Confiança nos impossíveis

Um lema fixado por jovens revolucionários na Universidade de Sorbonne dá ocasião para Dr. Plinio tecer preciosos comentários

 

Alguém me pediu para comentar o seguinte lema afixado na Universidade de Sorbonne durante seus dias de agitação:

“Seja realista, exija o impossível.”

Mesmo defendendo a pior das causas, há nesta frase o inegável talento francês.

Em primeiro lugar, devemos nos perguntar: esse lema é correto ou não?

Em face dele, dividem-se duas famílias de almas: uma constituída pelo espírito geométrico, e outra, pelo espírito de “finesse”.

O espírito geométrico é contra uma afirmação dessas. Para ele, é próprio da utopia exigir o impossível. Logo, é um absurdo dizer: “seja realista, exija o impossível”. Pelo contrário, diria alguém desta corrente, “seja realista, exija o possível”; ou então, “seja realista, e não exija o impossível”.

Porém, as pessoas que têm o espírito de “finesse” compreendem o significado desta afirmação. Ou seja, esta espécie de contradição berrante, que é exigir o impossível, aqui quer dizer o seguinte: esse impossível vem psicologicamente entre aspas.

Impossível para o medíocre… Possível para o fogoso!

Há coisas impossíveis para os indivíduos “pocas”(1), cujos horizontes são limitados e circunscritos, e que por isso facilmente desanimam diante de lances qualificados de impraticáveis, mas que na verdade não o são.

Porém, há homens com inteira noção da realidade, os quais pensam:

“Vocês, moles, pensam ver a realidade, mas na verdade estão apenas na superfície dela. A profundidade da realidade, bem analisada, mostraria haver mil coisas aparentemente impossíveis para os espíritos sem ‘chama’; mas, para os que têm ‘chama’, são possíveis. A ‘chama’ torna possíveis coisas aparentemente impossíveis.”

A História está cheia de exemplos dessa natureza.

Quem vai a Barcelona e visita o fac-símile das naus de Cristóvão Colombo tem um exemplo disso: verdadeiras cascas de noz, com as quais se teria medo de atravessar a represa de Santo Amaro…

Entretanto, eles vieram até a América. E, exatamente no momento em que se planejava uma revolta a bordo — Cristóvão Colombo estava diante de uma revolta dos “pocas” que julgavam impossível atingir o objetivo, porque afinal de contas, nunca se chegava — alguém gritou: “Terra à vista!”

Quer dizer, estava‑se chegando precisamente no momento em que o “impossível” para os medíocres tinha se tornado possível.

Contudo, este é um fato natural.

Impossível até na ordem natural…

Do lado sobrenatural isto é muito mais bonito, muito mais rico. E a riqueza está no seguinte: quando Nossa Senhora quer algo, Ela o realiza contra todas as esperanças e aparências; mesmo o impossível para os grandes homens é possível para Nossa Senhora, porque a oração d’Ela é onipotente, Ela obtém de Deus absolutamente tudo quanto Ela quer.

De maneira que, muitas vezes, nós devemos tentar coisas não só impossíveis para os “pocas”, mas impossíveis também na ordem natural das coisas. Devemos exigir o impossível de nós mesmos, porque Nossa Senhora nos dará.

Mas, como podemos ter certeza se Nossa Senhora dará ou não?

O Livro da Confiança(2) começa com as magníficas palavras: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós murmurais no fundo de nossas consciências palavras de doçura e de paz”.

Realmente, nós temos uma voz interior que não fala, não usa palavras, mas se comunica conosco pelo movimento dos pressentimentos, das virtudes, das consolações da alma, e nos indica o que Nossa Senhora quer de nós.

Muitas vezes esta voz quer de nós algo impossível, mas devemos crer no incrível, abordar o inabordável, meter-nos a transpor o intransponível, porque do outro lado está Nossa Senhora.

“Nunca em minha vida eu fui decepcionado nesta posição interior de alma.”

Como podemos diferenciar o sinal interior dado por Nossa Senhora de uma simples fantasia?

É muito fácil: se um determinado movimento de alma nos leva à virtude; se esse pressentimento de alma não satisfaz o nosso amor-próprio, certamente vem de Nossa Senhora.

Ele pode não se realizar como imaginamos, mas seguramente ele acaba se realizando. E é este o modo pelo qual nós podemos ouvir esta voz de Cristo, voz misteriosa da graça, dizendo a nossas almas palavras de doçura e de paz.

Poderá haver ocasiões em que sobrevenham movimentos de desânimo por estarmos numa situação sem saída. Apesar disso, teremos um pressentimento interno de que Nossa Senhora resolverá a situação.

Nunca em minha vida eu fui decepcionado nesta posição interior de alma. E eu já estou com cinquenta e nove anos e meio. Nunca eu dei crédito a esse movimento interior da alma, e depois tive uma decepção. Nunca, nunca, nunca!

Isto não quer dizer que muitas coisas não tenham demorado além do imaginado por mim; não quer dizer que as circunstâncias não tenham sido diversas das esperadas por mim, mas a substância nunca me decepcionou, e, em geral, foi além de minha expectativa.

Como filhos de Nossa Senhora, nós temos o direito de esperar o impossível, e nós temos o direito de exigir que da nossa ação brote o impossível.

Devemos agir imperativamente, sabendo que aquilo vai dar certo.

Uma provação na linha do desânimo: uma cisão na Ação Universitária Católica

Lembro-me da primeira provação séria que eu tive a esse respeito, a qual me causou uma perturbação tremenda.

Eu tinha uns vinte anos quando consegui aglutinar alguns companheiros de faculdade, para fundar o primeiro núcleo de católicos na Faculdade de Direito. Isto parecia uma coisa completamente impossível.

Eu não sabia como, no interior de minha alma, dar graças a Nossa Senhora pelo que estava acontecendo, sobretudo por prever ser este o primeiro movimento de “chama” em torno do enorme “pavio” que se acenderia.

Pois bem, pode-se imaginar o meu estado de espírito quando nesse embrião da Ação Universitária Católica, contra toda a minha expectativa, arrebentou uma cisão interna, promovida por um indivíduo que queria uma forma de apostolado completamente heresia‑branca(3).

Eu pensei: “Como? Uma cisão entre católicos? Mas que monstruosidade é esta?”

Certo dia, indo para uma reunião, onde esta cisão deveria liquidar‑se, eu estava andando de bonde no Viaduto do Chá, quase só, e ruminando aquela história, com uma pavorosa tentação de desânimo…

Mas, eu senti em mim o que Abbé Saint Laurent chama no Livro da Confiança a voz sobrenatural de Cristo, voz sobrenatural da graça, que murmurava em minha alma palavras de doçura e de paz. Eu pensei então:

“Eu não vou prestar atenção nisto e vou caminhar de olhos fechados em cima desta coisa! Aconteça o que acontecer, eu vou andar para a frente!”

Foi a primeira prova, muitas assim vieram depois.

Todos passarão por circunstâncias onde a voz da Confiança parecerá ter mentido. Não acreditemos, pois ela nunca mente, e sempre acaba realizando o que prometeu.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1968)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

1) Palavra criada por Dr. Plinio para exprimir algo medíocre, mesquinho.

2) Cfr. Dr. Plinio nº 129, p.25.

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

A fina ponta da esperança

Vejamos como Dr. Plinio discorre sobre a relação entre a esperança e a confiança.

O homem vive de esperanças. Salutares ou — helas! — nocivas, quem não as teve? Ainda quando era improvável tornarem-se realidade, os homens adequavam suas vidas às esperanças que possuíam.

Sim, isso era comum, mas no tempo presente, repleto de inebriantes descobertas da tecnologia, parece ser que a esperança vai, de modo paulatino, cedendo lugar ao anseio pelo imediato, à satisfação de caprichos do momento, a uma visualização que considera a existência humana como voltada somente para o prazer reles e passageiro. Sempre houve quem tivesse essa mentalidade, mas o problema novo é que ela vai se impondo universalmente, como se fosse o único valor a ser buscado.

Até que ponto a enxurrada de novidades contribuiu para este resultado? Não se sabe. O certo é que os homens, em número crescente, vão se desinteressando do futuro e fechando-se sobre si mesmos. “Não me interessa o amanhã, eu vivo cada dia”, dizem. Renunciaram à esperança.

Com isso vai desaparecendo toda forma de grandeza que pressupõe a esperança, ao passo que cada vez mais pessoas sofrem de tédio, depressão e até desespero. Todavia, por mais que sejam adversas as circunstâncias nas quais vivemos, a solução para se recuperar o equilíbrio perdido é simples: fortificar a esperança por uma certeza, acrescida de um novo vigor: a confiança!

Pois como afirma São Tomás: “A confiança é uma esperança fortificada por uma opinião firme”.

Vejamos como Dr. Plinio discorre sobre a relação entre a esperança e a confiança.

Qual é a diferença entre esperança e confiança?

Quando se espera algo, tem-se certa alegria pela perspectiva de que alguma coisa boa acontecerá; porém, quando se confia, não há apenas alegria, mas também certeza.

A confiança é a fina ponta da esperança; ela dá forças a nossas almas e nos faz irmos adiante.

Enquanto a esperança nos dá fundadas razões para termos quase certeza de que nos acontecerá determinada coisa boa, a confiança, entretanto, nos dá a plena certeza.

A virtude da confiança representa a voz de Deus no interior de nossas almas.

Para nós que estamos talvez na orla dos acontecimentos previstos por Nossa Senhora em Fátima, a virtude da confiança se põe nos seguintes termos: estamos diante do perigo, mas sabemos que a Providência quer utilizar-se de nós para vencer esse perigo. Sendo assim, nós temos confiança, ou seja, temos certeza, de que seremos instrumentos da Providência para vencer tais perigos. Essa é a certeza da confiança.

Nessas condições, devemos pedir a Nossa Senhora que em todas as ocasiões difíceis de nossa vida nos dê confiança e não deixe de suscitar no interior de nossas almas o seguinte movimento:

“Se Nossa Senhora me chamou para uma missão, Ela fará com que eu a realize, pois este chamado não poderá ter sido em vão.”

Então, ainda que tudo pareça contrariar minha esperança, eu avanço contra o perigo, em paz, porque confio que vai se realizar tudo quanto Ela prometeu.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/1/1994)

 

Bem-aventurados os que esperaram

Devemos viver para o Reino de Maria e os grandes lances da nossa história. Como esses acontecimentos demoram, a atitude perfeita é a daquele que diante de cada notícia boa estremece, na esperança de que tudo se realizará. Entretanto, se não iniciam já, espera sempre alegre, pronto, disposto, chegando à conclusão: “Deus virá a qualquer momento! E quando Ele vier, encontrará a minha alma preparada!”

 

O  mundo de hoje é muito habituado ao combate contra a espera, e até certo ponto se compreende porque a espera parece engasgar o curso natural das coisas. Por causa disso, a meta da mecanização em nossos dias é apressar todas as coisas e suprimir todas as esperas.

A espera é uma preparação e uma maturação que nos faz dignos de receber algo desejado longamente

Embora essa aversão à espera tenha algo de natural, possui também algo de excessivo, porque no mundo contemporâneo não se compreende o papel da espera na maturação e na formação do homem.

Por exemplo, hoje se toma um avião e, saindo de São Paulo, chega-se à Europa em menos de doze horas de voo. Portanto, em poucas horas transpõe-se o Oceano Atlântico e salta-se para um outro mundo, outra vida, deixando para trás a América.

Antigamente, tomava-se um navio para a Europa, e a viagem demorava quinze dias, durante os quais a pessoa ia preparando o espírito para entrar no país para onde rumava. Essa demora tinha preparado uma maturação. Por isso, chegava-se à Europa maduro. Hoje não: é-se ejetado de dentro do avião e já se sai correndo para outro lugar.

Por vezes, a espera é uma preparação e uma maturação que resulta do desejar longamente uma coisa e que nos torna dignos de recebê-la.

Vemos na Escritura longas esperas e, às vezes, contra o impossível. Por exemplo, segundo uma bela tradição, São Joaquim e Santa Ana, os pais de Nossa Senhora, eram muito velhos, estavam além da idade em que um casal tem filhos. Foi nessa ocasião que milagrosamente nasceu Nossa Senhora.

Ora, algo lhes dizia em seu íntimo que seriam antepassados do Messias, e passaram todo esse tempo esperando. Mas isso é uma coisa extraordinária, porque eles se prepararam, durante a vida inteira, para receber a Mãe do Messias. Teriam sido muito menos preparados para isto se, assim que eles se casassem, a Mãe do Messias, ao cabo de nove meses, nascesse.

Nosso Senhor teve esperas cheias de decepções

A espera tem um grande sentido. Por isso encontramos no Antigo e no Novo Testamentos manifestações de espera assombrosas.

Por exemplo, Nosso Senhor preparou os Apóstolos para serem o que foram. Vejam, entretanto, no que deu o plano do Divino Mestre: de doze Apóstolos, um se torna traidor; os outros onze fogem no Horto das Oliveiras; Ele fica sozinho. Um Apóstolo ainda O renega, São Pedro, e logo de uma vez aquele que deveria ser o chefe da Igreja! Quer dizer, tudo dá errado; é uma espera cheia de decepções, de situações desencontradas.

Pensar que daqueles doze presentes na Ceia mais memorável da História, um trairia; outro, São João, por quem Nosso Senhor tinha uma particular preferência, que encostou a cabeça sobre seu divino peito e ouviu a pulsação do Sagrado Coração de Jesus, esse fugiria como os demais. Quem haveria de imaginar uma coisa dessas!

Nosso Senhor ressuscita, convoca os Apóstolos, eles se convertem, está tudo direito, começam o apostolado pelo mundo.

Chega um Apóstolo que era um perseguidor, um fariseu – quanto Jesus falou contra os fariseus! – que se converteu e, por assim dizer, conquistou para a Fé toda a bacia do Mediterrâneo.

No meio de tudo isso, quanta espera e até quanta decepção teve o Redentor! Mas na ponta de tanta decepção, aguentada com desejo e com a certeza de que viria a conquista do mundo, esta acabou vindo.

A espera sem agitação favorece o pensamento

A beleza disso se apresenta por si mesma, é uma verdadeira maravilha. Deus quer daqueles que desejam alguma coisa d’Ele, que esperem longamente. E isso não está de acordo com os hábitos modernos.

Hoje em dia procura-se eliminar toda espécie de espera; mas por isso também toda forma de maturidade, de reflexão, de pensamento, de meditação está eliminada. Em geral, os países onde mais se corre e menos se espera são aqueles onde menos se pensa.

Considerem os grandes pensadores de outrora: Aristóteles, Platão, na Antiguidade; ou do mundo romano: Santo Agostinho, Santo Ambrósio; ou da Idade Média: São Tomás, São Boaventura, etc.

Pode-se imaginar São Tomás de Aquino fazendo uma tournée de conferências na América do Sul, “pingando” em um avião de capital em capital? Isso não “engarrafaria” o pensamento dele?

Pelo contrário, se São Tomás se deslocasse lentamente sentado num carro puxado por cavalos, ou ele mesmo montado num cavalo, naqueles longos intervalos ele não pensaria, não refletiria? Evidentemente sim. É a vantagem da espera.

Beleza própria da espera

Quando se deseja uma coisa boa, a espera tem uma beleza própria. Suponhamos que Cristóvão Colombo, em sua navegação, não tivesse sofrido aquela espera medonha para chegar até à América, mas, por essas ou aquelas razões, ele tivesse de navegar doze dias, ao cabo dos quais chegasse a uma ilha do Caribe e, de lá, começasse, com seus subordinados, sem muito esforço, a ocupação do novo continente. Uma viagem fácil, simples, rápida, eles chegaram e tomaram posse e começaram a desbravar as novas terras. Não perderia muito?

Mas aquela navegação que não acaba mais, e os marujos se revoltando contra ele… Afinal, aparecem boiando pelo mar pedaços de vegetação, indicando haver terra próxima. Então alguém anuncia: “Terra à vista! Olha ali a vegetação!” Nesse momento, todos se reconciliam.

É muito mais bonito porque não só esperaram, mas esperaram contra toda a esperança. Batalharam para conseguir, sofreram, correram riscos, na incerteza de que, talvez, nunca chegariam a nada. Quem poderia garantir que esse mar não era uma espécie de deserto: gira, gira, gira e não encontra nunca mais terra alguma. Então estavam perdidos, haveria de chegar um momento em que eles não tinham mais água para beber. A morte os esperava. Uma morte de esmeralda e de anil, mas a morte. Entretanto, vão para a frente, vendo como Colombo continuava a esperar.

O lindíssimo episódio de Abraão com Isaac

Porém ainda mais bonita é a espera quando ela culmina em um milagre. Porque no milagre vê-se a mão de Deus, de Nossa Senhora que, por assim dizer, vara as nuvens e aparece dando ao homem aquilo que ele tanto desejou.

É por isso mesmo que muitas vezes vemos, no Antigo Testamento, Deus aparecer, prometer e depois cumprir. Mas, às vezes, há pelo meio toda espécie de dificuldades.

Pensemos no lindíssimo episódio de Abraão com Isaac. Abraão era velho, mas Deus lhe prometera uma numerosa descendência. Afinal, depois de esperar muito, acabou tendo um filho.

Nasce um menino e, quando este fica mocinho, Deus aparece a Abraão e lhe diz:

– Este filho que te prometi, quero que tu o mates em honra a Mim.

Abraão poderia dizer:

– Mas, Senhor, e a promessa? Vós, então, prometeis um filho para tirá-lo depois? E esse menino morre sem ter descendentes! Vós não estais caçoando de mim? Não estais vos burlando da esperança que fizestes nascer no meu débil coração de homem, ó Deus?!

Nada! Ele leva o menino até o alto do monte, disposto a matar o filho da promessa. Com a ajuda da própria vítima ele constrói o altar onde ela deveria ser morta. Ainda enquanto caminhavam para o local do sacrifício, Isaac pergunta:

– Meu pai, temos o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o holocausto?

E Abraão responde ao menino:

– Deus providenciará a vítima para o holocausto, meu filho.

Concluído o altar, Abraão talvez tenha dito a Isaac:

– Deite-se em cima do altar.

Como a dizer: “A vítima é você.”

O menino, dócil como o pai, deita-se. O pai toma a faca e vai brandir um golpe para matar o menino e, no último momento, quando ele ia despencar o ferro no peito do filho, aparece um Anjo e diz:

– Abraão, Abraão! Pare! Deus estava te provando, queria ver até onde vai a tua obediência. Em atenção a tua esperança e a tua disciplina, os teus filhos serão mais numerosos do que as areias do mar e as estrelas do céu (Cf. Gn 22, 2-18).

Abraão não podia imaginar o acontecimento infinitamente maior que se daria: um de seus descendentes seria a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada! O Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14), quer dizer, Nosso Senhor Jesus Cristo. Deus se encarna na raça judaica, dando, portanto, a Abraão que era o primeiro, o depositário da promessa ao povo hebreu, uma plenitude de recompensa incomparável.

É verdade que a descendência dele seria mais numerosa que as areias do mar e as estrelas do céu; mas, sobretudo, qualitativamente seria maior, pois nela nasceria o Filho de Deus.

Diante da demora, devemos estar sempre alegres, prontos e dispostos

Entretanto, no momento em que nasce o Messias o povo está de tal maneira decadente que é o próprio povo eleito que mata o Messias esperado. Pode haver uma coisa mais terrível do que esta? Cai, então, sobre o povo uma terrível maldição, a maior da História.

Considerem, então, a esperança: Deus prometeu que, por seu amor ao povo de Israel, no fim dos tempos esse povo vai se converter. A história das relações de Deus com o povo judaico se abre por uma prova tremenda e termina com uma reconciliação dulcíssima. Esperar, esperar e super esperar acaba dando certo!

Talvez valesse a pena, em alguma ocasião, contarmos a história de nossas esperas e esperanças. Em face da espera, vemos dar-se uma seleção: há quem procede mal e aqueles que procedem bem.

Os que procedem mal são, por sua vez, de duas espécies: uns se desinteressam, desesperam e começam a se preocupar com as coisas do mundo. Em vez de viverem para o Reino de Maria que virá e para os grandes lances da nossa história, como esses acontecimentos demoram, eles se desesperam e concluem: “Não, isso não dá certo!” Ficam, então, agressivos, briguentos, intratáveis e acabam se lançando, por exemplo, atrás do dinheiro e de tantas outras coisas, procurando engrandecer-se nas vias deste mundo.

Outros tomam um rumo diferente. Esperam durante algum tempo, mas como a esperança não se realiza logo, eles vão entibiando nas vias da vocação, caem numa modorra que os deixam completamente indiferentes diante das maiores maravilhas.

Qual é a atitude perfeita? É a daquele que com cada notícia boa estremece: “Quem sabe se agora vai começar…” E se não inicia já, espera para amanhã, para depois de amanhã. Sempre alegre, sempre pronto, sempre disposto, chegando à conclusão:

“Deus virá a qualquer momento! E quando Ele vier, encontrará a minha alma pronta! Eu não me cansei de esperá-Lo porque Ele é infinito e perfeito. Ora, o infinito e o perfeito se esperam, por assim dizer, infinitamente para esperá-los perfeitamente. Bendito o dia em que a palavra de Deus, confirmada, baixar sobre nós. Vamos para a frente! Nesse dia, poderemos dizer: Bem-aventurados os que esperaram; deles foi a promessa, deles é a vitória!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/7/1988)

Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

O Homem-Deus – II

Continuando seus comentários à divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dr. Plinio salienta a extrema maldade daqueles que O supliciaram.

 

Dir-se-ia que vindo à Terra o Homem-Deus, diante de provas tão claras, de manifestações de uma superioridade divina a todo momento, o povo eleito — o qual sabia que o Salvador nasceria dele, e estava esperando-O — haveria de reconhecer o Messias, aclamá-Lo com glória e eleva-Lo ao píncaro do gênero humano. Se o povo judeu tivesse reconhecido o Messias, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, romanos, gregos, persas, egípcios, nada significariam. Esse povo seria elevado a um cume extraordinário!

Aqui se inicia o mistério da maldade humana. Esse povo que existia para isso, gemia porque o Messias não vinha; quando Jesus apareceu uma facção do povo se pôs desde logo contra Ele. E se cindiu: uma fração pequena do povo começou a adorá-Lo, a partir dos pastores que estavam em Belém e tiveram o anúncio do nascimento de Nosso Senhor. Mas, de outro lado, a maior parte passou a persegui-Lo.

Logo depois do nascimento de Jesus, Herodes fez o cálculo infame: “Deve ter nascido o Messias, porque os reis magos o estão dizendo. Ele ameaça o meu trono. É o Salvador previsto pelos profetas. Eu estou acreditando, ou pelo menos achando tão provável que até fico amedrontado”. E, para gozar a vida e ter o prazer de ser rei, Herodes quis matar Nosso Senhor sem nem sequer O ter visto, só porque Ele estava no mundo! Mandou, então, eliminar os inocentes, para evitar que o Inocente por excelência vivesse.

Desígnios misteriosos de Deus, caminhos que se compreendem só posteriormente! São José, coarctado pela falta de bondade da população em Belém, que não quis receber a ele e a Nossa Senhora, levou a Santíssima Virgem para uma gruta, fora da cidade.

Quando Nosso Senhor inicia sua vida pública, fazendo inúmeros milagres, o povo se entusiasma etc., aquele cálculo de Herodes se repete nas classes que mais O deveriam aclamar, quer dizer, na sacerdotal e na classe alta política, as quais começam a ter medo: “Quem é este homem que está levando atrás de si tais multidões? Ele é perigoso para nós; de repente nosso poder fica reduzido a nada!” Inicia-se, então, uma espécie de guerra, a “psy-war”, com calúnias e perguntas embaraçosas.

Os fariseus e os saduceus mandam pessoas fazer perguntas a Jesus, que O deixem mal à vontade. Pobres coitados! Se uma formiga quisesse lutar contra um animal quimérico, tão pesado como um elefante e forte como um leão, ela estaria mais próxima de vencer do que qualquer homem disputando com Nosso Senhor Jesus Cristo!

Questões elaboradas nos laboratórios da maldade e da insinceridade, todas retorcidas, cheias de ciladas. Posta a pergunta, vinha a resposta, em geral simples, direta, pulverizadora e luminosa.

— De quem é essa efígie?

— É de César.

— Pois dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

Não há mais nada a dizer.

O Evangelho conta que se difundiram calúnias a respeito de Nosso Senhor: era glutão, mundano, ambicioso… Como poderia ser ambicioso Ele que era tudo? É mais ou menos imaginar que um leão quisesse fazer carreira, transformando-se na abelha-mestra de uma colmeia…

Disseram que Ele comia em casa de publicano, para bajular as pessoas que tinham dinheiro… Falaram até — suprema calúnia, supremo insulto contra a evidência — que Nosso Senhor tinha parte com o demônio. Logo Ele, que era direta e esplendorosamente o contrário do demônio; nem é tão exato dizer que Jesus era o oposto do demônio: o demônio era o contrário d’Ele!

Várias pistas da conjuração por excelência que operou o deicídio

Começa-se a criar uma onda contra Nosso Senhor, a qual leva, em primeiro lugar, os muito ruins, que eram uma minoria bem colocada, poderosa e influente.

A partir da tintura-mãe dessa maldade da minoria, a onda começou a crescer de “proche en proche”, de vizinhança em vizinhança, a tomar os ambiciosos, os que se vendiam, aqueles que não queriam o mal pelo mal, mas se amavam tanto que, colocados diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, eram capazes de dizer: “Ele é tudo isto, mas ficarei popular, bem-visto, terei importância, se ajudar a calúnia. Portanto, para que os maus me batam as palmas, me glorifiquem, vou também, embora não tenha certeza, começar a falar mal de Jesus”.

Depois desses maus de segundo grau, outra zona moral do povo foi atingida: a dos moles. “Se eu disser o que penso, serei perseguido, e isso não quero. Embora eu verifique que contra Jesus esteja se fazendo uma injustiça abominável, uma ignomínia, uma infâmia, essas coisas são com Ele, não comigo! Quero levar vida fácil, agradável, de maneira que eu possa me instalar bem nesta Terra. Comprometo a minha carreira, tomando a defesa de Jesus. Logo, vou também falar mal d’Ele.”

“Falar mal é horrível. Vejo fulano, um “molóide” como eu — que não tem coragem de enfrentar os outros para não ser perseguido —, falar mal de Jesus. Mas eu sou um homem reto, e não farei isso. Simplesmente não falarei bem. E quando disserem d’Ele, diante de mim, as coisas mais inverossímeis, ficarei quieto.

“Não sou inimigo d’Ele; no fundo, gosto d’Ele, às vezes rezo para Jesus e Ele é tão bom que me atende. Razão a mais para eu não tomar o partido d’Ele. Se Jesus não me ajudasse, eu talvez tivesse vantagem de tomar sua defesa, porque Ele então me atenderia… Mas, uma vez que Ele me auxilia até quando não tomo o partido d’Ele, fico bem com uns e com Ele. Encontro aí o caminho bom para mim, onde me ponho.”

Em seguida, vem a coorte imensa dos voluntariamente imbecis: “Não tenho bastante capacidade intelectual para me situar diante desse problema. Se eu o visse com clareza, tomaria posição. Mas, Deus me deu uma inteligência pequena, não tenho muito jeito para resolver isto. De maneira que vou fechar os olhos e deixar correr o marfim”.

Essas várias zonas do povo foram sendo atingidas, estabelecendo-se em torno de Nosso Senhor o vazio.

A crise no Colégio Apostólico e a traição de Judas

A entrada d’Ele em Jerusalém, no Domingo de Ramos, foi uma manifestação de quanto o povo, apesar de tudo, O via e apreciava, mas não na medida do necessário, do justo. Aclamavam-No, é verdade, mas Ele merecia muito mais!

Fazem-Lhe uma meia festa. Por isso, em geral, as pinturas e gravuras de Nosso Senhor entrando em Jerusalém O apresentam com tristeza, pesar, e dirigindo um olhar quase severo para a multidão que O aplaudia. Para Ele o interior das almas não oferece segredo, e Jesus percebia a insuficiência, a precariedade daquela ovação de que Ele era objeto.

Humildemente sentado sobre um burrico, Ele atravessava em meio à multidão, chamando a todos, pela sua presença, a amarem a Deus. Porém, ao mesmo tempo, percebia as negações, as recusas, a frieza, a hipocrisia deste ou daquele ato de admiração, e sofria com isso.

Se fôssemos estudar todo o padecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não só a Paixão, dir-se-ia que a partir da primeira ingratidão Ele começou a sofrer. Quando teria sido essa primeira ingratidão? Não se sabe. Ela veio aos tufos, em grande quantidade, no Domingo de Ramos. Se fosse só isso…

Aproximam-se as festas judaicas da Páscoa. Nosso Senhor, inteiramente fiel à Lei — Ele era, como Deus, o Legislador —, realiza a ceia na quinta-feira e está com seus apóstolos à mesa. Sabia que um deles, portanto dos mais chegados, O havia traído. Esse apóstolo, que estava em crise, era um homem que Ele tinha chamado. Quer dizer, pela graça Nosso Senhor atraiu Judas Iscariotes para junto d’Ele, mas provavelmente Judas correspondeu mal, desde o primeiro momento. E foi um apóstolo medíocre, que deu depois num apóstolo infame. Crise, crise…

Confiaram a esse homem a guarda do dinheiro para as esmolas e, conta-nos o Evangelho, ele era ladrão. Roubava da caixa comum para gastos consigo a fim de satisfazer sua ganância.

Se fosse só essa crise… Os apóstolos “fervorosos” lá se encontravam com o Redentor; é o banquete. Ele lava os pés dos apóstolos, perdoa-lhes os pecados.

A tristeza vinha tomando a alma de Nosso Senhor; em certo momento disse o Redentor que um deles haveria de traí-Lo. Ele foi tão bom, que não afirmou outra coisa: “E vós todos haveis de Me abandonar”.

Ele conhecia a traição, e também o abandono. Um deles, São João, colocou o ouvido sobre o peito de Jesus, em gesto de amizade e intimidade, e perguntou quem era o traidor. Cristo respondeu: “Aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Ele não quis dizer o nome de Judas. Para não perceberem, deu uma resposta rápida, e falou baixinho. Tomou o pão e ofereceu-o amavelmente a Judas. Carinho para com Judas até o último momento.

Nosso Senhor dá a Judas aquela ordem misteriosa: “O que tens que fazer, faze-o logo”. E o traidor saiu durante a noite, e foi consumar o pecado dele.

Jesus não mandou Judas pecar. Mas Judas, naquele momento, rompeu com Nosso Senhor e retirou-se. Podemos imaginar seus passos aflitos, apressados: “Trinta dinheiros! Quero trinta dinheiros!” É melhor não excogitar como se fez o pacto, e o que Judas pensou quando sentiu os trinta dinheiros pesarem na sua sacola.

E quando Judas O oscula para que Jesus fosse preso, ainda é uma pergunta com carinho: “Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?” Judas não ligou. Trinta dinheiros, o resto não importa!

Todos conhecem essa história, que terminou ignobilmente numa figueira…

O Divino Redentor passa pela tristeza de constatar que também os Apóstolos escolhidos não O viam. No Horto das Oliveiras, quando dormiam, todos os esplendores de Nosso Senhor Jesus Cristo para eles eram nada. Estavam com sono, queriam dormir. E na hora do perigo todos fugiram. Até aquele que pousara o ouvido sobre o peito d’Ele, e ouvira as batidas de seu Sagrado Coração!

Os algozes não podiam deixar de perceber a perfeição de Jesus

Na Paixão, Nosso Senhor sentia-Se completamente recusado pelos homens, pelo povo eleito. Entretanto, Ele era divino, incomparável! Por que tinham feito isso? Que enorme injustiça, que impiedade sem conta, que revolta atroz contra Deus! Vislumbramos, então, a tristeza, a indignação, o sofrimento de sua Alma.

É neste ponto que entra a flagelação, o primeiro mistério do Rosário considerando a agressão física contra o Homem-Deus. Amarram-Lhe as mãos, atam-No a uma coluna e começam a fustigá-Lo por ódio a Deus.

Poder-se-ia objetar: “Mas eles não sabiam que Ele era o Homem-Deus, e até negavam isso. Como o senhor pode dizer que era por ódio a Deus?”

Eles viam aquela perfeição, que é uma com Deus, e tal perfeição eles odiaram. Portanto, agrediram Nosso Senhor por ódio a Deus.

Se alguém, tomando a fotografia de um dos que está aqui, diz, embora sem conhecê-lo: “Mas que tipo antipático, detestável! Vou crivar de punhaladas essa foto; depois amarrá-la numa árvore e dar tiros contra ela; e ainda atear fogo nos molambos de papel que restarem”.

A pessoa assim ultrajada diria: “Esse homem não me quer, ele me odeia”.

É claro! Eles sabiam, neste sentido, que ali estava Deus.

Começa, então, o contraste pungente entre a mansidão, a bondade, a voluntária incapacidade de defender-Se, de um lado; e o ódio brutal, estúpido, cruel, de outro lado.

Para amarrar Nosso Senhor, os algozes Lhe dizem com brutalidade: “Dá cá as mãos!” Ele, não com uma mão, mas apenas com um dedo poderia expulsar aquela gente toda.

Se quisesse, o Redentor chamaria as coortes do Céu para descerem e defenderem-No; elas viriam imediatamente, porque Ele não chamava, mas mandava!

Jesus entrega as mãos, que eles amarram com brutalidade, utilizando corda tosca, rude, e um modo de amarrar que, com certeza, atormentava, prejudicava a circulação, tolhia os movimentos etc. Tinham a ilusão estúpida de que, amarrando-O, Ele estava amarrado. Bastaria Ele dizer: “Corda, rompe-te”, que ela cairia no chão; ou, se quisesse, poderia transformá-la em serpente, que atacaria aqueles malvados.

Mas Nosso Senhor queria sofrer. O extraordinário é que uns queriam flagelá-Lo e Ele queria ser flagelado. Jesus Se entregou à flagelação.

Os algozes já tinham tirado a túnica do Divino Salvador, ou mandaram-Lhe que a tirasse. Sua vestimenta sagrada era a túnica inconsútil —que não tem costura —, a qual havia sido tecida por Nossa Senhora, e não tinha sujeira nenhuma, pois o Corpo divino só podia irradiar a mais alva limpeza. Por um ato de vontade do Redentor, nada podia macular esta túnica, e os verdugos jogam-na ao chão, com raiva. Ele pensa nas mãos de Nossa Senhora, que a teceram, mas nada diz: era mais uma dor que Nosso Senhor queria sofrer.

A doçura inefável dos gemidos do Homem-Deus atado à coluna da flagelação

Levam-No para junto de uma coluna e, certamente com bofetadas, empurrões, gargalhadas, amarram aquela corda que prendia suas mãos em alguma argola da coluna — porque assim se faziam as flagelações. E aqueles homens — que homens! —, com terríveis açoites, começam fustigá-Lo com toda a força, e Ele a gemer.

Podemos imaginar a doçura, a beleza harmoniosa desse gemido, aquele Corpo santíssimo que se contorcia de dor, pela brutalidade do tormento que estava sofrendo; pedaços de carne caíam ao solo: eram carnes do Homem-Deus! Seu Sangue salvador corria aos borbotões. Ele de pé, digníssimo, inteiramente manso, sem nenhum protesto, nem exclamação de dor, apenas falando com o Padre Eterno. Era o seu refúgio naquela ocasião. E seu Corpo, do alto da cabeça até a planta dos pés, ficou repleto de ferimentos gravíssimos. Era o martírio do qual haveria de resultar a Redenção do gênero humano.

Terminada a flagelação, mandaram-No — os tempos eram de mais pudor do que os de hoje — apanhar a túnica. Com dores inimagináveis devido aos movimentos, Ele foi buscá-la e a revestiu, sabendo que iria começar a “Via Crucis”. Quer dizer, Ele entrava em outra sequência enorme de tormentos de toda ordem.

Considerem a muito bonita imagem de Nosso Senhor que está neste auditório. Ela é principalmente expressiva, vendo-a de baixo para cima. Seu olhar mostra, segundo o artista — a meu ver com fundamento —, o estado de espírito de Jesus durante a flagelação: preocupação, a aflição diante do tormento que vinha, a dor que Ele estava sofrendo em todo o seu Corpo. Mas uma distensão completa, uma mansidão perfeita e uma dignidade de Rei. Nunca rei nenhum teve uma púrpura igual à d’Ele: a do seu Sangue infinitamente precioso.

Isso foi o pórtico, o começo da Paixão cruenta de Nosso Senhor. Depois veio a coroação de espinhos, a Via Sacra, uma série de sofrimentos até o alto do Calvário.

Ele, carregando a Cruz, caiu três vezes sob o peso dela. Pregaram-No na Cruz e seu Corpo ficou doloridamente pendente; tentava apoiar-Se nos pés, mas os cravos neles fincados faziam aumentar a dor… E sua sede ia progredindo, em razão da quantidade de Sangue que tinha perdido. As torturas, as sombras da morte começaram a invadi-Lo, até o momento em que Ele bradou: “Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonastes?”

Até o último instante cuidando dos outros, com uma lucidez divina ordenando todas as coisas. Para São João: “Filho, eis aí a tua Mãe”; a Nossa Senhora: “Mãe, eis aí teu filho”. Para o bom ladrão, São Dimas: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Foi a primeira canonização, feita pessoalmente por Nosso Senhor; que glória, que alegria!

E, pensando o tempo inteiro no gênero humano que Ele redimiria quando completasse a Paixão, Jesus disse “Consummatum est”. Nesse momento, Ele salvou o gênero humano.

Nosso Senhor pensou em cada um de nós

Pensou em nós. Esta triste coleção dos homens passou diante de Nosso Senhor. Ele sofreu por este, por aquele, por aquele outro; por cada um dos que se encontram neste auditório, a fim de alcançar as graças pelas quais estamos aqui.

Quando cada um fizer o histórico de sua vocação — como foi chamado, de que modo correspondeu, se cambaleou, como se pôs de pé e continuou o caminho —, lembre-se que Nosso Senhor Jesus Cristo pensou em tudo isto no momento da flagelação!

Talvez, quando um pedaço de sua carne divina caía ao chão, em meio à dor, Ele tenha pensado: “É por aquele filho que há de viver no século XX, o qual amo especialmente e quero que traga outros a Mim. É terrível, mas está bem sofrido!”

E se algum de nós peca contra Ele, máxime em matéria grave, é a mesma coisa do que tomar o pedaço da carne que Jesus deixou cair ao solo por amor de nós, e Lhe atirar no rosto.

O que se pensaria de um flagelador tão cruel, ao qual Nosso Senhor dissesse: “Meu filho, por você caiu-Me esse pedaço de carne no chão”; e o flagelador respondesse: “Ah! é? Toma aqui”, e o lança na face? Seria pior do que qualquer açoite. Os católicos, sobretudo os especialmente chamados, fazem isso quando não são fiéis a Ele.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

Com o cetro de Deus nas mãos…

Maria Santíssima é nossa soberana. Ela está incalculavelmente acima de todas as criaturas e, enquanto Mãe de Deus, sua súplica é governativa por vontade de Deus.

Por assim dizer, Ela tem o cetro de Deus nas mãos, como indica claramente, por exemplo, a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora: na mão esquerda segura o Menino Jesus e na direita o cetro.

Este significa que Ela tem o governo de toda a criação, pela Sua santidade incomparável e união com Deus, bem como pela Maternidade Divina e pelo fato de ser Esposa do Espírito Santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/3/1992)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

Cogitações na linha do senso do maravilhoso

Dr. Plinio possuía, desde tenra infância, um senso do maravilhoso tão excelente que, vendo um vasinho colorido, imaginava uma catedral, as ruas e casas de uma cidade feitas com o mesmo material, com as mesmas cores e luminosidades. Muito mais sensível às cores que às formas, ele cogitava a respeito de universos possíveis dos quais aquele vasinho era uma amostra.

 

Gostaria de analisar um objeto que, em minha infância, serviu-me para muitas cogitações na linha do senso do maravilhoso.

Espírito muito mais cromático do que dado às formas

Trata-se de um pequeno vaso que, de si, não tem nada de extraordinário, nem é de grande valor comercial. Porém, tem isso de próprio e que me foi muito favorável: ele visa, em vários pormenores, imitar e reunir pedaços de estilos que, sob alguns aspectos, apontam para o admirável.

Seu formato, os desenhos dourados, a base também dourada que, invertida, dá ideia de uma coroa, tudo isso encaminha o espírito para uma ideia de objeto maravilhoso.

Para a criança não é tão importante a questão – que a pessoa se põe depois dos trinta anos, quando começa a maturar errado –: se o objeto tem ou não o maravilhoso para o qual tende. Mas a pergunta que a criança se coloca, ainda que implicitamente, é: Qual o valor do maravilhoso para o qual aponta?

Então, digamos, um vasinho francamente ordinário – não como este que é bom –, mas que apontasse melhor para o maravilhoso, uma criança lhe daria mais valor do que ao bom. Porque a pergunta não é qual o valor venal, nem da pura concepção artística, mas para onde visou, como sendo a primeira qualidade a ser tomada em consideração.

Assim eu via, em menino, este objeto. Notem que meu feitio de espírito é muito mais cromático do que dado às formas. Para mim, mais do que a forma ou a qualidade do material, este vaso é uma gota de cor, na qual se verifica a mistura que me é bem-amada: vermelho e branco. Não assim: uma lista vermelha, uma lista branca, mas são esbranquiçados de vermelho ou uns avermelhados de branco, postos de cá, de lá e de acolá.

A matéria da qual ele é composto tem uma certa transparência a qual permite à luz um certo jogo que se presta muito para a reprodução desse gênero de cor.

Há aqui uma espécie de teoria da mistura das cores que me agrada extremamente. As cores podem misturar-se até um certo ponto onde uma degenera na outra. Então já não é uma mistura, mas uma outra coisa. E o passar por todas as gamas intermediárias dá um valor cromático ideal muito especial.

Imaginar ruas e casas feitas com essa matéria

Aprazia-me considerar como seria um mundo no qual a cor e as luminosidades dominantes fossem essas, onde as pedras das ruas e os tijolos das casas fossem dessa matéria, onde os homens, em consequência, não seriam vermelhos e brancos, mas tivessem um espírito dotado desse jogo de reversibilidades, em que estivesse presente a afirmatividade, mas também houvesse concessões e afabilidades, tendo entre si um trato que eu imaginava nobilíssimo, mas ao mesmo tempo delicadíssimo, todo feito de condescendências recíprocas fantásticas, na linha do bem, de maneira que nada fosse mau, mas tudo aprazível, concessivo, bondoso, um perene sorriso e uma fórmula da perpétua “douceur de vivre”(1).

Seria, propriamente, o relacionamento das pessoas que se estimam por serem diferentes. Não é o relacionamento dos iguais, mas dos diversos que, na diversidade, nesse “ludus”, se completam.

A meu ver, o papel do dourado nessa combinação é lembrar que infinitamente acima paira outra coisa, evocando uma diversa clave de valores.

Imaginem que alguém esborrifasse mil gotinhas douradas em cima disso, por onde o vasinho pudesse tomar um valor venal maior. Para mim, não valorizaria; ainda que fosse de ouro verdadeiro, não lucraria nada. Eu mandava lavar o vasinho porque o dourado se tornaria promíscuo com isso, e faria com que o restante, por assim dizer, se envergonhasse de ser o que é.

Certamente, o artesão que concebeu esse vaso não teve essas ideias explícitas, mas o fato é que ele pôs o dourado fora do tema central. O tema está na parte nacarada. O dourado corresponde aos horizontes para onde a mescla de vermelho e branco aponta, fora do tema, como algo para alcançar.

Transpondo para o jogo das relações humanas, seria mais ou menos como se nas fímbrias desse relacionamento se compreendesse o convívio com Deus como algo de infinitamente mais alto, mais elevado, mais nobre.

Necessidade da prova

Se a grande indústria pudesse e devesse continuar a existir no Reino de Maria, ela poderia e deveria ser utilizada para finalidades superiores à mera produção quantitativa. Poder-se-ia compreender uma grande indústria que fabricasse uma catedral desse material e a colocasse num panorama estudado para combinar com isso.

O fato é que o vitral se fez sem a grande indústria. E nós poderíamos imaginar, com a evolução da indústria dos vitrais, igrejas todas feitas de vidro. De maneira que seria possível ir longe.

Ademais, golpeado com jeito, esse material emite um som bonito. Imaginem uma igreja que seja o sino de si mesma, onde o toque não se dá no campanário, mas na parede da própria torre! Torres que vibram elas próprias como se fossem badalos postos no ar, de maneira a fazer corresponder em som a cor contemplada pelo olhar.

É preciso dizer que fiquei com inúmeros mundos assim possíveis inacabados na mente. Sobretudo cores que eu vi de cá, de lá, de acolá, e que davam margem a imaginar universos possíveis dos quais esse vasinho era uma amostra. Creio que a matriz da inspiração artística é essa.

Um perigo contra o qual é necessário precaver-se: um mundo vivido assim é tal que não se compreenderia dentro dele a dor e nem sequer a prova. Quer dizer, se imaginássemos um mundo de criaturas assim e que Deus resolveu impor a prova para elas, teríamos um suspense como se víssemos o Criador traindo a sua própria obra. Há uma dificuldade em instalar dentro disso a ideia de prova como, por exemplo, em compreender que Deus tenha permitido a entrada da serpente no Paraíso.

O mais interessante é que só depois de ter passado pela prova compreendemos que tudo isso só toma sua perfeição para quem passou pela prova. Somente quando isso recebeu a trombada do oposto e se afirmou, é que propriamente justificou a sua existência.

Donde poderia vir uma objeção: “Então o mal é necessário?”

Não, o mal não é necessário, mas a prova é. Essas maravilhas devem existir em ordem de batalha contra o que as quer destruir. É nesta postura de ordem de batalha que elas adquirem uma espécie de plenitude de consistência que lhes dá força e dignidade.

Um modo de relacionar-se próprio à visão beatífica

Entra, então, um aspecto que à primeira vista não se imaginaria: um cavaleiro cuja armadura fosse feita deste material, mas inquebrantável, trazendo o próprio símbolo da delicadeza e do feérico na batalha mais feroz.

Na Chanson de Roland, as despedidas entre Olivier e Roland dão ideia disso. Os dois iam morrer, encontravam-se numa situação em que estavam liquidados. Entretanto, a ternura com a qual ambos se tratam é enorme.

Ouvi dizer, não sei se é verdade, que hoje em dia se tiram fotografias por onde se percebe a cor de certos corpos celestes, nos quais se vê reinar um colorido diferente do existente aqui na Terra.

Poder-se-ia imaginar um mundo para o qual o colorido desse vasinho fosse como a luz do dia para nós, onde todas as pessoas se tratassem como o vermelho e o branco se “tratam” aqui, e que no interior de cada pessoa – não só fisicamente, mas moralmente – a luz brincasse como brinca neste objeto.

Essas pessoas se compreenderiam e teriam uma espécie de avidez de se entenderem, uma necessidade de mútuo entendimento cordial superabundante, por onde se uniriam umas às outras numa perpétua troca de alegria com a “surpresa”, na consideração de que a outra existe.

De maneira tal que indo à rua não se encontraria uma multidão de anônimos, mas de boas surpresas: “Oh, existe também este, aquele…!” As pessoas, sem se conhecerem, parariam, se saudariam e se alegrariam neste diapasão. E haveria, por assim dizer, um perpétuo sorriso de encantamento, um perene cântico e uma espécie de perpétua dança das pessoas se encontrando, se falando. O Céu deve ser assim.

A questão é que existe um mundo de outras coisas que se prestam a considerações como estas. O objeto aqui analisado é uma gotícula que ocupou, nas minhas cogitações de criança, um pequeno espaço. Os jades, as porcelanas chinesas, os cristais da Boêmia, os esmaltes, os ônix, as mil coisas preciosas que há, exprimem uma ordem natural, filosófica, quiçá metafísica. Acenam para uma superior natureza, mas estão inteiramente dentro da nossa ordem natural. O sobrenatural está fora e acima. Não é inimigo; ao contrário, é amigo, bafeja, abençoa, mas se encontra diretamente acima.

Para considerar como isso se instalaria na ordem sobrenatural, teríamos que imaginar como um objeto desses caberia na gruta de Belém, na noite de Natal.

A ordem natural transposta para a clave sobrenatural

Poder-se-ia fazer uma distinção entre a natureza do Céu empíreo, que ainda está na linha do natural, e a do metafísico. Aquilo que em nós é puramente espiritual enquanto contempla o que nos outros é também espírito; e, depois, o que em nós é espírito e contempla a Deus, portanto a essência divina, infinitamente acima de nós. São coisas inteiramente diferentes.

Mas tudo isso, que seria uma contemplação árdua, difícil, pode-se resumir e acompanhar muito melhor, considerando a união das naturezas humana e divina em Nosso Senhor Jesus Cristo. N’Ele encontramos todas as belezas e excelências possíveis da ordem natural transpostas para a clave sobrenatural.

Assim, poderíamos imaginar as operações da graça pairando sobre objetos como esse. Por exemplo, os vitrais da Sainte-Chapelle são naturais, e aquelas cores são produzidas pela natureza, assim como as desse vaso. Mas quem vê aqueles vitrais recebe uma graça por onde percebe um certo sobrenatural análogo àquela natureza.

O sobrenatural tem certo modo de assumir as coisas por onde estas, sem deixarem de ser elas próprias, elevam-se tanto que mudam de aspecto.

Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora do Miracolo tem joias até na cintura. Essas joias são pedras naturais, mas as graças que se recebem na Igreja do Miracolo são tais, que brilham por assim dizer também a respeito dessas joias. Essas joias naturais tomam um luzimento que para nós enriquece o que de sobrenatural a imagem quer dizer.

Em termos mais precisos, a graça se serve também da pedra para comunicar algo a nós. Portanto, no presepe, ela poderia servir-se também deste vasinho para – por um processo análogo, difícil de imaginar – manifestar alguma coisa de si mesma a nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1983)

 

1) Do francês: doçura de viver.

Sabedoria, certeza e contemplação

A existência humana, entre outras coisas, é própria a ser objeto de uma análise que abarque todo o seu conjunto. Nesse sentido, há pessoas que passam pelo jogo da vida e nada compreendem. Outras, prestam demasiada atenção em si mesmas para se inteirar do restante da humanidade. Outras, ainda, embora sem se importarem tanto consigo, não atingem a síntese ideal que seria uma conjugação das melhores disposições com que se tomam os interesses individuais e os coletivos.

Deve haver, portanto, diante da vida, uma noção e um conhecimento que sejam a arquitetura de todas as impressões que o quotidiano humano nos oferece, o qual tem de ser, por isso mesmo, observado e contemplado com sabedoria. Sabedoria e arquitetura estas que nos fazem compreender os supremos valores da vida e, por esse caminho, nos conduzem a conhecer algo a mais da infinita perfeição do Criador que dispôs assim a ordem terrena.

A meu ver, magnífica expressão desse estado de espírito sábio e contemplativo são as esculturas dos profetas de Aleijadinho. Em todas aquelas fisionomias transparece essa visão do conjunto da existência humana, e aqueles olhos grandes, dir-se-ia abertos para um superior conhecimento da vida.

Figuras de varões que nos transmitem a sensação da profunda certeza que os anima, certeza da missão que lhes foi confiada, certeza que os toma por inteiro e que passa pelo temperamento de cada um como o talento de um músico passa através do instrumento que ele toca. Um profeta daqueles, pelo seu porte, seu jeito, sua atitude, é uma orquestra de expressão de uma grande convicção que ressoa como uma sinfonia.

Diante deles, sentimos o nosso próprio ser como que deliciosamente invadido pela sua presença, por essa certeza, essa sabedoria e contemplação que eles exprimem, não para sermos censurados, mas elevados. Nós nos sentimos descansados, animados, afagados e protegidos. Sentimo-nos mais nós mesmos, porque ele está ali, profeta que contempla e compreende a vida. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 18/5/1963 e 17/4/1977)

Revista Dr Plinio 128 (Novembro de 2008)

A mais augusta das cátedras

Santo André amava ardentemente a sua cruz, compreendendo que não é o gozo e o prazer que dão sentido à vida de um homem, mas o sacrifício que ele realiza. Portanto, todo homem verdadeiramente sobrenatural deseja carregar sua própria cruz.

Nosso Senhor disse: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Ninguém pode dar maior prova do amor de Deus, do que desejar, por esta forma, a cruz.

A cruz é a mais grandiosa e augusta de todas as cátedras. É a cátedra do homem que sofre e que, em nome e com os acentos de seu sofrimento, fala ao povo. Isso representa uma tal plenitude de apostolado, que verdadeiramente não se sabe o que dizer!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/11/1964 e 29/11/1965)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)     

Patriotismo autêntico

Numa era em que a verdadeira noção de patriotismo havia sido deformada, Dr. Plinio demonstra aos brasileiros  qual é o verdadeiro sentido desta palavra, e quais os verdadeiros valores desta Nação tão grande no seu tamanho, na sua vocação e na sua missão histórica.

 

Um dos erros mais nefastos de que foi impregnada a educação de minha geração foi o patriotismo entusiasmado e incondicional, que se impunha em todas as escolas, como um inelutável imperativo da Moral.

Em via de regra, não havia, nem mesmo em certos cursos de Religião, uma explicação esclarecida e consciente do que seja a virtude do patriotismo, o seu exato sentido, os deveres que ela impõe e as deformações com que o espírito do mundo costuma desfigurá-la.

Em muito mais de 50% dos casos, ser patriota era achar que o Brasil é o mais rico país do mundo, que não há aqui um palmo de solo que não seja imensamente fértil, um palmo de subsolo que não seja imensamente rico, e um litro de água de rio ou de mar que não seja imensamente piscoso. A esta torrente de riqueza, acrescente-se uma beleza incomparável: em nenhum lugar do mundo é permitido haver um sol tão claro, estrelas tão numerosas, mar tão azul, cumes dos montes que ofereçam panoramas mais belos, vales que proporcionem remansos mais tranquilos e mais atraentes do que no Brasil.

Achar o contrário é ser um indivíduo sem inteligência e sem patriotismo. Sem inteligência, porque até as aves do poeta perceberam estas belezas e riquezas, a tal ponto que gorjeiam aqui de um modo diverso do que acontece no mundo inteiro, e muito deplorável seria que um homem não percebesse o que até as aves percebem! Sem patriotismo, porque é achincalhar sua própria pátria avançar timidamente a opinião de que talvez haja lugares mais férteis alhures, por esse mundo afora, do que as zonas velhas de São Paulo ou certas caatingas do Norte do Brasil. Como? Então, pode-se admitir que um brasileiro reconheça que talvez as florestas da Índia ou as pastagens da Suíça sejam mais aproveitáveis do que o mais surrado e mais estéril dos palmos de nosso território? Não é isto um crime de alta-traição?

Como todos os erros que se apresentam dissimulados no meio de uma forte dose de verdade, também esse erro não tardou em se propagar e adquirir ares de verdade dogmática e intangível. Todas as aparências conspiravam para isto. Porque, se é estúpido imaginar que no Brasil tudo deva ser necessariamente superior ao que existe em outros países, é certo, por outro lado, que a Providência nos galardoou com escolhidíssimos dons naturais.

Destes dons, o Brasil tem alguns que nenhum outro país do mundo pode se jactar de possuir. Outros, nós os temos em grau apreciável, embora menor do que certas regiões da Europa, da Ásia e da África. Raros, entretanto, são os países que podem inventariar em seu território uma tão larga, tão rara e tão preciosa série de riquezas quanto o Brasil. Poder-se-ia imaginar, para o patriotismo de quinquilharia, um pretexto melhor, a fim de fazer circular a ufania jactanciosa e falsa que o caracteriza?

* * *

Há muita gente que imagina que a única forma de combater uma verdade consiste em negá-la redondamente. Este é apenas o processo dos simplórios. O modo mais subtil e mais perigoso consiste em exagerar a verdade. Com isto, a gente fornece aos seus adversários pretextos para combatê-la, e a gente a desacredita no espírito dos que a amam. Por isto mesmo, a Igreja não tem, talvez, inimigos mais perigosos do que os que pretendem ser mais austeros, mais penitentes e mais ortodoxos do que o Papa manda que se seja. Talvez a pior forma de heresia consista em pretender-se ser mais católico do que o Papa.

Foi isto que se deu com o patriotismo. Os literatos do fim do século passado e do início deste século o laicizaram, lhe tiraram todo o conteúdo sério e o exageraram, dando-lhe uma extensão e uma pretensão injustificáveis. Tanto bastou para que, no seio de minha geração — que foi talvez a última leva de cobaias desta sinistra experiência ideológica —, o patriotismo, por uma compreensível reação, começasse a ser substituído pela fascinação do internacionalismo esquerdista ou do cosmopolitismo. Deste, sobretudo, nas classes mais ricas e mais elevadas de São Paulo.

Para justificar tal reação, os mais claros pretextos eram fornecidos pela própria escola de patriotadas em que fôramos formados. Realmente, basta andar um pouco pelo interior, para certificar-se a gente de que Deus deu ao Brasil uma riqueza imensa, mas que nem por isto o dispensou da lei comum de todas as regiões da Terra, que consiste em ter também certas porções muito menos aproveitáveis para o uso atual do homem. Desta verificação, nasceu um espírito de blague fácil e elegante. Tornou-se divertido fazer graças a respeito da “Pátria amada, idolatrada, salve, salve”.

O patriotismo é uma virtude sublime. Tanto basta para que todas as suas deformações e corrupções possam facilmente ser postas a ridículo: “corruptio optimi pessima”. E, por isto, com um espírito criminosamente iconoclasta, com um sorriso displicentemente revolucionário, muitos e muitos elementos de minha geração apostataram da escola oficial do patriotismo de convenção.

Outros, talvez, fizeram pior. E confesso que, se não fosse o Catolicismo, único parapeito que o homem encontra entre si e o abismo, também eu teria alguma complacência para com este erro. Procede ele de uma reflexão também sugerida pelo patriotismo convencional que circulou (deve-se falar no pretérito perfeito, ou no presente?) por aí. Admitamos que o Brasil seja tudo quanto se diz. E o homem? O que faz o homem no Brasil? Por que não foi ele capaz de aproveitar estas riquezas para construir uma civilização de forte conteúdo espiritual e de alto valor material? País muito novo? E os Estados Unidos, cuja civilização, se não tem o primeiro requisito, tem ao menos o segundo?

Daí uma atitude de desolação vexada e irritada para com o homem brasileiro, atitude esta aguçada pelo endeusamento sistemático de tudo quanto era europeu, que também se notou em nossa educação. Positivamente, como disse alguém com muito espírito e muita verve, conquanto sem nenhuma razão, o Brasil é um deserto de homens e de idéias. Um povo tão incapaz, habitando um país tão magnífico, dava-me uma impressão não muito diversa dos gregos dos séculos anteriores ao nosso, habitando com uma inconsciência revoltante ao lado dos monumentos inesquecíveis, erguidos pelo talento de seus avós.

Ingenuamente, eu e muitos como eu, deixamo-nos persuadir mais ou menos de que o samba, as modinhas dengosas e lascivas,(…) a escassez de manifestações artísticas de real valor, eram expressões autênticas e definitivas do vácuo interior da alma nacional. Muitos literatos da famosa escola do patriotismo incondicional, apregoavam tudo isso como distintivo do brasileiro, e procuravam ver em tudo isso algum pitoresco. Esse pitoresco não nos seduzia, mas, pelo contrário, nos repelia. E daí um divórcio profundo entre nós e a alma do Brasil.

Mas — e entrou aí um imenso “mas”, um “mas” salvador e orientador, com tudo quanto procede da Igreja — a Doutrina Católica é incompatível com semelhante modo de ver.

Todos os povos foram criados por Deus e para Ele. E nenhum deles foi tão desfavorecido pela divina munificência, que seja incapaz de se separar, com o auxílio da graça, até mesmo dos piores e mais graves defeitos morais. Essa imagem de um Brasil irremediavelmente mole e sensual, de um Brasil definitivamente preguiçoso e inepto, de um Brasil inseparável da modorra, do comodismo, do espírito de transigência e de acomodação, é uma imagem que insulta o próprio Criador. O Brasil tem, certamente, em dose desigual, esses defeitos. Mas é uma blasfêmia supor que, com o auxílio da graça, tais defeitos não possam ser removidos. Pensar assim é cair no materialismo mais crasso e no mais criminoso determinismo.

Um exame mais atento da História do Brasil convenceu-me, por outro lado, que os fatos demonstram à saciedade a grandeza de alma com que Deus dotou o brasileiro. Basta ler, sobretudo, nossa história religiosa, para que se possa ver claramente que o brasileiro, quando se empolga por um ideal que dele se apodera inteiramente, é capaz de chegar aos mais extremos sacrifícios, aos mais árduos esforços, às mais absolutas privações. É um erro imaginar que o indiferentismo é um traço distintivo do brasileiro. Quando o brasileiro se deixa dominar por um ideal, ele se torna coerente e intransigente como os que mais o sejam. E nem é preciso afundar até um passado muito remoto, para se ter disso uma ideia exata.

Em uma grande reunião católica, citei três exemplos do que pode um brasileiro que abre generosamente seu coração à graça de Deus. Destes três exemplos, dois são mortos, e por isso posso novamente referir-me a eles. Quem, em energia, em santa intransigência, em combatividade inflexível e infatigável, em sublime austeridade e rigidez de costumes, em severa têmpera de caráter, em magnífica grandeza de alma, excedeu no Brasil o saudoso Dom Duarte Leopoldo e Silva? Quem, em ardente espírito de luta, em abnegação, em heroísmo, em espírito epicamente cavalheiresco, excedeu Jackson de Figueiredo? Ante estas duas grandes figuras rijas como o ferro e heroicas como o fogo, quem ousaria ainda dizer que o Brasil é um deserto de homens e de idéias, um triste deserto onde os homens perdem as idéias e quase deixam de ser homens?

Um escritor apresentou certa vez a seus leitores a figura de um cego, interrogando pelas ruas a todos os que passavam: “Oh tu, que tens a luz, o que fazes dela?” A mesma pergunta se poderia fazer a nós, católicos. O que fazemos nós, que temos dentro da Igreja, não apenas a luz, mas a luz meridiana de uma verdade plena?

Por que não compreendemos plenamente, e não gritamos em alta voz, que o Brasil se tem às vezes parecido um deserto de homens e de verdade, é isto exclusivamente porque não se entregou inteiramente ao domínio do Homem-Deus e da Verdade que Ele veio trazer ao mundo?

Lemos diariamente, nos Santos Evangelhos, que o Salvador curava os cegos, os aleijados, os paralíticos, os loucos, e que essas curas afirmavam implicitamente seu poder para curar todas as misérias morais do homem. Por que, então, não acreditamos realmente, seriamente, ardentemente, entusiasticamente, que na Sagrada Eucaristia todos os defeitos do Brasil poderão ser curados, e que o brasileiro ainda poderá ser um homem à altura das grandezas materiais dentro das quais nasceu?

“Envia o vosso Espírito, e todas as coisas serão criadas, e será renovada a face da Terra”, exclama a sagrada Liturgia. E esse Espírito que criou o mundo e que pode renová-lo, não quererá ou não poderá renovar este Brasil que Ele próprio criou?

 

Plinio Corrêa de Oliveira Extraído de “O Legionário” de 29/1/1939)

Nossa Senhora e a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução – I

A Revolução é propulsionada sobretudo por dois vícios: o orgulho e a impureza. Para esmagá-la é necessário praticar as virtudes, o que somente se consegue pela graça. Sendo Maria Santíssima a Medianeira universal e o canal por onde passam todas as graças, o auxílio das suas orações é indispensável para que seja derrotada a Revolução, triunfe a Contra-Revolução e o Reino de Maria se estabeleça.

 

São Luís, na Contra-Revolução. E, em terceiro lugar, os traços da temática “Revolução e Contra-Revolução” dentro do Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

A RCR apresenta a Revolução como um movimento nascido de uma deterioração moral. São dois vícios fundamentais, o do orgulho e o da impureza, que constituem no homem uma incompatibilidade com a Doutrina Católica, debaixo do seguinte ponto de vista: A Igreja Católica como ela é, a doutrina que ela ensina, o universo que Deus criou, e que podemos conhecer melhor através dos prismas da Santa Igreja, são assuntos que o homem virtuoso, puro e humilde apetece. Ele tem enlevo e alegria em ver que essas coisas são assim, e aceita tudo isso de bom coração.

Mas, se uma pessoa cede algo ao vício do orgulho, começa a formar-se nela uma incompatibilidade com vários aspectos da obra de Deus. É uma inconciliabilidade, de início, com o caráter hierárquico da Igreja, depois com o da sociedade civil. Ou em ordem inversa. Em seguida, uma incompatibilidade com o caráter hierárquico da família. E assim vai o igualitarismo se desenvolvendo até chegar ao sumo do comunismo. Quer dizer, há toda uma metafísica contrária à Doutrina Católica proveniente de uma incompatibilidade da alma viciosa com a obra divina, e que nasce do orgulho.

Uma coisa mais ou menos paralela a essa se poderia dizer da impureza. O homem impuro tem os elementos necessários para implicar com a ordem estabelecida por Deus. Ele é levado normalmente para o liberalismo. Irrita-lhe a existência de uma regra, um freio, uma lei que circunscreva o transbordamento dos seus sentidos. Com isso, tudo quanto é ascese começa a lhe parecer implicante. Naturalmente, surge uma implicância contra o próprio princípio da autoridade enquanto tal.

O resultado é que, a partir da impureza e do orgulho, formam-se os elementos necessários para uma visão diametralmente oposta à obra de Deus. Essa visão já não é, portanto, diferente num ponto ou noutro da Doutrina da Igreja, mas à medida que esses vícios vão se aprofundando, e ao longo das gerações, tornam-se mais acentuados, vai-se estruturando toda uma concepção que não é apenas outra, mas é a mais contrária possível. E acaba sendo, em última análise, a concepção gnóstica e revolucionária do universo.

A Revolução tem como causa moral o orgulho e a sensualidade. Assim, todo o problema da Revolução e Contra-Revolução, no fundo, é uma questão moral. O que está dito nas linhas ou nas entrelinhas da RCR é que, se não fosse o orgulho e a sensualidade, a Revolução como movimento organizado no mundo inteiro não existiria, ela não seria possível.

Toda preservação ou regeneração moral verdadeira decorre da graça divina

Ora, se no âmago do problema da Revolução e da Contra-Revolução temos uma questão moral e, portanto, religiosa – porque todas as questões morais são substancialmente religiosas, já que uma moral sem religião é a coisa mais inconsistente que se possa imaginar –, conclui-se que a luta da Revolução e da Contra-Revolução é, em seu cerne, uma luta religiosa.

Assim, se nos encontramos no terreno da luta religiosa, compreendemos melhor o papel de Nossa Senhora na Contra-Revolução. Se uma crise moral origina o espírito da Revolução, então é verdade que essa crise só pode ser remediada com o auxílio da graça. A Igreja nos ensina que os homens não podem cumprir estável e duravelmente, na sua integridade, a Lei de Deus, com simples recursos naturais. Para cumprir os Mandamentos divinos necessitamos da graça.

Se por outro lado o homem cai no estado de pecado e se acumulam nele as apetências para o mal, essa situação moral, a “fortiori”, sem a ajuda da graça não pode ser resolvida, sendo necessários auxílios de caráter sobrenatural para o homem sair do estado em que caiu. O resultado é que toda preservação ou regeneração moral verdadeira decorre da graça divina.

Vemos, então, facilmente o papel de Nossa Senhora. Por ser Ela a Medianeira universal e o canal por onde passam todas as graças vindas de Deus, nós compreendemos que o auxílio das suas orações é indispensável para que seja derrotada a Revolução, e o Reino de Maria se estabeleça.

As graças poderão ser assim obtidas, mas se não forem correspondidas pelos homens, é inevitável que a Revolução triunfe. Logo, esse afluxo de graças sobre os homens fiéis é elemento fundamental para que a Revolução seja derrotada. Depende de Deus, é claro, mas Ele quis, por um ato livre de sua vontade, fazer isso depender da Santíssima Virgem, para a glória d’Ela e de seu Divino Filho. Donde se deduz que a devoção a Nossa Senhora é a condição para que a Revolução seja esmagada e a Contra-Revolução triunfe.

Insisto neste aspecto por ser muito importante: se tomarmos uma humanidade fiel às graças que receba por meio de Maria Santíssima para a prática dos Mandamentos, e esta prática se tornar um fenômeno geral, é inevitável que a sociedade acabe se estruturando bem, porque com o estado de graça vem a sabedoria, com a sabedoria todas as coisas entram nos eixos. Não é preciso fazer grandes estudos de Sociologia, Economia e finanças para conseguir isso. Porque com o estado de graça, não só pelo movimento natural, espontâneo, intrínseco de cada homem, tudo tende a regularizar-se, mas os estudos necessários se farão excelentemente e atingirão o seu resultado.

Quando há uma recusa da graça, nada anda. Se alguma coisa caminhar, é pior do que se não andasse. É como a civilização contemporânea: ela se construiu sobre a recusa da graça e alcançou alguns resultados estrepitosos, os quais devoram o homem. Os países dos grandes resultados são os países das psicoses. Embora essa ordem de coisas pareça ser uma afirmação do homem, na realidade o devora. Quer dizer, o homem, sem a graça, ou não constrói nada ou edifica um cárcere, uma câmara de tortura, um palácio de delícias no qual ele sofre mais do que num campo de concentração.

Ao mínimo ato de império de Nossa Senhora o Inferno inteiro treme

Isso posto, podemos dizer que, quanto maior a devoção a Nossa Senhora, mais aberto estará o canal de graças. Se for uma devoção inteiramente autêntica, é infalível que a oração seja atendida e as graças chovam sobre um determinado indivíduo ou país.

Porém, se a devoção à Santíssima Virgem comportar restrições, for defectiva, então a graça também encontra da parte do homem implicitamente uma certa resistência. Nisto mesmo ele já é ingrato, e acaba acontecendo que toda a vida, a seiva da sociedade, deperece.

Costuma-se dizer que, na economia da graça, Nossa Senhora está de tal maneira que Jesus Cristo é a Cabeça do Corpo Místico, e Ela seria o pescoço, porque tudo passa através d’Ela. A imagem é inteiramente verdadeira na vida espiritual de uma pessoa. Imaginem alguém com pouca devoção à Mãe de Deus: é como o indivíduo com uma corda atada ao pescoço, a qual lhe permite um fiozinho de respiração. Quando não tem nenhuma devoção, ele está asfixiado. Se, pelo contrário, ele possuir uma grande devoção à Virgem Maria, o pescoço está inteiramente livre, o ar penetra nos pulmões a plenos haustos e o homem pode viver normalmente.

Não estou dizendo que a coisa sai automaticamente, mas sim que, havendo a correspondência à graça, forçosamente tudo se estrutura bem. Não basta trabalhar, estudar, organizar. O grande problema fundamental é haver a correspondência à graça.

Em sentido oposto, poderíamos afirmar o mesmo a respeito do demônio. Porque o papel dele na eclosão e nos progressos da Revolução foi enorme. Foi o demônio que conseguiu tentar o homem, induzindo-o a uma posição revolucionária e a extremos revolucionários, que estão abaixo até da miséria humana. E a fazer uma Revolução como a atual, a qual é pior do que o grau de decadência da natureza humana.

Se o demônio não estivesse ali para tentar o homem, a coisa não teria saído tão terrível quanto ela é. Ora, este fator de propulsão tão forte da Revolução está inteiramente na dependência de Nossa Senhora. Porque basta Ela ter o mínimo ato de império que o Inferno inteiro treme, se confunde, se recolhe e desaparece. Basta, pelo contrário, Ela entender que, para o castigo dos homens, é conveniente deixar o demônio com certo raio de ação, que ele progride tanto quanto Ela deixar, mas o demônio está debaixo da dependência d’Ela completamente.

Então, os fatores enormes da Contra-Revolução e da Revolução, que são a graça e o demônio, dependem do império e do domínio da Santíssima Virgem. Vemos, portanto, uma vez mais, o papel de Nossa Senhora na Revolução e na Contra-Revolução.

Maria Santíssima é a Rainha do universo

É preciso acrescentar que a mediação de Maria Santíssima deve ser considerada do ponto de vista da oração, porém Ela não é apenas Aquela que reza por todo o universo, mas a Rainha do universo, e essa realeza é verdadeira.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, dizer que Nossa Senhora é Rainha é conversa, porque Ela faz tudo quanto Deus quer, é escrava de Deus. Portanto, em última análise, a Santíssima Virgem não é Rainha. Ela é simplesmente como um vidro transparente e inerte através do qual passam os raios divinos, mas o verdadeiro Rei é Deus”.

Entra aqui uma finura, que é preciso considerar: imaginem um diretor de colégio que tem alunos sumamente insubordinados; ele os castiga e impõe uma ditadura de ferro no colégio. Depois o diretor se afasta e diz à mãe dele o seguinte:

“Sei que vós governareis esse colégio de um modo diferente do meu, porque eu governo com vara de ferro e vós tendes um coração materno. Quero que agora governeis vós e não eu. Eu vos dou a direção do colégio.”

Esta senhora vai dirigir o colégio como o diretor quer, mas por um método que é dela e não dele. E que ao mesmo tempo representa a vontade dela enquanto distinta da dele, mas em que ela faz inteiramente a vontade do diretor.

Assim é Nossa Senhora como Rainha do universo. Nosso Senhor deu a Ela, que é unicamente Mãe e não tem papel de juiz, uma realeza cuja misericórdia vai além daquilo que a justiça de Jesus Cristo, e a sua posição de juiz, propriamente Ele quer exercer. Então Nosso Senhor coloca-A como Mãe, com todas as indulgências, todos os extremos de misericórdia da mãe, que a autoridade paterna de si não comporta. Ele A coloca como Rainha do universo para esse efeito, a fim de governar o universo assim. E a vontade d’Ele é que Ela faça algo que Ele não poderia realizar.

É, portanto, enquanto se distingue de Nosso Senhor que Ela, Rainha do universo, melhor faz a vontade d’Ele. Então há um regime verdadeiramente marial de governo do universo. E este regime explica o papel de Nossa Senhora como quem dirige, dispõe dos acontecimentos, decreta aquilo que deve acontecer. É claro que sempre inspirada por Deus, em união com Ele, etc. Maria Santíssima é infinitamente inferior ao Onipotente, isso é evidente, mas Ele quis livremente dar-Lhe este papel por um ato de liberalidade d’Ele. Então, é Nossa Senhora que regula o curso dos acontecimentos terrenos. Depende d’Ela a duração da Revolução e da Contra-Revolução. É Ela que intervém nos acontecimentos para que a Revolução não vença. Basta lembrar de Lepanto, por exemplo.

Quantos outros fatos da História da Igreja houve em que a Santíssima Virgem deixou claro ser uma intervenção direta d’Ela que influía nos episódios! E então se compreende que, mais do que Medianeira onipotente e suplicante, Ela é verdadeiramente a Rainha que conduz os acontecimentos e dirige a História.

Quando a Igreja canta a respeito da Mãe de Deus “Tu só exterminastes todas as heresias no universo inteiro”, afirma que o papel d’Ela nesse extermínio foi como que único. Quem promove a eliminação das heresias dirige os triunfos da ortodoxia, quem governa uma coisa e outra dirige a História. Ela é verdadeiramente a Rainha. Esta realeza de Nossa Senhora nos dá uma visão a mais do papel d’Ela dentro de toda a problemática R-CR.

Minguamento da devoção a Nossa Senhora: causa de todas as vitórias da Revolução

Esta noção a respeito de Maria Santíssima está ligada à mediação universal. E me parece que explica bem como a devoção a Nossa Senhora está absolutamente na raiz de todas as vitórias da Contra-Revolução.

Haveria um trabalho interessante de História para fazer, mostrando que, quando o demônio começa a vencer, é porque ele consegue minguar a devoção à Santíssima Virgem. Todas as decadências da Cristandade e todas as vitórias da Revolução têm como ponto de partida uma diminuição na devoção a Nossa Senhora. Se não fosse esse minguamento, a Revolução não caminharia.

Temos o exemplo característico na Europa da Revolução Francesa, que era como uma floresta combustível na qual com uma simples fagulha se ateava fogo em tudo. A devoção a Maria Santíssima nos países católicos fora prodigiosamente diminuída pelo jansenismo; o resultado nós conhecemos. Quer dizer, se a devoção a Nossa Senhora míngua, fica tudo acessível à Revolução.

Há o segundo ponto que é o seguinte: essas e algumas outras visualizações extraídas da Teologia comum, conhecida, são o suficiente para explicar o papel da Mãe de Deus na temática R-CR?

Nas últimas avenidas da perspectiva da Contra-Revolução está a ideia do Reino de Maria, ou seja, uma era histórica que será inaugurada por uma vitória espetacularmente obtida por Nossa Senhora sobre os seus inimigos. O demônio, que é expulso da Terra, volta para os seus antros infernais e a Santíssima Virgem reina sobre o mundo através dos homens e das instituições que Ela escolher para isso. A respeito dessa perspectiva do Reino de Maria, nós encontramos na obra de São Luís Grignion de Montfort algumas coisas misteriosas.

Ele é, sem dúvida, um profeta, o qual anuncia que essa era virá. São Luís Grignion fala disso claramente: é a época na qual surgirão os grandes santos de Nossa Senhora, haverá um dilúvio que lavará a humanidade e chegará então a época do Espírito Santo, que ele identifica com o Reino de Maria.

São Luís afirma que será uma era de florescimento da Igreja, como até então nunca houve. Ele chega a usar esta expressão: os santos do reinado de Nossa Senhora vão ser, em comparação aos santos anteriores, como os cedros do Líbano em relação a arbustos (n. 47).

Quando consideramos os grandes santos que a Igreja produziu até agora, perdemos o pé na consideração da grandeza desses outros bem-aventurados, que deverão vir debaixo desse bafejo de Maria Santíssima. Mas não há nada de mais razoável do que imaginar que a santidade cresça enormemente numa era histórica onde a situação concreta de Nossa Senhora deve progredir enormemente também. Portanto, não há dificuldade em admitir isso.

A quintessência recôndita da verdadeira escravidão

Então, nós podemos dizer que São Luís Grignion de Montfort dá peso, autoridade, consistência com seu valor de pensador, mas sobretudo com sua autoridade de Santo canonizado pela Igreja, às esperanças que se veem em muitas outras revelações particulares, as quais afirmam que virá uma época na qual a Santíssima Virgem verdadeiramente triunfará.

São Luís é, portanto, o profeta, porém mais do que o profeta ele é o fiador do Reino de Maria. A canonização dele e o acerto extraordinário de toda a sua obra nos servem de apoio para essa esperança de um Reino de Maria que deve vir.

Entretanto quando se analisa sua obra, nota-se ainda qualquer coisa de mais profundo: ele faz umas insinuações de que as relações entre Nossa Senhora e as almas – e especialmente as que a Ela se entregam na qualidade de verdadeiros escravos – não foram e não são conhecidas até o fundo pelos teólogos. E delas se podem tirar verdades a serem exploradas nos tesouros da Revelação e da Tradição, e que vão muito mais longe do que os teólogos dizem.

Ele fala do famoso segredo que há na verdadeira escravidão a Nossa Senhora. Por esse segredo a graça realiza, no autêntico escravo, operações inefáveis que não se sabe exatamente como são, e que correspondem também a uma união inefável, cujo verdadeiro alcance e feitio nós não conhecemos bem, e que representam a quintessência recôndita da verdadeira escravidão.

Quer dizer, fica acenado aí um progresso da Teologia especialmente no que diz respeito a esta parte das relações da graça com a alma, mediante Maria Santíssima. Coisa que ao mesmo tempo se vê que já existia na época dele e, entretanto, precisava ser explicitada, mas além disso cresceria de intensidade com o curso dos tempos, para atingir toda a sua amplitude no Reino de Maria, produzindo essa plenitude histórica, esse auge de santidade que deveria brilhar na Igreja e que nasceria desse mistério.

Como é um mistério, a respeito dele podemos esboçar apenas algumas pinceladas muito ligeiras. Mas me parece que São Luís Grignion, enquanto o “Cristóvão Colombo” desse novo continente da Teologia, deixa entrever coisas sobre as quais precisamos ter os olhos postos, se quisermos estabelecer uma relação entre o Tratado da Verdadeira Devoção e o problema “Revolução e Contra-Revolução”.

Porque então o auge da Contra-Revolução é o apogeu desta ação misteriosa de Nossa Senhora. Assim, a Contra-Revolução – pelo menos por um jogo de probabilidades – começa a aparecer como um avanço progressivo da Santíssima Virgem nas almas e uma acentuação desta ação misteriosa d’Ela nas almas, de tal maneira que, quando este sol chegar ao meio-dia, nós teremos a Revolução esmagada.

Há, portanto, uma gestação do Reino de Maria nas almas por um progresso novo, inédito desta ação misteriosa que se realiza na noite desta espécie de Idade Média do demônio em que vivemos, mas na qual já começa a haver algo que chegará ao seu meio-dia, quando o Reino de Maria for proclamado.        v

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)