca, assim como o vento, com aquele ar muito puro das alturas, o inunda por todos os lados. Nesse momento ele sente que está em contato com Deus, quase raspando n’Ele.

A beleza fundamental disso está nessa espécie de “vizinhança” de Deus, que quase o colhe, e o paraquedista vai dizendo: “Sim, sim, sim!” Ele sabe que está realizando dois atos sublimes: lutando e imolando-se por Deus. Esse herói é uma vítima nas mãos do Criador. Do alto do Céu os Anjos acompanham os movimentos da luta e do corpo dele, vão sorrindo e cantando, dando glória a Deus pela decisão que esse valente tem de aceitar a morte. Se morrer, ele é levado para o alto; se não morrer, ele como que já transpôs os umbrais da vida e poderá dizer para os seus descendentes: “Meninos, eu já estive perto da morte!” Isso tem uma majestade! Equivale a dizer: “Eu estive perto de Deus!”

De outro lado, há uma beleza especial nesse correr o risco: às vezes a pessoa pressente que Deus não quer que ela morra. Ela quereria, estaria disposta a ceder a sua vida, mas como não é a vontade divina, ela mesma sente aquela espécie de confiança de que, em meio a mil perigos, Deus vai protegê-la. Este misto de risco e proteção, este sentido de que a pessoa está nas mãos de Deus e de que Ele a ajuda é ainda uma forma de tocar no Criador.

Tanto no perigo quanto na morte toca-se em Deus. Entretanto, no primeiro “raspamos”, como que tocamos com a mão n’Ele, sem entrar definitivamente em seu seio. Mas, de qualquer forma, para o verdadeiro católico o risco e a morte são meios de nossa alma se elevar esplendidamente a Deus. São estados de alma de grande união com Ele. Aí está exatamente a beleza do risco e da morte.      v

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1974)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

 

Santo Abraão – Franqueza e métodos diretos

Sabendo sempre jogar a cartada franca na hora certa, apesar de passar por diversos dissabores, Santo Abraão conseguiu converter uma cidade pagã destruindo todos os ídolos ali existentes. Que Maria Santíssima faça chegar logo o dia em que o ídolo da Revolução possa ser derrubado por nós. Mesmo que sejamos lapidados, Nossa Senhora nos restaurará para fazermos as obras que Ela deseja.

 

Chegaram ao meu conhecimento alguns dados sobre a interessante vida de um Santo do século IV chamado Abraão, que evidentemente não deve ser confundido com Abraão, patriarca do povo de Israel.

Durante a festa de casamento, foge para uma gruta

Ele era da cidade de Edessa, nascido de uma família nobre e rica. Quando os pais, que deitavam muita esperança em seu futuro, viram-no ficar moço, deliberaram casá-lo com uma moça igualmente nobre e rica para o realce da família. Na realidade, ele não tinha vontade de se casar e fez muitas insistências neste sentido, mas a família exerceu tão grande pressão que ele, cedendo, contraiu o casamento.

As bodas se deram em meio a grandes pompas e festividades, as quais, à maneira oriental, duraram uma semana inteira e deveriam culminar com uma grande festa no último dia, depois da qual começava a vida conjugal entre os nubentes.

Eles já estavam casados no religioso, e naquele tempo o casamento religioso produzia os efeitos civis com todos os vínculos estabelecidos.

Após cada dia de festa ele ficava mais contrariado com o rumo que tinha tomado, até que fugiu de casa discretamente, indo localizar-se num lugar completamente ermo, mais ou menos a duas milhas de distância de sua cidade.

Então os pais, a esposa e toda sua família começaram a procurá-lo por todos os lados. Foram primeiro aos lugares de prazer; não o encontrando, procuraram-no nos locais de trabalho, principalmente no Fórum, que naquele tempo não era como hoje, ou seja, um lugar onde se distribui a justiça, mas uma espécie de imensa praça pública na qual se tratavam os negócios, havia mercado, faziam compras e vendas, era o centro da vida da cidade. Entretanto, ali também ele não estava. Então, ordenaram uma busca sistemática nos arredores da cidade e, afinal de contas, encontraram-no numa gruta que ele mesmo tinha murado do lado de dentro, de maneira a deixar apenas um pequeno quadrilátero por onde passar pão e água.

Os parentes o descobriram lá, interpelaram-no e ele explicou ter se casado contra a própria vontade, e que o matrimônio, não tendo sido consumado, fora nulo. Como Abraão insistia que não queria saber do casamento, a moça teve que desistir, e ele ficou na gruta. É um bonito exemplo de homem que se subtrai à ação do contexto.

Ordenado sacerdote

Nessa gruta ele permaneceu durante muitos anos e ali recebeu a notícia de que seus pais tinham morrido deixando-lhe uma imensa fortuna, da qual ele podia dispor. Porém, ele não queria essas riquezas, porque dentro do isolamento em que vivia bastavam-lhe um manto, uma túnica e um recipiente de barro no qual recolhia a água que corria na própria gruta onde morava. Entretanto, sendo precavido, constituiu um parente seu como procurador para administrar a fortuna. Deu ordem para distribuir a metade para os pobres, e não indicou o que devia ser feito com o resto.

Continuou a viver durante muitos anos na gruta e tornou-se um homem muito admirado pelo povo que, de vez em quando, ia lá para visitá-lo.

Certo dia apareceu o bispo diocesano querendo falar com ele. Abraão, muito humilde, declarou ao prelado que não podia compreender como um homem de tal categoria dignava-se ir ter com ele, um simples eremita que vivia na sua gruta, isolado.

O bispo disse ter um assunto muito grave para tratar com ele. Toda aquela zona já estava convertida, com exceção de uma cidade de bom tamanho e importante que havia nas proximidades, a qual ainda era completamente pagã, rejeitava e matava todos os sacerdotes que iam se estabelecer lá. Não sabendo mais o que fazer, pareceu conveniente ao prelado conferir a ordenação sacerdotal ao eremita Abraão, que gozava de tal fama de santidade, e convidá-lo a se transferir para a cidade, onde seria vigário, assumindo a responsabilidade pelo culto.

O eremita, pelas instâncias do bispo, percebeu que era vontade de Deus e concordou em deixar sua ermida para ser ordenado sacerdote, dirigindo-se depois para a cidade, onde assumiu corajosamente a função de vigário.

Os pagãos o lapidaram, deixando-o quase morto

Entrou sozinho e ignorado na cidade hostil. Ali chegando, ajoelhou-se no chão diante do povo, e pediu a Deus que convertesse aquela cidade. As pessoas, andando de um lado para outro, não ligaram para ele.

Santo Abraão estudou uma técnica de apostolado que lhe parecia mais própria a trazer a si os infiéis. Havia na cidade um templo pagão que passava toda a noite aberto. Quando anoiteceu, o santo sacerdote entrou com cuidado numa hora em que não havia ninguém, pegou todos os ídolos, jogou-os no chão reduzindo-os a cacos, varreu e levou tudo embora. No dia seguinte, ao raiar da aurora, ele ficou esperando o resultado.

Logo de manhã, os primeiros que foram adorar os ídolos não os encontraram e notaram, por alguns sinais, que tinham sido quebrados. Percebendo ter sido o padre quem se ocupara disso, foram até ele e o lapidaram, deixando-o quase morto.

Pelo fim do dia, Santo Abraão restabeleceu-se um pouco e, com os restos de voz e de saúde que ainda conservava, começou a increpar o povo contra os ídolos e a exortá-lo à conversão. Contudo, os infiéis não se converteram. Pelo contrário, indignaram-se, deram-lhe uma sova vigorosa, e o maltrataram fortemente.

Santo Abraão, que gostava das táticas diretas, dirigiu-se então a Deus, dizendo: “Meu Deus, Vós me fizestes nomear vigário nesta cidade, e eu apanho todos os dias… Que solução há para este caso?! Dai-me saúde!”

A oração de um Santo move montanhas. Ele rezou por si mesmo, levantou-se em perfeito estado de saúde e começou a pregar. A população da cidade ficou meio impressionada com o milagre, mas não se converteu.

Cumprida a missão, regressa para a gruta

Em certo momento, eles tiveram um caso muito complicado de interesse comum e não havia meio de solucionar. Um deles disse: “Olha, quem deve saber resolver esse assunto é o padre. Ele é inteligente e, ademais, precisamos reconhecer que desde quando está entre nós não tem feito senão dar exemplos muito bons, ajudar todo mundo que ele pode e distribuir esmolas. Os nossos ídolos, afinal de contas, o que eram? Ele os quebrou e não se salvaram a si próprios. O padre, entretanto, curou a si mesmo. Por que havemos de estar ainda acreditando nesses ídolos? Não tem propósito nossa conduta com ele; devemos procurá-lo e começar por pedir-lhe perdão de nosso mau procedimento, e então rogar um conselho para resolver a situação dentro da qual nos encontramos.”

Assim, foram todos a Santo Abraão que os recebeu muito benignamente. Evidentemente, quando resolveram procurá-lo já estavam abalados na sua infidelidade e propensos a uma conversão. Durante a conversa declaram que queriam converter-se. Começou, então, o trabalho enorme da conversão da cidade: batizar, orientar todas as pessoas, até a população inteira mudar. Nessa ocasião, Santo Abraão aproveitou o dinheiro que ele tinha com o primo para mandar construir uma igreja na cidade. Vemos como tudo é feito com método, direito.

Construída a igreja, todos estariam no direito de esperar que as coisas continuassem bem. O vigário orientaria o povo, tudo correria perfeitamente. Entretanto, numa bela manhã vão procurá-lo, mas ele não estava na igreja. Tinha fugido mais uma vez… Assim como fugira da esposa, ele fugiu também da paróquia e voltou para a gruta.

Para lá se dirigiu o bispo, acompanhado de uma grande parte do clero, a fim de pedir ao santo eremita que reassumisse as funções de vigário. Porém, este declarou que a missão que recebera do prelado estava cumprida, pois a cidade se convertera. Agora, ele pedia o consentimento do bispo para permanecer como eremita na gruta; ao que o prelado acedeu.

Educa uma sobrinha, que depois caiu numa vida devassa

Depois de algum tempo, ele recebe um emissário da cidade contando-lhe que seu irmão tinha morrido, deixando uma grande fortuna, cuja herdeira universal era uma menina, a respeito da qual o falecido deixara a recomendação de que fosse educada pelo santo eremita.

Santo Abraão considerou ter responsabilidade para com essa menina e, portanto, era obrigado a fazer alguma coisa por ela. Sendo, até o fim da vida, amigo dos processos diretos, ele disse: “Pois bem, mandem vir a menina que eu a educo.”

Chegada a sobrinha, ele mandou murar outra parte da gruta, mantendo um orifício na parede pelo qual, em certas horas do dia, ele ensinava para ela tudo quanto uma menina daquele tempo precisava saber.

Passaram-se os anos, e a menina correspondia bem à educação recebida. Entretanto, uma circunstância qualquer a levou a decair na vida espiritual e dizer a ele que queria sair. Por fim, ela acabou fugindo para a cidade.

Como a jovem já estivesse em sua maioridade, Santo Abraão considerou que não tinha mais nada a fazer. Porém, começou a receber notícias de que a sobrinha vivia em condições miseráveis, e caíra moralmente tão baixo que estava praticamente perdida.

Então ele considerou que era desígnio da Providência tomar outra atitude enérgica, audaciosa, um tanto surpreendente, dessas atitudes que os santos adotam, e a respeito das quais a Igreja diz que se deve admirar, mas não imitar. Atitudes que, de si, intrinsecamente falando, não são pecados, mas podem constituir ocasião próxima de pecado, à qual ninguém pode se expor, a menos que movido por uma ação da graça. Nesta hipótese, então, com garantias e auxílios sobrenaturais especiais, a pessoa vai enfrentar aquela ocasião. Mas é muito delicado, só mesmo quando ela tem certeza de estar sustentada por uma graça especial pode expor-se a isso.

Santo Abraão mandou vir a indumentária de um soldado e, apesar de estar velho, foi à cidade e entrou no estabelecimento onde a sobrinha levava uma vida devassa. Ela estava oferecendo um banquete, e a certa altura apareceu vestida com um luxo indecente, imoral, e não reconheceu o tio. A conversa seguia o seu curso, mas como ele era um homem muito inteligente e dotado, ela achou graça na prosa dele. As outras pessoas presentes foram, aos poucos, pelo movimento natural das coisas, afastando-se e deixando os dois conversando sozinhos.

Quando os dois estavam a sós, ele tirou o elmo de soldado e disse:

— Minha sobrinha, você me reconhece?

Ela teve um choque, caiu de joelhos, baixou os olhos e disse:

— Eu não ouso olhar-vos.

— Por quê?

— Porque sinto que caí num pecado muito profundo e que não sou digna de vossa presença.

— Largue tudo isso e vamos para a gruta!

Ela se levantou, ficou em pé durante algum tempo hesitando, e ele continuou:

— Deixe todos esses trapos com que você está vestida, tome uma roupa simples e fuja comigo.

Como se vê, ele era especialista em fugas para o Céu!

A sobrinha concordou e disse:

— Mas o que vou fazer desses trajes preciosos?

— Pouco importa, deixe-os abandonados. Salve a sua alma!

Sucesso da ação direta, franca, clara e positiva

Ela voltou para a gruta com ele, fez penitência a vida inteira. Ele ainda ficou até o fim da vida com ela na gruta, e assim terminou a história dos dois. Não sei se ela foi canonizada. Ele é venerado pela Igreja com o nome de Santo Abraão.

É uma linda vida que nos situa num ambiente de franqueza e retidão, onde o povo, por mais degradado que estivesse, suportava as verdades e os métodos diretos.

Esses pagãos indecentes eram assassinos horrorosos, pois só faltou matarem o padre. Se não fosse o milagre que ele fez, restaurando por ação sobrenatural a sua própria saúde, seu apostolado teria cessado. No afã de fazer apostolado, ele quebrou os ídolos, enfrentou aquela gente, mas alcançou o objetivo que tinha em vista. Ele padeceu por amor à verdade, mas foi direto ao ponto. Resultado: converteu as pessoas.

Isso feito, vemos o desapego dele. Tendo convertido aquela gente, Santo Abraão poderia ter levado uma vida tranquila, dormindo sobre os louros conquistados. Porém, estando a obra acabada e consolidada, ele foi embora. De fato, a Fé ficou estabelecida no lugar, foi possível implantar um clero, uma religiosidade normal. Então, ele fugiu porque fizera tudo para a glória de Deus e de Nossa Senhora.

Tendo voltado para sua gruta, de lá saiu novamente para salvar a sobrinha, mas por um método direto também.

Notamos como ele, jogando sempre a cartada franca na hora certa, passou por dissabores que um poltrão qualificaria de insucessos, mas uma pessoa que considera o todo de sua vida não pode deixar de reconhecer como sucessos admiráveis. Santo Abraão morreu admiravelmente bem sucedido. É o sucesso da ação direta, franca, clara e positiva.

Peçamos a Maria Santíssima que faça chegar o dia em que também o ídolo da Revolução possa ser derrubado por nós com igual franqueza. É possível que sejamos lapidados, mas saberemos exercer o direito de legítima defesa. Nossa Senhora nos restaurará para fazermos por Ela as obras que Ela deseja.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/12/1974)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

Razão de nossa serenidade

Mãe incomparavelmente perfeita entre todas as mães, Nossa Senhora nos conhece, ama e quer bem com discernimento, bondade, paciência e carinho de uma intensidade extraordinária. Alcança-nos tudo o que nos convém e lhe pedimos confiantemente. Está disposta a nos obter o perdão de seu Divino Filho, mesmo para nossas piores faltas; alcança-nos as graças necessárias para nossa emenda, nossa salvação e, assim, brilharmos diante d’Ela por toda a eternidade. É a misericórdia dessa Mãe de perfeição incalculável.

Por isso mesmo, é Ela a razão de nossa serenidade. Não temos motivo para estarmos perturbados nem agitados, posto termos uma Mãe celeste que se compadece de nós e nos acompanha a todo instante com sua insondável solicitude. Devemos permanecer sempre tranquilos: nossa Mãe vela por nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Prece à Padroeira do Brasil

Ó Senhora Aparecida, a hora é de aflição! Melhor do que qualquer  brasileiro, o sabeis Vós, que sois Mãe de todos eles. Crise sócio-econômica, crise moral, mais grave que tudo, crise religiosa! O que num país fica fora da crise, quando ela se instalou em todos esses domínios?

Sem embargo de toda essa crise, vamos transpondo gloriosamente um marco histórico. Pois estamos entrando no rol das nações que, por sua importância, determinam o rumo dos acontecimentos presentes e têm em suas mãos os fios com que se tece o futuro dos povos.

Neste momento de apreensões e esperanças de glória, ó Senhora, vimos agradecer-Vos os benefícios que, Medianeira sempre ouvida, nos obtivestes de Deus onipotente. Agradecemo-Vos o território de dimensões continentais, e as riquezas que nele pusestes.

Agradecemo-Vos a unidade do povo, cuja variegada composição racial tão bem se fundiu no grande caudal étnico de origem lusa — e cujo ambiente cultural, inspirado pelo gênio latino, tão bem assimilou as contribuições trazidas por habitantes de todas as latitudes.

Agradecemo-Vos a Fé católica, com a qual fomos galardoados desde o momento bendito da Primeira Missa. Agradecemo-Vos nossa História, serena e harmoniosa, tão mais cheia de cultura, de preces e de trabalho, do que de desavenças e de guerras. Agradecemo-Vos nossas guerras justas, iluminadas sempre pela auréola da vitória. Agradecemo-Vos nosso presente, tão cheio de esperanças, sem embargo das crises que nos assolam.

Agradecemo-Vos as nações deste Continente, que nos destes por vizinhas e que, irmanadas conosco na Fé e na raça, na tradição e nas esperanças do porvir, percorrem ao nosso lado, numa convivência sempre mais íntima, o mesmo caminho de apreensões e de ascensão.

Agradecemo-Vos nossa índole pacífica e desinteressada, que nos inclina a compreender que a primeira missão dos grandes é servir, e que nossa grandeza, que desponta, nos foi dada não só para nosso bem, mas para o de todos. Agradecemo-Vos o nos terdes feito chegar a este estágio de nossa História, no momento em que pelo mundo sopram tempestades, se acumulam problemas, terríveis opções espreitam, a cada passo, os indivíduos e os povos. Pois esta é, para nós, a hora de servir ao mundo, realizando a missão cristã das nações jovens deste hemisfério, chamadas a fazer  brilhar, aos olhos do mundo, a verdadeira luz que as trevas jamais conseguirão apagar.

* * *

Nossa oração, Senhora, não é, entretanto, a do fariseu orgulhoso e desleal, lembrado de suas qualidades, mas esquecido de suas faltas.

Pecamos. Em muitos aspectos, nosso Brasil de hoje não é o País profundamente cristão com que sonharam Nóbrega e Anchieta. Na vida pública como na dos indivíduos, terríveis germes de deterioração se fazem notar, que mantêm em sobressalto todos os espíritos lúcidos e vigilantes.

Plinio Corrêa de Oliveira

A luta, uma das glórias de Maria

Concebida sem pecado original, Nossa Senhora esmagou e esmagará para todo o sempre a cabeça da maldita serpente. Agindo assim, Ela acrescenta às suas extraordinárias e singulares prerrogativas a glória da luta. Ela combateu, opôs um esforço a outro, despendeu todas as energias necessárias para aniquilar o adversário, derrotou-o e o tem a seus pés.

Esse combate aumenta a glória da Filha do Padre Eterno, da Mãe do Verbo Encarnado, da Esposa do Divino Espírito Santo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1991)

Feudo da Rainha do Céu

É um fato curioso e edificante na vida da Igreja que, sendo esta depositária das verdades teológicas as mais altas e complexas, a massa dos fiéis, entretanto, servida por uma especial acuidade de visão, penetra e vive essas verdades ainda mesmo quando seu nível cultural pareceria vedar-lhe o acesso a qualquer atividade intelectual de ordem superior. Em tudo que se relaciona com a devoção a Nossa Senhora, esta observação se comprova com toda a clareza.

Com efeito, a doutrina marial e a devoção à Virgem Maria têm crescido constantemente, desenvolvendo-se, porém, não à moda de hipérboles afetivas e meramente literárias, mas como uma torre de raciocínios, firme como o granito, à qual cada geração de teólogos acrescenta mais alguns andares solidamente esteados no esforço diligente desenvolvido pela razão a fim de descobrir todo o alcance e extensão das verdades reveladas.

Entretanto, é tocante observar como a piedade popular, ignorando muitas vezes os argumentos da Teologia sagrada e deixando-se guiar em grande parte pela finura de sua sensibilidade, desce até  o âmago profundo das verdades teológicas ensinadas pela Igreja e sabe vivê-las com uma autenticidade de convicções e sentimentos que não se poderia explicar sem a ação do Espírito Santo.

Não há um povo que não tenha ao menos um grande Santuário nacional erigido em honra de Maria Santíssima, no qual a Rainha do Céu faça chover sobre os homens, com abundância, as graças  espirituais e temporais.

A Igreja nunca mandou que cada povo erigisse um Santuário nacional particularmente dedicado à Santíssima Virgem, mas se limitou a definir as verdades mariais. Na maioria dos casos, a piedade entusiástica dos fiéis tem seguido seu curso, a ponto de se poder sustentar que quase todas as festas de Nossa Senhora e as formas de piedade com que Ela é honrada nasceram na massa dos fiéis espontaneamente ou por meio de revelações particulares, sendo posteriormente sancionadas pela Igreja.

Isto porque a piedade popular sente viva e profundamente que Nossa Senhora é, na realidade, a Mãe de todos os homens, e especialmente dos que vivem no aprisco da Igreja de Deus. E sente, ainda, que a mediação d’Ela é a porta segura para se ter acesso junto ao trono do Criador.

Fazendo estas reflexões, lembro-me de Aparecida do Norte e das impressões profundas que tenho colhido sempre que ali vou rezar aos pés da Padroeira.

Onde, no Brasil inteiro, um lugar para o qual, com tanta e tão invencível constância, se voltam os olhos de todos os brasileiros?

Quem, ao ouvir falar em Nossa Senhora Aparecida, pode não se lembrar das súplicas abrasadoras de mães que rezam por seus filhos doentes; de famílias que choram, no desamparo e na miséria, o bem-estar perdido e se voltam para o trono da Rainha da clemência; de lares trincados pela infidelidade; de corações ulcerados pelo abandono e pela incompreensão; de almas que vagueiam pelo reino do erro à procura do esplendor meridiano da  Verdade; de espíritos transviados pelas veredas do vício que procuram, entre prantos, o Caminho; de almas mortas para a vida da graça e que querem encontrar, nas trevas de seu desamparo, as fontes de uma nova Vida?

Onde se pode sentir de modo mais vivo o calor ardente das súplicas lancinantes e a alegria magnífica das ações de graças triunfais?

Onde, com mais precisão, se pode auscultar o coração brasileiro que chora, que sofre, que implora, que vence pela prece, que se rejubila e que agradece, do que na Aparecida?

E sobretudo, onde é mais visível a ação de Deus na constante distribuição das graças, do que na vila feliz, que a Providência constituiu feudo da Rainha do Céu?

Plinio Corrêa de Oliveira

(“Pro Maria fiant maxima”, Legionário, N.º 379, 17 de dezembro de 1939)