Hífen gaudioso

Sempre se concebeu a ponte como algo de nobre e belo, digno de possuir fisionomia e características próprias. Ela é uma obra da inteligência e da habilidade humanas, construída para vencer as  dificuldades e os entraves da natureza, impondo assim a vitória do rei da criação sobre aquilo que o desafia.

A ponte é um hífen entre as duas partes de um caminho interrompido pelo precipício, pelo vale, por um rio… Traço de união, ufana-se de não pertencer a nenhum dos lados que ela aproxima, ciosa de sua individualidade e de sua nobreza. Seja a mais elementar, estendida numa trilha de roça, seja a mais monumental, projetando-se acima de águas famosas, ela possui peculiaridades que a diferenciam do restante do percurso.

Pensemos na célebre ponte da Torre de Londres, sobre o Tamisa. Em determinados momentos, seu leito se divide e se ergue para dar passagem aos navios que, numerosos, sulcam o rio a serviço  de um intenso comércio. Em seguida, ela se fecha, permitindo a fluência do trânsito da grande capital inglesa. Quer na sua posição horizontal, que nos transmite a ideia de firmeza, de solidez e  força; quer quando suas partes se levantam lenta e solenemente, como se ignorassem a vida ao seu redor, e o rio começa a ser navegado diante da majestosa indiferença (ligeiramente indignada e  sentida) dos batentes que se abrem — a ponte mantém aquele semblante próprio, fotografado e filmado de todos os modos possíveis por turistas do mundo inteiro.

Há pontes lindas em outro gênero. Uma delas, a que transpõe o Rio Tibre, em Roma, e conduz ao Castelo de Sant’Ângelo. Esta antiga construção abrigava outrora os restos mortais do Imperador Adriano. Os despojos do  César se desfizeram, e no período medieval essa mole se transformou no castelo fortificado onde as tropas dos Pontífices se acantonavam para a defesa da Cidade  Eterna.

A ponte, monumental, muito à maneira italiana é adornada com imagens de Santos e de Anjos, e no passado era favorecida por indulgências: o fiel que a atravessasse  recitando determinadas orações junto a cada imagem, beneficiava-se de tais e tais privilégios concedidos pelos Papas. Assim, sobre as águas do velho Tibre romano que os imperadores contemplaram, os Anjos lançam  uma fabulosa ponte espiritual, significando que a intercessão deles ajuda nossas almas a vencerem as distâncias entre a Terra e o Céu…

Há, também, pontes de uma simplicidade maravilhosa. Não a singeleza fria, mal-humorada e tola, mas aquela feita de equilíbrio, distinção, e de beleza presentes apenas na forma dos seus arcos. Entretanto, parecem nos dizer coisas inenarráveis. Exemplo frisante, o Pont-Neuf, sobre o Rio Sena, em Paris. Construído por Henrique IV, não é mais que um conjunto de arcos lembrando um pouco ogivas, mas tão calculados, tão medidos na sua simplicidade que, tempo eu tivesse, passaria uma tarde inteira contemplando a sua beleza se refletindo nas prestigiosas águas do Sena.

Lembra-me, ainda, a Ponte dos Suspiros, em Veneza. Não reúne dois pedaços de estrada, mas dois corredores de palácios. Tão simples! Tão pequena! Quase irrisória em comparação com os gigantescos viadutos modernos. Porém, ao contrário destes, ela é um capítulo da história da alma humana. Nem precisaria ser autêntico o fato de que passavam por ela os condenados à morte na Sereníssima República. Pois só a ideia de se chamar Ponte dos Suspiros a reveste de uma beleza ímpar. Como é nobre suspirar numa ponte, olhando para a água! Como é lindo! Que melhor lugar para um derradeiro gemido, um último murmúrio ouvido pelas águas que pranteiam a desdita de quem caminha para o suplício?

A relação ponte-água nos faz pensar… A ponte se espelha no rio que passa sob ela. Pode-se dizer que a alegria deste é fluir por debaixo da ponte, recolher a imagem dela e levá-la muito além. É a realização dele: passou pela ponte tal.

Mas, como é verdade o contrário! Imagine-se uma ponte a cujos pés as águas tenham deixado de correr, desviadas que foram para alguma represa. Desolada, envolta por uma triste solidão, a ponte vê seus fundamentos secos, percebe o vazio junto a ela: sua imagem já não se reflete em nada, não tem mais brilho, ela está seca, esturricada no ar. De súbito, abrem-se as comportas, a água  começa a circular novamente… E da ponte, revigorada, rejuvenescida, parte uma exclamação de gáudio!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Decisão, perseverança e reflexão

Em Santa Teresa de Jesus vemos qualidades suavemente justapostas, com algo de harmonicamente dissonante entre a ação e a contemplação, altivez e misericórdia, determinação e bondade, que denotam e constituem uma imensa personalidade. Realmente, ela foi uma das maiores figuras femininas de toda a História. Tão extraordinária que mereceu ser proclamada Doutora da Igreja.

Seu olhar e seu semblante parecem dizer: “Eu só tenho Aquele a Quem admiro, e não temo absolutamente ninguém ou nada que me possa acontecer, porque Ele é tudo e vence tudo”. É a própria expressão da decisão, perseverança e reflexão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22/7/1975 e 6/6/1980)

Cidade florida, alegre e risonha – I

Na época medieval, a plebe levava uma vida serena, aconchegante e jubilosa, buscando o belo até nas pequenas coisas, como demonstram as construções existentes na cidade alemã de Rothenburg.

 

A cidade de Rothenburg foi construída na Idade Média e reflete inteiramente o espírito daquela época, cuja sociedade se dividia em três classes.

A mais alta era o clero, composta por homens consagrados a Deus e integra a estrutura de pessoas da Igreja Católica, Apostólica e Romana.

A segunda classe era a nobreza, a dos guerreiros, dos governadores de terras agrícolas no interior do país que, em caso de guerra, tinham a obrigação de combater. Serviço militar obrigatório só para os nobres, para os plebeus era muito restrito.

Depois, a plebe, cuja tarefa consistia em fazer a produção econômica do país.

Pequena burguesia e trabalhadores manuais

Habitualmente, quando ouvimos falar em Idade Média, pensamos em catedrais suntuosas, castelos magníficos, e temos razão, porque ela viu a construção e o acabamento de catedrais e de castelos incomparáveis. Mas nos perguntamos como seria a vida do pequeno burguês e do trabalhador manual. E a cidade de Rothenburg ob der Tauber nos dá uma resposta palpável a essa questão.

Tauber é o nome de um riozinho que banha essa cidade, a qual era fortificada porque poderia haver incursões de inimigos que quisessem tomá-la. E neste caso, os burgueses e os plebeus, morando na cidade, precisavam defendê-la. Então, eles tinham uma muralha que cercava a cidade, absolutamente fortificada como uma fortaleza medieval.

Mas dentro, pelo contrário, é uma cidade de trabalho, onde percebemos a vida da pequena burguesia ou do trabalhador manual. Naturalmente, as construções mais bonitas eram da pequena burguesia. Grande burguesia, como que não havia lá.

Preocupação de bom gosto e de arte em todas as coisas

Cada uma dessas casas não era residência de uma única família, mas constituíam os prédios de apartamento daquele tempo. Nos dois andares inferiores moravam pessoas mais abastadas, pois, como não havia elevador naquele tempo, para se chegar ao andar superior era necessário subir uma grande escadaria; e o aluguel ali era mais barato.

O prédio que vemos numa das fotografias é indiscutivelmente bonito. Não tem a beleza de um castelo, mas é digno, inteiramente diferente do que se poderia imaginar de uma favela ou um bairro operário de qualquer cidade moderna.

Há uma ideia de solidez, e percebe-se o aconchego que se tem em seu interior, o prazer de estar em uma casa como essa. Tem-se a impressão de que ali se come e se descansa bem, nos dias de feriado dormita-se bem… E na Idade Média o número de feriados era colossal!

Por exemplo, todas ou quase todas as festividades dos Apóstolos eram dias santos, e inúmeros outros, como festas de Nossa Senhora e de diversos santos da Igreja, os padroeiros de cada lugar, os Santos Anjos; em todas essas comemorações era decretado o feriado. Em dias de trabalho, trabalhava-se muito, nos dias de descanso descansava-se muito, e os havia em grande quantidade.

Nota-se nessas casas uma coloração discreta, porém não triste nem lúgubre, é uma cor agradável. Há uma preocupação de bom gosto e de arte em tudo.

As torres, o relógio, a muralha e a porta da cidade

Mais difícil de compreender para a ótica de hoje em dia talvez sejam essas duas torres. Não são torres de igreja, pois não se trata de construções religiosas, mas sim civis. Qual a razão de ser dessas torres?

Em geral é uma razão militar. A torre é construída de maneira que, dos mais altos andares, os guardas possam ver toda a circunvizinhança. Porque se algum exército está se aproximando, eles mandam tocar os sinos de todas as igrejas para acordar os cidadãos, que devem ir correndo até a muralha a fim de defender a cidade.

Com o tempo, isso foi se tornando mais raro e, no fim da Idade Média, constituiu-se o hábito de não mais fechar a porta da muralha à noite, e de construir as cidades sem muralhas, porque as condições da guerra mudaram e os combates entre cidades também foram desaparecendo.

Mas na Idade Média havia a preocupação de poupar espaço porque, como a cidade tinha que ficar dentro da muralha, com o passar do tempo iam se acumulando as construções umas em cima das outras. É a razão pela qual começaram a edificar prédios altos. E as torres eram construídas de maneira a deixar passar o pessoal em baixo, para ganhar espaço.

O relógio da torre é ornado, está colocado numa altura conveniente, e seu desenho é bonito. Naquele tempo não se usava ainda relógio-pulseira, nem de bolso. Portanto, era muito útil e prático haver vários relógios como esse na cidade para os cidadãos saberem as horas.

Na entrada da cidade, o aspecto fortaleza está mais acentuado. A porta deveria ter batentes de madeira grandes e fortes. E, para maior garantia, havia mais adiante uma segunda porta. De maneira que, se o inimigo conseguisse arrombar a primeira, ele atravessava um espaço pequeno e teria que recomeçar a batalha na segunda.

Os dois torreões no alto e o espaço coberto entre as duas torres têm um sentido muito prático. Por ali os defensores da cidade jogavam flechas, pedras, tachos com água ou óleo fervente para queimar os invasores.

Agora, deixemos de lado o aspecto prático e consideremos o estético. Essas torres e muralhas eram feitas com as pedras encontradas nas pedreiras da região. Como essas pedras colocadas ali dão um aspecto bonito! E como a linha geral dessa construção e da porta é bela!

Os dois torreões fazem uma harmonia; projetados para a frente eles ficam bonitinhos, leves, engraçadinhos, e dão um aspecto de simetria e de solidez à linda porta arqueada que forma um arco equilibrado e forte, cheio de reflexão. Mas atrás dele se levanta, como um braço, uma torre tão grande e tão majestosa que dá a impressão, diante do adversário, de um soldado de infantaria, de joelhos, esperando na estacada o ataque, enquanto o senhor feudal está em pé, armado de corpo inteiro para lutar.

Com o desaparecimento das guerras feudais, a vida se tornou mais amena. Então, foram-se abrindo portas menores para, tendo de passar alguma senhora idosa com roupa para lavar no rio da cidade, não serem obrigados a abrir portas pesadíssimas. Contudo, essas portinholas eram ainda muito fortificadas.

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/11/1986)

 

Por que cultuamos as relíquias?

Reproduzimos a seguir uma valiosa exposição de Dr. Plinio sobre a tradição de prestar culto às relíquias dos santos, prática que ele prezava sobremodo e cumpria diariamente.

 

A palavra relíquia vem do latim “reliquus” (restante) ou “relinquere” (deixar). Relíquias são, pois, as coisas que restaram ou foram deixadas. Nesse sentido, a relíquia de um santo é aquilo que dele restou ou o que ele deixou.

Como se sabe, a Igreja distingue entre duas espécies de relíquias: as diretas e as indiretas.

A relíquia direta provém do corpo, dos ossos ou das cinzas de um santo. A relíquia indireta é algo que nele foi tocado. Da relíquia indireta temos ainda duas espécies: ou são os objetos com os quais o santo teve contato em vida, ou são coisas que se tocam nos corpos de santos depois de mortos.

Acontece às vezes ouvirmos falar de uma quantidade imensa de relíquias indiretas, e alguns objetam dizendo que os santos não poderiam ter tocado em tantas coisas. Na realidade, eles não o fizeram, mas certas coisas foram encostadas nos ossos deles ou em suas relíquias diretas, para serem distribuídas.

Fundamentação do culto às relíquias

O fundamento do culto às relíquias indiretas é algo um tanto difícil de exprimir, mas cujo valor é intuitivo e vem do seguinte: quando uma pessoa toca em alguma coisa, algo dessa pessoa passa para aquilo que foi tocado. Por exemplo, uma cadeira na qual Napoleão se sentou quando esteve em determinado lugar. Algo da dignidade, da importância e mesmo dos defeitos de Napoleão passa para a cadeira.

Teríamos uma ideia ainda melhor disso, se nos oferecessem de presente a corda com que Judas se enforcou. Em si, é uma corda como qualquer outra. Dir-se-ia apenas estar muito velha, com cerca de dois mil anos. Se estivesse em razoável estado de conservação, daria até para amarrar um cachorro. Contudo, nem quereríamos tocar nela. Como que um pouco da infâmia de Judas passou para a corda.

Então, há esse fato de que algo “impregna” aquilo que foi tocado.

Encontramos, aliás, na Sagrada Escritura um episódio curioso nessa linha. Quando o Evangelho relata a cura de uma mulher que tocou na túnica de Nosso Senhor, acrescenta que o Divino Mestre perguntou quem a tinha tocado, porque sentiu que uma virtude curativa saíra d’Ele.

A túnica tinha servido de elemento de transmissão de uma força terapêutica proveniente de um corpo Sagrado, o qual como que enobreceu e dignificou a vestimenta.

Por causa disso, no tesouro da Igreja encontramos algumas relíquias indiretas de uma importância tão grande que elas, por assim dizer, valem mais do que as relíquias diretas.

Por exemplo, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma relíquia indireta; o Santo Sepulcro é uma relíquia indireta, assim como o são também os fragmentos que restam da manjedoura onde Jesus nasceu.

Como são sagrados esses objetos que, afinal de contas, são relíquias indiretas, mas que veneramos quase como se fossem relíquias diretas!

Inestimável valor das relíquias diretas

Devemos considerar igualmente as relíquias em que a pessoa não só tocou, mas se serviu delas como instrumento para a realização de uma ação insigne. O fato de se ter prestado um gesto eminente, aumenta muito o valor da relíquia.

Considere-se, por exemplo, um pedaço do pano com que Verônica enxugou o rosto de Nosso Senhor. Ainda que não tivesse sido estampada ali a verdadeira face dele, pela razão de ter servido para consolar a Nosso Senhor numa situação muito difícil, por ter sido instrumento de uma ação nobre, de um ato de generosidade e de coragem, aquela relíquia vale muito, pois adquiriu algo da dignidade da ação da qual participou.

Vimos, então, que relíquias indiretas são as coisas tocadas por alguém, ou aquelas que lhe serviram como meio de ação. Num sentido muito mais amplo, já não no religioso, mas analógico da palavra, podemos também considerar relíquias as obras que alguém deixou, os livros que escreveu, os pensamentos que transmitiu.

Outrossim, como relíquia poderíamos considerar os filhos de uma pessoa, a prole deixada por ela e que, de algum modo, no-la recorda. Tome-se toda essa doutrina das relíquias, ampliada como a estou dando, e teremos o fundamento da Tradição.

Esta é, exatamente, a continuidade de algo, é a transmissão de notícias, memórias, hábitos, costumes, de uma geração à outra através do exemplo, ou mediante informações, testemunhos, ensinamentos orais ou escritos. Vemos como isso tem analogia com o culto católico das relíquias, e, portanto, como o fundo do nosso pensamento, enquanto defendendo a tradição, toca no mais recôndito do pensamento católico.

Agora, se, como observamos, as relíquias indiretas têm tanto valor e são tão sagradas, o que dizer das relíquias diretas?

Um pedaço de carne ou um fragmento de osso de um santo é uma parte, um elemento constitutivo da própria pessoa do santo. E está em união — que não é viva, mas entretanto profunda, de caráter metafísico — com a alma do santo no Céu. Aquela relíquia é, pois parte de uma pessoa que se encontra no Céu.

De tal maneira que quando o santo ressuscitar, aquele fragmento vai ser incorporado ao corpo dele e passará para o estado glorioso. Aquele pedaço de carne e aqueles ossos que se acham em nossos relicários irão se reunir novamente no corpo ressurrecto do santo, e vão dar glória a Deus durante toda a eternidade no Paraíso!

Compreende-se, portanto, como tais fragmentos são mais do que qualquer outra relíquia indireta, posto serem, em certo sentido, a presença física do próprio santo entre nós.

É claro que, se de uma túnica de Nosso Senhor saíam graças, estas também sairão dos santos de Deus. Destes o Divino Mestre declarou que eram mais unidos a Ele do que sua Mãe e seus irmãos. Podemos por aí imaginar o quanto os bem-aventurados estão ligados a Ele, muito mais do que uma túnica!

A garantia de se “arrancar” as graças de um Santo

Então, compreendamos quanto essa presença das relíquias constitui uma graça para aqueles que as levam.

Para melhor frisá-lo, reporto-me mais uma vez às palavras que Santa Marta disse a Nosso Senhor. Ela havia mandado chamar Jesus para atender a Lázaro, que estava muito mal. Nosso Senhor não veio, e Lázaro morreu. Ela então disse esta frase curiosa: “Mestre, se tivésseis estado aqui, meu irmão não teria morrido”.

Ou seja, ela tinha certeza de que a presença física de Nosso Senhor determinaria uma atitude d’Ele, que era a de curar o irmão. Portanto, quando se tem a presença física de Jesus, a graça se torna quase irrecusável.

Ora, pode-se dizer mais ou menos o mesmo da relíquia de um santo: guardadas as devidas proporções, tem um valor semelhante ao da presença física de Nosso Senhor.

Quer dizer, é uma garantia de que o santo de algum modo está fisicamente presente onde se encontra a relíquia, e que quase podemos arrancar as graças dele, por atenção às relíquias que são parte dele.

Compreende-se então que, nesse sentido, as relíquias têm um grande significado e são fontes colossais de graças, devendo ser tratadas com muito respeito.

Sendo, em última análise, fragmentos de santos, e nada havendo de mais respeitável, abaixo de Deus, no Céu e na Terra, do que esses heróis da Fé, claro está que devemos ter suma veneração para com tais fragmentos. Uma relíquia direta é algo de imensamente mais respeitável do que qualquer dignidade régia, e por isso os antigos construíam catedrais para abrigá-las.

Por exemplo, a Sainte Chapelle, com toda a sua magnificência, foi edificada para custodiar uma das mais preciosas relíquias indiretas de Nosso Senhor: um dos espinhos da coroa sagrada.

Cuidados que devemos ter no cultuar as relíquias

Cumpre termos sempre em mente tudo o que acaba de ser dito, para entendermos o tesouro que é uma relíquia.

Cabe aqui fazer uma aplicação concreta acerca do modo de guardá-las e de venerá-las.

Não é correto conservar as relíquias jogadas em gavetas, no meio de outros objetos: repelentes contra mosquitos, remédios, “band-aid”, etc., e, chocando-se com eles, relíquias de três ou quatro santos. Essa é uma forma muito incorreta de tratá-las.

Se não se dispõe de recursos, é preciso ter uma pequena caixa, mesmo de papelão, mas inteiramente separada, colocada de preferência num lugar onde não haja outros elementos, para nela guardar todas as relíquias juntas, em vez de mantê-las separadas nos locais mais díspares.

Portanto, todas devem estar reunidas e ser objeto de nosso culto.

E como prestar essa veneração a elas?

Pelo menos da seguinte forma: todos os dias, de manhã e à noite, oscularmos as relíquias que temos, para pedir a intercessão daqueles santos em nosso favor. Devemos procurar conhecer a biografia deles, a fim nos darmos bem conta de quem está ali presente, e por essa forma lhes render o merecido culto através de suas relíquias.

Resumindo, portanto:

guardá-las condignamente — não quero dizer luxuosamente;

prestar-lhes culto. E para fazê-lo bem, sugiro que este se transforme numa rotina, que consista, por exemplo, em oscular todos os dias as relíquias, de manhã e à noite. É triste termos uma relíquia jogada em casa, desprovida de culto ou devoção. Seria o caso de dá-la a outra pessoa que a honre, pois não se compreende que o santo esteja ali presente, com um elemento constitutivo de sua pessoa, e não seja objeto de nossa veneração!

Há ainda um último ponto a considerar: pode-se carregar as relíquias consigo?

Sim, desde que se tenha o necessário cuidado para não perdê-las. Por exemplo, conservando-as sempre no mesmo bolso. Certos militares levavam uma relíquia incrustada na própria espada. Eu compreenderia que, com a necessária prudência, houvesse uma relíquia num boa caneta ou num digno instrumento de trabalho. Mas, sempre com o necessário  cuidado.

Perfume supremamente puro

Ó minha Senhora e minha Mãe, vede-me a vossos pés, tentado pelo pecado que mais imediatamente contrasta com vossa excelsa pureza.

Vós que amastes tanto a virgindade que, por amor a ela, chegastes a alegá-la ao celeste Arcanjo que vos anunciava a honra inefável da maternidade divina; Vós cuja virgindade foi tão amada por Deus, que o Espírito Santo praticou o milagre indizivelmente sublime de a preservar; Vós cuja virgindade é o perfume sacral que tem inspirado todas as almas castas ao longo dos séculos, e as inspirará até o fim dos tempos; tende maternal compaixão deste filho e escravo que se debate nas seduções horrendas da impureza.

Dai-me uma repulsa enérgica contra a tentação. Afastai de mim o demônio e as más ocasiões. Enchei minha alma de um intenso e intransigente amor à pureza; tornai-a repleta do perfume supremamente puro de vossa castidade.

Imaculado e Sapiencial Coração de Maria, compadecei-vos e rogai por mim!

Plinio Corrêa de Oliveira

Stella Matutina

A estrela da manhã aparece no período incerto, entre a noite ainda existente e o dia que timidamente vai nascendo. Simboliza a época em que vivemos, onde imperam as trevas da Revolução, porém já se pressente o triunfo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, prometido por Nossa Senhora em Fátima.

Portanto, a Maria enquanto “Stella matutina”, a Estrela que nos anuncia como iminente a aurora de seu reino, devemos recorrer nas dificuldades referentes à causa contra-revolucionária, em nosso apostolado e em todas as ocasiões nas quais a piedade nos sugira essa invocação.

Ó Estrela da manhã, Vós fostes durante a noite da espera a nossa luz e a promessa do alvorecer; fazei com que desponte quanto antes o dia de vosso Reino!

(Extraído de conferências de 29/11/1991 e 1/12/1991)

Luminosas “migalhas”

Embaladas por águas tranquilas e misteriosas, as gôndolas parecem dormitar à espera de passageiros. Formas características, pontas elegantes, detalhes pitorescos. Gôndolas vazias, amarradas a estacas de formas incertas, numerosas, como se fossem uma floresta de linhas e de silhuetas refletidas, plantadas no mar raso.

Neblinas indefinidas, brumas matutinas, vespertinas, que a tudo envolvem: barcos, torres, homens. Lindos revérberos sob cuja luz se revelam lances de muros, arcarias góticas, jogo de cúpulas.

Nuvens de um avermelhado que se mistura com o plúmbeo profundo do céu, desenhando no firmamento uma espécie de mapa da cidade que se estende na terra. Nas pontas das torres, das cúpulas, cruzes e ornatos tão leves e tão poéticos que, ao soprar o vento, dir-se-ia começarão a se agitar e a tocar música nos ares de Veneza!

Prédios que se empilham uns sobre os outros, dando a ideia de construções feéricas e, mais uma vez, roçados pela névoa ligeira. Comprazem-se nas auroras lindas, mas são igualmente sensíveis aos encantos do ocaso e da noite.

As águas venezianas refletem como que ao infinito as velas, as quilhas e os adornos das embarcações que sobre elas repousam. E então parecem, já não água, mas vidro, cristal, espelho imobilizado. Águas sempre portadoras de novidades, da famosa laguna de Veneza.

Casas velhas e escalavradas. Pequenos (e outrora) palácios, onde se nota habitar uma gente empobrecida, sim, mas que sabe conservar o atrativo do seu passado.

Na verdade, tudo isso possui uma beleza e uma poesia que me levariam a contemplá-lo por um longo tempo, dizendo: “Mais formosura do que isso existe, e muita, na própria Veneza. Porém, dá-se aqui como quando saboreamos um pão delicioso e algumas migalhas dele caem sobre a toalha da mesa, e temos um gosto peculiar em comer a migalha, como quem degusta, num só pedacinho, o pão inteiro. Pois bem: essas são migalhas do incomparável esplendor de Veneza…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 31/3/1974; 31/8/1976 e 17/4/1985)

Arquetipização

Uma nota muito importante da escola de Dr. Plinio é a arquetipização, ou seja, a busca da perfeição de todas as coisas. Esta tendência do senso do ser leva a pessoa continuamente a um desejo de elevação. Aplicando esse princípio à consideração de ambientes, Dr. Plinio analisa o estilo grego, românico e gótico.

 

Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus está difusa pelo ar uma impressão de aconchego e de proteção muito grande, mas também de muita sabedoria, tranquilidade e bondade. No fundo, o que é isso?

Uma operação eminentemente religiosa

Quando entramos em algum ambiente, o que por excelência causa impressão, mais do que qualquer objeto, é a pessoa que encontramos ali ou a quem, de algum modo, aquele ambiente e os objetos nele contidos nos reportam.

Lembro-me de ter visto um quadro representando o Lago Titicaca, na Bolívia, de um azul e um prateado lindíssimos! Tinha-se a impressão de uma imensa asa de borboleta que ondulava ao sopro do vento. Embora esse lago não seja uma criatura humana, nem foi ideado por um artista, ao vê-lo tem-se uma impressão parecida com a que se teria no convívio com uma pessoa que nos causasse análogo efeito.

Assim também, quando ao contato da graça sentimos uma determinada impressão sobre um objeto, de fato temos a sensação de como se estivéssemos com Deus. Na Igreja do Coração de Jesus nós não vemos a Deus, mas sentimos a impressão que teríamos se estivéssemos com Ele, mostrando-Se sob aquele aspecto. A impostação de que Deus Se nos faz conhecer, sem que nós O vejamos, é o principal na Igreja do Coração de Jesus.

Essa impressão, portanto, é um como que ver a Deus. Creio que esse ponto é absolutamente capital para compreendermos o que são as arquetipizações. Porque embora numa arquetipização possa não estar presente uma graça tão grande quanto à do Coração de Jesus, e se possa conceber uma arquetipização no plano apenas natural e sem presença nenhuma da graça, é fato que a verdadeira arquetipização conduz a uma ideia de como seria uma determinada coisa se ela fosse ainda mais semelhante a Deus.

É, portanto, um ver a Deus em todas as coisas que constitui a alma verdadeiramente católica. Isso não significa, por exemplo, que olhando para uma cadeira estou imaginando o Padre Eterno sentado ali. Não tem propósito! Mas aquela cadeira, se eu a arquetipizo, vejo melhor o por onde ela se parece com o Criador. Logo, buscar a arquetipia de todas as coisas é procurar ver melhor a Deus nelas, e constitui uma operação eminentemente religiosa, ainda que no plano natural.

A isso dou muita importância para se compreender o que é vida interior, o recolhimento notadamente na nossa escola. Porque na escola comum seria, por exemplo, ao ver uma coroa, faço o seguinte raciocínio: coroa é símbolo do poder; então, como é belo o poder que Deus instituiu.

Sem dúvida, é uma via muito boa. Mas faz parte do nosso espírito olhar a coroa e vê-la como um símbolo – na ordem natural e na sobrenatural – mostrando a Deus nesse sentido da arquetipização, isto é, um modo de compor como seria a figura de Deus a partir dessa coroa. Esse meu gosto de arquetipia é, no fundo, um anseio de Deus, mas ainda não explícito. É um desejo imediato de ver uma coisa mais excelente do que a coroa, o qual, de ponto em ponto, me conduzirá a Deus.

Tendência do senso do ser à perfeição

Então, no próprio modo de considerar a coroa entrou um certo estilo de ver a beleza que subconscientemente já está orientado para Deus.

O trabalho do subconsciente aqui eu acho muito importante, porque se foi feito com o mero consciente, sem um movimento da sensibilidade mais ou menos simultâneo, a coisa não se fez como eu estou dizendo. É o livre curso do impulso do senso do ser que tende naturalmente para a excelência do ser. Propriamente a palavra “subconsciente” aqui é um termo tão emaranhado que prefiro me exprimir assim: é o livre curso do impulso do senso do ser rumo à perfeição de todas as coisas no seu próprio gênero.

Essa tendência do senso do ser à perfeição das coisas leva continuamente a um desejo de elevação e, portanto, deve conduzir a pessoa a querer que existam na ordem humana os mais altos representantes dos mais elevados graus que chegam mais perto da perfeição do ser. Por isso, a hierarquia é uma necessidade. Pelo que o senso do ser é eminentemente contrarrevolucionário, porque enquanto o revolucionário quer arrasar todos os seres que representam, dentro da hierarquia, escalas para a perfeição, o contrarrevolucionário tem empenho em que a ordem social e a ordem eclesiástica vão destilando pessoas, e que haja cargos por onde elas vão se aproximando cada vez mais de uma determinada altura, a qual é a plenitude que nos fala mais de Deus.

O estilo grego e o românico

Mas voltando à consideração de ambientes, ao compararmos um edifício em estilo românico com um do estilo grego, que diferença notamos? Uma coisa curiosa, pode haver razões técnicas para isso, eu não discuto, mas as construções gregas têm uma solidez suficiente de maneira a não dar a impressão da fragilidade que preocupa, inquieta, isto é certo. Entretanto, elas não possuem o aspecto de fortaleza e não brilham pela força. Dir-se-ia quase que o grego tem a preocupação de fazer esconder a força do prédio sob o aspecto da ligeireza, da leveza, da elegância.

Então, por exemplo, a coluna grega é, o quanto possível, esguia, lembrando o tronco de uma palmeira, etc. As colunas e todo o prédio românico são pesadões. O edifício tem algo das paredes de uma fortificação, e dá ao espírito uma ideia de luta que de nenhum modo está presente no aspecto da perfeição do universo que o prédio grego quer sustentar e manifestar.

Olhando para o Parthenon, por exemplo, ninguém pode dizer: “Oh, que luta!” Ou exclamar ao ver a Tribuna das Cariátides: “Quanto heroísmo!” Sou entusiasta dessa tribuna, mas isso não se pode afirmar. Aliás, desconfio que as colunas delimitavam uma espécie de periferia e que o templo era um quadradão de alvenaria por dentro. É preciso dizer, desde logo, um quadradão de tal maneira sem graça que, se não fossem o teto e as colunas, seria a coisa menos interessante que poderia haver. Provavelmente, dentro era meio obscuro, mas uma obscuridade inteiramente diferente da existente no românico.

Ao se considerar uma construção românica tem-se a impressão de um homem que carrega um peso sério, preocupações difíceis, mas que estão na altura dele. E que ele tem força, porque é um gigante, para entestar com aquilo e tocar para a frente. Esse é o lado românico. Vê-se também que as qualidades dele são de uma pessoa muito preocupada. Há uma atmosfera difusa de preocupação na obscuridade do templo romano.

Mas nasce o vitral, o qual introduz em tudo isso uma certa forma de beleza, de pulcritude, que completa aquela carranca do prédio românico com algo que não é propriamente a louçania. O edifício românico é muito “pensativo”, muito “preocupado”. As cores do vitral românico não são tais que falem da alegria, da satisfação. Elas falam de uma espécie de doce maravilhoso, de maravilhosa doçura, que se compagina bem com aquilo e que é a meditação em Deus, do homem cansado. Do homem que não vai cantar o “Gloria in excelsis Deo”, o “Magnificat”, mas que também não vai gemer como Jó em cima de seu monturo; entretanto ele encontra um certo consolo no meio da sua tristeza, que é propriamente o bem-estar da consolação, o consolo cristão.

A esperança do Céu começa a iluminar: nasce o gótico

Quando se inicia a Idade Média, isso vai tomando, com a ogiva, um caráter diferente, porque a esperança do Céu vai iluminando aquilo que não está muito presente no românico. O românico parece mais dizer: “Deus te ajuda na Terra. Confia em Deus”. E o gótico parece mais afirmar: “É verdade, Deus te ajuda na Terra, mas isso não é tão importante. O melhor é que Ele te ajuda no Céu. Pensa no Céu! Volta-te para lá! Lá tu terás a explicação de tudo”.

Essa posição, que parece ser a perfeita, começa a fazer desabrochar a leveza dentro da seriedade e da atmosfera de uma igreja que continua com certos traços de fortaleza. Aí sim, os vitrais começam a ter louçania. Também a altura dos templos parece dar um caráter festivo e cheio de esperança, o que se reflete no modo de realizar o culto, os paramentos se tornam esplendorosos, etc. Assim, a partir de um determinado momento a esperança do Céu se acentua mais do que a esperança da ajuda nesta Terra. Para mim, o auge disso e o contrário do românico é a Sainte-Chapelle. É uma maravilha!

Mas também fala muito nesse sentido aquele tipo de coluna gótica que se abre como uma palmeira. Aquilo é muito bonito e já fala de um mundo em que a seriedade se tornou leve, de tal maneira ela venceu a dor e a aflição sem ter fugido. Na ordem do espírito, aquele guarda-sol é quase o primeiro precursor da aeronáutica, pois faz pensar um pouquinho numa ligeireza que nos vai levar para o Céu, vai girando e conduzindo nossas almas para regiões azuis que elas devem contemplar.

Nesse sentido, o gótico aparece menos consolante do que o românico. Para o homem desolado que entra em um edifício deste estilo, o românico parece dizer afetuosamente: “Sente-se, sofra, eu vou ajudá-lo no seu sofrimento”. O gótico é outra coisa. Ele como que diz o contrário: “Tome rápido contato comigo que seu sofrimento passa logo. Eu o levo para as regiões do Céu”. São os braços de Deus que se baixaram para elevar o homem. É um pouquinho como um pai ou uma mãe que se inclina sobre uma criancinha com dificuldade de andar e a suspende. Assim é o gótico conosco.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/11/1986)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

Da arquetipia ao sobrenatural

A obra-prima da inteligência dá-se quando ela chega ao píncaro de sua própria capacidade de arquetipizar. É uma forma de inteligência na qual o indivíduo vê, tão longe quanto ele possa, a perfeição das coisas. O homem sacral deseja sempre ir mais além, pois possui um espírito ascensional infatigável.

 

Quando o homem chega ao último ponto que a inteligência alcança, ao último impulso do senso do ser no desejo de arquetipia, onde ele atinge? E a que grau de arquetipia se prestam as coisas da natureza?

A obra-prima da inteligência: o píncaro da capacidade de arquetipizar

São, portanto, coisas diferentes: até que ponto eu, Plinio, levando adiante tanto quanto é possível em mim a arquetipia, há um limite além do qual eu, por minha natureza, não posso conceber a perfeição? Nesse limite eu paro. Eu acho até, diga-se de passagem, que o píncaro da inteligência é o píncaro da concepção da arquetipia.

No mais agudo sentido, a obra-prima da inteligência é quando ela chega ao píncaro de sua própria capacidade de arquetipizar. A obra criadora do homem não é o tirar uma coisa como que do nada e compor, mas é conceber, a partir do criado, a criatura em seu máximo grau de perfeição.

Quer dizer, é uma forma de inteligência na qual o indivíduo vê, tão longe quanto ele pode, a perfeição das coisas. No que entra a inteligência, entra o acréscimo que a vontade dá à inteligência. A vontade, cheia de amor pela arquetipia natural – estou falando da natureza –, tende e dilata as fronteiras de sua inteligência. Por outro lado, a coisa bem compreendida aumenta as fronteiras da vontade. Há um dueto entre a inteligência e a vontade a caminho da máxima perfeição. Quando chega ao último grau que o homem pode alcançar em matéria de arquetipia, ele atingiu a fronteira de si mesmo. Esse homem, se não fosse o sobrenatural, poderia cantar o Nunc dimittis1.

Quando eu deixar esta vida, queria apresentar-me a Deus e a Nossa Senhora tendo levado a minha possibilidade de arquetipizar tão longe quanto possível. Não gostaria de morrer antes de ter visto isto assim. Espero comparecer perante Deus com todo o grau de excelência que Ele, na ordem natural, possa ter querido para mim. Isto então é o píncaro da coisa vista em mim mesmo. E desejo também levar todos aqueles que me foram confiados aos respectivos píncaros. Nesse sentido, nossa vida é um convite contínuo para essa arquetipização.

Até onde algo pode ser arquetipizado?

Outra consideração a fazer seria: até que ponto a coisa, em si, se presta a ser arquetipizada? Ela tem uma fronteira e, objetivamente, não pode ser sublimada além de um certo limite.

Por exemplo, uma xícara. Eu seria capaz de imaginar a xícara ideal? Eu julgaria interessante organizar um museu com uma coleção de todas as xícaras que houve no mundo e que foram dignas de serem vistas… Como se visita um museu assim? É perguntando-se, antes de entrar, o seguinte: Como seria a xícara arquetipizada, perfeitíssima? Depois, outra pergunta que seria muito interessante: Para a xícara arquetípica, qual a colherzinha ideal?

De fato, este seria o epílogo da alma e o sentido da velhice de um homem de pensamento, quando, por exemplo, ele se aposenta, passa a tarde lendo jornal, conversando um pouco com um amigo, enfim, fazendo de tudo e nada, e dão a ele a oportunidade de arquetipizar o panorama geral da vida que teve. Isso, repito, é na ordem da natureza.

Eu gostaria, muito de passagem, de deixar assinalado esse conceito de inteligência. Não é compreender depressa, nem a fundo. É compreender no alto. Por exemplo, conheci alguém que não tinha a inteligência assim. Essa pessoa procurava sempre o prático, o concreto e o meticuloso. Ora, é preciso arquetipizar!

A arte popular é a atitude do camponês que arquetipiza o mundo dele. E não é fazer o mundo de um conde, é produzir a arte popular. Linda, esplêndida! A cidade de Rothenburg, por exemplo. Há museus para esse gênero de arte. Tudo que se chama artesanato tende a isso. Ninguém compreenderá a Idade Média se não tiver estas noções bem postas dentro da alma.

Outro exemplo: o indivíduo que inventou a ogiva vale mais do que Colombo que descobriu a América, nem há comparação. Não se sabe quem é, é um anônimo. Mas um homem que primeiro arquetipizou uma janela para daí sair a ogiva e partindo dessa coisa quadrada – aliás, a Renascença adorou a janela em ângulo reto – pensou na ogiva, é um gênio, um gigante. Eu gostaria de me ajoelhar diante dele, se ele foi um santo.

Outro ponto é a questão dos limites da arquetipização na própria coisa. Porque, por exemplo, não parece que se possa fazer de uma janela uma forma mais bonita do que uma ogiva. Neste gênero, a ogiva parece ter chegado ao fim do caminho. É mesmo ou haveria mais?

Da arquetipia à graça

Há uma coleção de arquetipias possíveis, mas somando, reunindo todas elas, fica uma figura vaga de algo que Deus não criou, que mais ou menos existirá, provavelmente no Céu Empíreo, e nos deixará inteiramente sem saber o que dizer.

Quando o homem chega a esse ponto, a sua alma não está satisfeita. Pelo contrário, ele localiza uma zona dela que estava na bruma, dormindo, e que era para ele, por causa disso, uma fonte de mal-estar medonho – porque a alma quando dorme cansa, e quando trabalha descansa –, algo por onde ele tendo arquetipizado tudo, chega à conclusão: “Está perfeito, mas há mais! Eu não me farto com isso. Eu alcancei tudo, e mais uma vez cheguei a um píncaro. Anseio por mais, entretanto, verifico que na natureza não há mais.”

Aí é a hora da graça. Porque nessa hora a alma conhece aquilo que ela desejava sem encontrar na ordem da natureza. Ela não sabia, mas ela varou a ordem da natureza à procura de algo mais alto do que a natureza pode dar. Esta coisa mais elevada é a graça.

Quando, então, a pessoa recebe uma graça, obtém qualquer coisa em que ela entende que seu papel está alterado: não é mais ela que vai à procura do píncaro, é o píncaro que vai se afundando dentro dela. É um píncaro voltado para baixo, que vai entrando nela. É a caminhada dela para subir para o píncaro que desce, à maneira da estalagmite e estalactite que tendem a se unir.

Neste caso é muito mais a receptividade do alto da estalagmite para encontrar a estalactite do que o contrário. Inicia-se uma via na qual, através da oração e do pedido incessante e humilde, a pessoa pede para receber aquilo que ela não pode puxar, que é a estalactite até embaixo, mas que ela pode atrair.

É interessante que quando a graça toca no homem, ela vai embebendo toda a “estalagmite”. A graça não é como no fenômeno natural – a estalagmite e a estalactite são consolidações do mesmo líquido que pinga –, ela é a ponta do dedo de Deus. A estalagmite miserável é a pontinha do dedinho do homem. São coisas completamente diferentes. A graça vai impregnando cada vez mais o homem. Tudo quanto ele viu antes sob o mero aspecto da natureza vai tomando para ele consonâncias sobrenaturais maravilhosas. Na ponta disso ele está pronto para o Céu.

Uma sublime preparação para a morte

Um de meus desejos com o que foi exposto é fazê-los compreender como devem ser, em nossa família de almas, os últimos anos da vida de um homem e o seu repouso final. Seria um deslumbramento contínuo – com as noites escuras, as cruzes e as dores – até a “toilette” final da alma, que é feita por Deus, como um rei mandaria enfeitar a sua noiva do modo como ele desejasse, para estar à altura de se casar com ele. O soberano daria as joias, os tecidos, as ideias, as diretrizes, e as mandaria cumprir. Assim também faz Deus com nossas almas.

Eu acho que isto é profundamente católico. Lamento muito que as preparações para a velhice e para a morte não se façam em função desse ponto de vista. Só essa perspectiva dá ao homem a resignação de envelhecer e a esperança de ressuscitar.

Em última análise, para resumir tudo numa palavra só, a perfeição natural prepara o conhecimento da transcendência e tende para ela. A transcendência é um abismo, um infinito, pois o seu objeto é Deus. Mas para lá tende o homem com toda a sua alma.

Sacralidade e sobrenatural

Agora, o que é a sacralidade? Há um estado da natureza vagamente análogo ao sobrenatural. Donde se pode dizer, por analogia, de uma coisa natural que ela tem algo de sacral. Um grandioso panorama pode dar a impressão de algo sacral. O termo “sacral”, em seu sentido próprio corresponde ao sobrenatural; no sentido analógico é uma excelência tão grande do natural que faz pensar no sobrenatural.

O homem sacral é aquele cuja mentalidade está toda impregnada desse conhecimento transcendente ao qual me referi acima, desse amor e dessa força ascendente rumo ao sobrenatural. Porque não basta ele imergir nas águas do sobrenatural, é preciso querer ir mais além. Este é o homem sacral, dotado de espírito ascensional infatigável.

O que é o homem sagrado? É quem recebeu um sacramento da Igreja que de modo particular o ligou com a ordem sobrenatural, deu-lhe poderes dentro dela e se apossou dele para fazê-lo um instrumento ministerial dessa ordem. E, portanto, ainda que não queira, ele tem na sua alma elementos pelos quais, tocando-se nele, toca-se no sobrenatural. Entretanto, esse homem poderá ter muito mais se ele se der inteiramente a essa transcendência.

A Igreja Católica é a sagrada fonte da sacralidade

A Igreja é de tal maneira sagrada, a tal ponto escachoa toda espécie de sacralidades, que ela é a fonte de todas as sacralidades. Ela é sacral em tão alto grau que a palavra “sacral” fica para ela meio apagada, e tendemos a dizer que ela é sagrada. Não porque ela não possua a sacralidade, nem por esta não lhe ser apropriada, mas porque é característico dela um estado tão eminente, que é, em certo sentido, um gênero maior na sacralidade.

A Igreja é então sagrada porque foi revestida de todos os dons sobrenaturais por Deus. Mas é sagrada também nisto: na ordem do sagrado, os dons a colocaram sumamente elevada e lhe deram o caráter de fonte, quase um papel parecido com o de Deus na Criação: a Igreja é, em certo sentido, o motor imóvel, o fim último. Como fonte, ela seria como que a criadora de todo sagrado existente na Terra, de maneira que pousando n’Ela o olhar, a pessoa conclui: “Cheguei a meu ponto, embora aí dentro ainda possa subir.” É o mais alto concebível. São os degraus por onde se chega ao Céu.

Por isso a palavra “sacral” torna-se um pouco, ou bastante, fraca para a Igreja, quase inadequada, como se dissesse: “Tal rei é bem-educado.” Estala a palavra. Embora o rei, de fato, seja bem-educado, não se pode compreender um rei mal-educado. Aliás, deve ser o modelo da boa educação.

Portanto, perguntar se o vocábulo “sacral” é um monopólio da ordem temporal, não é. Seria um monopólio da Igreja se esta não estalasse a palavra. Mas o termo convém inteiramente a ela. A Igreja é a sagrada fonte da sacralidade.

Sacralidade e ordem temporal

Pelo contrário, a sacralidade convém à ordem temporal como o seu mais alto adorno. Assim como se diz que a Igreja é a sagrada fonte da sacralidade, deve-se dizer que a ordem temporal é toda embebida de algo mais alto do que ela e reluz da vida sobrenatural da qual ela não é fonte, mas um receptáculo. Ela cintila e deflui, não como o alto da montanha onde nasce uma fonte, mas como as encostas por onde baixam as águas nascidas no píncaro. O alto da montanha é a Igreja. A ordem temporal é a parte mais alta em torno do cume, e de onde tudo defluiu para baixo. Daí o caráter sacral da ordem temporal.

Há dois modos de alguém se deixar penetrar pelo sacral. Um é a vocação de renunciar a tudo quanto é terreno, mas completamente, até o limite do inconcebível, para servir inteiramente a Deus. Então, renunciar até àquilo que é legítimo possuir. Outro é, pelo contrário, utilizar-se daquilo que Deus deu de um modo tão santo, que se santifique em alto grau no uso daquelas coisas.

Dois exemplos característicos seriam São Luís, Rei da França e São Francisco de Assis. São Francisco de Assis levou ao extremo os despojamentos da pobreza; São Luís, pelo contrário, foi santo num píncaro da ordem temporal. São vocações distintas.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1986)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

 

1) Referência ao Cântico de Simeão: “Deixai, agora, vosso servo ir em paz…” (Lc 2, 29-32).

 

Arquetipização, amor à cruz e seriedade

Desde a primeira infância, Dr. Plinio possuía uma tendência à arquetipização, que era alimentada pela frequência à Igreja do Sagrado Coração de Jesus. O ambiente, as imagens, o órgão lhe causavam encanto, mas ele sentia a necessidade de que ali também houvesse uma fortificação; e percebia que dentro daquela harmonia e beleza estava encravada a cruz.

 

Na Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, eu sentia como um estado de espírito que ficasse pairando pelo ar, uma mentalidade difusa que parecia dizer algo através de cada um dos elementos da decoração. O que havia de mais alto, mais eminente, mais preciso, se exprimia através da imagem do Sagrado Coração de Jesus, sugerindo o modo de Ele ser.

Uma “bonbonnière” de Sèvres

Tudo quanto via em mamãe era, para mim, um elemento integrante d’Ele. Primeiramente, percebi a Ele na Igreja do Coração de Jesus, da qual — por pasmoso que seja — o próprio Sagrado Coração de Jesus também é um elemento integrante.

Toda a vida, desde bem pequeno, houve no meu espírito uma tendência para a arquetipização. Não no sentido de me iludir, achando algo arquetípico quando na realidade não é, mas pensando mais ou menos o seguinte: “Se isso fosse perfeito, como seria?” E julgando mais pelo que aquilo deveria ser, do que pelo que era. Eu não tinha maturidade para exprimir isto assim, mas é o que estava no meu espírito. Suponho que fosse uma graça.

Dou um exemplo fora do ambiente da Igreja do Coração de Jesus.

Se eu visse uma “bonbonnière”, o mais importante para mim não era fazer a crítica dela, mas saber como ela seria se o plano do indivíduo que a fez tivesse chegado ao auge. Em seguida “decretava” — por pobreza de expressão, por falta de clareza de espírito, por uma porção de coisas — ser aquele objeto “mais bonito”, porque morava ali um plano mais bonito do que em outro objeto.

Lembro-me de que vovó tinha uma “bonbonnière” de Sèvres, daquele tempo em que se importavam as coisas da Europa às torrentes, a baixo preço. Não era um objeto pomposo, mas eu o achava lindo!

Com a partilha dos bens, isto ficou para uma tia minha, e lamentei que a “bonbonnière” não tivesse ficado com mamãe. Uns 30, 40 anos depois, numa das idas à casa dessa minha tia, vi a “bonbonnière” ao alcance de minha mão; e, não sem susto da dona da casa, peguei-a e comecei manuseá-la. Fingi não perceber o susto de minha tia, que temia que o objeto caísse no chão. Eu tinha fama na família de ser “quebrador”. Não era uma fama injusta…

Tive uma decepção ao analisá-la, e percebi que achava linda a “bonbonnière” que o artesão quisera fazer, não a que estava ali. Quando menino, não separava suficientemente a arquetipia da realidade, e julgava que a “bonbonnière’ linda estava de algum modo também presente ali.

O que acabo de descrever é muito menos raro do que parece. O espírito humano é correntemente propenso a isto.

As mitras ”preciosas” dos bispos

Conto algo característico desse processo de arquetipização, por onde mostro como ele é legítimo.

O velho carnaval paulista possuía aspectos dados ao suntuoso. Aquelas moças e mocinhas tinham fantasias de princesas do Oriente e roupas de “Ancien Régime”. Para imitar joias, compravam pedras falsas, as quais punham nos ornatos. E todo o mundo achava bonito, interessante, sabendo ser pedra falsa. Arquetipizavam aquilo que estavam vendo.

O que faziam as moças e mocinhas, ninguém achava ridículo.

Faziam-no também os bispos. Mitras que deveriam ser de tecidos riquíssimos — porque eram chamadas “mitra preciosa”, “mitra áurea”, como reminiscência dos tempos em que eram preciosas mesmo —, no meu tempo de jovem eram feitas com tecidos comprados na Rua Santa Ifigênia(1), nesses especialistas de objetos de alfaiataria religiosa.

Mais de uma vez, terminada a cerimônia da Páscoa, vi um bispo chegar à porta da catedral, os sinos todos tocando, o portal fazendo moldura para ele; e reluzindo na mitra todas aquelas pedras falsas que poderiam ornar as fantasias de carnaval.

Ninguém achava ridículo. Era uma legítima arquetipização. Quer dizer, é um processo legítimo, sem o qual a boa ordem do pensamento humano é quase incompreensível.

Comigo, esse processo se dava desde que me lembro de mim, já na pré-idade de formação da razão, dos primeiros princípios.

Bons arquétipos e realidade

Também com relação ao mal. Alguém diria que nasci com uma vocação maniqueia furibunda, mas não é verdade. Era o “inimicitias ponam”(2), e outras categorias de espírito que ainda não conhecia, as quais estavam dentro disso. Reputo que eram graças.

Por exemplo, já tive ocasião de falar do Herr Kinker, o dono de pensão medonho, que me pôs uma vez na chuva(3). Ele se me apresentava como uma personificação do mal alemão. Mas eu o via como ele não era, porém certamente de acordo com modelos alemães que o Herr Kinker procurou imitar. E vinha logo a ideia: “Está vendo?! Há uma porção de pessoas como o Herr Kinker. Existe no fundo, algo semelhante a ele, e isto eu detesto!”

Isto se dava arqui-carregadamente na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde tudo era arquétipo e arquetipizado.

Concebo que um artista faça uma crítica daquilo e encontre defeitos. Mas esta graça de arquetipização não gosta da análise científica e artística, porque nega a arquetipização e desvia a atenção dela.

Devemos tomar cuidado com os bons arquétipos que formamos na alma, pois mesmo quando não correspondem à realidade, são mais profundos que a realidade vista.

O timbre de voz de Nosso Senhor

É importante notar ser esta atitude de alma uma explicação de minha pessoa aos olhos dos outros. Se quiserem entender muitas de minhas atitudes, vejam que estou agindo em função de um arquétipo.

Mas este arquétipo não é como o do indivíduo que estudou na escola de Belas Artes e se põe a desenhar uma fachada excelente, porque conhece os princípios. Ou este arquétipo sai à maneira de um jorro, do fundo da alma, do senso do ser em contato com a realidade, ou não adianta nada. Essas regras são como as regras da lógica: não servem para pensar, mas para formular com clareza o pensamento. Pois, se não se descobriu a verdade antes de usar a regra da lógica, só com a regra não se vai descobrir.

Na Igreja do Coração de Jesus havia algo arquetípico mais ou menos esparso pelo ar, do qual estou certo de que era uma graça. Quer dizer, admito que, a rogos de Nossa Senhora, Deus desejasse que eu fosse propenso a essa operação psicológica, mental, natural, e assim me concedesse graças nesse sentido, para eu conseguir realizar minha vocação.

Por que tenho certeza de que havia na Igreja do Sagrado Coração de Jesus uma graça? Porque, sem saber que era uma graça, pensava mais ou menos o seguinte: “É curioso, mas parece que tudo nesta igreja fala à minha alma! E fala com o timbre de voz que teria Jesus se estivesse na Terra! Esse é o próprio timbre de voz d’Ele!”

Não pensem que eu tinha uma visão, não se trata disso.

Uma igreja bela, mas faltava-lhe algo de fortificação

Graças a Nossa Senhora, também arquetipizava muito os Santos em função das imagens. De maneira que aquela coleção de imagens, ao longo das naves da Igreja do Coração de Jesus, era para mim imponentíssima, de Santos arquetipizados!

Ouvindo o órgão de lá, parecia-me a voz de Deus. Sabia que não era, mas achava ser algo como a voz de Deus.

No fundo da minha alma, isso me sensibilizava até onde era possível sensibilizar alguém. Depois de sentir profundamente aquilo, ficava querendo bem, e agradecendo. Porque percebia algo de muito bom que havia em mim potencialmente, que se movia agradecido e dizia: “Eu vos esperava, aqui estou!” Acho que era a graça do Batismo, a presença de Deus.

Tenho a impressão de que com todas as crianças acontece o mesmo.

Notava, entretanto, uma característica do Coração de Jesus não presente naquela igreja, mas que deveria estar. Sentia-me ali como se estivesse dentro de uma linda capela medieval posta no meio do campo. Ora, na Idade Média não existiam capelas colocadas no meio do campo; precisavam ter em volta muralhas, caso contrário o inimigo as destruiria.

Eu julgava, então, que a Igreja do Coração de Jesus deveria ser naturalmente fortificada. E aquela ausência de força, de “bellum”, da guerra, fazia-se sentir. Com isso, algo de minha alma não estava expresso, deixando-me a ideia de um complemento que faltava.

Contudo, consolava-me a grade da Igreja do Coração de Jesus e aqueles dois corpos de edifício, que davam ideia de um mal a combater e uma estabilidade a afirmar contra a intempérie. Alguma coisinha falava vagamente de uma circunstância adversa a ser tomada em consideração.

Gostava muito da figura do Padre Eterno, um belo mosaico existente em cima do tabernáculo, porque Ele era representado como um ancião batalhador e dominando.

Dona Lucília entendia essa atmosfera, mas não explicitava

Isso que eu sentia, algumas pessoas difusas pela igreja também sentiam mais ou menos. Não todas, mas uns dez por cento.

Dentre os outros, muitos tinham restos de religiosidade conspurcados: utilitários, consuetudinários, feitos um pouco de moda e de outros elementos meramente terrenos. No meu tempo de menino, aquela era a igreja da moda de um bairro bom de São Paulo.

Porém, se deixassem de haver ali dentro as almas que sentiam aquilo que eu estava notando — das quais o exemplo mais próximo, mais querido, mais eloquente era mamãe — os outros não voltariam mais. Era uma espécie de rede, por uma ação de “proche en proche”(4) e de presença, mais ou menos invisível.

Parecia-me também que as pessoas que frequentavam a igreja, e sentiam o que eu discernia, gostavam dessa graça, mas nunca teriam coragem de comentar, pois todo mundo cairia na gargalhada e diria ser uma demência! Portanto, não se devia falar sobre isso. E quem sentia não comentava, mesmo entre os que igualmente percebiam os imponderáveis da Igreja do Coração de Jesus. Mentalmente, formulavam algo do que sentiam, mas não iam além disso.

Acho que mamãe tinha ideia de que era uma graça, o que a levava a rezar muito lá. Todos esses matizes creio que ela os tinha, até riquíssimos, mas não sabia dizer. E nunca disse.

As pessoas tocadas por essa graça, em certo momento, achavam-na monótona

Eu percebia também essa própria graça atrair uma boa porcentagem desses que a sentiam. Contudo, se a graça se mantivesse e eles tivessem que ficar muito tempo em contato com ela, a maior parte achava monótono. Chegavam lá, deliciavam-se, se encantavam, mas depois sentiam tédio. E com um pouco mais, um pouco menos de tempo, sumiam.

Eu ficava perplexo: “Como é esse negócio? Não posso compreender: gostam tanto e fogem? Não aguentam o que admiram?” E pensava: “Dá-se o mesmo com relação a mamãe. Fazem com ela a mesmíssima coisa!”

Cheguei, então, à conclusão: “Algo disso há de transparecer em mim algum dia. Terei a vida que possuem essas coisas. Vou ser muito atraente para uma minoria, mas esta vai se cansar rapidamente de mim…”

Tenho certeza de que, no fundo, o que aparece em mim é isso que hauri no Coração de Jesus, com esse complemento de fortificação muito acentuado. Eu não seria eu mesmo e não me definiria como devo, se não fosse isso. Qualquer reunião feita por mim tem, no fundo, isso. Naturalmente em grau muito menor do que na Igreja do Coração de Jesus.

De um jeito ou de outro, todo o atrativo que eu possa apresentar para a companhia de outras pessoas, está marcado por isso. Portanto, sei que o itinerário forçoso é este: em certo momento cansa.

Tenho certeza de que isso acontece com todas as pessoas que são conformes à graça, sobretudo no nosso século. Porque isso é a proa de navio contra todo o espírito moderno, é a própria definição do espírito anti-moderno.

Os admiradores de Jesus se cansaram d’Ele…

Há uma nota em tudo quanto eu disse, sem a qual isso seria enormemente incompleto.

Na Igreja do Coração de Jesus, e em todas as imagens do Sagrado Coração de Jesus da boa escola, havia uma nota de tristeza. Porque dentro de toda essa harmonia, toda essa beleza, estava encravada a cruz.

Nosso Senhor Se apresentava para nosso olhar como sendo o próprio Homem-Deus, com todos os títulos para ser amado. A isto Ele acrescentou milagres e doutrinas.  Quando se lê uma frase do Evangelho, às vezes se pergunta por que o mundo inteiro não para, e fica comentando aquele pensamento por toda a eternidade! Quer dizer, Ele fez o inimaginável! E vê-se ter despertado admiração. Entretanto, seus admiradores se cansaram d’Ele…

Essa rejeição certamente causava uma dor profunda na humanidade santíssima d’Ele, precisamente por ser imerecida.

Um espírito superficial diria a Nosso Senhor: “Não Vos importeis. Vós nadais dentro de vossa própria perfeição. Por que precisais desses ‘pés-rapados’ que procurais?”

Seria um cálculo mal feito, evidentemente.

Portanto, a vida de Nosso Senhor era tristíssima. E há no fundo do olhar e do Coração d’Ele uma tristeza habitualmente morando. É o por onde aparece o melhor d’Ele.

Aceitar uma vida assim é aceitar de morar dentro de uma tristeza. Ao mesmo tempo nós sermos a casa da tristeza e a tristeza ser a casa de nossa alma; morarmos nós nela e ela em nós. E aceitar isso como “normal”, quer dizer, corriqueiro, inevitável, constante, até o fim.

Devemos procurar eliminar a alegria diante da simples ideia de que depois tem o Céu. Porque isto é um modo “happy-end”(5) de tomar as coisas, que não está na via de Nosso Senhor.

Realmente, depois há o Céu, mas existe a cruz que desfecha na morte, intermediária entre o homem nesta Terra e o Céu.

Este amplexo com a tristeza confere renúncia, abnegação, bondade, perseverança, constância a todas as nossas disposições de alma.

Não sei se torno claro quanto isso é essencial e como não seria cristão se não fosse assim.

Disso, sobretudo, muitas pessoas têm horror. Percebem e fogem! Ficam horrorizados.

A recusa da cruz traz o apagamento da luz

A cruz é como a sabedoria: a sabedoria da cruz vai desde a manhã sentar-se à porta da casa de cada um, esperando como uma mendiga que lhe queira abrir. Ela faz isto com todas as pessoas, de todos os jeitos, de todos os modos, conservando a dignidade como — guardadas as proporções — em grau divino a conservou Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, não é uma baixeza indigna, mas uma atitude em outra clave. E isto não é aceito.

O “flash”(6) faz uma operação curiosa: cobre isso de alegria, de maneira que inicialmente a pessoa não percebe a cruz. Em certo momento, suspeita estar ela aparecendo. E um dos pontos do entibiamento e do tédio sucede quando o indivíduo, confusamente, no meio do perfume das flores, começa a sentir o cheiro da cruz e a rejeita.

Se fosse pelo menos a cruz dramática: a pessoa se deita e faz-se crucificar! Mas não. É a cruz de todos os dias, com sua banalidade, sua monotonia, sua luta contra tal tentação concreta, que a pessoa não quer aceitar, mas não quer vencer; tal xodó, tal birra, tal coisa que não quer perdoar, sobretudo.

O indivíduo quer colocar no centro de sua vida uma fonte de alegria. Quando quer isso desista, porque fracassou!

Quando a pessoa recusa a cruz, apaga-se a luz. Ela pode achar a Igreja do Sagrado Coração de Jesus a mais bonita possível, mas fica átona. A alegria desaparece, começa a julgar tudo tedioso. Continua a achar bonita a igreja, mas de um bonito tão apagado que as coisas mais admiráveis que lá existem não despertam comentário.

A biografia de Huysmans(7) que li foi para mim uma revelação e uma delícia para a alma, porque, quando ele se converteu, passou a ver muitíssimas dessas coisas de novo.

Quando vem a conversão, a pessoa começa a perceber que a Liturgia é linda e a re-perceber as belezas da Igreja. Enquanto mero artista, o Huysmans percebia, não tem dúvida; mas isto não tem vida.

Os convites da graça, as recusas e a seriedade diante da vida

Suponho que a graça produza esse processo no espírito de todos, mas a maioria vai, desde logo “apostatando” e tendo, já no começo, um tal desamor, que não conservaram nem remorsos, nem recordação. De onde uma obliteração profunda, dentro da qual algo ficou. A “cathédrale engloutie”(8) é isto. Algo ainda fala à alma, mas as pessoas vivem de soterrar essa graça.

Ao longo da vida, todos os dias, as pessoas recebem vários convites nesse sentido, mas já vão correndo ao primeiro bueiro, para ver onde podem jogar fora o convite. Esta é a realidade.

Mas Nossa Senhora é tão boa que um pavio sempre fica, e essa luz pode reacender.

Isto é propriamente o Reino de Deus e sua justiça que devemos procurar. Os Apóstolos o que quiseram foi isto. Isto borbulha no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, sobretudo na “Oração Abrasada”, que é um “geyser” disto! Quando se ouve falar de Carlos Magno, das Cruzadas, isto borbulha!

Ficaram, assim, umas fontes no deserto lançando água para uns homens que, de longe, ainda olham para elas e dizem: “Como são bonitas… Agora me deixe comer tâmaras…” Voltam as costas para a fontes e começam a comer tâmaras.

Ou, o que é pior: “Deixe-me afundar no pecado!” Porque quem recusa esta graça perde as condições para conservar uma castidade perfeita.

Estas considerações produzem certa melancolia, mas que não vão sem alguma alegria.

Tudo isso junto, como se chama? Seriedade.

Encerramos uma conversa séria. Como é melhor ser sério do que torcer!

Meus caros, que Nossa Senhora os ajude!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/10/1985)

Revista Dr Plinio 208 (Julho de 2015)

 

1) Localizada na região central da cidade de São Paulo.

2) Do latim: porei inimizades (Gn 3, 15).

3) Ver Revista Dr. Plinio n. 9, p. 4-5.

4) Do francês: de próximo em próximo, gradativamente.

5) Do inglês: final feliz. Alusão à mentalidade difundida pelos filmes de Hollywood.

6) Graça atual de caráter místico que confere um particular discernimento do sobrenatural. Ver Revista Dr. Plinio n. 55, p. 16-20.

7) Joris-Karl Huysmans, escritor e crítico de arte francês
(* 1848 – † 1907).

8) Do francês: catedral submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.