Mãe da Divina Graça e da perseverança

Estreitamente unido a Maria Santíssima por meio da escravidão de amor, segundo o método de São Luís Grignion de Montfort, tinha Dr. Plinio grande devoção à invocação “Mater Divinæ Gratiæ” — Mãe da Divina Graça —, neste mês comemorada na festa da Medalha Milagrosa.

Sobre a efígie impressa na Medalha, cuja confecção foi pedida pela própria Mãe de Deus, abaixo reproduzimos um profundo comentário de Dr. Plinio(1), relacionando-a à Contra-Revolução, à realeza de Maria e à graça da perseverança que deve ser almejada por cada um dos filhos da Santa Igreja: Nós temos, numa das faces da medalha, Nossa Senhora pondo os pés sobre o mundo, na afirmação de sua realeza sobre toda a Terra. É exatamente essa a doutrina da realeza de Nossa Senhora que vem lembrada em Fátima e afirmada com uma vitória sobre a Revolução.

Ela calca também uma serpente, o que está inteiramente coerente, concludente, porque desse lado está escrito: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós”.

Quer dizer, é a Imaculada Conceição. Mas não é pura e simplesmente a Imaculada Conceição, porque há aqui um atributo que não se encontra nas imagens da Imaculada Conceição como tal: Nossa Senhora está com as mãos abertas em sinal de aquiescência, de atendimento, e de suas mãos partem fachos luminosos imensos, simbolizando as graças e os favores que pelas mãos d’Ela — quer dizer, pela ação e por meio d’Ela — descem sobre o mundo.

Essas graças são concedidas para a conversão dos pecadores, dos hereges, mas também para o castigo dos irredutíveis e proteção daqueles que se mantiveram fiéis até o fim. São graças para a perseverança dos fiéis. Tudo isso sai das mãos de Nossa Senhora como de um manancial.

Ela está afável, risonha, acolhedora, para todos aqueles que tendo em vista esse conjunto de fatos, de símbolos, de atributos, de noções, se dirigem confiantes a Ela, pedindo as graças de que precisam.

Vamos pedir a Nossa Senhora que pelas graças da Medalha Milagrosa, Ela apresse o dia de sua vitória, de um lado. E de outro lado, também nos ajude a sermos fiéis durante todas as tormentas que se aproximam. Porque devemos nos lembrar bem disso: a perseverança é uma graça inestimável. Do que adianta ter virtudes, se depois cair no pecado?

Essa perseverança não é fruto de nossas qualidades pessoais, mas da graça que se trata de pedir humildemente, de implorar com insistência, e à qual se trata de corresponder. Portanto, precisamos pedir as graças que nos assegurem a perseverança.

Essa invocação de Nossa Senhora das Graças — ou de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa — é particularmente eficiente na luta contra o poder das trevas, que tanto e tanto nós devemos conduzir nos dias de hoje.

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 212 (Novembro de 2015)

1) Conferência de 27/11/1964.

Movimentos do mar… …e da alma humana

O movimento das águas do mar, ora tempestuoso, ora calmo, deixa transparecer uma série de gamas de beleza, todas elas extasiantes. Do mesmo modo, a arquitetura religiosa parece simbolizar os diversos aspectos da alma humana ao louvar seu Criador.

 

Vendo o mar — objeto perpétuo de meu enlevo, de meu encanto, de meu entusiasmo! — eu seria capaz de passar uma tarde inteira sozinho olhando-o, quieto, inteiramente entretido, contemplando-o…

Beleza do mar e o “pulchrum” de sua movimentação

No mar me chamava muito a atenção o seguinte: ele — na minha ótica; compreendo que outro sinta de um modo diferente, depende de cada um — apresentava para mim dois pontos extremos, com todas as gamas intermediárias. Ao contemplá-lo era-me agradável ver tantas formas de beleza que Deus tirava fazendo o mar passar de um extremo a outro através das gamas intermediárias. Ou, de repente, interromper a sequência em qualquer gama intermediária, dar um giro e passar para o outro lado.

Quer dizer, o ordenado, bonito, quando avançam aquelas grandes ondas, em ofensiva para a terra, mas são ondas que não são descabeladas fazendo tumulto — o descabelado não me agrada —, mas são grandes ondas em ordem, um ataque em regra de uma cavalaria nobre. É a maré montante de certos dias, que vai cobrindo a praia. É uma coisa bonita. É a “bataille rangée”, em fileiras. É até bonita a variedade, porque às vezes as ondas não chegam a arrebentar, quase arrebentam, formam assim aquelas eminências e vão adiante.

Outras não, pelo contrário: arrebentam e há um gáudio de gotas pelo ar que depois caem e seguem na sua ofensiva, parando um pouco antes de chegar à terra para saltitar pelo ar, antes de se entranhar nas profundidades das areias; e até aquilo virar água de novo é um processo enorme. Elas então bailam um pouco pelo ar, jubilosamente; são guerreiros que antes de dar o ataque definitivo dançam a dança da vitória. Uma coisa bonita, que me agrada ver.

Mas também agrada ver quando o mar está inteiramente calmo, quase imóvel. Diríamos que está de tal maneira absorto na contemplação do céu, que nem pensa em si mesmo. Eu falo o céu, não o Céu celeste, mas a abóboda celeste, que se vê com os olhos.

De repente, de um lugar qualquer, notamos que a surpresa vem, algo começa a se mover. É um vagalhão, é uma bagunça aquática, é um assalto contra a terra, porém os vários elementos do mar não vêm em “bataille rangée”, mas parecem se empurrar uns aos outros para tomar a dianteira e conquistar a terra mais depressa. É a beleza da variedade, do inesperado, do quase susto, do imprevisto, que tem, a meu ver, seu encanto próprio. E a sucessão das coisas torna o mar muitíssimo entretenido.

Esses vários modos de ser do “pulchrum”… Esse é mais um “pulchrum” do movimento do que do mar. Quer dizer, se o mar fosse feio, o movimento dele não seria bonito. A dança é bela quando o que dança é belo. Um exército que avança é muito bonito quando é composto de homens fortes, robustos; pelo contrário, um exército de capengas que se arrasta em certa ordem não vale dois caracóis. Do mesmo modo, o mar é belo, mas a movimentação está à altura dele.

Depois, os mistérios que ele contém; é outro mundo que se move nas entranhas dele, que ele oculta, não se vê um polvo, é raro um peixe, é raro ver qualquer coisa, há um mundo que vive aí dentro, um mistério. Não sei se sentem como eu. Eu tenho, assim, entusiasmo pelo mar!

Élans da alma expressos na arquitetura

Agora, a arquitetura, e a arquitetura religiosa, diante dos movimentos da alma humana, tão parecidos com os do mar, parecem se assemelhar. Há homens cujo pensamento avança em “bataille rangée”, cuja oratória, cuja argumentação, cuja dialética aperta, estala. Mas há homens que não são do gênero do famoso general de Luís XIV, Turenne, mas são “condeanos”(1): pulos de vitória em meio de raios de luz, aventura! Captam uma coisa e liquidam uma situação. Há feitios de inteligência assim, espíritos assim, há formas de beleza assim.

Por exemplo, Notre-Dame. Ela é irrepreensível, ordenada, perfeita, lindíssima! Tudo lógico, mas de um lógico com poesia; são as lógicas não do filosofastro, mas as lógicas da mãe de família, do pai, da vida, é essa lógica verdadeira. É isso que às vezes a arquitetura apresenta.

Às vezes a arquitetura borbulha e apresenta coisas meio inesperadas. E é o próprio movimento da alma religiosa, nos seus entusiasmos, nos seus êxtases, nos seus impulsos, na sua generosidade, nos lances à la Santa Teresa de Jesus, por exemplo, enormes, que deixam a alma desconcertada diante da grandeza daquilo.

E isso se exprime mais na arquitetura religiosa da Igreja grega, do tempo que estava unida à Igreja Católica. Daí vem o jogo das várias cúpulas que borbulham, como o mar se move, e que se notam na Basílica de Santo Antônio na cidade de Pádua.

Eu queria, então, mostrar um pouco a descrição daquilo que em Pádua me agradou…

Continua no próximo número.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/11/1988)

Revista Dr Plinio 224 (Novembro de 2016)

 

1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 – †1686). Sobre o estilo “condeano”, ver Revista Dr. Plinio n. 213, p. 30.

Símbolo da Jerusalém Celeste

A catedral é figura da Cidade de Deus, da Jerusalém Celeste, imagem do Paraíso, como afirma a liturgia da sagração das igrejas.

As paredes laterais são símbolos do antigo e do novo testamento. Os pilares e as colunas são os Profetas e os Apóstolos que sustentam a abóbada, representação de Cristo, a sua chave.  As janelas translúcidas que nos separam da tempestade e derramam sobre nós a claridade, são os Doutores da Igreja. O portal é a entrada do Paraíso embelezada pelas imagens em pedra, pelos baixos relevos pintados e dourados e pelos suntuosos batentes de bronze.

A casa de Deus deve ser iluminada pelos raios do sol resplandecente da caridade como o próprio Paraíso, porque Deus é a luz, e a luz dá beleza às coisas. Assim também se deve aumentar a iluminação interior da catedral, abrindo janelas tão amplas quanto o permitam os vértices das grandes arcadas e as próprias abóbadas.

Belo, semeado de poesia, esse texto de um ótimo medievalista francês nos faz degustar, de modo intenso, a noção de símbolo.

Trata-se de considerar as magníficas catedrais góticas, não apenas como um recinto fechado onde se presta culto a Deus sem riscos de se expor às intempéries, mas, muito além desta finalidade prática e indispensável, como uma grandiosa imagem do Paraíso celestial. Algo que nos lembra a bem-aventurança eterna e dela nos oferece consoladora prelibação.  Desse modo, as catedrais são verdadeiras obras-primas de simbolismo, cada um de seus ricos aspectos encerrando significados e conceitos que nos remetem para as realidades do Céu.

Então, o templo majestoso e imenso é a figura do lugar onde Deus vive, cercado das almas dos justos. É a cidade do Altíssimo, a Jerusalém Celeste, como no Antigo Testamento a Jerusalém terrena foi a urbe santa, ela mesma representação da futura Igreja Católica, da Civilização Cristã, da sociedade temporal organizada de acordo com os princípios do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.  De tudo isto a catedral é um extraordinário símbolo.

E os detalhes de sua construção acrescentam belezas e expressões diversas nessa simbologia. Por exemplo, a linda ideia de se ver as paredes laterais como evocações do Velho e do Novo Testamento, ou de admirar aquelas esguias e sólidas colunas como se fossem os severos Profetas da Antiga Lei e os compassivos Apóstolos da era cristã. Mais ainda. Contemplar a vastidão da elevada abóbada e pensar que lá está a chave da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre o qual tudo repousa e em honra de quem tudo foi edificado!

O pórtico imponente recorda a entrada do Céu. São portas de bronze, de carvalho, entalhadas e lavradas com requintes de perfeição e candura, emolduradas por centenas de imagens de santos e figuras históricas dispostas em esplendorosa ordenação. Ao transpô-las, devemos nos lembrar de que um dia — pela infalível intercessão de Nossa Senhora — as portas da catedral celeste se abrirão para nós e penetraremos na glória de Deus, unindo-nos aos Anjos e aos bem-aventurados que ali nos precederam.

A nota de poesia é dada pela claridade que inunda o interior do templo através das amplas janelas translúcidas, pelas refulgências policromadas dos vitrais tocados de sol. São os Doutores da Igreja esplendendo sua sabedoria, são os raios da caridade com os quais se ilumina o próprio Paraíso.

Como Deus é a luz, convém que a catedral tenha luz, e a tenha no pleno jorro da fulguração do sol, e na aconchegante, espetacular matização dos vidros coloridos.

Toda a arquitetura do gótico se desenrolou à procura das janelas cada vez maiores, sem prejuízo da estabilidade do edifício, até chegar a uma Sainte-Chapelle de Paris, verdadeiro escrínio cujas paredes são vitrais… É uma caixa de cristal onde todas as cores de luz brincam e folgam, constituindo desenhos maravilhosos que nos lembram a luz eterna do Paraíso.

Assim, ao entrarmos numa catedral, levemos conosco esse pensamento: “Graças à misericórdia infinita de Deus e à insondável bondade de Maria, passarei um dia pelas portas do Céu; verei os Profetas, os Apóstolos e os Doutores, como vejo aqui estas colunas. Sobretudo, serei inundado pela luz divina, como agora me envolve essa luminosidade que, de todas as partes, invade o recinto sagrado”. E então a nossa presença na igreja aumentará em nós a alegria e a esperança dos grandes triunfos do Céu.

Quanto mais nos sentirmos opressos, perseguidos nesta Terra, tanto mais devemos nutrir essa nossa apetência pelo Paraíso, onde as misérias presentes se extinguem por completo, dando lugar apenas à perfeita e eterna felicidade, sem que nada a possa perturbar. Pois ali não teremos somente todas as alegrias possíveis, mas o fundamento de todos os gáudios — Deus Nosso Senhor e o olhar indizivelmente afável de sua Mãe Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 80 (Novembro de 2004)

Luzes e ecos…

Certas palavras, por vezes insuficientes, adquirem superior significado quando lhes acrescentamos alguns prefixos, quando as transformamos em neologismos. É o caso, por exemplo, do que poderíamos chamar de “trans-esfera”. Ou seja, algo que vai além da esfera comum, terrena, palpável, voltada para o inefável, indizível, intraduzível pelos vocábulos conhecidos.

Vem-me ao espírito esse recurso linguístico, quando admiro alguns interiores de grandiosas igrejas, de algum imponente edifício, e procuro “ouvir” os ecos dos sons que ali um dia reboaram. Pois, no meu modesto entender, determinados ecos são as “trans-esferas” de qualquer som. Nos recintos sagrados, o prolongamento das sonoridades do órgão, do cântico litúrgico, são esse cântico e esse órgão multiplicados por eles mesmos.

Lugares há nos quais o homem pisa e o ressoar dos seus passos é a glória do que ele realizou; nos quais sua voz se desdobra, esvoaça, se distancia, assumindo ares de fantasia… Na verdade, toda voz foi feita para ­ecoar: sem o eco, dir-se-ia não ter vivido inteiramente.

Nos majestosos conjuntos de altas abóbadas e colunatas góticas, imagino ecos augustos de liturgias estupendas. Imagino luzes magníficas, cujo genuíno valor se prende ao fato de virem acompanhadas de alguma penumbra. A sombra sugestiva é o eco adequado da luz.

Pensando nesses lugares onde se nos apresentam esses ecos, essas luzes, essas penumbras, penso em algo ideal que é a síntese de todas as catedrais e de todos os castelos que me foi dado considerar. Portanto, permanece no fundo do espírito, uma imagem ideal — talvez não realizável neste mundo — a qual excede as maiores produções artísticas ou intelectuais do homem.

Tenho para mim, então, não ser necessário grande inteligência nem eminentes qualidades naturais para nos distinguirmos no concerto da humanidade. Basta conservarmos em nosso espírito um recanto culminante qualquer, onde essa imagem ideal esteja presente, produza sentimentos e disposições que não sabemos sequer exprimir, e que são o segredo de nossa alma, o que ela possui de tão alto, de tão magnífico.

Isso se aplica a todos, ao menor dos homens, se corresponder aos toques da graça no seu coração. Eleva-se até o mais alto, e essa elevação, por sua vez, produz em sua alma reflexos que o tornam a multiplicação e o eco terreno dessas maravilhas inefáveis. Este é o tesouro de cada um de nós, encerrado em nossos imponderáveis, em nosso “trans-pensamento”. Não encontraremos palavras para revelá-lo a ninguém. É o nosso eco, nossa própria luz no seu maior fulgor, que apenas contaremos a Deus, a Nossa Senhora e aos santos, quando os encontrarmos na eternidade…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 92 (Novembro de 2005)

 

Excelsas benevolências da Mãe da Divina Graça

Embora não seja ainda dogma definido pelo supremo Magistério da Igreja, grande parte dos católicos aceita como verdade que Maria Santíssima é a medianeira universal de todas as graças. Dr. Plinio estava convencido disto, e o comentou com fervor diversas vezes, como na conferência que o leitor agora poderá acompanhar.

 

A invocação de Nossa Senhora das Graças, cuja a festa se prende à aparição da Santíssima Virgem a Santa Catarina Labouré, em 27 de Novembro de 1830, muito fala às nossas almas de filhos devotos d’Ela, porém não diz tudo. Já o titulo de “Mãe da Divina Graças”, rezado na Ladainha Lauretana, exprime de modo extraordinário a augusta prerrogativa de Mãe enquanto medianeira e dispensadora universal dos dons de Deus.

Significados da palavra “graça”

Para melhor compreendermos e amarmos esse atributo de Nossa Senhora, todo voltado a nosso favor, devemos antes analisar os dois sentidos da palavra “graça” na linguagem católica.

Numa primeira acepção, ela quer dizer favor.

Por exemplo, se alguém sofre de uma doença, suplica ao Céu a cura e a obtém, pode afirmar: “Recebi uma graça”. É um favor que pediu e no qual foi atendido.

Outra pessoa se encontrará em grave apuro econômico, precisando de auxílio para financiar urgentes necessidades de sua família, e roga a Nossa Senhora que lhe dê a oportunidade de ganhar o dinheiro indispensável. A ocasião se apresenta, ele alcança a soma desejada e resolve seus problemas. Foi uma graça, um favor que lhe foi proporcionado pela Divina Providência.

Há contudo, um sentido muito mais elevado da palavra “graça”. Refere-se a uma dádiva tão imensa, tão suprema, que é a graça por excelência. O que vem a ser?

Na sua infinita misericórdia, e sempre a rogos de Nossa Senhora, Deus concede a todas as almas uma força espiritual que é uma participação na própria vida incriada d’Ele. Essa poderosa assistência divina é a graça santificante, que Ele infunde nas almas no momento do batismo, e que pode ser enriquecida pelo homem ao longo da vida, mediante reiterados atos de virtude, a freqüência aos Sacramentos, etc.

Recebendo essa participação na própria vida de Deus, a criatura humana é favorecida por um vigor, uma elevação e uma coragem de alma que caracterizam os santos e santas, beatos e beatas que, em grande quantidade, reluzem no firmamento da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Se procedêssemos a um recenseamento de quantos bem-aventurados existem no Céu, tomando apenas em consideração o calendário litúrgico, o resultado já seria de milhares. Na verdade, porém, o número de santos é muito maior do que o registrado nas hagiografias.

Com efeito, por santo deve-se entender não só aquele que a Igreja proclamou como tal, elevando-o à honra dos  altares, mas também todas as almas que, embora desconhecidas, praticaram em vida a perfeição heroica.

Passaram pelo mundo de maneira humilde e apagada, não deixaram vestígios pelas veredas da terra. Contudo, ao chegar ao Céu, brilham com luz extraordinária, porque observaram  a  virtude de um modo igualmente extraordinário.

Esses santos serão por todos conhecidos no dia do Juízo Final, e muitos deles nos aparecerão como estrelas de primeiríssima grandeza. Talvez surpreendidos pela formosura de algum deles, perguntemos ao nosso Anjo da Guarda:

Mas, aquele admirável que está lá, quem é?

Ah,  aquele?  Foi   um   lixeiro   na   Terra. Porém, teve tanta resignação carregando o lixo, desempenhou tão bem sua missão de limpar  a cidade em que trabalhava, era tão atencioso para com as pessoas com quem tinha de tratar, e de tal maneira fazia isto só por amor de Deus, que toda vez que punha uma carreta de lixo no caminhão da limpeza era como se acendesse uma estrela no Céu. Ou seja, colecionava méritos para a eternidade…

Outro terá sido um homem cheio de poder, riquezas, talentos e posições, recebendo a todo momento elogios e referências às suas grandes qualidades, e a todo instante exposto à tentação do orgulho e da vanglória. Era-lhe fácil tornar-se ébrio de tanto entusiasmo por sua pessoa e posição, Assim, se era preciso debelar uma peste que assolava certa região de seu país, ele mandava procurar os melhores médicos, conhecedores das melhores técnicas, a fim de que combatessem com toda a rapidez possível aquele mal. Era um homem, enfim, possante em idéias e realizações, mas, sobretudo, em amor de Deus e em caridade fraterna. Virtuoso, ele passou por esta terra sem sujar-se com enlevos e comprazimentos consigo mesmo, faleceu santamente e subiu para o Céu como uma estrela. E ali refulgirá por toda a eternidade.

Dr. Plinio, num momento de distensão, durante uma reunião de trabalho feita sob o celestial olhar de Nossa Senhora das Graças

Como um enxerto da vida divina no homem

Todos esses santos, canonizados ou não, todas essas vitórias do espírito sobre a carne, da virtude sobre o pecado, todos os atos meritórios que qualquer fiel pratica, são frutos desta participação criada na vida incriada de Deus, ou seja, da graça. Uma participação altíssima, que poderia ser comparada, vagamente, a um enxerto.

Tome-se uma árvore comum, na qual é enxertada a muda de uma outra árvore que dá frutos preciosíssimos. Quando chegar a hora da frutificação, esses valiosos rebentos nascerão na árvore que recebeu o enxerto. Assim também é a graça, um como que enxerto da vida incriada de Deus em cada um de nós. Se lhe correspondemos, ela frutifica em nós, elevando-nos a inimagináveis alturas.

todavia compreendeu que o homem nada possui do que se orgulhar: tudo o que lhe pertenceu, recebeu de Deus e se destinava a servir a seu Eterno Benfeitor. Se não tivessem sido empregados em vista deste fim supremo, seus dotes e tesouros não teriam valido coisa alguma. Por isso, aceitando essa verdade, ele nunca consentiu num movimento de presunção e de amor-próprio, levando toda a sua existência na mais perfeita humildade e no desprendimento dos bens terrenos. Santificou-se.

Um terceiro foi, digamos, um governante magnífico. À passagem dele, as multidões se desatavam em cânticos e entusiasmos por suas realizações e seus triunfos. Ele venceu batalhas nas quais lutou pelo bem, pela justiça; construiu cidades, socorreu populações castigadas por inundações, epidemias, e as mais diversas catástrofes. A isto era levado não só pelo fato de ser o chefe da nação, com meios de fazê-lo, mas também porque o movia um intenso amor ao próximo e uma grande sabedoria.

A santidade, fruto da correspondência à graça

Essa correspondência à graça significa praticar a virtude, significa evitar a todo custo o pecado. Não deve nos preocupar, neste mundo, se somos muita ou pouca coisa. O único que importa é saber se cumprimos ou não os Mandamentos de Deus, e os desígnios d’Ele a nosso respeito.

Ainda há alguns anos, a Igreja inteira celebrou a glorificação de mais uma heroína da Fé: Santa Ana Maria Taigi. Quem foi ela? Uma distinta senhora, conceituada na sociedade em que viveu, generosa nas esmolas que distribuía? Não. Foi uma cozinheira, uma modesta doméstica no palácio dos príncipes Colona de Roma, no século XIX. Desempenhou de modo perfeito as suas humildes funções, trabalhou incentivada por um ardente amor a Deus, e teve uma vida semeada de dificuldades e sofrimentos pois ninguém vai para o Céu sem padecer santamente suportados. Carregou de modo admirável a sua cruz, tornou-se santa e hoje está na bem-aventurança eterna. Uma simples cozinheira, diante de cuja alma, se lhes fosse dado contemplá-la, se poriam de joelhos os maiores potentados da terra…

Tal é o valor e tais são os frutos de nossa correspondência à graça divina.

O excelso papel de Nossa Senhora das Graças

E aqui se faz notória a gloriosa prerrogativa de Nossa Senhora que hoje recordamos.

Como acima entendida, a graça é um imensíssimo favor de Deus que nos é outorgado a todos, desde o momento do batismo, e que não nos é negado ao longo de nossa existência inteira. Até o derradeiro instante do homem, na hora de ele exalar seu último suspiro, a graça o acompanha, o convida, chama e atrai. Mesmo no fundo dos piores pecados, ainda lhe é dado ouvir o solícito apelo da graça, incitando-o à conversão.

Ora, a recepção desse grandíssimo favor e nossa correspondência a ele, não nos é possível sem que nos venha pelas maternais e misericordiosas mãos de Maria.

Ela é a Mãe da Divina Graça, porque Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, fonte, princípio e autor de toda graça. Além disso, por disposição da Providência, Ela é também a dispensadora dos dons e favores celestiais, cuja totalidade constitui inexaurível tesouro que Deus confiou à gerência d’Ela. Nossa Senhora é, portanto, a tesoureira das riquezas divinas.

Esse magnífico predicado mariano nos faz desfrutar, junto a Deus, de uma privilegiada posição. Pois temos a interceder por nós, continuamente, aos pés d’Ele Aquela que detém a chave de todas as graças, Aquela que é a onipotência suplicante e sempre nos obtém aquilo que, por nossos próprios méritos, jamais alcançaríamos. O valor de Nossa Senhora é tal que todas as nossas orações feitas por meio d’Ela são atendidas, de modo particular as preces e os pedidos que se referem à nossa santificação.

Por outro lado, Ela é especialmente Mãe dos que necessitam das preciosas dádivas do Céu. Mãe dos que pugnam sob o estandarte da fé, Mãe dos que se debatem contra as tentações, Mãe dos miseráveis, Mãe dos pecadores, Mãe dos desamparados, Mãe daqueles que quase perderam a esperança da salvação eterna e para todos, sem exceção, obtém Ela o poderoso auxílio dos dons de Deus.

Essa é Nossa Senhora das Graças, essa é a Mãe da Divina Graça, que tem para com cada um de seus filhos solicitudes e bondades inimagináveis!         

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 32 (Novembro de 2000)

“Celestialização” da vida temporal

A verdadeira arte deve buscar o maravilhoso de modo crescente. Sua missão consiste em retraçar, tanto quanto possível, um ambiente em torno do homem de maneira a ele ter o caminho indicado e ser levado para o Céu. A Revolução faz exatamente o contrário.

 

Uma nova perspectiva sob a qual se poderia considerar o tema “graça” seria a seguinte:

Métodos para representar o maravilhoso

Imaginemos que houvesse um lugar onde os Anjos baixassem visivelmente e estivessem algum tempo ali louvando a Deus, e depois fossem embora. Por exemplo, o lugar onde apareceu o Anjo na Cova da Iria. Ali tem bênção, é indiscutível. Ora, a alma humana foi feita para sentir coisas desse tipo por toda a eternidade; e o nosso estado normal de batizados é nos encontrarmos em presença de realidades que tenham esse quilate. É o nosso ponto de repouso final.

Isso significa que, tanto quanto possível, a missão da arte consiste em retraçar esse ambiente em torno do homem, de maneira a ele ter o caminho indicado e ser levado para o Céu. Enquanto o papel da Revolução consiste, evidentemente, no contrário.

Assim, não há maravilhoso que baste para uma arte verdadeira. Entretanto, é preciso fazer distinção de duas coisas. Uma é o maravilhoso enquanto representado através de coisas materiais, por exemplo um quadro qualquer de uma cena medieval de cruzados partindo para guerra. E outra seria uma pintura de Anjos, feita por Fra Angelico, que se serve das coisas materiais para representar o puro espírito em estado de graça. E onde o tema quase direto não é a matéria, mas a graça. Aqueles quadros de Fra Angelico representam indiscutivelmente uma tentativa de servir-se da tinta para representar o maravilhoso. E representam mesmo. É diferente de representá-lo através de uma catedral. Porém, ambos os métodos devem ser utilizados.

A dimensão celeste da Cristandade

Como seria o homem formado completamente num ambiente assim? Como seriam as relações dele? O conhecimento disso nos daria ideia da sociedade constituída por ele.

Isso nenhum tratado de Direito Natural diz, porque de fato escapa a essa matéria. Entretanto, deveria haver obras que abordassem este assunto às quais um tratado de Direito Natural fizesse referência. Porque a mera ordem natural, no que diz respeito ao homem, não existe. Portanto, ou a Cristandade tem uma dimensão celeste, e consequentemente muito superior ao que se imagina, ou ela não atingiu seu fim. Então, a meta é a “celestialização” da vida temporal, sem deixar de ser temporal.

Pode-se dizer que, até certo ponto, monarquias antigas realizaram coisas desse gênero de algum modo, muito palidamente, mas não ousavam quase chegar até lá. Digamos, por exemplo, o quarto de dormir de Maria Antonieta. Aqueles tecidos maravilhosos eram feitos para dar à sociedade terrena o aspecto mais bonito possível, mas não tinham a intenção de “celestializá-la”. Se houvesse esta intenção, não sei até onde iria!

A meu ver, ao espetáculo do horror do demônio que se prepara para vir e se mostrar, nós teríamos que saber opor o espetáculo admirável de Nossa Senhora que prepara o seu Reino!

Uma maravilha que ofuscaria Veneza

É indiscutível que Deus fez certas obras, a rogos de Maria Santíssima, que “celestializam” um tanto mais do que os homens imaginaram. Veneza é uma delas.

Poderia ter havido ali um Fra Angelico que jogasse com os reflexos de água sobre um monumento, uma escultura, pintura ou um mosaico colocados diretamente à beira d’água. Vê-se que a ideia não passou pela cabeça dos artistas. Também os que construíram aqueles palácios estavam pensando em tudo, menos nisso.

Por exemplo, um edifício que poderia ter ficado à beira d’água é a Catedral de Orvieto. Aquilo imaginado em Veneza, e colocado numa ilha, ficaria maravilhoso! Sobretudo se houvesse em alguns pontos uns braços de ferro bonitos, trabalhados, para pôr archotes durante a noite. Podia ficar muito bonito. Vou dizer mais: tornar-se-ia tão bonito que quase ofuscaria Veneza! O resto ficaria pouca coisa em função disso.

Há certos gêneros de maravilhas que estão para além da Terra. São paradisíacos.

A arquitetura francesa, por mais bonita que seja, não fica bem no meio das águas como em Veneza. Lembro-me da lamentação da Condessa Anna de Noailles(1): “C’est trop de beauté! – É beleza demais.”

Está na missão da ordem material criada ser um espelho da ordem espiritual. Entende-se por aí aquela expressão de São Paulo, que afirma: “De fato, as perfeições invisíveis de Deus são percebidas pelo intelecto através de suas obras, desde a criação do mundo” (cf. Rm 1, 20). Portanto, de tudo o que nossa alma tem desejo de ver, enquanto espiritual, se souber ler as coisas da Terra, ela tira as devidas conclusões. Eis a razão pela qual estou analisando continuamente todas as coisas.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/7/1990)

 

1) Poetisa e romancista francesa (*1876 – †1933).

 

Cristo é verdadeiro Rei

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados”, dizia o Papa Leão XIII na célebre Encíclica Immortale Dei, falando sobre a Idade Média. Ele acrescentava que naquele tempo “a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”, de tal modo que, naquele grupo de nações europeias, os excelentes frutos foram superiores a toda expectativa.

Essa descrição corresponde a um estado de coisas que não pode ser chamado senão de reinado de Jesus Cristo, uma realeza à qual Ele tem direito por natureza e por conquista. Por natureza, porque “tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada foi feito” (Jo 1,1). Por conquista, porque nos resgatou da tirania do demônio, a preço de sangue.

Essa é uma das linhas de reflexão desenvolvidas por Dr. Plinio, que o leitor encontrará na presente edição: o direito de Jesus ser Rei.

Dr. Plinio mostra que esse direito do Homem-Deus a ser Rei se exerce não só sobre a sociedade espiritual – a Igreja Católica –, mas também sobre a sociedade temporal, nos moldes da exposição de Leão XIII na referida Encíclica.

Em dezembro de 1925, o Papa Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei. O tema vinha de encontro aos anseios do então jovem Plinio, de batalhar para implantar na face da terra esse reinado divino. O que Pio XI mostrava coincidia completamente com suas convicções: ou a sociedade civil organiza a vida na terra para constituir um vestíbulo do Céu, ou a transforma na antecâmara do inferno.

De fato, dizia aquele Pontífice, como a sociedade humana se recusava a aceitar a realeza de Cristo, já sucumbia sob diversas mazelas: ódios e rivalidades, cobiças desenfreadas, um “cego e desregrado egoísmo”, o fim da paz doméstica “pelo esquecimento e relaxamento dos deveres familiares”, o rompimento da estabilidade das famílias, tudo conspirando para empurrar para a morte a sociedade humana.

Como reverter essa situação? Com a implantação do Reino de Maria. Afinal, como argumenta São Luís Grignion de Montfort, “foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”. Quando “o conhecimento e o reino de Jesus Cristo tomarem o mundo, será como uma consequência necessária do conhecimento e do reino da Santíssima Virgem Maria”. Assim pensava Dr. Plinio, que já via brilhar, no fim do túnel, a resplandecente luz de um reinado de Cristo muito mais completo, universal e perfeito do que foi na Europa medieval, confiado na promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 176 (Novembro de 2012)

Poesia, história e fé

Não há um brasileiro que, ao escutar comentários a respeito da Bahia, não experimente a sensação de ter ouvido algo semelhante a uma melodia tocada por um afinado instrumento musical. Vem-lhe à mente, de imediato, a ideia da Bahia dos sonhos, das poesias, dos maravilhosos panoramas marítimos; a Bahia dos oradores, dos literatos, de mil coisas! A Bahia de um glorioso passado, porque ela traz consigo toda uma história de fé católica heroica, perseverante, vitoriosa.

É um Estado repleto de belezas, com suas características que encantam a todos, com suas baianas idosas, o seu falar cantante, suas pitorescas ladeiras, sua gastronomia célebre, seus monumentos e artes admirados por gente do mundo inteiro. E esse charme da Bahia, mais do que em seus cenários e tesouros artísticos, reflete-se na alma do seu povo, herdeira de uma tradição cristã que escreveu uma das mais esplendorosas páginas da história de nosso País.

Com efeito, quando foi preciso que o Brasil afirmasse sua unidade de fé e seu patriotismo face ao invasor estrangeiro, soube a Bahia abraçar a missão de se erguer e defender tais valores. Coragem e denodo católicos que se coadunam de modo esplêndido com suas riquezas naturais e aquelas engendradas pelo talento de seus filhos.

Bahia florida, poética, retórica, eu a contemplei nas suas igrejas, nos seus conventos, em suas ruas estreitas e calçadas, nas rendas e nos coloridos dos trajes, das fachadas das casas, nas suas praias que estão entre as mais espetaculares da Terra.

Sobretudo falo dessa Bahia antiga, remanescente de um Brasil anterior à Revolução Francesa, e que ainda conserva algo do que se poderia chamar o “Ancien Régime” brasileiro.

É essa Bahia, mais que a do progresso atual, que se deve compreender, amar e por ela ter entusiasmo, pois faz resplandecer melhor sua alma católica. Essa alma que, em seus maiores dias, não hesitou em manifestar um intenso amor a Deus, acima de todas as coisas neste mundo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 104 (Novembro de 2006)

O universo e a ordenação da alma humana

Ao recordar como sua alma de menino foi se abrindo para a compreensão da ordem posta por Deus na criação, tendo o homem como seu elemento central, Dr. Plinio refuta a ideia — latente em muitas correntes de pensamento atual — do “universo fechado”, no qual o Criador não interviria, ausentando-se dele, quase como um estranho…

 

Em geral se toma contato nos cursos secundários com a ideia de que o universo no qual existe o planeta Terra em que vivemos, e os corpos celestes que gravitam em torno dele, é ordenado de modo a formar um todo. Essa noção é verdadeira.

Um erro freqüente: “o universo é fechado”

Porém, não raro se introduz um equívoco nessa concepção, ao se afirmar que esse todo é regido única e exclusivamente pelas leis da ciência, e quem as conhecesse, saberia tudo a respeito do universo. Ou seja, tratar-se-ia de um todo fechado, onde nunca penetra a influência nem a ação de seres extrínsecos — portanto, dos anjos e de Deus Nosso Senhor.

Segundo essa visão, o Altíssimo teria criado o universo, atirando-o depois no espaço, estabelecendo para ele determinadas leis. Deus foi o motor primeiro que fez com que todo o universo começasse a se mover, conforme a ordenação divina. Em seguida, o Criador se retira do panorama e não mais intervém. Cabe então às ciências descreverem as leis que Ele comunicou à criação.

E essas leis são tais que, se Deus e os anjos não existissem, a marcha e a ordem do universo continuariam as mesmas. Assim, sempre conforme essa concepção errônea, parafraseando um dito italiano, “Deus é uma coisa com a qual ou sem a qual, o mundo vai tal e qual”…

Não creio que algum professor tenha defendido explicitamente esse erro, mas ao lecionar suas matérias, fazem-no como se aceitassem e propugnassem essa ideia errada. Donde quase nunca uma pergunta de Ciências Naturais ou de História, por exemplo, chegar até Deus. E se surge uma notícia da interferência divina por meio de um milagre ou de uma ação extraordinária, ela é considerada alheia a qualquer aula, mesmo de Religião, pois não se é obrigado a crer — como se se tratasse de um dogma — que tal fato foi miraculoso.

Aliás, já no meu tempo de aluno, a “máquina” de ensino não considerava qualquer referência a Lourdes, embora se pudesse provar que os milagres ali operados eram autênticos.

Outro ponto. Na batalha de Lepanto deu-se um grande milagre em favor da armada cristã. Se um professor muito católico tratasse desse episódio, diria: “Terminado o confronto, consta terem os soldados comentado entre si que, no fragor dos acontecimentos, Nossa Senhora lhes apareceu”. Consta, porque a História não pode registrar uma aparição como um fato verídico, pois é matéria religiosa.

Em suma, o mundo é fechado. Deus o criou e depois as leis da ciência o explicam. E episódios da própria história da Igreja são por muitos considerados sob esse ângulo. Por exemplo, nas vésperas da batalha de Ponte Mílvia, Constantino viu no céu uma Cruz envolta pelos dizeres (que, aliás, durante algum tempo figuraram no brasão do Brasil imperial): “In hoc signo vinces” — Com este sinal vencerás! Ora, se narrarem a história de Constantino, escreverão: “Durante um sonho ele viu tal coisa”. O fato foi autêntico ou não? Não explicam e fica-se no terreno dos sonhos e da irrealidade.

A Fé, um “rationabile obsequium”

Cumpre salientar que uma adequada explanação desse tema é de grande alcance para a formação católica, pois relegá-lo a uma espécie de meio-silêncio, habitua as pessoas a terem dúvidas a respeito da verdade religiosa, leva-as a uma diminuição da fé e das certezas absolutas. Ora, os fatos a que me referi ocorreram para favorecer as certezas da Fé. Esta se adquire mediante a adesão ao que está revelado por Deus no Antigo e no Novo Testamentos e é ensinado pela Igreja. São Paulo qualifica a Fé de “rationabile obsequium” (Rm 12, 1), ou seja, uma homenagem, um obséquio da razão que, analisando os motivos, crê.

Pelas demonstrações filosóficas e pelos milagres, Deus nos oferece um imenso acervo de razão para se crer, e Ele quer que a nossa maior certeza na vida seja a Fé, a ponto de chegarmos a dizer: “Tudo bem pensado e maturado, a certeza de que a Igreja Católica é a verdadeira vem a ser mais plena do que a própria evidência”. Se eu utilizar bem as regras do raciocínio, convenço-me da existência de Deus e de seus predicados, da eternidade, santidade, de que a Revelação é autêntica e, portanto, de que há uma Igreja infalível, pois Nosso Senhor Jesus Cristo o revelou. Se isso não é assim, o raciocinar humano está errado.

 Não creem porque não querem mudar de vida

Contudo, poder-se-ia objetar: por que algumas pessoas raciocinam e não chegam a essas conclusões?

Tal sucede, não em virtude de uma lógica errada, e sim porque se acham de má fé e rejeitam a influência da graça divina que as iluminaria para chegarem às conclusões acertadas. No fundo, julgam penoso admitir que a Igreja Católica é verdadeira, pois são obrigadas a cumprir uma série de mandamentos — para elas — desagradáveis. Portanto, não creem porque não querem mudar de vida.

Ora, para se provar a existência de Deus e a divindade da Igreja Católica, bastaria considerar o universo.

A ordem humana necessita de uma Igreja infalível

A esse propósito, recordo-me de quando era menino, e ouvia pessoas comentarem ao contemplar um céu estrelado: “Que coisa linda! Vejam como tudo está bem organizado!”, etc. E na medida que era possível ao intelecto de uma criança formular considerações dessa natureza, no meu espírito infantil vinha o seguinte pensamento: “Essa ordem no firmamento é realmente bela; mas, neste nosso mundo, onde está a organização? Em geral, cada pessoa se acha em desacordo com outra. E se, de fato, salvo nas vias da graça, não se consegue convencer ninguém a praticar a virtude, como explicar que tudo no universo foi feito maravilhosamente, mas o elemento central dele, que é o homem, esteja em desordem?”

Imaginemos um quadro pintado de modo primoroso, que pretende representar uma linda fisionomia, a qual entretanto possui o nariz em forma de batata. Ora, se o centro do rosto são o nariz e os olhos, aquela deformidade acaba desqualificando o artista. Assim, se no elemento central da criação visível há desordens, como vou me extasiar com a ordem existente no firmamento? Eu me arrasto no caos interno das minhas impressões, volições, dos meus pensamentos, e a ordem está posta lá no alto, nas estrelas?

Seria como se eu mostrasse a uma pessoa faminta, maltrapilha, um palácio todo iluminado e lhe dissesse: “Ali se realiza um magnífico banquete que você deve admirar”. A resposta dela viria imediata: “Como assim?! Estou morrendo de fome, e você quer que eu admire um banquete do qual não posso participar?”

Quer dizer, é um contra-senso. Portanto, ou o Criador concebeu algo para pôr em ordem a mente e a alma do homem, sua obra-prima, centro de todo o universo, ou Ele deixou ali uma “batata”, o que seria absurdo admitir.

A solução nos aparece com a Igreja infalível, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, que ordena a alma e o pensamento humanos. Desde São Pedro até o Papa reinante, há uma linhagem de pontífices que ensina infalivelmente a verdade. Não apenas quando manifestam a vontade de definir, mas também através do magistério ordinário quando, pela continuidade dos ensinamentos papais, esta mesma continuidade torna um ensinamento infalível.

Se acreditarem nessa infalibilidade da Igreja, todas as pessoas ficam com suas mentes ordenadas a respeito do essencial. Esta ordem é superior a todas as outras, e confirma a supremacia da obra-prima da criação visível.

O universo não é fechado

Quando tomei conhecimento do dogma da infalibilidade pontifícia, fiquei entusiasmado e pensei: “Agora me sinto como um homem que andava sobre penhascos, com medo de cair e, de repente, avisam-lhe que há um corrimão no qual pode se apoiar. Que alívio! Posso contemplar o panorama sem receios e respirar tranquilamente. Sinto minha própria falibilidade, mas a existência de uma instituição natural e sobrenatural, que desde Jesus Cristo até nossos dias ensina sempre a mesma Fé, sem nenhum erro, dá-me segurança, explica-me tudo.”

Se eu não tivesse fé e, analisando todas as religiões, notasse que apenas uma dissesse de si mesma ser infalível, nela eu acreditaria. Pois esta é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Creio que — para me valer de uma comparação — o contentamento de Colombo ao descobrir a América não é nada perto da alegria que senti quando encontrei a infalibilidade pontifícia!

Deus, ao instituir uma Igreja verdadeira, tinha de fazê-la infalível.  A Igreja Católica é como uma coluna forte que resiste a todas as investidas. Interrogando-a, ela emite um som de bronze e nos dá uma resposta sublime. Então, nos ajoelhamos, encantados por termos sido convencidos.

Chegamos, pois, à conclusão de que o universo não é fechado. Há o mundo visível e o invisível, os quais necessariamente se relacionam. Veremos, noutra oportunidade, como se efetua esse relacionamento e as belezas que dele se depreendem.

 

(Continua em próximo artigo)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/8/1979)

 

Razão de nossa perseverança

Se é verdade que devemos sempre invocar o maternal auxílio da Santíssima Virgem, com maior razão cumpre fazê-lo em vistas à nossa perseverança final. Conforme a súplica que repetimos amiúde na Ave-Maria, peçamos a Ela interceda por nós, pobres pecadores, na hora de nossa morte, e nos conceda a graça de sermos fiéis no último momento de nossa existência. Ninguém sabe como são as batalhas interiores, as tentações derradeiras que afligem uma alma prestes a se separar do corpo. Nesta ocasião, nada pode nos valer mais do que o socorro da Mãe de misericórdia, a razão de nossa perseverança em meio aos graves perigos espirituais que corremos. E ela o é, sobretudo, no último.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 16/2/1971)