E a plebe morava em palácios…

Certo tipo de mentalidade se compraz em apresentar a Idade Média como tendo sido o paraíso da nobreza e o inferno da plebe. Esta não é senão mais uma das idéias errôneas que costumam propagar os detratores da Civilização Cristã.

Como já tivemos ocasião de considerar, na realidade os plebeus eram detentores de uma cômoda e folgada situação na sociedade medieval, embora não desfrutassem das honras reservadas aos nobres. Pelo fato de constituírem a classe militar que se imolava pelo bem comum, aos nobres cabiam direitos e privilégios superiores aos dos plebeus. Estes últimos não eram obrigados a derramar seu sangue em defesa da comunidade, e ao invés de lutarem e morrerem nas guerras, contribuíam para o benefício público mediante seu trabalho quotidiano, honesto e fecundo.

Essa contribuição plebeia chegou a tal ponto que, na Bélgica medieval, um conjunto de corporações (dir-se-ia hoje “sindicatos”) levantou, na Grande Praça de Bruxelas, magníficos edifícios que nada ficam devendo aos castelos e residências nobres. São construções em que a dignidade do trabalho manual ou comercial é, a justo título, glorificada.

Geminadas de modo muito pitoresco, manifestando a candura risonha e amigável das coisas engendradas pelo espírito católico, destacam- se as célebres casas das corporações, cada qual  correspondendo a uma associação diferente. Entre outras, as dos arqueiros, dos tapeceiros, dos carpinteiros, e também as dos impressores, padeiros, pintores, alfaiates, açougueiros, cervejeiros…

Não fosse o risco de cometer uma imperfeição próxima da mentira, eu gostaria de tomar pelo braço um desses rebarbativos detratores da Idade Média, levá-lo diante dessas casas e lhe dizer: “Esta é a praça da nobreza em Bruxelas!

Cada um desses edifícios é a residência de uma grande família nobre, vivendo no meio do luxo mais faustoso, contando com terras sem fim e algumas indústrias manufatureiras que lhes propiciam muito dinheiro. Os nobres vivem aí tranquilamente, sem trabalhar, porque têm quem o faça por eles…”

O meu ilustre e desavisado acompanhante exultaria: “Está vendo? Mas, é isto mesmo!”. E eu então diria: “Não, senhor… Lamento decepcioná-lo. Ali está a casa do padeiro, ali a do carpinteiro, e mais adiante a do cervejeiro… O senhor ignora História, não tem senso crítico e forma uma ideia falsa das coisas. Agora pode espernear à vontade. Não mudará o fato de que estes são lindos, magníficos e simples prédios destinados ao uso de plebeus…”

Para completar a extraordinária lição de harmonia que se aprende nessa Praça, lá está também — em inteira consonância com as construções, digamos, populares — o prédio do Paço Municipal, tão grandioso quanto o palácio de um soberano.

É um monumento gótico, erguido igualmente por plebeus para administrar seus próprios interesses e os da capital do país. Imponente e majestoso, elegante e delicado, com suas arcarias ogivais dominando-lhe a fachada, suas inúmeras estátuas aconchegadas em nichos ou dispostas em fileiras, e a esbelta torre central que vai se adelgaçando e se requintando em beleza, à medida que se lança para o alto, para as nuvens esparsas na amplidão do céu.

Fazendo “pendant” com o Paço Municipal, há outra suntuosa construção, a chamada “Casa do Rei”, talvez o ponto monárquico do lugar. Sabe-se que foi edificada no século XVI, sobre os restos do palácio em que se hospedaram grandes personagens civis e eclesiásticos, como o Papa Inocêncio III e São Bernardo de Claraval. Atualmente está transformada em museu.

Arquitetada com a riqueza e a pujança de um gótico “pré-flamboyant”, ela se ergue em ordenação irrepreensível, dando-nos a possibilidade de apreciar toda a beleza de que se reveste.

O primeiro de seus três andares abre-se para o exterior, numa série de pórticos terminados em ogivas superpostas. As inferiores são mais largas, enquanto as superiores, afiladas, incrustam-se nos peitoris rendilhados sobre os quais se apoiam as arcarias do segundo andar. Assim, aquilo que pareceria algo insonso por estar tão aberto, ao se afinar adquire charme, suavidade e graça. No andar seguinte, temos outra série de colunetas e arcos que, mais delgados, são um descanso para a vista do observador, em relação aos aspectos do primeiro e do terceiro pisos. Este último acompanha as linhas dos anteriores, mas sem as colunatas, apenas com suas janelas  ogivais e o extenso parapeito, primorosamente cinzelado.

Três andares, três ordens ao mesmo tempo muito semelhantes e muito distintas, extremamente harmoniosas, e que terminam em lindas mansardas ornamentais, feitas para ilustrar o topo do palácio. Já as fachadas laterais são arrematadas por dois torreões altos, de pontas esguias e rendilhadas.

E por fim, de alto a baixo, como florão de honra em função do qual tudo está construído, uma torre alta, toda enfeitada e ornada, constituindo o centro do edifício e conferindo a este “unum” e nobreza. De fato, a glória da “Casa do Rei” se encontra, sobretudo, nessa torre central. Ela é digna, altiva, afável. Ela nos deixa encantados quando a contemplamos de fora; honrados se nos permite transpor seus umbrais; e tranquilos, se nos concede o favor de nos acolher em um de seus aposentos, onde nos há de proporcionar um agradável e reconfortante repouso…

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2003)

O valor da família na sociedade cristã

Em sua obra magistral dedicada ao estudo das alocuções de Pio XII à Nobreza e ao Patriciado Romano, Dr. Plinio salienta o importante papel da família na estrutura harmônica de uma civilização  hierárquica e cristã.

Dado ser o estado matrimonial a condição comum do homem, é fazendo parte da respectiva família, como chefe ou membro, que ele se insere no imenso tecido de famílias que integra o corpo social de um País.

A par da família, o corpo social é constituído também por outros grupos intermediários. E a inserção de um indivíduo num desses grupos constitui também um modo de integração dele nesse corpo. Tal é verdadeiro, por exemplo, no que diz respeito à corporação de artífices ou à de mercadores, bem como às universidades, ou ainda aos órgãos diretivos que constituem o poder municipal urbano ou rural.

Se se atender à gênese do Estado, ver-se-á que, de um modo ou de outro, ele se originou de entidades pré-existentes, cuja “matéria-prima” era a família. Pois esta dera origem a grandes blocos familiares que os gregos designavam como “génos” e os romanos como “gens”. Estes últimos, por sua vez, formaram grandes blocos de “tonus” também ainda familiar, mas cujas correlações genealógicas se perdiam na noite dos tempos, e tendiam a diluir-se na confusão: eram as fratrias entre os gregos e as cúrias entre os romanos. “A associação” diz Fustel de Coulanges(1) “continuou naturalmente a crescer, e segundo o mesmo sistema. Muitas cúrias ou fratrias, agruparam- se e formaram uma tribo”.

Por sua vez, a conjunção das tribos formou a cidade, ou melhor, a civitas. E com isto o Estado. A família fecunda, um pequeno mundo A experiência demonstra que habitualmente a vitalidade e a unidade de uma família estão em relação natural com a sua fecundidade. Quando a prole é numerosa, ela vê o pai e a mãe como dirigentes de uma coletividade humana ponderável pelo número dos que a compõem como — normalmente — pelos apreciáveis valores religiosos, morais, culturais e materiais inerentes à célula familiar. O que nimba de prestígio a autoridade paterna e materna. E, sendo os pais de algum modo um bem comum de todos os filhos, é normal que nenhum destes pretenda absorver todas as atenções e todo o afeto dos pais, instrumentalizando-os para o seu mero bem individual. O ciúme entre irmãos encontra terreno pouco propício nas famílias numerosas. O que, pelo contrário, facilmente pode surgir nas famílias com poucos filhos.

Também nestas últimas se estabelece não raras vezes uma tensão pais-filhos, em resultado da qual um dos dois lados tende a vencer o outro e a tiranizá-lo.

Os pais, por exemplo, podem abusar da autoridade, subtraindo-se ao convívio do lar para utilizar todo o tempo disponível nas distrações da vida mundana, deixando os filhos relegados aos cuidados mercenários de “baby-sitters” ou dispersos no caos de tantos internatos turbulentos e vazios de legítima sensibilidade afetiva. E podem tiranizá-los também — é impossível não mencionar — por meio  das diversas formas de violência familiar, tão cruéis e tão freqüentes na  nossa sociedade descristianizada.

Na medida em que a família é mais numerosa, vai-se tornando mais difícil o estabelecimento de qualquer dessas tiranias domésticas. Os filhos percebem melhor quanto pesam aos pais, tendem a ser-lhes por isso gratos, e a ajudá-los com reverência — quando chegado o momento — na condução dos assuntos familiares.

Por sua vez, o número considerável de filhos dá ao ambiente doméstico uma animação, uma jovialidade efervescente, uma originalidade incessantemente criativa no tocante aos modos de ser, de agir, de sentir e de analisar a realidade quotidiana de dentro e de fora de casa, que tornam o convívio familiar uma escola de sabedoria e de experiência, toda feita da tradição comunicada solicitamente pelos pais, e da prudente e gradual renovação acrescentada respeitosa e cautamente a esta tradição pelos filhos.

A família constitui-se assim num pequeno mundo, ao mesmo tempo aberto e fechado à influência do mundo externo.

A coesão desse pequeno mundo resulta de todos os fatores acima mencionados, e esteia-se principalmente na formação religiosa e moral dada pelos pais em consonância com o pároco, como  também na convergência harmônica das várias hereditariedades físicas e morais que, através dos pais, tenham concorrido para modelar as personalidades dos filhos. Esse pequeno mundo diferencia-se de outros pequenos mundos congêneres, isto é, das outras famílias, por notas características que lembram em modelo pequeno as diferenciações entre as regiões de um mesmo País, ou os diversos países de uma mesma área de civilização.

A família assim constituída tem habitualmente como que um temperamento comum, apetências, tendências e aversões comuns, modos comuns de conviver, de repousar, de trabalhar, de resolver  problemas, de enfrentar adversidades e de tirar proveito de circunstâncias favoráveis. Em todos estes campos, as famílias numerosas possuem máximas de pensamento e de procedimento corroboradas pelo exemplo do que fizeram os seus antepassados, não raras vezes mitificados pelas saudades e pelo recuo do tempo.

Linhagens e profissões

Ora, sucede que esta grande e incomparável escola de continuidade — incessantemente enriquecida pela elaboração de aspectos novos modelados segundo uma tradição admirada, respeitada e querida por todos os membros da família — influencia muito os indivíduos na escolha das suas atividades profissionais, ou das responsabilidades que queiram exercer em favor do bem comum.

Daí decorre que, com freqüência, haja linhagens de profissionais provenientes do mesmo tronco familiar, por onde a influência da família penetra no âmbito profissional. É verdade que, no consórcio assim formado entre atividade profissional ou pública, de um lado, e família de outro, também estes vários tipos de atividades exercem a sua influência sobre a família. Estabelece-se assim uma simbiose natural e altamente desejável. Mas importa sobretudo notar que, o mais das vezes, o próprio curso natural das coisas conduz a que a influência da família sobre as atividades  extrínsecas a ela seja maior do que a de tais atividades sobre a família.

Noutros termos, quando a família é autenticamente católica, e conta não só com a sua natural e espontânea força de coesão, mas também com a sobrenatural influência da mútua caridade que lhe  provém da graça, a organização familiar atinge as condições ótimas para marcar com a sua presença todos ou quase todos os corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e por fim também  o próprio Estado.

A partir destas considerações, é fácil compreender que a influência benfazeja de linhagens cheias de tradição e de força criativa, em todos os graus da hierarquia social, desde os mais modestos aos mais elevados, constitui um precioso e insubstituível fator de ordenação, quer da vida individual, quer do setor social privado, quer da vida pública. E que, pela própria força dos costumes, a direção efetiva de vários corpos privados acabe por ir ter às mãos de linhagens que se destacam como mais dotadas para conhecer o grupo social, coordená-lo, dar-lhe o lastro de uma robusta tradição e o impulso vigoroso de uma contínua melhoria no modo de ser e de agir.

Nesta perspectiva, é legítimo que, no âmbito de alguns desses grupos, se forme uma elite para-nobiliárquica, uma linhagem preponderante para-dinástica, etc. Fato que contribui também para dar origem, nas sub-regiões e regiões rurais, à formação de “dinastias” locais, de algum modo análogas à família dotada de majestade régia.

Pais régios e reis paternos

Todo este quadro faz ver uma nação como um conjunto de corpos os quais se constituem, por vezes, de corpos menores; e assim, gradualmente, em linha descendente, até chegar ao simples indivíduo. Seguindo em linha inversa o mesmo percurso, percebe-se claramente o caráter gradativo e, enquanto tal, também hierárquico, dos vários corpos que intermedeiam entre o simples indivíduo e o mais alto governo do Estado.

Tendo em vista ser o tecido social constituído por toda uma abundante contextura de indivíduos, de famílias e de sociedades intermediárias, conclui-se que, sob certo prisma, a mesma sociedade é um conjunto de hierarquias de diversas índoles e naturezas que coexistem, se entreajudam e se entrelaçam acima das quais paira apenas, na esfera temporal, a majestade da sociedade perfeita, que é a do Estado; e, na esfera espiritual — a mais elevada — a majestade da outra sociedade perfeita que é a da Santa Igreja de Deus.

Assim vista, tal sociedade de elites é altamente participativa. Ou seja, nela, categoria, influência, prestígio, riqueza e poder são participados de alto a baixo, de maneiras diversas segundo cada degrau, por corpos com peculiaridades próprias. De tal maneira que outrora se pôde dizer que no lar, mesmo o mais modesto, o pai era rei dos filhos; e no ápice, o rei era o pai dos pais.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Nobreza e elites tradicionais análogas, nas alocuções de Pio XII ao Praticiado e à Nobreza Romana”, Livraria Editora Civilização, pp. 108-111. Título nosso.)

Revista Dr Plinio 68 (Novembro de 2002)

 

1) La Cité Antique, Librairie Hachette, Paris, Livro III, p. 135.

Um auge de amor de Deus

Comentando afrescos de Giotto, Dr. Plinio afirma entre outras coisas que logo após o nascimento de Jesus, Maria Santíssima observou o olhar lúcido e cheio de amor que Ele deitava sobre Ela. O Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento.

 

O  afresco pintado por Giotto na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, representando o casamento de São José com a Santíssima Virgem, tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação do pintor, corresponde a uma parte do Templo de Jerusalém.

Nossa Senhora com porte ereto e virginal

O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, debaixo da qual há uma espécie de camisa e uma meia-túnica que desce da cintura até o chão. É um ancião já de cabelos brancos, abundantemente barbado, numa atitude de piedade e recolhimento, que não visa ser a de um santo, mas de um prelado digno, respeitável, pois não tem em torno da cabeça a auréola de santidade. Ele está exercendo funções na cerimônia.

Identificamos São José pelo fato de ele estar com a mão direita passando uma aliança a Nossa Senhora, e com a esquerda segurando uma vara com flores. Era o tal bastão que floresceu, indicando ser ele o esposo escolhido pela Providência para Maria Santíssima.

Segundo uma antiga tradição, São José é apresentado como muito mais idoso do que Nossa Senhora. Daí notar-se na pintura a diferença de idade entre ambos. Ela ainda mocinha e com o recato, a compostura de uma pessoa toda virginal está vestida com uma túnica de um cor-de-rosa muito claro, quase se diria branco. O colorido não é bem exatamente o da meia-túnica do sacerdote, nem de uma espécie de meia-túnica de São José, mas são cores muito claras todas elas, que falam a respeito de virgindade, pureza, delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. Nossa Senhora está cingida com uma coroa de flores. Todo o seu porte é ereto e virginal.

São José toma um pouco o papel de esposo e de pai diante d’Ela. Sua atitude já é um tanto protetora em relação a Nossa Senhora, que Se deixa proteger. Ela está muito bem, apesar de sua aparente timidez junto ao sacerdote respeitável e a São José.

Em volta encontram-se as pessoas que estão assistindo às bodas. Não sei que papel terá no quadro esse personagem vestido de um verde muito claro. Alguns estão comentando o acontecimento, vestidos em trajes semelhantes aos romanos, mas com coloridos que não parecem ser de tecidos romanos, são mais orientais. Tudo indica que na mente de Giotto esta cena se desenrola no Templo de Jerusalém.

Realizado o casamento, organiza-se um cortejo com os esposos. É uma vista do cortejo que, com certeza, se encaminha para a festa. Nota-se que todos estão adornados, vestidos para uma solenidade, cabelos muito bem penteados.

Comunicações místicas do Menino Jesus com sua Mãe virginal

Esse outro afresco representa Nossa Senhora chegando à casa de Zacarias e sendo acolhida por Santa Isabel. A Santíssima Virgem está muito bondosa, muito meiga. Mas Santa Isabel, sobretudo, está respeitosa. Notem como ela faz uma inclinação e contempla Nossa Senhora, maravilhada. Esta olha comprazida para sua prima, mas não Se inclina. É natural: cada uma delas trazia em si um menino; mas no claustro de Santa Isabel não se encontrava senão o precursor do Menino que estava no claustro virginal de Maria. Sem dúvida é uma honra imensa ter concebido São João Batista – Nosso Senhor o comparou a Elias –, mas conceber o Homem-Deus não há comparação com nada!

No afresco representando o Nascimento do Menino Jesus, São José está dormindo, as ovelhinhas estão ali perto, o burrico também e os Anjos enchem o céu, cantando a glória de Deus. Os pastores estão ouvindo o cântico celeste. “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). É exatamente o que a Liturgia, no dia 24 para 25 de dezembro, deverá estar cantando.

É noite. Nossa Senhora acaba de dar à luz o Menino-Deus de um modo misterioso e maravilhoso. A atitude d’Ela é de uma pessoa inteiramente sadia, que está aconchegando melhor seu Divino Filho numa manjedoura. Mas com um desembaraço de movimentos que não é o de uma mãe da qual acaba de nascer sua criança. Compreende-se: o processo de nascimento é dolorido e difícil em virtude do pecado original, mas em Nossa Senhora não. Ela foi virgem antes, durante e depois do parto. Esse nascimento se deu de modo milagroso, de maneira a não representar um esforço para Ela. Ali está seu Filho, e Ela, como quem tivesse acordado de um sono brando, abrisse um pouco os olhos para ver o Menino, e vai dormir dali a pouco de novo.

De fato, é uma cena lindíssima, que empolga! Pode-se imaginar a situação de Maria Santíssima ao ver, pela primeira vez, o fruto do Divino Espírito Santo nas suas próprias entranhas. E que fisionomia tinha o Homem-Deus que acabava de nascer d’Ela! O Menino Jesus tomava toda a atitude de uma criança dessa idade. Ele teve, durante toda a vida, a atitude própria às idades que foi percorrendo, até os 33 anos com que Ele morreu.

Porém, como Ele possuía a natureza humana ligada à divina pela união hipostática, em uma só Pessoa, teve de fato uma inteligência plena desde o primeiro instante em que sua Santíssima Mãe O concebeu. Já no claustro materno Ele rezava, oferecia a Deus reparações, O adorava e implorava pelos homens. O Menino Jesus começou a sua vida inteiramente consciente, desde o primeiro momento em que passou a existir.

De maneira que essa Criança, com o todo de um bebê, teve, entretanto, incontáveis comunicações místicas, talvez diretas, não se sabe como, com sua Mãe virginal já desde o período da gestação. Nossa Senhora sabia que seu Filho era uma Criança inteiramente inteligente. Mas olhava para Ele, um Menininho, a quem a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade estava unida hipostaticamente.

Maria Santíssima compreendia ser lúcido e cheio de amor o olhar que Ele deitava n’Ela, e que os dois estavam Se conhecendo: o Filho tomava conhecimento da fisionomia de sua Mãe, e Ela de seu Filho. Foi um momento sublimíssimo da vida de ambos. Podemos imaginar o auge de amor de Deus a que Nossa Senhora chegou nesse momento!

Serenidade medieval que exprimia a graça de Deus

De acordo com uma bela tradição, os magos vindos do Oriente eram reis. Por isso, no afresco de Giotto vemos esses dois reis em pé, atrás, com coroa ou um diadema cingindo a cabeça. Eles vêm trazendo os seus presentes, recebidos pelo Menino Jesus no colo de Nossa Senhora, que está sentada numa espécie de troneto sobre um estradozinho ricamente atapetado. Ela mesma está também ricamente vestida. Para receber reis tinha que Se vestir com aparato. Mais adiante há uma tribunazinha onde estão vários personagens santos; nota-se isso pelas auréolas. Atrás de Nossa Senhora há um Anjo e São José.

É interessante o seguinte: um dos reis está adorando o Menino Jesus e osculando os pés d’Ele. Os dois outros monarcas estão tranquilos, comprazidos em oração diante de Nossa Senhora e de seu Divino Filho, vendo o seu companheiro de viagem, seu irmão na realeza, adorar assim o Menino. Estão contentes com tudo e esperam chegar a vez deles, sem impaciência, com essa tranquilidade, serenidade medieval que exprimia bem a presença, o espírito, a graça de Deus na alma desses personagens.

Logo atrás dos três reis há um gorducho que está freando ou dando um jeito qualquer no camelo, para este não criar problemas. Esse já não tem nada do sobrenatural, do tranquilo, do sereno dos demais; é um homem movimentado e prestando atenção em tudo, de nariz pontudo, olhos saltados e mandão. Está bem à altura de tratar com camelos.

Até o Templo tem algo de esguio e virginal

Outro afresco traz a cena da Apresentação do Menino Jesus no Templo. Vemos a Santíssima Virgem e São José de um lado, de outro o Profeta Simeão e atrás está a Profetisa Ana. Interessa principalmente a atitude de São José e de Nossa Senhora. Quem apresentou ao Profeta o Menino foi Ela, que está com as mãos estendidas como quem O acaba de entregar. São José, recolhido e modestamente em segundo plano, acompanha a cena. Não creio que haja meios para decifrar quem é o terceiro personagem.

Uma atmosfera de santidade e pureza domina o quadro todo, a ponto de o próprio templozinho ter qualquer coisa de esguio e virginal. Notem como Giotto coloca um fundo meio azulado com numa tonalidade um tanto escura, que dá muito relevo à parte central do tema, ou seja, o Menino Jesus, o Profeta Simeão, Nossa Senhora, São José e a Profetisa Ana.

Na pintura que representa a fuga para o Egito, Maria Santíssima vai montada num simples burrico, São José à frente guiando, e eles apresentam todos os sinais exteriores da pobreza. Entretanto, a dignidade d’Ela é de uma princesa; seu porte retilíneo, as costas sem a menor inflexão, a cabeça alta indicam a resolução com que Ela enfrenta os riscos da viagem, que parece estar no começo.

São José vai caminhando na frente, mas atentíssimo ao que acontece com a Mãe e a Criança. Nossa Senhora não. Ela parece confiar em São José e em Deus; por isso mantém-se recolhida em oração com o Menino que está como que dormindo e agarrado à Mãe, um pouco para dar a entender a intimidade entre os dois, e como é cheio de propósito que Ela reze a Ele por aqueles que estão contemplando o quadro.

O sangue dos primeiros mártires começa a subir ao Céu

O Rei Herodes mandou matar todas as crianças de dois anos para baixo porque os Magos tiveram a inocência de procurá-lo, perguntando se tinha ouvido falar do Rei dos Judeus que tinha nascido. Herodes achou que dois reis no mesmo reino não cabiam e que, portanto, era preciso eliminar esse menino. Houve, assim, uma matança geral de inocentes. Estes foram os primeiros mártires da Igreja Católica. Por que mártires? Por uma razão muito simples: eles foram mortos por ódio à Fé, a Deus, ao Menino que lhes dera a honra de nascerem na mesma cidade que Ele. Mortos assim, embora não tivessem consciência de si mesmos, foram todos para o Céu como mártires. E são os Santos Inocentes cuja festa se celebra no dia 28 de dezembro, com um nexo, por motivos óbvios, com a festa de Natal.

É interessante notar o seguinte: quando os Anjos aparecem na noite de Natal, eles cantam “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Os primeiros atos que se desenrolam a partir do Natal são cheios de luz, de bênção e de paz, é verdade, mas carregados de ameaças para o futuro. O que parece, para um espírito superficial, estar em contradição com a ideia de “paz na Terra aos homens de boa vontade”, porque pareceria que os homens de boa vontade não sofreriam nem perseguições, nem lutas, nem qualquer dificuldade. Dentre os pais e as mães desses meninos, provavelmente alguns seriam homens de boa vontade. Entretanto, o que eles tiveram? O morticínio de seus filhos. Uma coisa, portanto, de assustar!

Vê-se numa espécie de tribuna um personagem que proclama um edito. Imediatamente lotam a cena os algozes, os executores, à procura das crianças, e as pessoas tentam se esquivar. No primeiro plano uma mulher que evidentemente não quer entregar o filho. Mais adiante percebem-se cenas de uma agitação e de uma violência, que leva a admitir como provável que já nesse magma estão sendo mortas as primeiras crianças. O primeiro sangue de mártires começa a subir ao Céu. É uma coisa extraordinária!

Alguém perguntará: “Eles não são batizados?” Essas crianças foram batizadas no próprio sangue. Constituem, portanto, as primeiras almas batizadas, decorrentes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco depois de Ele ter nascido.

Uma resposta afirmada majestosamente

Essa outra cena mostra o encontro de Jesus no Templo. Nela vê-se um aspecto interno do Templo de Jerusalém, todo meio romanizado. Por exemplo, aquela espécie de abóboda seguida de dois outros compartimentos colaterais é de estilo romano a conta inteira.

Dentro do Templo, de um lado e de outro, encontram-se os doutores da Lei discutindo a interpretação desse ou daquele ponto da Escritura. Mas o Menino Jesus já Se destacou tanto entre eles que ocupa a presidência dos sábios e está falando como verdadeiro Doutor. As pessoas estão perto d’Ele pasmas com o que Jesus diz, procurando ouvi-Lo com muito interesse e aproveitando as lições que Ele dava.

À esquerda, de pé, Nossa Senhora e, mais atrás, com sua vara florida, São José. A cena faz entender que o Santo Casal não compreendia a atitude do Menino Jesus. Maria Santíssima está numa atitude de quem pronuncia a famosa pergunta: “Meu Filho, por que agistes assim conosco?” (Lc 2, 48). Nosso Senhor parece estar dando doutoralmente – eu quase diria majestosamente – a resposta: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2, 49).

No céu chamejam raios e brilhos de glória

No Rio Jordão, São João batiza Nosso Senhor Jesus Cristo. O batizado se dava na forma de um verdadeiro banho e Nosso Senhor é apresentado, portanto, com uma parte do tronco desnuda por causa do banho. No céu chamejam raios e brilhos de glória.

Notem a situação um tanto paradoxal: dir-se-ia que a grande figura ali seria quem batiza, e o neófito, uma figura secundária. Mas Nosso Senhor é apresentado, apesar da grandeza de São João Batista, com uma majestade divina, uma seriedade e uma tranquilidade extraordinárias, que fazem d’Ele um verdadeiro Rei e dominador. Ele não está com nenhum atributo da realeza, ao contrário, apresenta-Se com o busto desnudo. Entretanto, vejam o jeito d’Ele e a própria atitude de São João Batista, como é respeitosa e até um pouco inclinada, embora segura, e em nada intimidada. No céu, a Glória de Deus transparece.

Nas Bodas de Caná – outro afresco presente na Cappella degli Scrovegni –, a narração do Evangelho dá a entender que havia muitas pessoas, a ponto de esgotar a provisão de vinho da família, o que deu origem ao milagre da transmutação da água em vinho. Porém, para economizar espaço, Giotto representou apenas a cena central, ou seja, a mesa principal das bodas, onde se encontram Nossa Senhora, São José e Nosso Senhor Jesus Cristo que está dando ordem para a água se transmutar em vinho.

É interessante ver como o pintor imaginou a cena: as várias talhas alinhadas nas quais estava a água que se transmutaria em vinho.

Por se tratar de uma festa, os anfitriões queriam ocultar a rudeza da pedra e por isso estenderam sobre a parede uma cortina de bom tecido, suspensa a uma altura maior do que a de um homem comum. Esse era um costume frequente na Idade Média.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/11/1988)

Esplendor do irreal

Dr. Plinio possuía, entre outros, o dom de discernir a alma dos povos. Fazendo considerações a respeito do japonês, dizia que, por detrás de sua fisionomia impassível, há — além de grande combatividade e capacidade de organização — uma delicadeza quase lírica e um espírito contemplativo enorme. Seus comentários sobre paisagens do Japão nos ajudam a compreender e admirar as qualidades nipônicas.

 

Resolvi que fossem projetadas algumas fotografias do Japão(1), para indicar certos panoramas profundamente diferentes daqueles com os quais estamos acostumados no Ocidente e, neste sentido, dignos de uma análise especial, com vistas a uma pergunta: como seria uma civilização católica japonesa?

Monte Fujiyama

Considerem o famoso Monte Fujiyama, cuja beleza está na doçura das formas com que ele se espraia. É um quê indefinido, orientalíssimo, lindíssimo, com uma natureza vegetal de um estilo completamente diferente do nosso. Essas cerejeiras nos dão a impressão de uma arborização feita de cristal; a cor um tanto avermelhada e a galharia um pouco cruzada são uma verdadeira maravilha, como delicadeza!

Observem como o Fujiyama desce numa linda suavidade sobre as encostas! Poderíamos imaginar onde pôr uma imagem, um mosteiro ou uma abadia. Mas seria necessário aparecer um engenheiro, um arquiteto que tivesse a inspiração de quem construiu a abadia do Mont-Saint-Michel. Porque, ou se põe sobre o Fujiyama uma obra de arte fenomenal, que o complemente, ou não se coloca nada. O céu é de um azul muito delicado, muito discreto.

Local ideal para uma capela ou um êremo

Vemos aqui uma construção num autêntico estilo antigo. Notem as formas suaves com que as pontas desse teto se levantam, constituindo ângulos.

Tudo isso é recolhidíssimo. Como faria bem para uma pessoa, por exemplo, passar uma manhã passeando por aqui, caminhando de um lado para outro por esses matos, tomando um barquinho e navegando nesse lago e, depois, chegando a esse pagode, aconchegar-se. Quanto recolhimento uma coisa dessa não daria!

Os povos do Oriente têm um chamado especial para a vida recolhida, e o número de vocações para as ordens contemplativas é muito maior do que no Ocidente. O cenário convida à contemplação. É uma dessas paisagens que possuem, a meu ver, o mais alto predicado que um panorama possa ter na Terra: a qualidade de reter. As coisas que vemos e que nos dão vontade de permanecer junto a elas, são de primeira classe. Aquilo que nos tira a distância psíquica(2) e nos dá vontade de sair, é de quinta classe.

Esse panorama que estou analisando nos convida a ficar. O telhado forma uma espécie de concha, tranquilizando o indivíduo que o contempla. Sente-se um certo ar de mistério pairando sobre esse edifício e essa paisagem. É um silêncio de todas as coisas o qual diz algo que não sabemos bem o que é.

É ou não é verdade que seria um local ideal para uma capela, ereta em louvor de Nossa Senhora, ou para um êremo(3)?

Castelo da época feudal

Outro lindo edifício: um castelo do tempo do feudalismo japonês. Considerem a delicadeza, o esplendor e a solidez da construção e, novamente, a delicadeza da vegetação.

Para saberem qual o valor e a utilidade de algo, eu aconselho imaginarem como seriam as coisas se aquilo não existisse. Suponham, por exemplo, que esse castelo não tivesse essas pontas, mas, pelo contrário, tudo terminasse em ângulo reto. Não seria uma coisa sem graça? Como foi tudo bem pensado! Quanto charme e quanta poesia tem isso!

Se não houvesse essas figuras e essas pontas, não ficaria monótona essa série de andares, um em cima do outro, parecendo um brinquedo de criança que faz uma torre com cubos cada vez menores?

O charme vem, precisamente, dessas pontas. Imaginem que alguém derrubasse essas duas figuras. O castelo não perderia algo de insubstituível? Esse teto, todo ele assim franzido, como nos proporciona um ponto de vista diverso! Por outro lado, acompanha o castelo preparando uma transição entre essa massa de edifícios e o rés do chão. Como tudo é bem calculado, nobre e distinto!

Reino do maravilhoso

Outro tipo de panorama tipicamente japonês, todo feito de beleza dos pormenores, é o das cascatas. Cada lance é uma espécie de reservatório. Às vezes, tem-se a impressão de que, ao correr, a água não faz um barulho estridente, mas um som à maneira de certas músicas japonesas.

Vejam a beleza dessa árvore vermelha. O vermelho da vegetação causa-nos a sensação de que a árvore se estende, cobrindo de um toldo essas quedas de água poéticas. Qual será a verdadeira altura disso? Não sabemos. Sem dúvida, é um lindo panorama!

Ao considerar a impassibilidade do japonês, não se sabe tão facilmente o que está se passando em sua cabeça, por detrás daquela fisionomia impassível. E quando nos perguntamos o que existe ali, notamos que, ao lado de uma grande combatividade, há uma delicadeza quase lírica, uma grande capacidade de organização e um espírito contemplativo enorme. Entretanto, nós entendemos essas palavras à ocidental. Seria preciso compreendê-las à japonesa, que é uma coisa diferente. E isso não sou capaz de exprimir, porque me faltam as palavras no vocabulário.

O que eu chamo de “oriental” é o seguinte: tomemos uma coisa gótica, por exemplo, a abadia do Mont-Saint-Michel; é bonita tanto quanto uma coisa o possa ser, mas não dá aquela impressão de feérico de uma coisa oriental, do conto de fadas do Oriente. E vale para o Oriente inteiro, porque algumas dessas paisagens são feéricas. Quando contemplamos a Baía de Guanabara, vemos que possui aspectos lindíssimos, de “toute beauté”(4); mas feéricos, nesse sentido da palavra, dando-nos a impressão de ter entrado no irreal, não. A natureza oriental é de uma elevação tal que não é o esplendor da realidade, mas do irreal. Isso é o dom da Ásia. É o reino do maravilhoso. Esse perfume do irreal é um dos modos de se chegar ao Céu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1972)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)

 

1) As fotografias que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Casas onde se vivia em regime de recolhimento, dividindo o tempo entre o estudo, a oração e as atividades de apostolado. Ver Revista “Dr. Plinio”, n. 174, p. 13, nota n. 4.

4) Do francês: de toda beleza.

Maria fons, Maria mons, Maria pons

Por estar no píncaro da Criação, a Santíssima Virgem é a intercessora necessária para os pedidos que sobem e para os favores que descem.

Há uma cançãozinha muito bonita que diz: “Maria fons, Maria mons, Maria pons”… Parece um jogo de palavras, mas de fato Nossa Senhora é a fonte, a montanha e a ponte.

Se analisarmos, encontraremos uma insinuação de píncaro até nisso, porque Ela é a montanha, a qual, por sua natureza, é um píncaro em relação a outras coisas. Também se diz d’Ela que é “mons super montes positum” – a montanha posta sobre todas as outras montanhas.

“Maria fons” é outro título à maneira de píncaro, ou seja, em relação a toda a natureza seca, a fonte de onde jorra a água tem uma espécie de culminância, de importância, pois a terra não subsiste sem a água.

“Maria pons”. Sem a ponte que une os bordos de um precipício o viandante não tem solução para seu caminho. A ponte garante sua travessia. É mais uma vez a noção de píncaro, em outro sentido.

A nota de píncaro está presente em tudo quanto é d’Ela, especialmente na virginalidade e na humildade levadas ao inimaginável, em contraposição à Revolução que visa levar ao extremo o orgulho e a sensualidade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/7/1991)

 

Revista Dr Plinio 236 (Novembro de 2017)

Mãe da Igreja e Rainha do mundo

São Luís Maria Grignion de Montfort diz que os Santos dos últimos tempos estarão para os das eras anteriores como carvalhos em comparação com graminhas. Isso por causa das orações extraordinárias que Nossa Senhora fará nessa ocasião.

Ela, como Mãe da Igreja, Rainha dos homens, Rainha do mundo, estará ainda mais associada ao curso dos acontecimentos. Suas orações também penetrarão como nunca até então, no âmago da História.

E enquanto o Inferno vomitar os mais horrendos monstros, Maria Santíssima suscitará, pelos desígnios da Providência sobre a História e a humanidade, esses homens extraordinários diante dos quais Moisés, Elias e outros Santos ficariam deslumbrados.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/11/1994)

Revista Dr Plinio 212 (Novembro de 2015)

A glória excelsa de Maria Santíssima

Por mais grandiosa que seja a Criação, há entre as meras criaturas e Nosso Senhor Jesus Cristo um abismo infinito. A Santíssima Virgem é o grampo de ouro que une toda a Criação ao Divino Redentor.

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Portanto, através d’Ela sobem a Deus todos os pedidos feitos pelos homens e vêm todos os favores concedidos pela Divina Providência.

Princípio da gradatividade

Para entender bem a importância de Maria Santíssima na Doutrina Católica é preciso compreender, antes de tudo, o papel de Nossa Senhora nos planos de Deus, Quem é Ela e qual sua fisionomia espiritual.

Quando observamos a natureza material que nos circunda — os bonitos panoramas, a mudança de cores e de luz durante o dia, etc. —, notamos serem frequentes formas de beleza, as mais excelentes, que se manifestam por meio de tonalidades intermediárias.

Por exemplo, o arco-íris: ele é composto por uma série de tonalidades intermediárias que combinam entre si e se sucedem, não de um modo brusco, mas harmonioso. Quando contemplamos os dois extremos de um fragmento do arco-íris, percebemos que, através de cores intermediárias, Deus fez a ótica humana passar harmoniosamente de um extremo de uma cor ao extremo de outra. Nessa conjugação de dois extremos, através de formas intermediárias de beleza, está verdadeiramente o encanto do arco-íris.

Nota-se algo semelhante em certas flores cujas pétalas vão mudando gradativamente de cor à medida que se distanciam da corola.

O princípio da gradatividade é um dos mais belos da natureza, segundo o qual todas as coisas se dispõem em graus. Há uma harmonia constituída de elementos diversos que se justapõem, fazendo-nos passar de um extremo a outro paulatinamente.

Ao avaliar colares, por exemplo, os joalheiros dão muita importância a este princípio. Há colares compostos por pérolas de diferentes tamanhos, nos quais as pérolas bem pequenas ficam junto ao fecho e, à medida que se aproximam do centro, elas vão aumentando sucessivamente, até dar numa pérola bem grande. É preciso que a diferença de uma pérola para outra seja proporcional. Esses graus sucessivos e harmônicos dão tal beleza ao colar a ponto de os joalheiros darem, muitas vezes, mais valor a um colar com pérolas de tamanhos diversos e gradativos, do que um colar onde todas as pérolas são grandes e iguais. Aliás, é mais difícil encontrar uma série de pérolas com tamanhos inteiramente adequados, e há uma forma de beleza mais artística nessas pérolas que formam, assim, uma coleção, do que um conjunto de pérolas grandes circundando o pescoço de uma senhora.

Observa-se este mesmo princípio em toda a natureza criada.

Minerais, vegetais, animais

Tomemos o brilhante mais estupendo, ou a pérola mais magnífica, e o comparemos com uma folha de alface, a mais ordinária que possa haver. Embora o brilhante tenha uma beleza extraordinária e um preço enorme, a folha de alface possui um predicado que deixa o brilhante longe: ela tem vida. Qualquer ervinha vale, do ponto de vista ontológico, incomparavelmente mais do que o brilhante.

Subindo a escala dos seres, a superioridade de um animal em relação a uma planta é simplesmente fabulosa! Pelo fato de que o animal tem sensibilidade e a planta não.

Se nos dermos ao trabalho de examinar, por exemplo, um gato andando sobre um telhado, veremos o mundo de finura e sensibilidade empregadas pelo felino. Cada passo é dado com “critério”; ele olha em volta de si e, quando percebe que a situação não é muito segura, não se precipita; examina, move um pouco a orelha, e quando está muito “preocupado” ele mia. Um gato só se joga quando percebe que pode jogar-se. Então, ele dá o pulo, cai com naturalidade e sai andando como se não tivesse acontecido nada; e às vezes são alturas vertiginosas! É uma sensibilidade muito aguda, muito perfeita, que o gato tem. Para algumas coisas, é mais perfeita do que a sensibilidade humana.

Comparem isso com uma árvore frondosa que deita galhos enormes onde pousam os pássaros, e cobre grande extensão de uma planície. Sem dúvida, é uma glória; mas que cativeiro! Ela está atada ao chão pelas raízes, incapaz de se defender. O próprio solo, do qual a árvore suga os elementos vitais, é a prisão onde ela permanecerá até morrer.

O ser humano, miniatura do universo

Acima dos animais estão os seres humanos, compostos de espírito e matéria e também dispostos hierarquicamente. Em seguida vêm os anjos, seres puramente espirituais.

Quando examinamos o universo dos seres intelectuais — homens e Anjos — notamos existir também uma gradação.

Os Anjos estão distribuídos em nove categorias dentro das quais não há um igual ao outro. Se fôssemos representar graficamente o mundo angélico, deveríamos imaginar, no caso dos Anjos bons, uma fileira fabulosa de espíritos, cada vez mais lúcidos, mais fortes, mais virtuosos e mais próximos de Deus, até chegar aos supremos, os Serafins que têm uma visão mais clara e direta do Altíssimo do que todos os outros Anjos, e repetem eternamente o “Sanctus”: “Sois Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos…”, aquela adoração muda e, ao mesmo tempo, feita continuamente de exclamações, no mais alto de toda a série dos Anjos.

Vemos, portanto, em todo o universo uma gradação: os seres sem vida, minerais; os vegetais, seres vivos sem nenhuma forma de conhecimento; os animais, com conhecimento meramente instintivo; os homens, dotados de conhecimento instintivo e intelectivo, mas ainda imersos na matéria; os Anjos, pairando acima da matéria. Assim, há uma escala que vai da última pedra, ou da poça de lama mais ordinária até Deus Nosso Senhor, por meio de uma gradação magnífica, na qual há uma hierarquia e uma harmonia extraordinárias.

Outro aspecto deste princípio é a ideia de que em todos os conjuntos hierarquicamente constituídos deve haver um elemento máximo, em torno do qual se ordena a beleza de todos os outros.

Quando nos perguntamos qual é o mais alto desses seres criados, devemos naturalmente dizer que é um Serafim. Mas as obras de Deus são cheias de subtilezas, entre as quais esta:

Sem dúvida, no alto da hierarquia das criaturas temos os Serafins, mas é verdade também que o homem apresenta uma qualidade especial: só ele contém em si o universo inteiro. Nós temos espírito como os Anjos, corpo como os animais, vida vegetativa como as plantas, e materiais tirados do mundo mineral. O homem é uma espécie de miniatura do universo.

Diz a Bíblia que Deus, depois de ter criado todos os seres, viu que cada um deles era bom, mas o conjunto era ainda melhor. E se é verdade que o Anjo é superior a nós por ser puro espírito, poderíamos, forçando um pouco a nota, dizer a ele, depois de lhe ter feito, evidentemente, uma profunda reverência à qual ele tem direito: “Vós sois incomparavelmente mais nobre do que nós, enquanto puro espírito. Contudo, o conjunto, em nós, está representado mais adequadamente do que em vós”.

Trata-se de um aspecto da realidade, cuja enorme importância no plano da Criação veremos a seguir.

Com a Encarnação do Verbo toda a Criação uniu-se a Deus

Como explica a Teologia, uma das razões pelas quais convinha que a união hipostática se desse com a natureza humana é precisamente o fato de que Deus, unindo-Se a um homem, honrava de modo especial todos os graus da Criação. É tão grande a dignidade de sermos um compêndio de toda a Criação, que motivou essa honra especial a qual o Verbo de Deus quis nos dar: Ele Se fez carne e habitou entre nós. Creio que Ele Se teria feito carne e habitado entre nós ainda que não tivesse havido o pecado original, para assim, na sua misericórdia, honrar todas as criaturas.

Vemos, por estas considerações, quanto é belo e piedoso o pensamento expresso por diversos autores segundo os quais, quando Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu, houve uma alegria em toda a natureza, e esta se revestiu de um novo esplendor: os astros brilharam com mais intensidade, o ar tornou-se mais puro, as águas das fontes ficaram mais cristalinas, as plantas tomaram maior viço, os animais se alegraram e se tornaram mais saudáveis; os homens bons adquiriram mais esperança. Por quê? Porque vinha ao mundo Aquele que, sendo o próprio Deus, ligara a Si todo esse conjunto por meio da natureza humana.

Quando olharmos a menor das pedras, a menor das plantas, o menor dos bichos ou o menor dos homens, devemos pensar isto: a natureza deles está, de algum modo, presente em Nosso Senhor Jesus Cristo e, assim, ligada a Deus, participando de sua glória no mais alto do Céu, no oceano de esplendor de santidade da Santíssima Trindade.

Um abismo preenchido pela Santíssima Virgem

Contudo, pelo mesmo princípio de gradatividade acima mencionado, o espírito humano, sequioso de ordem e de razoabilidade em todas as coisas, busca um ser que preencha o abismo infinito ainda existente entre Nosso Senhor Jesus Cristo e a mera Criação: um ser tão próximo do Homem-Deus, que estivesse acima dos Anjos; mas que, sendo pura criatura humana, englobasse também todas as demais naturezas.

Esse ser é precisamente Nossa Senhora. Ela foi colocada numa altura insondável, e numa plenitude de glória, de perfeição e de santidade inimagináveis. Acima d’Ela está somente seu Divino Filho e a Santíssima Trindade.

Por um mistério também insondável, Maria Santíssima gerou virginalmente Nosso Senhor Jesus Cristo, permanecendo virgem antes, durante e depois do parto por ação do Espírito Santo, de Quem se tornou, assim, verdadeira esposa.

A dignidade de ser Mãe do Verbo encarnado, Esposa do Espírito Santo e Filha dileta do Pai eterno coloca-A, embora sendo uma criatura puramente humana, acima dos Anjos.

Criada com a missão de obter a vinda do Messias

Dante, na “Divina Comédia”, depois de ter passado pelo Inferno e pelo Purgatório, percorre os vários círculos dos bem-aventurados no Céu. Quando chega aos mais altos Serafins, vê acima deles Nossa Senhora que sorri para ele. Então, ele olha para dentro dos olhos de Nossa Senhora e ali contempla o reflexo da Santíssima Trindade.

Depois de ter contemplado os olhos celestes e virginais de Maria Santíssima, resta apenas ver a Deus face a face, no Céu. O olhar humano chegou tão alto quanto podia chegar. Fitou o olhar puríssimo, sacratíssimo, sumamente régio e indizivelmente materno de Nossa Senhora! A mais alta das cogitações humanas foi feita, a “Divina Comédia” terminou.

Esta concepção nos faz ver que o princípio da gradatividade por mim enunciado comporta uma aplicação excelente em Nossa Senhora. Porque Ela é o grampo de ouro que liga toda a Criação a Nosso Senhor Jesus Cristo, colocada no alto de todo o universo e contendo em Si toda a beleza das meras criaturas.

Qual é o papel dessa criatura tão excelsa em relação a nós? Qual é a missão de Nossa Senhora na história de cada homem e na História da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, ou seja, no centro da História da humanidade? Porque o centro da História da humanidade é a História da Santa Igreja Católica.

A Santíssima Virgem sempre foi representada como estando em oração, no momento em que recebeu o anúncio do Arcanjo São Gabriel.

Sem dúvida, Ela pedia a vinda do Salvador que haveria de resgatar a humanidade e fundar a instituição a qual dispensaria a graça de Deus em tal abundância, que os homens afinal se tornassem, mais frequente e facilmente, virtuosos e, assim, a verdade, a beleza, o bem, a grandeza, o amor de Deus pudessem constituir-se no mundo e levar as almas ao Céu.

Nenhuma outra criatura humana tinha valor e virtude suficientes para impetrar e alcançar tal graça. Assim, Ela foi criada especialmente com a missão de obter a vinda do Messias esperado.

Seus sofrimentos durante a Paixão

Em certo momento, a Virgem Santíssima recebeu a revelação da Paixão pela qual passaria seu Divino Filho e dos sofrimentos atrozes que viriam sobre Ele e sobre Ela. Nossa Senhora deveria padecer em união com Aquele que sofreu como nunca nenhum homem tinha sofrido e nem sofreria até o fim do mundo. À “Passio” — Paixão — de Jesus se uniria a “compassio” — a compaixão, o “co-sofrimento” — de Maria.

Para que os homens pudessem ser salvos e dar glória a Deus, Ela consentiu em ser a Mãe do Redentor e suportar esses tremendos sofrimentos.

É possível conceber o que Nossa Senhora sofreu durante a Paixão?

Imaginemos o que sentiria qualquer mãe que, andando pela rua, ouvisse de repente um alarido e, aproximando-se, visse seu filho sendo chicoteado, deitando sangue por todos os poros, padecendo dores indizíveis, carregando uma cruz, objeto da selvageria de um populacho brutal, vil, dando risada dele, dizendo atrocidades e levando-o, junto com essa cruz, para ser crucificado e morrer no mais horroroso dos martírios, no alto de uma montanha.

Essa mãe desmaiaria, ficaria psicótica, louca, conforme o caso poderia até morrer.

Ora, Nossa Senhora queria a Nosso Senhor Jesus Cristo incomparavelmente mais bem do que qualquer mãe possa querer a seu filho. Em primeiro lugar, porque Ela é a melhor Mãe que houve e haverá; mas também porque Ela teve um Filho incomparavelmente melhor do que qualquer outro.

É difícil imaginar a graça e encanto manifestados por Nosso Senhor como Filho: todo o respeito, a ternura, a veneração, a delicadeza, a grandeza! Como terão sido os trinta anos de intimidade entre Ele e Nossa Senhora, durante os quais Ela O viu crescer em graça e santidade diante de Deus e dos homens e amou, com amor perfeito, cada estágio da perfeição d’Ele que ia se desenvolvendo? Qual era o abismo de adoração no qual Ela se desfazia em relação a Ele?

Pois bem, Ela vê esse Filho, o próprio Deus, a própria Santidade, tratado assim por aquele populacho!

Quando Ela teve o encontro com Ele durante a Via Dolorosa, quando O abraçou, O osculou, e recebeu a glória enorme de ter o seu rosto virginal e sua túnica tintos com o Sangue divino; quando Ela recolheu os gemidos d’Ele, e foi a seu lado subindo até o alto do Calvário; quando Ela viu seus estertores finais e Ele gritar: “Eli, Eli lamá sabactâni” — Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes? —; e depois dizer: “Está tudo terminado”, inclinar a cabeça e exalar o espírito: ao contemplar tudo isso, qual terá sido do sofrimento d’Ela?

Ela pedia o perdão para cada um de nós

Nesses momentos em que Maria Santíssima sofreu de um modo indizível, Ela manteve uma serenidade tão perfeita que Se conservou de pé o tempo inteiro junto à Cruz, com uma resignação e uma força que fazem d’Ela o modelo da criatura humana posta no sofrimento.

Até o último momento, Ela dizia ao Padre Eterno: “Eu consinto em que aconteça isso a meu Filho, para que Ele Vos dê a glória devida, salve as almas para Vós, ó meu Pai, e para que elas gozem da felicidade eterna junto a Vós no Céu”.

Dizem os teólogos que do alto da Cruz Nosso Senhor, cuja inteligência é infinita, conhecia todos os homens pelos quais Ele haveria de derramar até a última gota de seu Sangue. Via, individualmente, todos os pecados que cada um cometeria, sofria por todos esses pecados, e dava a sua vida para resgatar os pecadores que correspondessem à graça da Redenção.

Creio que para a compaixão de Nossa Senhora ser completa, Ela também nos conheceu individualmente naquela ocasião, e rezou em favor de cada um de nós. De maneira que, enquanto o Verbo de Deus via aquela multidão de pecados que se desprenderia dos homens ao longo dos séculos, Ela pedia perdão para cada um, e Ele ia perdoando pelo pedido d’Ela, pois, sendo inocente, Ela merecia o perdão que nós não merecíamos.

Foi, portanto, por causa das súplicas de Maria que cada um de nós obteve o dom de ser batizado, de conhecer a Igreja Católica, de receber os demais sacramentos, de ter devoção a Ela, e de manter-se fiel à Igreja nesses dias tormentosos em que vivemos. Será também pelo favor d’Ela que alcançará o Céu.

Nossa Mãe e Advogada

Eis o papel de Nossa Senhora como nossa Mãe e Advogada:

Mãe de Cristo, Ela é a Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça pelo Batismo. Mãe do Redentor, tornou-Se também a Mãe dos pecadores, desempenhando um papel que, de algum modo, o próprio Deus não poderia exercer. Porque Deus é juiz, mas Nossa Senhora, como Mãe, é naturalmente a advogada dos filhos.

É próprio ao papel de mãe defender o filho, por mais miserável, imundo, asqueroso, por mais crápula que ele seja. A mãe perdoa e pede a Deus que o perdoe também. A mãe está solidária com o filho até quando o pai o abomina completamente.

Nossa Senhora, Mãe supremamente boa, reza por cada um de nós e, considerando que as chagas de Nosso Senhor foram causadas, em parte, por nossos pecados, Ela pediu a Ele: “Meu Deus, meu Filho: pela minha inocência, pela minha virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, Eu Vos peço por este filho pecador. Em nome dessa chaga que Vós sofreis por causa dele, peço-Vos que o perdoeis”. E assim cada um de nós foi perdoado.

Foi, então, por meio de Maria Santíssima que Deus veio a nós na Encarnação e deu-se o Natal do Salvador, e é por intermédio d’Ela que vamos a Ele e recebemos os benefícios da Paixão e Cruz, isto é, da Redenção.

Por isso, morto Nosso Senhor, Nossa Senhora continuou a ser a grande intercessora junto a Ele, a Advogada que nunca abandonou homem algum, por mais pecador que fosse. A ponto de ensinar a Teologia que se São Pedro, depois de ter cometido o pecado horroroso de negar o Divino Mestre, não desesperou, arrependeu-se e se salvou, foi pelos rogos de Maria que lhe obteve a graça do arrependimento e o perdão.

E se Judas Iscariotes, o mercador péssimo que vendeu Nosso Senhor por trinta moedas, tivesse recorrido a Nossa Senhora, Ela o teria recebido com toda bondade e misericórdia, e obtido o perdão também para ele.

Após a morte do Salvador, é a Santíssima Virgem Quem reúne os Apóstolos em torno de Si, está junto a eles em Pentecostes, acompanha a Igreja nos primeiros passos e é a sua grande protetora ao longo de toda a sua existência, presente nas batalhas onde os guerreiros católicos venceram os exércitos inimigos da Fé, presente nos combates contra as heresias, e na luta que noite e dia cada homem trava contra seus defeitos, para adquirir maiores virtudes. E ainda que não nos lembremos de Nossa Senhora, Ela está Se lembrando de nós do alto dos Céus, pedindo por nós com uma misericórdia que nenhuma forma de pecado pode esgotar. Basta nos voltarmos para esta misericordiosa Mãe para que, cheia de bondade, Ela nos atenda e nos limpe a alma, dando-nos força para praticarmos a virtude e nos transformarmos de pecadores em homens bons.

Nunca nos faltarão forças para os sacrifícios necessários à prática da Lei de Deus, desde que as peçamos a Nossa Senhora. Aqueles que se voltam a Ela recebem tudo; aqueles que se afastam d’Ela não recebem nada.

Rainha do universo

Maria Santíssima é chamada pela Igreja a “Porta do Céu”. É por esta Porta que todos os homens obtêm as graças: por Ela nossas orações chegam a Deus, e também todas as graças descem para os homens. Tudo nos vem por intermédio de Nossa Senhora.

São Luís Grignion de Montfort utiliza uma bela imagem para ilustrar essa realidade.

Imagine alguém do povo que quer presentear o rei, mas não tem outra coisa para oferecer-lhe a não ser uma maçã. Mas não tem coragem de oferecê-la ao monarca, por ser um presente muito comum. Então, pede à mãe do rei que oferte ao rei essa maçã.

A mãe do monarca coloca a fruta numa bandeja de prata e lhe diz: “Meu filho, essa pessoa é minha filha também e pede-me para vos oferecer isto”.

O rei sorri e a recebe como se fosse uma esfera de ouro.

Por vezes, as melhores ações dos homens têm o valor de uma maçã; mas, oferecidas pelas mãos virginais e acompanhadas com o sorriso de Maria, Deus as recebe com encanto, agradece, e as recompensa. Quanto mais unidos a Nossa Senhora, mais poderemos praticar a virtude e nos tornarmos agradáveis a seu Divino Filho.

Como ensina a Doutrina Católica, se Nossa Senhora é de tal maneira a distribuidora de todos os dons, Ela é a Rainha do universo. E se Ela governa o universo inteiro, é também verdade que devemos nos consagrar a Ela como seus servos, deduz São Luís Maria Grignion de Montfort, para em tudo fazer a vontade d’Ela.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, eu sinto minha fraqueza, minha imperfeição. Será que Nossa Senhora quererá uma elevação dessas a mim, tão cheio de pecados?”

Eu respondo: Não tenho dúvida, porque Ela não recua diante do pecado de nenhum homem.

Símbolo eloquente da misericórdia de Nossa Senhora

Há na Venezuela um santuário consagrado à padroeira nacional, Nossa Senhora de Coromoto, onde se encontra, num ostensório, um pergaminho no qual está gravada a figura de Nossa Senhora sentada num trono, com o Menino Jesus nos braços e com um olhar de Rainha e de Mãe. A história dessa imagem da patrona da Venezuela é maravilhosa.

No tempo da colonização, havia na Venezuela uma tribo de índios chamados Coromotos, a alguns dos quais — entre eles o cacique — Nossa Senhora apareceu.

Os indígenas ficaram deslumbrados com aquela Rainha gloriosa que perguntou ao cacique se ele queria morar na cidade onde Ela reinava. Ele respondeu que sim. Então Nossa Senhora disse-lhe para procurar os homens que lhe colocariam água sobre a cabeça e lhe ensinariam o caminho do seu Reino, ou seja, o Céu.

O cacique mudou-se, com outros de sua tribo, para a região a eles reservada e, durante algum tempo, recebeu com gosto a catequese. Entretanto, em certo momento revoltou-se, abandonou tudo, voltou para a sua choça e deixou a Religião.

A Santíssima Virgem lhe reapareceu na entrada da cabana, risonha, amável, convidando-o para voltar às graças d’Ela.

Tão péssimo era seu estado de alma que ele tomou o arco e tentou atingir com uma flecha a celeste visitante. Não obtendo êxito, procurou agarrá-La, quando subitamente Ela desapareceu deixando-o com os braços paralisados. Quando o miserável conseguiu movê-los, encontrou entre eles a bela estampa que hoje é venerada no santuário.

Um verdadeiro milagre! Não obstante, ele, com raiva, escondeu a estampa no teto de sua choça. Mas Nossa Senhora, ainda assim, o perdoou. Infatigavelmente perseguia esse homem para convertê-lo.

Em determinado momento, ele não resistiu mais à graça, pediu perdão, recebeu o Batismo e morreu em paz, reconciliado com Nossa Senhora.

Quer dizer, depois das maiores ofensas, a Rainha do Céu o venceu e o perdoou. Este é o símbolo mais eloquente da misericórdia de Nossa Senhora, mostrando como nem os piores pecados daqueles a quem Ela ama são capazes de constituir uma barreira à bondade e à misericórdia d’Ela.

Em nossa época, a Santíssima Virgem está sofrendo agressões piores do que as recebidas da parte desse índio. Os pecados do mundo contemporâneo são muito mais cheios de malícia do que os desse miserável aborígene.

Nossa Senhora, entretanto, não quer o fim da humanidade, mas deseja o perdão para ela. E quando, em Fátima, Ela prenunciou castigos para o mundo, e disse até que várias nações desaparecerão, ao mesmo tempo anunciava a misericórdia, pois, diante dos castigos, pelo menos certo número dos homens contemporâneos vão se arrepender e ainda irão para o Céu. E muitos hão de viver perdoados por Ela para entrarem no Reino de Maria. Assim, Ela afirmou: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”

Nós devemos pedir a Maria Santíssima que, em relação a cada um de nós, Ela use da graça que teve para com o índio Coromoto: vença nossos obstáculos, aniquile nossas maldades e que seja verdadeira para o mundo contemporâneo, como para cada um de nós, a promessa do triunfo de seu Imaculado Coração, tornando-nos apóstolos dos últimos tempos, perfeitos filhos e escravos d’Ela, para que, por essa forma, o Reino de Maria substitua o reino do demônio sobre a face da Terra.

É isso que devemos pedir a Nossa Senhora depois dessa meditação sobre a glória excelsa d’Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

O verdadeiro heroísmo

A maceração da uva no lagar e o envelhecimento do mosto nos barris de carvalho são fatores imprescindíveis para a produção de um bom vinho. Além disso, a videira deve ser plantada em solo seco e pedregoso. Em suma, a videira só dá bom vinho em condições aparentemente adversas, ou seja, se “sofre”. Mas, é somente o fruto da videira que necessita de obstáculos para fazer desabrochar o melhor de si?

O vinho bem pode ser comparado ao ser humano. Cícero, grande orador latino, dizia que “os vinhos são como os homens: com o tempo, os maus azedam e os bons apuram”(1). E, de fato, tal como o fruto da videira necessita “sofrer” e “esperar” para alcançar o requinte de seu próprio sabor, assim é o ser humano: para adquirir a plenitude de sua personalidade, não requer comodidades nem prazeres, mas padecimentos e docilidade à vontade divina.

O sofrimento é, pois, um valioso bem para o homem.

Possui a natureza humana uma capacidade de sofrer que necessita ser atendida. O pior sofrimento do homem seria jamais sofrer, o que, aliás, é utópico neste vale de lágrimas. Com a dor, o ser humano sai de seu egoísmo, compreende a sua contingência e se abre para o sobrenatural. E para muitos, como ocorreu com o Apóstolo, é a dor o marco inicial do caminho da conversão para Deus.

Pois “não há coisa mais adequada para conferir nobreza à alma do que o sofrimento; e não pode haver nobreza para a alma sem sofrimento.” (Conferência de 23/4/1964)

Por isso, pode-se dizer que quem não sofreu, não viveu. Uma biografia só tem valor quando seu protagonista passou pelo crisol da dor. Diz São Luís Grignion de Montfort que “sem a cruz a alma se torna vagarosa, mole, covarde e sem coração. A cruz a torna fervorosa e cheia de vigor. Quando nada sofremos, na ignorância permanecemos. Temos inteligência quando bem sofremos”(2). Mas não precisamos ir à procura do sofrimento, uma vez que ele está a todo o momento batendo à nossa porta. Justamente na plena e conformada aceitação dele se encontra o verdadeiro heroísmo, igual ou maior até do que o das armas. Pois bem podem as dores morais ser mais penosas do que as físicas. E é a dor, somente ela, que nos faz verdadeiros heróis diante do Senhor: o sofrimento bem aceito produz o precioso vinho espiritual da santidade.

A dor moral de Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras, ao aceitar antecipadamente os indizíveis padecimentos da Paixão, foi autêntico, sublime e insuperável heroísmo. Assim, a Mãe das Dores, apesar de não ter sido tocada fisicamente, sofreu com seu Divino Filho mais do que qualquer ser humano foi capaz de fazê-lo na História, a ponto de ser chamada a Rainha dos Mártires, e ser para todos os homens modelo perfeito e autêntico de prática heroica das virtudes, ou seja, de santidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plino 164 (Novembro de 2011)

1) http://www.academiadovinho.com.br
2) São Luís Grignion de Montfort. Cântico XIX, O triunfo da Cruz – 18.

A conversa e o apostolado de afinidades

Consonância e desacordo, duas condições inerentes ao convívio humano a serem levadas em conta pelos que desejam praticar a arte de bem conversar. Evocando exemplos cogentes, e até pitorescos, Dr. Plinio nos ensinará quão importante é o saber lidar com tais disposições de espírito para alcançarmos êxito em nosso apostolado.

 

Como vimos em anterior ocasião, a conversa deve ser considerada como uma verdadeira arte, e sobre ela se levantam algumas questões que merecem aprofundamento.

Acordo e desacordo numa conversa

Por exemplo, qual a atitude mais apropriada a se tomar em face de um interlocutor que não concorda conosco e está disposto a discutir?

A importância de coincidirem as opiniões depende do tema contemplado. Certos assuntos são banais, inócuos, não estabelecem vínculo algum de alma, nem qualquer ligação pessoal. Digamos, a escolha do trajeto mais curto para se ir a determinado local. Trata-se de uma trivialidade.

Há temas que podem conduzir a ponderações mais elevadas. Imaginemos dois colegas, alunos de um mesmo professor de Química. Esta matéria, de si, não implica em nenhum laço particular entre os rapazes. Ambos estão concordes quando o mestre ensina que a água é composta de hidrogênio e oxigênio, expressa pela fórmula H2O. Um conceito elementar.

Porém, quanto ao modo de lecionar e de tratar os estudantes, a apreciação a respeito da pessoa do professor toma outro vulto, pois o assunto é mais profundo. Com efeito, a maneira de ensinar indica maior ou menor clareza de inteligência. Se o instrutor é sábio, e os dois colegas o prezam por isso, estabelece-se uma ponta de vínculo entre estes. Mas, se um deles afirmar: “Prefiro tal outro professor que conta anedotas; esse de Química é muito sério”, pode haver uma divergência nesse relacionamento, porque surgiu o desacordo acerca da maneira ideal de ser do professor.

Todo aluno — pelo menos no Brasil — procura discernir o tipo humano do seu mestre. Seja qual for a matéria,  na primeira aula o rapaz não presta muita atenção no que ouve, pois a sua capacidade de análise está voltada para apreender a personalidade daquela figura junto ao quadro negro. Ele fica observando atentamente os mínimos detalhes que deixem entrever a psicologia, a mentalidade, o caráter do novo professor.  Assim sendo, as considerações sobre este envolvem algo mais complexo, às vezes uma verdadeira concepção da vida.

Ora, quando os colegas concordam no tocante à concepção da vida — como deve ser ela, o homem, a autoridade, o ensino, etc. — surge uma maior afinidade de alma, pois o tema é mais profundo. E quanto mais significativo é o tema, maiores afinidades se vão estabelecendo entre ambos.

Religião, o ponto máximo de consonância

Ampliando os horizontes dessas reflexões, é preciso ressaltar que as consonâncias se verificam, sobretudo, a propósito da religião. Esta constitui o assunto mais importante e mais próprio a atingir o íntimo da alma humana. Quando um indivíduo é seriamente católico, ele possui maneiras de pensar, sentir e agir decorrentes de sua posição religiosa, e se torna verdadeiro irmão do próximo, se percebe nele as mesmas disposições. Forma-se, então, a plena e real amizade entre os dois.

Nesse sentido, evoco meu exemplo pessoal. Não tive irmão de sangue, mas muitos primos com os quais mantinha assíduo relacionamento.  Porém, como não praticavam a religião, achava-me isolado no meio deles, pois não havia essa união de almas característica do convívio entre católicos. Diferente de quando ingressei na Congregação Mariana de Santa Cecília e passei a conhecer rapazes deveras piedosos, em cujo relacionamento encontrei os irmãos que procurava.

Essa situação, aliás, verifica-se na vida de qualquer jovem. Nas ocasiões em que conversa com outro e percebe a sintonia de pensamentos e de Fé católica, abrem-se as vias de uma grande amizade, pois a mesma crença é o que realmente os une.

“Teu coração é igual ao nosso!”

Um fato histórico ilustra, de modo muito bonito, essa ponderação.

No século XVI os católicos chegaram ao Japão, com alguns padres da companhia de Jesus e uns tantos leigos.  Durante anos evangelizaram aquele país asiático, convertendo bom número de pessoas. Erigiram uma igreja católica, a qual funcionou até o momento em que houve intrigas fomentadas por protestantes holandeses. Estes eram comerciantes, frequentadores das costas nipônicas e concorrentes dos espanhóis, conterrâneos daqueles jesuítas. Os batavos urdiram desavenças entre os padres católicos e o imperador, que, convencido pelas insídias, determinou a proibição e abolição do culto católico, além de condenar à morte todos os seus súditos que não abjurassem a Fé cristã.

Travou-se uma guerra na qual os católicos se defenderam heroicamente, tendo toda a razão de seu lado. Mas, por fim, sucumbiram ao poderio numérico e militar das tropas imperiais.  Na fortaleza de Shimabara, último reduto deles, a resistência encarniçada terminou com um massacre de católicos, martirizados por sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Tudo indicava a extinção do catolicismo naquelas paragens. Passaram-se duzentos anos sem que ele despontasse novamente. Até que outro imperador, liberando os portos japoneses para navios estrangeiros, permitiu também o proselitismo das religiões, entre elas a Católica. Em vista disso, missionários para lá se dirigiram e reencetaram o trabalho com o povo. De início, a pequena igreja que abriram era visitada apenas por europeus negociantes ou turistas. Católicos japoneses quase não os havia, e poucas eram as conversões.

Tempos depois, deu-se este lindo fato, consignado por um padre em carta escrita a um amigo. Na igreja vazia entram alguns nipônicos cautelosos, observando tudo no interior do templo. Após a detida análise, procuraram o único sacerdote ali presente e lhe fizeram uma série de perguntas sobre a Sagrada Eucaristia, Nossa Senhora e o Papa. Como as respostas conferiam com o que haviam aprendido sobre a doutrina católica, suas faces se iluminaram, e disseram essa frase de extrema beleza: “Então teu coração é igual ao nosso!”

Diante da surpresa do sacerdote, eles explicaram: “Somos descendentes de católicos japoneses que se esconderam das autoridades e praticavam a religião na surdina. Do último padre que aqui esteve esses nossos antecessores receberam a promessa da vinda de novos ministros da Igreja. Porém, advertiu-os quanto aos protestantes.  Para distinguir uns dos outros, deveriam perguntar sobre esses três pontos. Se respondessem como ele havia ensinado, seriam católicos”.

Como se pode imaginar, foram recebidos  com imenso agrado, e dali a pouco os familiares de todos ingressavam no grêmio da Santa Igreja, sendo batizados, crismados, etc. Recomeçou assim a comunidade católica no Japão.

Atrair as almas pelas afinidades

Esse tocante episódio nos mostra quão vigoroso é o liame determinado pelas consonâncias de Fé. Leva-nos, igualmente, a compreender o aspecto mais alto envolvendo a arte da conversa. Pois para um apóstolo que dela se serve como instrumento de sua ação junto às almas, constitui motivo de alegria notar as afinidades e as sintonias que vão se firmando entre ele e seus interlocutores. Mesmo que estes não pratiquem ainda a religião católica como era de se desejar.

Por exemplo, tal jovem cuja vida de piedade não é um modelo de perfeição, mas demonstra um raro pudor nas suas atitudes. É exigente e idealista no que diz respeito à pureza, e se agrada no contato com pessoas castas. O apóstolo pensa: “Embora este apresente tantas lacunas, nesse ponto vejo brotar nele o elemento fundamental de um bom católico”. Se é assim, cumpre dedicar-se no trato com ele, para que aquela semente se dilate, germine e dê todo o fruto esperado por Deus e Maria Santíssima.

Como já vimos, daí nasce um traço de ligação entre essas almas, o qual deve ser cultivado da seguinte maneira: conversar amiúde sobre o que as une, exaltar e elogiar a virtude da pureza nas suas diversas manifestações, criticar imoralidades, etc.  Aos poucos, estender essas conversas a outros gêneros de assuntos, relacionando a pureza com as demais virtudes e qualidades que lhes são conexas. Digamos, explicar ao jovem a relação entre castidade e ordem, impureza e desordem, e procurar desenvolver no espírito dele o senso da ordenação, do bom gosto, das maneiras gentis, amáveis, do heroísmo, da coragem. Ao incrementar tudo isso, faremos com que desse tronco inicial — o amor à pureza — brotem galhos frondosos, isto é, as muitas virtudes ligadas à castidade.

Para o apóstolo, essa situação se assemelha à visão de um nascer do sol. É o espírito católico que, como o astro-rei, levanta-se num determinado ponto do horizonte espiritual da pessoa evangelizada, vai se alargando, alargando, alargando, até tomar a sua mentalidade inteira. Com um encanto especial: ele, apóstolo, é quem contribui para o nascimento desse sol naquela alma.

Imaginemos quanto júbilo teria um homem que, por qualquer artifício, pudesse apressar o erguer do sol nas regiões ásperas e difíceis da Antártica!  Que alegria o tomaria ao ver brilharem sobre ele os fulgores da grande estrela, acalentando-o e o animando para o novo dia!

Ora, podemos nós levantar sóis naqueles em que percebemos algo de bom, colaborando para ampliar e desenvolver nele essa bondade, até que ela o tome por inteiro. E uma das maiores felicidades reservadas para nós nessa vida é vermos esse sol resplandecendo no coração do próximo. Então nos lembramos daquelas arrebatadoras palavras: “O irmão que salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu, como um sol, por toda a eternidade…”

Devemos, pois, analisar naquele com quem conversamos, o que lhe agrada ou não, os acordos e desacordos, as consonâncias de assuntos, etc., para, nos encontros subsequentes, abordar os temas de interesse mútuo.  E agir assim de modo progressivo, permitindo aos fios que ligam a alma dele à nossa se tornarem mais fortes e consistentes.

Dessa forma, o apostolando sentirá desejo de se encontrar conosco, porque nota a afinidade estabelecida entre nós. Ele, provavelmente incompreendido e isolado no seu meio,  passa a se ver benquisto, apoiado e revigorado. Donde a sua presença em nosso ambiente adquirir para ele imenso significado. Mais uma alma terá sido atraída para se afervorar na devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora.

E tudo começa pela boa consonância, o bom acordo estabelecido na conversa conduzida com tato e discernimento pelo apóstolo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 80 (Novembro de 2004)

 

Flashes com a santidade da Igreja

As graças atuais, dons divinos que iluminam nossa inteligência e auxiliam nossa vontade para realizar o bem e nele perseverar, constituem fator inestimável para a nossa santificação. Dr. Plinio nos contará a seguir circunstâncias de sua vida nas quais, à maneira de “flashes”, essas graças lhe foram concedidas a fim de compreender e contemplar verdades eternas, como a divindade da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Ao dissertar a respeito dos flashes(1), procuro descrever antes o que se passa na alma dos outros, em vez de analisar os meus próprios movimentos interiores. Instado, porém, a dar um testemunho pessoal, volto-me para minhas lembranças dos vários fla­shes que tive desde menino, enriquecidos, avolumados com o passar dos anos, e conservados por mim numa espécie de síntese de todos eles.

Os meus flashes de infância são tão remotos e, naturalmente, marcados por algo de tão incipiente e pueril, que evocarei apenas dois exemplos, esperando satisfazer assim a filial curiosidade dos meus ouvintes.

O órgão, um universo de sons

Recordo-me da primeira vez que prestei atenção no timbre do órgão. Encontrava-me na Igreja do Coração de Jesus para assistir Missa e, de súbito, começaram a tocá-lo. Certamente já o tinha ouvido em outras ocasiões, mas nunca lhe dera importância. Entretanto, naquele momento recebi um verdadeiro flash, pois tive a impressão de uma plenitude de sons capaz de ser expressa pelo instrumento, de modo muito adequado, embora sintético. Não como o universo de acordes ao alcance de qualquer piano de bairro, mas cada som trazendo consigo a conotação de uma miríade de outros acentos, de maneira que um dó varia num mundo de dós, o mesmo sucedendo com o ré, o mi, etc.

Mais ainda. Com a profusão de registros, o universo sonoro do órgão é desencadeado, manipulado e posto em movimento pela pessoa que o dedilha, acompanhado da ideia de haver nele ressonâncias prodigiosamente harmônicas, pois cada som é um protótipo que se multiplica, desdobra-se, fomenta-se pelas diferentes vibrações. Esta harmonia interna em cada nota se reproduz, por sua vez, na relação de umas com as outras, e o teor desse comércio no mundo dos sons é um lindo símbolo de todos os estados de espírito, normais, dignos e bons, no convívio humano.

Logo, há uma reversibilidade entre o universo moral do homem e o dos sons. Acima de tudo, paira a ideia de que só a Igreja Católica pode ter inspirado, presidido e levado a cabo essa visão de conjunto. Daí a conclusão: a Igreja Católica é santa; portanto, divina.

Naturalmente, essa concepção não vinha ao meu espírito com essa clareza. Era um flash, como qualquer pessoa pode ter, pois é conforme à nossa natureza, quando meninos, termos essas impressões instantâneas, riquíssimas, análogas a um inopinado nascer de sol, sem aurora, surgindo direto na plenitude do meio-dia.

Não me foi difícil perceber que no flash haveria uma verdade — “il y a de vrai là dedans”, dizem os franceses — a ser escavada de modo indefinido. E no decorrer dos anos consegui explicitá-la, como acabei de fazê-lo. Não se imagine, pois, ter sido eu um menino genial, uma espécie de “Mozartzinho” da Filosofia… Minha capacidade intelectual não chegava a tanto.

Compreendendo a divindade da Igreja

Certo tempo depois, tive essa mesma sensação na Igreja de Santa Cecília, onde, pela ação do Divino Espírito Santo, discerni a santidade e a divindade da Igreja Católica, em oposição à Revolução. E compreendi como me seria concedida a graça de pertencer inteiramente à Esposa Mística de Cristo, no momento em que todas as potências de minha alma vibrassem em uníssono com aquele órgão. Então meu espírito teria alcançado sua plena realização.

Foi um flash deveras intenso, corroborado pelas vívidas impressões determinadas por alguns aspectos do edifício sagrado.  Por exemplo, os vitrais dessa igreja são autênticos, com belas policromias, e mais atraentes que os comuns dos templos da cidade de São Paulo (em geral, apenas janelas com vidros coloridos, sem maiores labores artísticos).

Na mencionada ocasião, levado por minha família para alguma cerimônia litúrgica, entrei na Igreja de Santa Cecília numa hora em que os raios do sol atravessavam os vitrais da capela-mor e também os situados ao longo da nave central, do lado esquerdo de quem olha para o altar principal. Estavam iluminados, com as suas tonalidades imersas em maravilhosa harmonia, tomando rutilância e brilho extraordinários.

Admirei aquele esplendor e pensei: “Que cores! Como seria agradável morar dentro de um desses vitrais! Se houvesse um espaço habitável, onde tudo fosse como essa apoteose de colorido, e eu pudesse passear de vitral em vitral por vários ambientes, sem qualquer empecilho, apenas me alimentando dessas cores, do ar e do perfume condizentes com elas, eu seria capaz de perceber harmonias e belezas de uma ordem do ser maravilhosa, que não pertence a esta Terra.

“Se eu pudesse morar nesse espaço, perceberia também que minha alma se sentiria completamente realizada ao fazer tal excursão através do mundo dessas cores banhadas pelo sol. Então, penetrar num verde ou azul absolutos, observar todo o percurso da luz — desde a aurora até o crepúsculo — através dessas cores que iriam mudando de tonalidades, sem ninguém me interromper nem perturbar! O tempo todo estaria ali, tecendo reflexões e contemplações baseadas nesses coloridos…”

Não é difícil entender que essas meditações seriam de caráter religioso, e que se fosse materialmente possível semelhante situação, eu me sentiria feliz ao extremo, por me ter sido franqueado o conhecimento de umas tantas coisas muito mais valiosas que aquelas pelas quais os homens têm apreço.

Compreendi, pois, o que era a santidade, a perfeição e a divindade da Igreja Católica, aplicando aos vitrais o mesmo raciocínio feito a propósito do órgão.

“Nunca me separarei da Igreja Católica!”

Num passo seguinte, corri os olhos sobre uma galeria existente na nave central, com pinturas em estilo mosaico, retratando bispos antigos do Brasil, revestidos de seus paramentos, cada um deles no seu pequeno pedestal, em atitudes convencionais, provavelmente bem diferentes da realidade histórica, mas exprimindo algo do bispo ideal.

Eu os observava e pensava: “Meu Deus, que coisa fantástica! Na ordem espiritual, esses bispos são o que as cores daqueles vitrais significam na ordem natural. Cada uma dessas almas é como um vitral da Igreja Católica. Isso é maravilhoso!”

Em seguida, vi os quadros do martírio de Santa Cecília e outros objetos de arte. Aquilo tudo encheu minha alma, tocada com um verdadeiro flash.

Ao sair de lá, concluí: “Da Igreja Católica não me separo nunca! Fui feito para ela e sem Ela a vida não tem sentido. É mesmo divina, e n’Ela creio. A apologética será útil para outros. Para mim, a prova dessa divindade está dada”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 80 (Novembro de 2004)

 

1) Sobre a doutrina dos “flashes”, ver “Dr. Plinio” nº 55, págs. 16-20.