Nossa Senhora do Trânsito: rogai por nós!

Crentes na Ressurreição da carne, devemos vencer o vale da morte com a gaudiosa esperança de, um dia, ressurgir com corpo e alma para a bem-aventurança eterna. Recorramos, para isso, à bela e muito propícia invocação de Nossa Senhora do Trânsito.

Trânsito deriva do latim “transire”, ou seja, atravessar. Nossa Senhora do Trânsito é Nossa Senhora da travessia tremenda, que, desejando morrer, quis nos ensinar e ajudar a enfrentar a morte.

Porém, nos dias deste mundo não é esse o único trânsito perigoso que temos diante de nós, pois a própria vida é uma dura travessia, com tudo o que ela acarreta. “Talis vita, finis ita”: a hora da morte é um compêndio de nossa vida. Se quisermos ter uma morte corajosa como a da Santíssima Virgem, tenhamos uma existência marcada pela prática resoluta dos Mandamentos, confiantes na maternal e incansável solicitude de Maria.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Santidade “victa et non picta”

Santo Afonso Rodrigues conseguiu fazer um bem imenso à Espanha e a todo o mundo, ocupando um posto humílimo. Ele era porteiro de um convento situado numa ilha que naquele tempo tinha comunicação difícil com o continente. Ali ele consumiu quarenta e cinco anos de sua existência.

Apesar de estar nesse recanto, o bom odor de Jesus Cristo que havia nele espalhou-se por toda a ilha de Palma de Mallorca, pela Espanha e depois pelo mundo, com a figura venerável desse porteiro velho, acolhedor, afável, sempre ao alcance de todos na portaria e, portanto, podendo ser consultado por quem quisesse. Isso fez de sua cadeira de porteiro um trono da sabedoria. Todos iam lá para vê-lo e ouvi-lo.

Foi uma vida toda integrada e empregada no serviço de Deus Nosso Senhor e da Santa Igreja Católica, porque a santidade, ou seja, a sabedoria, tem uma irradiação própria que a nada se compara. Não é tão importante que o Santo esteja num lugar onde todos veem, porque onde ele se encontre o afeto e a admiração confluem para lá. Basta que seja um Santo autêntico, com uma santidade – como diziam os antigos – “victa et non picta”, isto é, conquistada e não pintada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1967)

Considerações sobre a visão beatífica

O homem foi criado para a visão beatífica. Se tivermos bem em mente que o nosso fim, a nossa única verdadeira razão de ser é contemplarmos Deus face a face por toda a eternidade, consideraremos tudo com muito mais seriedade. Todas as nossas ações, ainda quando moralmente neutras, conforme o modo com que as praticamos, podem nos aproximar ou distanciar de Deus. A Doutrina Católica faz da vida uma preparação para a eternidade, e deseja que as almas na Terra se exercitem naquilo que farão no Céu.

 

Trataremos de alguns temas que possam nos favorecer para uma impostação de alma contrarrevolucionária.

Cada ação do homem acarreta consequências enormes, na presença de Deus

Em primeiro lugar, mostraremos como tudo na vida é sério, grave e, portanto, devemos abandonar essa tendência moderna à irresponsabilidade, à irreflexão, à improvisação, e compreendermos que cada ação nossa, por pequena que seja, acarreta para nós consequências enormes na ordem verdadeira e profunda dos fatos, quer dizer, na presença de Deus. Tudo quanto realizamos se faz na presença de Deus, com referência a Ele e, por isso, toma uma gravidade, uma importância sem fim.

A visão beatífica nos ajuda a isso porque, se tivermos bem em mente que o nosso fim, a nossa única verdadeira razão de ser é contemplarmos Deus face a face por toda a eternidade, consideraremos tudo com muito mais seriedade.

Para ilustrar o conceito de eternidade, costuma-se dar em aulas de Catecismo uma comparação bem-apanhada. Tomem uma pedra bastante dura, o granito, por exemplo. Em tese, se alguém roçar o dedo sobre o granito, uma particulazinha dele pode desprender-se, e mais provavelmente se desprende, por pequena que seja. Então, imaginem uma andorinha que passasse pelo Pão de Açúcar de mil em mil anos e roçasse apenas com a ponta do bico naquela montanha. Quanto tempo levaria para demoli-la? Não há cálculo possível! Pois bem, quando a andorinha tivesse acabado de destruir o Pão de Açúcar, era como se a eternidade estivesse no seu começo.

Compreendemos, assim, o quanto é sério e grave aquilo que pode nos aproximar ou nos afastar dessa visão beatífica. Ora, de um modo geral, tudo nos afasta ou nos aproxima dela. Porque todas as ações, ainda quando moralmente neutras, conforme a ordenação com que o homem as pratica, podem aproximar ou distanciar de Deus.

Exemplifiquemos com a atitude mais comum do mundo: um homem está viajando de ônibus e abre uma janela. Em si, abrir a janela ou fechá-la é uma ação moralmente indiferente. Se o ônibus estiver a toda velocidade e se o indivíduo gozar do impacto daquele vento razoavelmente, aquilo é uma ação boa. Não é intrinsecamente boa, mas pela ocasião em que a fez, pelo modo que a praticou, etc., é ordenada. Está ordenada à natureza dele. Uma vez que está passeando, vivendo, o homem faz aquilo e aproveita o deleite. Está bem, sobretudo se ele se lembrar de dar graças a Deus que, como dizia São Francisco de Assis, criou “nosso irmão ar”, tão deleitável e tão agradável. Aí a ação fica melhor, entrou um elemento positivo, uma oração a respeito da ação.

Mas se ele, por exemplo, meter a cabeça no vento pela embriaguez da velocidade – nós veremos isto mais adiante –, produz um mau efeito em sua alma. E essa embriaguez da velocidade pode distanciá-lo do fim último que é Deus.

Duas influências opostas: Europa e Hollywood

Tenho falado muitas vezes a respeito do choque de influências que se produziu, entre os anos 1920 e 1930, no Brasil, pela permanência das tradições e dos contatos com a Europa e pela entrada da influência hollywoodiana.

O Brasil daquele tempo recebia as grandes águas da tradição europeia e a catarata, então recente, da influência de Hollywood, e essas coisas incidiam juntas.

Uma das notas que diferenciava a influência norte-americana da europeia era que a Europa tinha o seu passado calçado pela cultura quase bimilenar, em algum sentido mais do que bimilenar se remontarmos aos romanos e gregos, cujas culturas, de um modo ou de outro, santificadas depois pela Igreja Católica, acabaram dando na Idade Média.

Nisso entraram séculos de estudos, de reflexão, e as pessoas tomaram o hábito de ler, de pensar, de estudar, nos ritmos da vida de antigamente.

Uma vida na qual o homem não tinha os instrumentos de ação para agir depressa como ele dispõe hoje em dia. Como consequência, a vida humana corria muito mais devagar, muito mais tranquila e cheia de interstícios.

Lembro-me de que meu bisavô(1), sendo deputado do Parlamento do Império, levava um mês para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro a fim de tomar conta de sua cadeira no Parlamento. Não sei se ele ia fazendo também um pouco de propaganda eleitoral, mas o fato é que era uma viagem assim.

Partiam de São Paulo para o Rio de Janeiro famílias inteiras com verdadeiras caravanas e, quando chegava perto da cidade do Rio, a caravana parava, as senhoras se arranjavam, ajeitavam-se nas liteiras, os homens se compunham para entrar na Corte, como chamavam antigamente a capital do Império.

Imaginem um deputado que sai de São Paulo no dia primeiro de janeiro para chegar ao Rio, à Corte do Império, no dia primeiro de fevereiro. O interstício enorme em que ele não recebe notícias, e quase não tem como mandar notícias, e fica pensando na viagem, no caminho, em uma porção de coisas! Queiram ou não queiram, resulta numa vida refletida. As reflexões podem ser boas ou não, é outra questão; refletir, ele reflete.

Um pequeno fato da vida de Talleyrand

Há algum tempo li a narração da seguinte cena, num livro sobre Talleyrand(2). Ele tinha uma sobrinha com a qual morava na embaixada francesa, em Viena. E ia dar uma jogada diplomática extremamente importante, e do interesse da sobrinha, no Congresso de Viena. Então, combinou com ela o seguinte:

– Quando você ouvir o ruído de minha carruagem pela rua – vejam que rua tranquila para se discernir o ruído da carruagem de Talleyrand! –, vá à janela ou porta da embaixada e note: se eu estiver com um lenço na mão, será o sinal de que tudo deu certo; se não aparecer o lenço, quer dizer que não deu em nada.

Então, o que hoje se liquidaria por um telefonema, levava o tempo necessário para, terminada a sessão do Congresso, ele se despedir de todo mundo, descer a escadaria ajudado por alguém – era manco –, entrar na carruagem seguindo todo um cerimonial: um lacaio abria a porta, descia uma escada, Talleyrand subia, sentava-se, depois se sentava o secretário, batia-se a porta, o cocheiro subia na boleia, os outros dois lacaios, de libré, subiam atrás, e só então os cavalos começavam a puxar o carro pelo calçamento de Viena, e Talleyrand lá ia chacoalhando até a embaixada francesa. Ora, em nossos dias, muito antes de tudo isso ter-se realizado, por um telefonema do secretário para a sobrinha, ela teria ficado sabendo do resultado.

Notem quanto tempo levava uma notícia para chegar dentro da própria cidade. Tal era a ansiedade da sobrinha que, à pequena distância, um lenço já deveria encurtar o espaço da espera; mas tem que aguardar. Enquanto espera, precisa pensar em outra coisa porque a pessoa se cansa de conjeturar. Acaba havendo tempo para aprofundar os assuntos e refletir a respeito das questões. É natural.

Forma-se, assim, um teor de vida de que as pessoas hoje não têm mais ideia. Porque a pressa tomou conta da existência e conferiu à vida outros valores, outros ritmos nos quais a reflexão não entra.

Se a cena descrita acima se passasse hoje, Talleyrand diria à sobrinha:

– Eu mando meu secretário lhe dar um telefonema logo que a sessão esteja encerrada. Você aproveita e telefona daí para o Ministério do Exterior em Paris e para as nossas embaixadas em Roma, Berlim, Londres, Madrid, Lisboa, e depois para Washington, contando o que houve. Quando eu chegar em casa já quero ter as reações de todos esses Ministérios.

Ela era uma mulher inteligentíssima e daria conta do recado. Ele já chegaria arfando:

– O que disse o Ministro do Exterior? Está bem o que eu consegui ou não? Qual foi a repercussão em Washington? E em Londres?

Que tempo ele teve para pensar? No sacolejar da carruagem entrava a reflexão.

O corre-corre tira o hábito de pensar

Se tomarmos os quadros representando as pessoas de antigamente, veremos como todas têm fisionomia de quem está refletindo. Porque a reflexão era a expressão fisionômica habitual delas, pois havia tempo para isso.

Já nas fotografias tiradas das pessoas das vésperas da Primeira Guerra Mundial para cá, as fisionomias são cada vez mais irrefletidas, e a fotografia é instantânea ou o indivíduo não sabe mais fazer pose, porque para isso é preciso refletir um pouco. O instantâneo é a lembrança que deixa atrás de si o homem do corre-corre. É forçoso.

Antes dos anos 20, a vida era tal que nas casas de burguesia média, e às vezes menos do que isso – portanto, a “fortiori”, nas classes mais altas –, os quartos de dormir eram espaçosos e, principalmente os de senhoras, tinham, em geral, além do necessário para dormir, um mobiliário sumário. Podia ser, por exemplo, um sofá e algumas cadeiras, porque as conversas muito reservadas se faziam no quarto de dormir. Ia-se para o mais interno da casa e conversava-se ali.

Por vezes, a pessoa se recolhia ao quarto de dormir durante o dia para pensar bem. Não deitava na cama, porque isso ocorre quando se está doente ou para dormir à noite, fora disso não. Então, recostava-se no sofá e ficava pensando, isolada de todo mundo.

Com o corre-corre, que é muito prejudicial porque tira o hábito de pensar, vem outra circunstância bastante nociva: é a convicção de que para o homem ou a mulher, o moço ou a moça e até a criança, levar uma vida digna deste nome deve fazer tanto quanto possa e pensar pouco, porque pensar é perda de tempo. Portanto, é preciso fazer, fazer, fazer, quanto mais fizer melhor. O indivíduo tem uma espécie de embriaguez de fazer, porque julga desperdiçar o tempo pensando.

Então, nós temos o desprezo, ou pelo menos o menosprezo, da reflexão imposto pela pressa.

Isso leva ao contrário do que quer a Doutrina Católica, pois esta faz da vida uma preparação para a eternidade, e deseja que as almas na Terra se exercitem naquilo que farão no Céu.

O homem foi feito para a beatitude celeste

Segundo São Tomás de Aquino, o homem foi feito para a beatitude celeste, a fim de conhecer a Deus eternamente – o que é refletir –, e para exercer não só um ato de cognição, mas de amor contínuo e eterno.

Nesta Terra, diz ele, o homem tem em semente a beatitude primária, que é contemplar, com algo que participa da visão beatífica – o Batismo nos confere um começo da visão beatífica. Quando o homem reflete sobre a ação – se isto é ordenado para Deus –, ele possui uma espécie de contemplação secundária, tendo como fim a beatitude, quer dizer, o conhecimento de Deus(3).

Como isso é diferente da vida do corre-corre! E como a existência regular, pausada, com hiatos que dão possibilidades de pensar, é diferente e mais apropriada do que a vida de hoje, em que a parte principal da contemplação nesta Terra não só cessa, mas o homem fica incapaz de contemplar. Aqui está o pior: a mania da velocidade incapacita o homem para a contemplação, e ele se vicia no agir como outro pode viciar-se em drogas.

É importante mostrar como essa influência é contra o que a Igreja quer de nós. Por isso pretendo aproveitar algumas reflexões de São Tomás de Aquino sobre a visão beatífica, não só para considerar a suma gravidade das coisas, mas também como a Doutrina Católica rejeita a idolatria da pressa, presente em tantas pessoas.

Superioridade dos prazeres da alma em relação aos do corpo

No Tratado da bem-aventurança, na Suma Teológica (Cf. I-II, q. 3, a. 1), São Tomás pergunta se a beatitude é algo criado, e explica que o fim último do homem tem duas acepções: uma é a bem-aventurança enquanto sendo o próprio Deus, e, neste sentido, é incriada. Outra é o ato pelo qual o homem desfruta da visão de Deus; nesta acepção ela é criada.

De maneira que a visão beatífica é, neste sentido da palavra, a eterna prática do ato pelo qual o homem vê e ama Aquele para o qual nasceu a fim de ver e amar.

Mais adiante (Cf. I-II, q. 3, a. 3), São Tomás pergunta se os sentidos do homem têm alguma alegria com a visão beatífica. E ele resolve com a mesma simplicidade, dizendo que os sentidos não podem conhecer a Deus, porque são aptos para conhecer a matéria. Ora, Deus não é matéria.

Entretanto, pondera que o homem forma um todo com a inteligência, a vontade e a sensibilidade. Assim, embora os sentidos não conheçam diretamente a Deus, o gáudio que a alma tem na visão beatífica reflui nos sentidos e os torna muito mais retos, perceptivos e capazes de se alegrarem na esfera própria.

O Doutor Angélico remete para o que ele diz a respeito da ressurreição (Cf. Supl. q. 82). O homem ressurreto, cuja alma vê a Deus, encontra-se num estado esplêndido; além da magnificência da reconstituição em si, está inundado pelos efeitos benéficos da alma que vê a Deus.

Na própria clareza e simplicidade dos raciocínios de São Tomás, temos um exemplo minúsculo da superioridade dos prazeres da alma sobre os do corpo, e como aqueles refluem sobre este. Basta pensarmos como esses raciocínios poderiam fazer bem para o corpo de um filósofo que tivesse algum problema a esse respeito e não soubesse como resolver. Ao ler na Suma Teológica essas considerações, ele se tomaria de uma alegria espiritual que lhe poderia aliviar, por exemplo, de uma enxaqueca.

Percebemos, por conseguinte, a maldade presente em tanta coisa da civilização moderna. Por exemplo, a televisão, absorvendo continuamente os sentidos, monopoliza a atenção e a impede de se voltar para coisas dessas. Resultado: a pessoa fica incapaz de se deleitar com esta superior forma de alegria que a alma sente ao considerar as coisas da inteligência, ou seja, da contemplação.

Vemos, assim, como a Revolução mente ao dar a entender que o prazer está na lubricidade, na impureza, na pressa. É o gosto de destruir, de se achincalhar, de se tornar hippie. Enquanto a Igreja leva o homem para ser Anjo, a Revolução leva-o para ser hippie.

Inteligência especulativa e inteligência prática

Outra pergunta posta por São Tomás: se a beatitude, vista enquanto ato do homem, é uma operação da inteligência especulativa ou da inteligência prática (Cf. I-II, q. 3, a. 5).

“Especulativa” vem de “speculum”, que significa espelho, em latim. A inteligência especulativa é aquela que se coloca diante da realidade e a absorve dentro de si, como o espelho recebe a imagem. Por esta razão é adequado se referir ao reflexo do espelho ou à reflexão do homem. Notem a proximidade das duas palavras.

A inteligência prática é aquela que, posta a reflexão, opera para que as coisas se ordenem como devem ser. Então, se vejo no céu um fenômeno qualquer que me agrada, por exemplo, um eclipse, minha inteligência especulativa apreende e eu penso sobre aquilo. A inteligência prática faz-me tomar a deliberação de acompanhar as evoluções da Lua para, quando houver outro eclipse, eu possa ver de novo. Para isso, deverei adotar uma série de atos que tendem a este fim.

Vê-se, portanto, ser evidente que a beatitude é uma operação da inteligência especulativa, e a pessoa nem compreende bem como é que São Tomás quer as provas disso.

Ora, esta seria a objeção de um preguiçoso. O homem que não tem preguiça de pensar procura exprimir em silogismos, em raciocínios, tudo quanto possa ser expresso. Ainda que seja evidente, tendo uma prova, o pensador se alegra.

Alguém diria: “O senhor não vive elogiando a intuição?”

Sim, porque a intuição liberta o homem da miopia de só ver o que o longo raciocínio aponta. Mas o espírito bem construído, depois de ter tido, pela intuição, uma visão panorâmica, gosta de percorrer, passo a passo, como um leão dominador, a estrada que ele sobrevoou como águia.

Consideremos, pois, as razões dadas por São Tomás, das quais pendem, à maneira de estalactites, conclusões fecundas para nós.

Ele diz que o objetivo da razão prática é dispor os meios para o fim. Ora, quem vê diretamente o fim não precisa de razão prática, apenas especula. Além disso, a mais alta atividade da inteligência é conhecer o Sumo Bem, o que é, por sua natureza, uma suma contemplação. Logo, a visão beatífica é uma suma contemplação.

Pela mera contemplação o homem se aproxima dos Anjos, porque o Anjo é puro espírito e contempla. Pela mera razão prática o homem se aproxima do animal, porque o animal, sem ter contemplado nada, dispõe por instinto as coisas de acordo com seu fim.

Para conhecer um ser, devemos considerar o que ele tem de ótimo

Temos na natureza exemplos tocantes: o ninho de um pássaro brasileiro – não sei se existe nas outras nações –, chamado joão-de-barro, que faz uma pequena casa de barro com um corredor meio sinuoso, onde ele mora no fundo. Só falta pôr para ele um sofá…

Em menino tive ocasião de observar ninhos, mas muito bem construídos de materiais que os pássaros pegam em qualquer canto. Eles fazem com aquilo um tecido que se tem a impressão de ter sido planejado por um engenheiro, de tal maneira é magnífico.

Nunca estive no alto de uma árvore para quebrar a casa do joão-de-barro e ver como é por dentro, mas percebe-se que aquilo é uma perfeição elaborada pelo instinto. É a boa disposição das coisas segundo um determinado fim, realizada, entretanto, por um bicho incapaz de contemplar.

O Doutor Angélico cita um princípio de Aristóteles que ordena o espírito magnificamente: “Cada ser é considerado, sobretudo, no que ele tem de ótimo” (Cf. Ethic., 1.9, c.8, n.6). Quer dizer, se eu quero conhecer um ser bem a fundo, devo considerar o que ele tem de ótimo. É a partir disso que explico todo o resto.

Em termos concretos, não quer dizer que ao conhecer um homem eu deva imaginar que ele é ótimo, mas trata-se de uma outra regra de Psicologia: para eu saber como aquele indivíduo é no momento, devo considerar o que sua natureza tem de melhor e, em algum sentido, o que ele poderia ser se fosse ótimo. Disso eu tiro a diferença em relação a como ele é agora, e deduzo no que devo amá-lo e no que preciso tomar precauções com ele. O primeiro voo é para o que ele poderia ter de ótimo, depois vem o resto.

Mas isto se dá considerando, sobretudo, a natureza do ser em questão: ser homem é uma grande coisa por tais razões; ser peixe é uma coisa menor por tais outras, mas é ótimo em certo ponto…

“Cântico das arquetipias”

Aquele hino de São Francisco às criaturas – ao irmão Sol, à irmã Lua, etc. – tem exatamente isso: Considera esses vários seres, embora materiais, no que possuem de ótimo, e forma um arquétipo de cada ser. Tal hino se poderia chamar o “cântico das arquetipias”. Não há quem leia aquilo sem ver a arquetipia das criaturas ali mencionadas.

Depois de ler aquele hino, ver que tal mar está poluído com matérias expelidas pelos navios que passam, corta o coração.

Nunca me esquecerei da ocasião em que, estando em Santos, notei haver no mar uma grande mancha de óleo. Mas o que tornava a cena ainda mais horrorosa era um enorme cacho de bananas verdes flutuando no meio daqueles detritos. Chocava-me ver aquelas frutas verdes e que deveriam maturar, portanto, algo vivo, feito para se desenvolver, comprimido na sua vitalidade e destinado à morte antes de se ter expandido, no meio dos detritos, da água suja, do mar grandioso, mas conspurcado.

Como cheguei a ter horror daquelas bananas verdes? Porque tive em mente o que há de ótimo na banana quando madura, e deduzi o horror existente nessa espécie de contenção da explosão vegetal da banana, e do mirramento de um processo belo que fica achatado e liquidado no meio da sujeira. Há nisso uma inversão que é horrorosa.

Como conheci esse horror? A partir do conhecimento daquilo que na banana é ótimo. Esse ponto de partida nos leva exatamente à sagacidade para o péssimo. Não é ingenuidade, isso leva à sagacidade.

A Fé nos torna mais inteligentes

Para concluir estas reflexões, levanto uma questão: Tudo isto é pensamento; entretanto, é “ploc-ploc”(4)? Qual a diferença entre o “ploc-ploc” e o verdadeiro pensamento?

Tomemos a contemplação puramente especulativa e reunamos a ela a contemplação de segundo grau, de caráter prático, e teremos o não “ploc-ploc”.

O homem verdadeiramente não “ploc-ploc” é aquele que, colocado diante de qualquer coisa concreta, sabe antes de tudo vê-la, conhecê-la. Ele presta atenção devagar no que os seus sentidos lhe mostram; põe a luneta para ver com seus próprios olhos, e estetoscópio para auscultar com seus ouvidos, pois quer conhecer a informação dos sentidos com cuidado, com contentamento, com enlevo. Depois ele raciocina, forma princípios e tem a facilidade de passar do princípio para a coisa concreta e desta para o princípio, com a naturalidade com que um raio sai do Sol e pousa na Terra. Quer dizer, o raio chega à Terra sem pressa, sem fadiga, sem torcida, não se atrasa nem se adianta. Quando atinge uma superfície qualquer, é sem preguiça nem corre-corre. Ele transpôs não sei que distâncias, chegou ali, pousa e brilha.

Assim deve ser o pensador: passa da consideração teórica para a prática, da prática para a doutrinária. Deus não é uma ideia, mas o Ser vivo por excelência. Não somos, portanto, adoradores nem seguidores de uma mera ideia.

Entende-se, assim, o Céu com a visão de Deus face a face, unida à cognição do Céu empíreo e de todas as maravilhas da Criação através dos sentidos. Como tudo é equilibrado e maravilhoso! Como ser católico eleva a alma!

Eu sustento que a Fé nos torna mais inteligentes. Raciocinar essas coisas faz com que a inteligência cresça. Oxalá isso seja para conhecermos mais a Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, a Santa Igreja Católica e a Contra-Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/1/1981)

Revista Dr Plinio 248 Novembro de 2018 (Reflexões Teológicas)

 

1) Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos.

2) Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (*1754 – †1838). Bispo, político e diplomata francês.

3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica. II-II, q. 180, a. 4.

4) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

Rainha de todos os Santos

Eleita pela Sabedoria divina como Soberana de todo o universo, Nossa Senhora é, por isso mesmo, Rainha de todas as ordenações dispostas por Deus nos vários âmbitos da Criação, de modo particular no que tange a natureza humana. E nesta, quando fiel à moral, a ordem corresponde à virtude e, portanto, a uma certa forma de santidade.

Pode-se dizer, pois, que a Senhora de todas as ordenações é, em conseqüência, a Rainha de todas as santidades que existiram, existem e ainda existirão, possuindo-as nos seus píncaros respectivos — “Regina Sanctorum Omnium”.

Plinio Corrêa de Oliveira

Lição de coragem e de grandeza

A comemoração dos fiéis defuntos, ensina Dr. Plinio, “encerra para nós um alto significado, pois além de ser o dia no qual rezamos de modo especial pelos que faleceram e porventura se encontram no Purgatório, é também a data em que a Igreja, com seu tato peculiar e inconfundível, nos torna presente a realidade da morte.

“Dir-se-ia que a Santa Igreja, a cada 2 de novembro, faz abrir um precipício sob nossos pés e nos revela uma multidão de almas em estado de pena, de sofrimento, de miséria, não tendo ido diretamente para o Céu. É-nos dado medir, assim, algo da destruição provocada pela morte.

“Certo, essas almas se salvaram. O Paraíso as aguarda. Porém, devem cumprir uma penitência pelas imperfeições consentidas, necessitam purificar-se de defeitos, de faltas cometidas nesta vida. Purificações mais ou menos dolorosas, mais ou menos longas, conforme o grau de culpa. E essas almas não podem pedir a própria libertação. Por um superior e misterioso desígnio de Deus, dependem das orações que se fazem por elas na Terra.

“E a Providência dispõe maravilhas para que tais almas sejam sufragadas. Quantas visões e revelações, quantos fatos admiráveis, quanta doutrina proposta pela Igreja sobre as almas do Purgatório incentivam os fiéis a entender o sentido dessa devoção e a se empenhar nas súplicas pelo fim daquele padecimento! Quantas obras pias realizadas nesse intuito, e quantas indulgências concedidas pela Santa Sé premiando e abonando semelhantes atos de caridade cristã!

“Bela ao extremo é essa solicitude materna da Igreja para com as almas de seus filhos que morreram e ainda padecem. Belos e profundos os pensamentos contidos na liturgia a respeito desse estado transitório entre a Terra e o Céu.

“De quando em quando devemos meditar sobre essas verdades, sobre o Purgatório, sobre a morte, para compreendermos o que há de intensamente real na advertência dita pelo sacerdote na Quarta-feira de Cinzas: Lembra-te homem de que és pó e ao pó hás de tornar. Não somos senão pó e ao pó voltaremos. Essa ideia nos leva a atinar para a exata dimensão de todas as coisas desta vida. Que são os inúmeros desejos e volições que nos movem, quando calculamos o nosso valor autêntico? Quando pensamos que daqui a um dia ou uma hora podemos já não pertencer a este mundo, comparecermos diante de Deus, ser julgados e destinados à expiação das chamas do Purgatório?

“Ora, sem essas incertezas, não apreciaríamos a grandiosidade da vida humana. Nada é atraente, nada é bonito nesta existência, a não ser com um pano mortuário de fundo. Pois é pelo contraste que o homem conhece as realidades desta Terra. E é só pela oposição à essa miséria fundamental da morte que entendemos como é pouco tudo quanto aqui desejamos, e como é grandioso esse outro destino que nos espera.

“Por isso mesmo, devemos também considerar a morte com serenidade, com magnitude, inclusive no que ela tem de aflitivo e de tremendo, pois é igualmente a expressão de nossa imensa importância. Se somos entes racionais capazes de passar por tamanha tragédia, somos capazes de grandeza tal que, sem dúvida, uma existência mais magnífica nos está reservada.

“Essas e outras considerações nos vêm a propósito do dia dos mortos. É a lição que nos oferecem a morte e os fiéis defuntos. Incomparável lição de profundidade, de força de alma, de coragem, de grandeza. Quem não a aproveita e não a ama, não sabe contemplar a Deus na sua afabilidade, sua meiguice, na sua majestade e sua justiça sem fim.

“Peçamos, portanto, pelas almas do Purgatório. E roguemos a elas, nos obtenham a compreensão, o amor e o entusiasmo por todas as sombras com as quais a morte enriquece a estética do Universo e os verdadeiros panoramas da vida humana.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Proclamando as verdades sem rebuços

Em suas pregações, o Beato Ângelo de Acri increpava os pecados praticados por muitos de seus ouvintes, e depois os animava para terem muita confiança em Nossa Senhora. Como na Vendée, também na região evangelizada pelo Beato Ângelo surgiu um movimento contrarrevolucionário que lutava a favor da Santa Sé.

 

No dia 30 de outubro, temos a festa do Beato Ângelo de Acri. Os dados biográficos que serão comentados foram tirados da obra Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Infatigável apóstolo do Sul da Itália

Ângelo, que seria o grande e infatigável apóstolo do Sul da Itália no decorrer do século XVIII, nasceu no dia 19 de outubro de 1669, em Acri, na Calábria. Filho de operário, ingressou na Ordem dos capuchinhos, onde foi missionário por cerca de quarenta anos.

Seus sermões atraíam milhares de ouvintes e o número de conversões era impressionante. Recebeu uma especial graça para conduzir os infiéis à Fé, e previu os males que a Filosofia do seu século faria à Religião.

Contam seus biógrafos que o seu primeiro sermão deveria ser pregado na Quaresma. Ângelo preparou-se longamente, estudando e planejando. Foi um fracasso. Entristecendo-se sobremaneira, implorou a Deus que o socorresse, fazendo-lhe ver o que Ele queria.

Ouviu então uma voz misteriosa que lhe disse: “Eu sou Aquele que é. Nada temas, Eu te concederei o dom da palavra e teus trabalhos jamais serão inúteis. Para o futuro, pregarás somente num estilo simples, a fim de que todos possam compreender bem as tuas palavras”.

O Bem-aventurado compreendeu, então, o que era importante realmente. Queimou os sermões que preparara e desde aquele dia só consultou a Bíblia, não abandonando também o seu Crucifixo.

Guardião do convento de Acri, Ângelo mais tarde foi provincial. Sua vida foi toda de grandes e frutuosos trabalhos apostólicos, e cheia de milagres. Atravessava correntes de água a pé enxuto e, muitas vezes, em tempo incrivelmente curto, venceu longas distâncias para confessar um doente ou pregar em longínquas aldeias. Cego, durante um período de sua vida, recuperou a vista para celebrar a Missa e rezar o Ofício.

Aos 30 de outubro de 1739, com setenta anos, entregou a alma ao Criador, que servira sem descanso. Foi beatificado por Leão XII, em 1825.

O século da elegância, da distinção, do bom gosto…

Vemos resumida aqui a vida de um desses padres famosos que deram o perfil ao missionário da Ordem dos capuchinhos, os quais constituíram um dos exércitos mais adiantados e eficientes da causa contrarrevolucionária da Igreja, no século XVIII.

Para compreendermos bem isto, precisamos ter uma ideia do século XVIII, quais eram seus desmandos, como também suas qualidades, e nos colocarmos um pouco em face do que era a Ordem Capuchinha e sua missão especial naquele tempo.

Aquele foi o século no fim do qual se deu a Revolução Francesa, em 1789, estendendo-se, conforme se queiram contar os prazos, até 1821, com a morte de Napoleão. Foram, portanto, mais ou menos trinta anos de revolução contínua, uma das maiores revoluções da História. Mas esta enorme Revolução, durante todo o século XVIII, não deixou de fermentar continuamente, de maneira que, tendo recebido maus fermentos de protestantismo do século XVI, e no século XVII, no século XVIII, estes fermentos chegaram a uma espécie de intumescimento enorme que se fixava de preferência em determinadas classes sociais e se caracterizava com traços especiais.

O século XVIII foi, de um lado, a época na qual certos predicados de civilização, nascidos da Igreja Católica, chegaram ao seu pleno apogeu. Foi o século da elegância, da distinção, do bom gosto, das belas maneiras, de grandes literatos, de grandes artistas, da vida de corte levada ao seu mais alto grau de florescimento.

Mas como todas as coisas neste mundo, mesmo quando são boas, só conseguem evitar a sua própria deterioração e putrefação quando são profundamente unidas à Igreja, e como, infelizmente, no século XVIII havia um divórcio cada vez maior entre a sociedade e a Igreja, aconteceu que essas qualidades nascidas da Civilização Cristã eram deterioradas pela impiedade do século.

…deteriorou-se pela fragilidade, moleza, sentimentalismo

Temos, então, este paradoxo: foi o século da delicadeza por excelência, mas de uma excelência deteriorada até a fragilidade, a moleza e a uma espécie de exagero de sentimentalismo. Foi o século da distinção, mas também da sensualidade. Nós poderíamos colocar em colunas as várias qualidades e as antíteses destas. Uma espécie de protuberância da luz primordial(2) e, ao mesmo tempo, de explosão do pecado capital da Europa. No final do século XVIII, naturalmente, as qualidades deterioradas estavam sobrepujando de muito as boas. Como resultado, eclodiu a Revolução Francesa.

As classes sociais principalmente afetadas por esta deterioração eram as elites. Há um provérbio antigo o qual diz que o apodrecimento do peixe começa pela cabeça. Assim também a putrefação de qualquer sociedade tem seu início nas classes mais altas.

Naquele tempo, quais eram essas classes? O clero, que era a primeira; a nobreza, segunda classe social; e depois a alta burguesia, muito rica e, por isso, muito chegada à nobreza, tendendo mesmo a se misturar com ela.

Clero, nobreza e burguesia entraram em decadência

É doloroso dizer, mas o clero estava tão trabalhado pelo espírito do tempo, pelo ateísmo, pela libertinagem, pelo gosto dos costumes depravados, que não era raro encontrar padres, bispos e até cardeais declaradamente ateus. Recebiam cargos eclesiásticos que, na sociedade daquele tempo, eram considerados muito rendosos, e levavam depois uma vida absolutamente como qualquer civil.

Os conventos de freiras eram um pouco mais moralizados do que os de frades. Mas mesmo aqueles eram uns depósitos de solteironas. As famílias eram muito numerosas, e as da nobreza muitas vezes não tinham dinheiro para manter no estado nobiliárquico todas as suas filhas. Então, empurravam para as Ordens religiosas as filhas que não tinham condições financeiras para manter. Estas, portanto, ingressavam nas Ordens religiosas sem vocação. Eram conventos ricos que proporcionavam uma vida muito farta e cômoda às freiras que, podendo manter relações sociais, levavam uma vida mundana e tranquila, sem preocupações econômicas.

Os homens da nobreza conservavam a valentia dos antigos tempos, sendo habitualmente muito bons guerreiros. Na sociedade, eram fidalgos brilhantes, mas também profundamente afastados da prática da Religião e entregues aos prazeres da vida.

A alta burguesia procurava macaquear a nobreza como podia, meter-se nela por meio de casamentos com membros da nobreza empobrecida, de maneira a subir. Assim, a burguesia, que fora no século XVII uma classe muito moralizada, estava se contaminando com todos os defeitos da nobreza.

Deus suscita Ordens religiosas para preservar o povo dos erros da Revolução

Contudo, o povo ainda não tinha sido penetrado a fundo por todas essas deformações inerentes à impiedade, ao ateísmo, ao enciclopedismo e aos erros filosóficos e morais do século XVIII. Sobretudo, quando se tratava do povinho que morava nas cidades médias e pequenas ou no campo.

Tratava-se, portanto, de realizar a contraofensiva na Igreja, num sentido contrarrevolucionário, em duas linhas completamente diferentes: na alta sociedade e no povo.

Atuando junto à alta sociedade houvera antigamente a Companhia de Jesus que, de fato, nos tempos heroicos da Contra-Reforma, prestou altos serviços designando seus membros para serem confessores de reis, príncipes, cardeais, papas, grandes senhores feudais, burgueses influentes e, com isto, concorrendo para orientar bem a alta sociedade. Os jesuítas possuíam grandes intelectuais, escritores, oradores e muito bons políticos. Porém, ao longo do século XVII, a Companhia de Jesus entrou em decadência e no século seguinte foi fechada, em parte por suas qualidades, em parte por seus defeitos.

A alta sociedade rolava, assim, para o caminho da apostasia, não sendo suficiente a ação de grandes Santos, como Santo Afonso Maria de Ligório e o Bem-aventurado Inocêncio XI, para conter a avalanche da impiedade.

Fazia-se necessária uma Ordem religiosa que tratasse de segurar pelo menos o povinho dentro da prática da Religião. Para isto, Deus Se utilizou, em boa medida, da Ordem dos capuchinhos, que constituía o ramo mais austero da família franciscana, e cujos pregadores eram missionários voltados principalmente a evangelizar o povo. Para isso, deveriam ser pregadores populares, dizer as verdades claramente e representar, por todo o seu modo de ser e de agir, a Religião Católica nas virtudes que o século negava. De fato, no século XVIII, a Ordem capuchinha brilhou por vários missionários dotados dessas qualidades, os quais concorreram muito para evitar que o povinho se tornasse revolucionário.

Beato Ângelo operou um número enorme de conversões

Vemos, por esta narração da vida do Beato Ângelo de Acri, como ele era um homem extraordinariamente adornado de qualidades para isso. Deus o suscitou para uma parte da Europa até havia pouco tempo era a menos desenvolvida da Itália, ou seja, o Sul do país, a Calábria, a ilha de Sicília. Um território montanhoso, com acessos difíceis, levando-se muito tempo para as locomoções, com muito banditismo que atacava os transeuntes quando se deslocavam de um lugar para outro, dificultando as missões se exercerem corretamente.

Ele, um homem do povo, quis começar como pregador fazendo uma grande homilia, mas a Providência lhe deu uma grande lição. Nada de sermões rebuscados. Estes devem ser simples, dizendo clara e diretamente as verdades. Ele, que preparara um portentoso sermão, foi fazê-lo… grande fracasso. Aí ele tomou a lição, chorou aos pés de Deus e Ele lhe fez conhecer que deveria fazer pregações simples, inspirados na doutrina da Igreja, portanto também na Revelação – da qual a doutrina da Igreja não é senão uma explanação e uma interpretação autêntica –, e que precisaria dirigir-se ao povo com linguagem compreensível por todo mundo, falando mais pela piedade do que pelos grandes argumentos. Porque o pregador popular deve ser assim.

Depois Deus fez com que as suas palavras fossem tocadas pela graça, produzissem um número enorme de conversões. Essas conversões não vinham das sublimidades dos argumentos por ele invocados, mas do contágio da santidade do pregador, da solidez de sua doutrina, da simplicidade de sua linguagem, e do efeito que sua personalidade operava sobre os ouvintes.

De fato, sua santidade era contagiosa; os ouvintes escutavam suas palavras e ficavam entusiasmados, convertendo-se em grande quantidade.

No que consistia essa conversão? Eram pessoas que, por ignorância e falta de bons pastores, tinham abandonado a Religião. E o Beato Ângelo as levava em quantidade de volta à prática da Religião. Tratava-se, portanto, de pessoas católicas, na sua raiz, mas esfriadas. Portanto, eram esses católicos tíbios que ele convertia.

A Providência lhe concedeu o dom dos milagres

Para tornar a sua pregação mais eficiente ainda, Deus lhe concedeu o dom dos milagres. Por exemplo, o mundo convenciona como sendo grande o milagre da travessia do Mar Vermelho, a pé enxuto, pelos judeus. Ora, o Beato Ângelo de Acri, por diversas vezes, aos olhos do povo atônito, atravessava cursos de água, torrentes, rios, e chegava seco do outro lado.

Ou então se dirigia com rapidez a lugares de acessos extremamente complicados. As pessoas viam que o frei tinha percorrido rapidamente uma distância enorme, quando nenhum cavalo podia levar um cavaleiro nessa velocidade. Logo, o milagre estava patente.

Podemos imaginar a impressão disso sobre o povinho, que não entende muito os argumentos apologéticos, mas que, vendo o pregador bom operar esses milagres, ficava entusiasmado e aclamava: “Deus está entre nós!” Aplausos e estava feita a conversão.

Que halo de santidade se constituía em torno desse pregador! Um homem alto ou baixo, magro ou gordo, pouco importa, revestido de simples burel franciscano, próprio a quem abandonou todas as pretensões da Terra, com o Rosário em cujo ponto de junção das três partes encontra-se o crânio de uma caveira, para indicar que o capuchinho deve ter a morte constantemente diante dos olhos. Grandes jejuns, sandálias com os pés aparentes, mortificação, abandono de todas as coisas, grande barba, numa época em que ninguém a usava, ou até mesmo era ridículo e feio deixá-la tão longa. Tonsura, com aqueles dois sulcos próprios dos franciscanos da era constantiniana.

Nos sermões atacava principalmente os erros da época

Imaginem a impressão causada por tudo isso numa igrejinha qualquer encarapitada num monte da Calábria, onde havia uma aldeiazinha com cem, duzentas pessoas, ao ser noticiada a vinda do padre! O sino da aldeia tocava, todos os camponeses dos arredores vinham trazendo suas crianças. Então, faziam uma grande concentração na cidade para ouvirem embevecidos a palavra do frade. Noitinha, mês de Maria, a igreja iluminada com poucas velas, porque eram pobres e não tinham dinheiro suficiente para fazer um culto estupendo. Começavam, presumivelmente, com cânticos, entoados por bonitas vozes afinadas, como as há no Sul da Itália; um cântico esplêndido, por exemplo, uma ladainha em honra de Nossa Senhora.

De repente, cessa tudo e o frei, tido como santo, sai da sacristia e sobe ao púlpito arranjado segundo o clássico sistema capuchinho: o Crucifixo fixado no púlpito, um pouco em diagonal. O pregador se ajoelha, enquanto o coro canta a Ave-Maria. Percebe-se que o Santo reza. O público fica à espera de que, a qualquer momento, ele se levante e realize um milagre. Frei Ângelo se ergue com singeleza e começa a falar, como diz a ficha, atacando principalmente os erros da época e exercendo aquela forma de eloquência popular e máscula, que caracterizou os capuchinhos, a qual consistia em larga medida não apenas em ensinar o bem, mas em vituperar o mal.

Por vezes, segundo a praxe dos capuchinhos do tempo, dirigia-se às pessoas do auditório para censurar algum costume ou vestimenta imoral: “A senhora ali, vestida com tal traje, se dá conta de que esse decote é uma ofensa a Deus? A senhora não tem vontade de se cobrir com o xale de sua amiga que está ao lado? Tenha a bondade de fazê-lo”. Isso, no povo italiano do Sul, muito vivo, produzia comentários: “A Pepa agora ficou com a cara no chão!”

Ou então desvendando o estado de alma de um ou outro ouvinte: “O senhor pensou tal coisa, mas não é verdade”. O indivíduo formula por dentro uma objeção e o pregador diz: “Também isto que o senhor acaba de cogitar é errado, por tal razão”.

Após esbordoar o auditório, falava da confiança em Nossa Senhora

Compreende-se o impacto disso sobre a população. O zelo aumenta, o entusiasmo ferve, acentua-se a sensação de que Deus está presente, enfim mil movimentos interiores da alma se fazem sentir.

Depois de ter esbordoado bem seu auditório, começava então a parte da misericórdia, da bondade: “Não desespereis, confiai em Nossa Senhora, Mãe de toda bondade!” Cita algum episódio bonito do Evangelho, e termina recomendando a oração e a confiança ilimitada em Deus. Choro e contrição. O padre espera acabar a bênção do Santíssimo Sacramento, vai para o confessionário e fica às vezes até de manhãzinha, na hora da Missa, ouvindo os pecados daquela gente e dando a absolvição, recomendando penitência.

Três, quatro dias da estada de um padre assim numa paróquia, e ela estava regenerada. Durante anos citavam-se de memória trechos de seus discursos. Contavam-se casos narrados por ele, apontavam-se milagres… A passagem daquele padre por lá era como uma bênção que deixava um perfume durante anos, às vezes ao longo de uma geração inteira. Assim passava um capuchinho do grande estilo e da grande clave por aquelas populações.

O movimento dos sanfedistas

Os resultados eram apreciáveis. Por exemplo, São Luís Maria Grignion de Montfort, grande missionário, pregou na Vendée, e aquela região da França veio a ser foco da reação contra a Revolução Francesa. Sabe-se menos frequentemente que houve uma espécie de Vendée nessa zona evangelizada pelo Beato Ângelo de Acri, que foi o movimento dos chamados sanfedistas, camponeses que lutavam contra os erros da Revolução e a favor da Santa Sé, tendo à sua frente o Cardeal Fabrizio Ruffo, que armou e manteve uma Cruzada no Sul da Itália, esbordoando violentamente os partidários da Revolução. Eram as pregações de homens como o Beato Ângelo que produziam essas transformações e preparavam esses lindos movimentos de alma.

Compreendemos melhor, através desses exemplos, o disparate dos que apresentam os meios clássicos de evangelização da Igreja como decrépitos, peremptos, e proclamam que se a Igreja não se modernizar completamente e não abandonar os seus velhos métodos, não terá fecundidade alguma. Esses, muitas vezes, apresentam como argumento sua própria experiência, dizendo: “Sermão, hoje em dia, não adianta mais. Olhe o resultado do meu sermão! Confissão, nenhum efeito produz. Veja o que acontece quando eu atendo confissões…”

Tem-se vontade de responder: “Não percebe que o mal está em você? É claro, um sermão pregado sem zelo, sem entusiasmo, sem dedicação, à maneira de um burocrata insípido, evidentemente não vai mover ninguém. Para um sermão mover alguém, precisa ser pregado por quem tem Deus consigo. Ora, se você não está junto de Deus é um mundano pervertido com as máximas do século. A quem espera converter? Um perverso não converte, antes perverte quem o escuta. Fosse você um homem como o Beato Ângelo de Acri, veria como de sua pregação sairiam outros resultados. O mesmo se aplica ao Sacramento da Confissão. Esses meios não envelheceram. O problema é que em você entrou em decrepitude a graça. Se você abusa do seu sacerdócio, pelo menos não blasfeme contra ele cunhando-o de ineficaz; reconheça que você não o usa como seria de desejar”.

O traje do capuchinho simbolizava sua ruptura com o mundo

Tivéssemos mil desses Beatos, o Brasil não seria uma outra nação? Nem precisaríamos de televisão para isto. A televisão supre isto? Será que ver um Santo pela televisão é o mesmo que o contemplar na igrejinha velha, no púlpito cuja escada estala quando ele a sobe, mas num contato pessoal de alma a alma, diretamente? Muito mais eficaz do que gravar discos ou filmes para o cinema é a presença pessoal do homem de Deus, com a ação pessoal que ele desenvolve. É isto que verdadeiramente move os homens.

Não sou contrário à televisão católica. Sobretudo não sou contrário à imprensa católica. Isto fica patente por várias atividades que tenho exercido. Mas a própria imprensa, nem de longe, produz o efeito da ação pessoal. Esta é a primeira e a mais eficaz das ações, e é insubstituível. Quando um clero é incapaz de exercer a ação pessoal, ele não é capaz de absolutamente nada. Porque este é o ponto essencial da atuação do clero.

O capuchinho produzia um efeito próprio porque o seu traje simbolizava sua ruptura com o mundo. Era um traje em que estava anunciado que ele não tinha nada a ver com o século. Podemos imaginar aquela época em que tantas pessoas usavam roupa com seda magnífica, veludos estupendos, bordados a ouro e prata, formas elegantíssimas, chapéus com plumas, joias magníficas, carruagens que pareciam andores, calçando sapatos de verniz e, sendo nobre, com saltos vermelhos. De repente, chega um capuchinho com aquele burel rústico, pés de fora, e dizendo todas as verdades sem rebuços.  Que efeito uma coisa desta produzia!

Devemos abandonar a maldita ideia de que se arrastam os outros, sobretudo, com sorrisinhos e amabilidades de caixeiro-viajante. A habilidade para conquistar uma alma não é a mesma que precisa ter um indivíduo para vender um canivete, uma peteca ou uma laranja. São ações completamente diferentes.

O gemido do mau é uma manifestação de admiração tão segura quanto o aplauso do bom

Precisamos, pois, entrar nos ambientes, como arautos, querendo apenas conquistar as almas para Deus e, portanto, proclamando a verdade à maneira de sinos no alto de um campanário, cujos sons descem e a cidade inteira ouve.

Poder-se-ia objetar que essa atitude não atrai a admiração de ninguém.

Para responder a essa objeção é preciso definir o que é admiração. Habitualmente se tem a respeito da admiração um conceito dos mais primitivos. São objeto de admiração as pessoas que provocam elogios.

Na realidade, o sentimento mais raramente externado pelas pessoas é o da admiração. Pode-se até admirar e ficar quieto, mas a palavra elogiosa não é o sintoma necessário da admiração, porque muitas vezes as pessoas elogiam, mas de fato não admiram. Enaltecem alguém porque é moda, por causa de conveniências de toda ordem.

Qual é o verdadeiro sintoma de admiração? No fundo é admirado aquele que atrai o olhar, em quem se fixam as atenções e provoca a reflexão. Este conseguiu um primeiro grau de admiração. Quando a palavra dita não é aceita, mas se torna algo à maneira de uma batata quente na cabeça do ouvinte, o qual continua durante muito tempo a refutar quem a pronunciou, essa é a prova de que este foi admirado. Ele marcou com o fogo dele aquela alma. Quem disse a verdade pode se tornar objeto de campanha de silêncio, ser criticado, eventualmente expulso. Isso acontecerá precisamente por ele constituir uma dificuldade para a consciência de todo mundo. Este é admirado.

Por certo, a admiração não está, necessariamente, em se fazer expulsar, mas certamente ser expulso, em certas circunstâncias, é uma sólida prova de admiração. Nosso Senhor Jesus Cristo foi admirável em tudo. Ora, o Profeta Simeão disse que Ele tinha sido posto em Israel para que se conhecessem as cogitações de muitos corações. Realmente, assim faz o homem verdadeiramente admirado. Ao bom, ele edifica, deixando na alma a marca da virtude; ao mau, ele abala e incomoda. O gemido do mau é uma manifestação de admiração tão segura quanto o aplauso do bom.

Se tivéssemos tudo isso bem presente no espírito, como seria diferente o nosso apostolado!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 85-87.

2) Termo cunhado por Dr. Plinio para designar a aspiração que todo ser humano tem para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual dará sua glória particular ao Criador. Cf. Revista Dr. Plinio n. 54, p. 4.

Mãe do Perpétuo Socorro

Como onipotente Soberana de todo o universo, por vontade de Deus, Nossa Senhora tem o poder de nos auxiliar e quer inesgotavelmente nos socorrer em todas as nossas necessidades. Logo, se pedirmos, Ela nos socorrerá.

Para o êxito de nosso apostolado, para o êxito de nossa vida interior, precisamos, a cada passo, da proteção de Nossa Senhora. E Ela a todo momento está disposta a nos conferir os auxílios mais  inesperados, mais súbitos, mais espetaculares.

Ela é a Mãe do Perpétuo Socorro. E o perpétuo socorro é um amparo, é um ato de misericórdia, é um ato de piedade perpétuo, quer dizer, ininterrupto, que não se detém nunca, que não cessa nunca, que não se suspende nunca. Nunca significa em nenhum minuto, em nenhum  lugar, em nenhum caso: por pior que seja a situação de quem A invoque, a Mãe de misericórdia o socorrerá.

Por isso, quanto mais nossas almas estiverem tentadas, tanto mais devemos rogar à Santíssima Virgem. Ela é a Rainha de toda a criação e pode, quando queira e onde queira, derrotar fragorosamente o espírito das trevas, impondo a sua própria soberania.

A fim de nos incutir confiança nas horas das tentações, e de nos fazer compreender que a estas pode suceder a qualquer instante uma singular e aprazível consolação, Maria pratica fulgurantes ações em favor das almas, contra Satanás. Assim, estejamos certos de que o demônio mais insistente, mais persistente, mais renitente, nada é para aquele que invoca o incansável auxílio da Mãe do Perpétuo Socorro.

Plinio Corrêa de Oliveira

Nossa Senhora – Céu de Virtudes

Eu venho tão do alto… E posso tudo. Em Mim reside o reflexo perfeito da bondade incriada e absoluta. Aquilo que Eu quero doar porque sou boa, aquilo que desejo conceder porque sou Mãe, aquilo que posso dar porque sou Rainha, isso, meu filho, Eu dou!

Eu não te digo uma palavra, mas faço algo muito melhor que falar a teus ouvidos… Eu te comunico uma graça que murmura no fundo de tua alma.

Sentes essa paz que transborda de Meu coração, que te envolve, te penetra e te cumula? Essa paz que nenhuma alegria terrena pode trazer, e que te faz sentir uma tranqüilidade interior, na qual ressoa minha voz, inaudível a teus sentidos: Tudo está resolvido! E aquilo que não estiver, resolver-se-á. Confia em Mim, Eu acertarei tudo.

As aparências podem não ser essas. Mas… Aceita esse sorriso, percebe esse sussurro, contempla essa bondade… E não duvides jamais!

Plinio Corrêa de Oliveira

O comércio das almas na sociedade humana

Prosseguimos com a publicação de um artigo inédito, redigido em 1960 por Dr. Plinio. No fim do capítulo anterior, ele explicava como cada homem é influenciável por seus semelhantes, e procura  imitar alguns deles. Se admira e imita pessoas virtuosas, cresce em perfeição e aumenta sua semelhança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas. Por isso, imitar e servir de exemplo são obrigações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento das almas, inerentes à sua vida social. Dr. Plinio estende suas observações a esse respeito perguntando-se: como se dá esse comércio entre as almas? Em outros termos, qual sua parte na existência social dos homens? Vejamos a resposta.

 

Quando duas pessoas estão em contato entre si, por mais que sejam desiguais em inteligência, instrução, ou força de persuasão, estão em condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra. Maravilhoso instrumento para a expressão da alma Todas as nossas idéias, mesmo as mais abstratas, todas as nossas emoções, mesmo as mais subtis, são suscetíveis de uma expressão adequada, pela ação primordial da palavra em si mesma, completada e enriquecida pela inflexão da voz, pela expressão do olhar, pelos gestos, pela atitude do corpo, pelo porte, e até pela maneira de caminhar.

Virgílio nos diz que, pelo simples modo de andar, Dido se mostrava uma deusa: “et incessu patuit dea…”. O homem ainda acentua o poder de expressão de seu corpo por meio do traje e do ornato. Esse poder chega a ser tão grande que é considerado, às vezes, aliás erroneamente, como irresistível.

Quando essa transparência da alma em todo o modo de agir e de ser do corpo se torna nítida, e sobretudo quando tal transparência revela uma alma firme, clara, lógica, reconhecemos estarmos  em presença do que se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para dirigir, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É realizar, dentro do mero campo natural, como que uma transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma, prefigura meramente natural, mas esplêndida em si mesma, da transfiguração sobrenatural, incomparavelmente mais radiosa e mais nobre que os corpos gloriosos terão no Céu, e de que Nosso Senhor, no Tabor, assim como alguns santos, nos deram uma visão sensível nesta terra de exílio.

O homem pode comunicar expressão aos seres inferiores

As formas, as cores, os sons, os odores, os sabores têm uma analogia – que não é meramente convencional —- com as disposições do espírito humano. E, por isso, as palavras que servem para designar estados da alma humana são correntemente empregadas para designar por analogia as propriedades de seres animais, vegetais ou minerais. Pode-se falar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um buquê de flores ou de um panorama, do mesmo modo pelo qual se fala do riso alegre de uma moça ou de uma criança. Pode-se falar da majestade de um rei, como da águia, ou do trovão. Os exemplos disso poderiam ser multiplicados quase ao infinito.

Pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores, comunicando-lhes uma determinada expressão. Assim, é indiscutível que as espécies animais domesticadas recebem como que certa  amenidade de comportamento, certa compostura, que as distingue das congêneres selvagens por diferenças muito semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do bárbaro. Certos animais, como os gatos de Angorá ou os lulus da Pomerânia, tomam uma espécie de distinção evidentemente afim com os ambientes humanos em que vivem.

Uma ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida pelos homens sobre certas plantas, nas quais se distinguem as espécies selvagens e as cultivadas, antes diríamos, as “culturadas”. Certa  expressão de alma, o homem pode comunicá-la até a seres perfeitamente inanimados: quando faz, por exemplo, um quadro que terá uma expressão que de nenhum modo preexistiu na tela, no pincel e nas tintas.

E tal é a alma humana que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qual expressão a todos os objetos de que se cerca. Porque somos feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem ao corpo falem também à alma. Um móvel apenas cômodo é o que serve só ao corpo; um móvel elegante é o que serve também à alma. Um tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao clima, satisfaz o corpo.

Mas a alma tem exigências próprias e pede que ele seja belo. Essas observações nos conduzem a uma noção essencial, que é a de “ambiente”. Os ambientes exprimem estados de alma Quando às vezes entramos numa sala, parece-nos sentir a personalidade de quem a decorou. Dizemos que tem ambiente. O que quer dizer aí “ambiente”? É a expressão de alma que, pelo jogo das formas e das cores, pela disposição e qualidade dos móveis, uma pessoa conseguiu comunicar a objetos materiais.

Nisto, como em tudo, o homem imita a Deus. Quando contemplamos certos panoramas marítimos; quando à noite olhamos para o céu, sentimos uma expressão de alma que se desprende deste mundo: é o ambiente criado por Deus, e pelo qual Ele se exprime a nossos sentidos.

Muito mais fácil ainda nos seria exemplificar com os sons, os perfumes, os sabores. Diz o Eclesiástico (31, 36) que o vinho, bebido moderadamente, alegra a alma e o coração. A Igreja se serve da música para formar nossa piedade. O aroma austero do incenso lhe parece adequado a ser respirado por nós na oração. Os seus moralistas, pelo contrário, sempre nos premuniram contra os perfumes voluptuosos e capazes de excitar a moleza e a luxúria. Consideremos agora o ambiente em relação com o fim essencial da contemplação, que é conduzir-nos a Deus.

Se os estados de alma são suscetíveis de se exprimirem assim, está implícito que as virtudes e os vícios também. Eles se manifestam com freqüência na face humana, na inflexão de voz, no gesto, no andar. Eles são suscetíveis de marcar com sua nota própria tudo quanto o homem faz e produz. A intemperança ou a temperança de um artista não se nota só no fato de explorar ou não o nudismo. O ritmo de uma música pode em si mesmo ser lascivo; como a combinação de certos perfumes; ou a complicação de certos sabores. A falta de siso não se exprime só pelo sentido das palavras, mas pelo desalinho do gesto, pela extravagância das linhas ou das cores de um traje, de um móvel, de um edifício.

Neste ponto, como em outros, o homem é sujeito a erro, e pode taxar de voluptuosas ou desatinadas coisas que só lhe parecem tais porque não está habituado a elas. Não obstante, uma certa volúpia ou extravagância pode estar realmente na coisa produzida por um homem voluptuoso ou extravagante. Qualquer que seja o ambiente, precisamente porque ele exprime um estado de alma, não pode ser moralmente indiferente: ou será bom, e favorecer á as almas na consideração e assimilação de Deus; ou será mau, e agirá em sentido oposto.

É isto o que se poderá dizer da honestidade ou desonestidade natural dos ambientes. Será lícito caminhar mais um passo, e falar em ambientes especificamente cristãos? Parece-nos que sim. A alma tocada pela graça adquire uma perfeição sobrenatural que por vezes se espelha na face. A hagiografia pulula de testemunhos a tal respeito. O que foi a Transfiguração senão isto? Ora, a pintura e a escultura podem exprimir algo de semelhante. E certos edifícios em que essas esculturas e vitrais se encontram têm com eles uma tal harmonia que parecem, à sua maneira, exprimir a mesma “irradiação” de uma alma misticamente unida a Nosso Senhor Jesus Cristo. O heroísmo dos cruzados foi tipicamente cristão, e, pois, diverso do heroísmo meramente natural de um legionário romano. É possível considerar o ambiente formado numa paisagem por um possante castelo medieval, sem ter a impressão de que algo de tipicamente cristão nos toca a alma?

Não queremos estender por demais este artigo. Por isso não fazemos senão assinalar que, pelos mesmos motivos pelos quais se poderia falar de um ambiente especificamente sobrenatural e cristão, poder-se-ia falar de um ambiente especificamente preternatural e diabólico.

A formação da “alma coletiva”

Quando a vida social das almas é regular e intensa num determinado grupo humano — uma família, digamos, ou uma sociedade —, constitui-se aí uma como que alma coletiva; ou seja, um conjunto  de convicções, algumas das quais prezadas como particularmente importantes; conseqüentemente, uma mentalidade coletiva, um estado de espírito comum, e exercendo uma influência especialmente forte sobre todos os membros. O vocabulário se define pelo uso mais insistente de certas palavras, ou expressões, que até tomam por vezes, dentro do grupo, uma tonalidade específica. Não é raro aparecerem também neologismos. De outro lado, o modo de trajar, de falar, de comportar-se, todas as preferências pessoais tendem a receber a marca dos princípios comumente aceitos, e especialmente dos que são dominantes. Por fim, o ambiente material se satura desta influência, e aos poucos o quadro físico — casa de família, sede social, etc. — vai sendo  transformado de maneira a exprimir ele próprio o espírito dominante.

Várias sociedades menores, formando entre si algo como uma sociedade de sociedades — um conjunto de famílias numa cidade, digamos — podem manter um comércio espiritual comum, que forma  o ambiente mais genérico, porém não menos afirmativo, da vida da cidade. O florescimento de um conjunto de vocábulos, de trajes, de hábitos locais, a produção de obras de artesanato marcadas pelo estado de espírito local, e até de influências artísticas nitidamente locais, tudo isto é o resultante de uma sociedade espiritual harmônica, definida e ativa.

Evidentemente, poderíamos subir assim da cidade à região, desta ao país, e deste por sua vez às grandes zonas de cultura e de civilização. Sem entrar no debate inesgotável sobre o sentido de “civilização”, de “cultura ”, de “estilo” artístico, chamemos aqui “cultura” social o estado de espírito coletivo, a “alma coletiva”, pelo menos enquanto fecundada e ordenada pelo trabalho intelectual, e enquanto existente como nota característica que marca também o trabalho intelectual; chamemos “civilização” o conjunto das instituições, leis, costumes, enfim todo o modo de ser coletivo, enquanto marcado pela “cultura”; e “estilo” as manifestações da arte enquanto marcadas pela “cultura”, e, pois, necessariamente afins com a “civilização”. Chamemos “ambiente” social a impressão de conjunto exercida sobre o observador pela ação harmônica da civilização, da cultura e do estilo, a transparência definida, forte, inequívoca, do estado de alma e dos princípios doutrinários que são o que aquela sociedade de almas tem de mais intrínseco.

Benefícios da sociedade de almas

Neste sentido, podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da sociedade humana, são o produto da vida social enquanto sociedade de almas. Esses bens são indispensáveis ao modo de ser habitual das almas, e justificam por si mesmos, independentemente de outros argumentos — todos legítimos, aliás — a existência da sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir esses bens. Nem condições normais de vida para a alma fora de tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e civilização.

Ainda no mesmo sentido, devemos dizer que a função contemplativa do homem nesta terra — aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no Céu — normalmente se exerce com apoio no  ambiente, na cultura, no estilo e na civilização. Pois é com o auxílio de tudo isso que o homem melhor vê e mais adequadamente assimila ou rejeita os diversos aspectos do meio que o cerca.

Ainda nesta ordem de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da cultura, do estilo, da civilização, embora produtos tipicamente espirituais, constituem objeto próprio da sociedade temporal. Pois é esta última noção que nos permitirá prosseguir em nossas reflexões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações entre a Igreja e a sociedade civil.

Plinio Corrêa de Oliveira (Continua no próximo número)

Para alcançar a emenda de meus defeitos

Ó Senhora, Vós sois a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mãe de todos os homens e, portanto, também a minha Mãe! Eu serei, talvez, o último dos filhos, mas Vós sois a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. Se meus pecados são um abismo, a vossa compaixão é uma montanha muito maior do que esse abismo.

Sei que minhas preces, por si mesmas, não valem nada. Mas se o coração da mãe está sempre aberto a perdoar, amar e afagar, quanto mais o vosso, que sois a Mãe das mães! Assim, não desprezeis essas súplicas, mas atendei-as favoravelmente, pois Vos estou pedindo como filho. Alcançai-me a emenda de meus defeitos.

Sei, ó Mãe, que nunca deixareis de olhar com boa vontade para o filho que pede a vossa assistência. Por isso Vos imploro com insistência: tende pena de mim e arrancai-me de meus pecados. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 21/9/1991)