Mirante altíssimo e grandioso

A meditação feita por São Vicente Ferrer sobre o Apóstolo virgem nos situa num mirante altíssimo e grandioso a partir do qual percebemos as civilizações que ruíram devido à imoralidade e à revolta; vemos o castigo que cai sobre o mundo de um modo tão trágico, porque abandonou a Deus

 

No dia 27 de dezembro a Igreja comemora a festa de São João Evangelista. Temos para comentar alguns trechos sobre ele, tirados dos sermões de São Vicente Ferrer(1).

Coroa real com quatro florões

No Livro de Ester, capítulo VI, há uma bela leitura.

O grande Rei, Imperador, Assuero perguntou uma vez a um seu conselheiro, homem muito sutil: “Que se há de fazer com alguém que o rei quer honrar?”

Depois que refletiu um pouco, respondeu o conselheiro: “Para honrar a quem o rei deseja honrar deve-se lhe vestir com as vestes reais, montá-lo sobre um cavalo da cavalariça real e cingir a sua fronte com uma coroa régia, e que o primeiro dos príncipes do rei leve a rédea de seu cavalo e, passeando pela praça da cidade, vá apregoando diante de todos. Assim se faz com aquele a quem o rei quiser honrar.”

O Senhor Jesus Cristo, Rei poderosíssimo, fez essas coisas com magnificência na pessoa de São João Evangelista.

A coroa que cingiu Jesus Cristo Homem, no momento de sua concepção, foi a Sabedoria perfeita. Porque a Sabedoria reside na cabeça como uma coroa.

A coroa de Cristo teve quatro florões como as coroas reais costumam ter. Na frente, a ciência da Trindade; atrás, a ciência de todas as criaturas, de todas as coisas pretéritas e futuras, e de todos os pensamentos dos corações; à direita, teve o conhecimento da glória do Paraíso e dos predestinados; à esquerda, teve conhecimento das penas infernais e dos que estão condenados ao Inferno com as causas de suas condenações.

São João Evangelista foi coroado com esta mesma coroa da Sabedoria. Foi assim coroado na noite da Paixão mais do que todos os outros Apóstolos. Reclinado sobre o Coração do Mestre, recebeu isto como dádiva esplêndida.

Por isso diz dele a Igreja em seu ofício: “Bebeu a água pura do Evangelho da fonte sagrada do peito do Senhor”.

Naquele instante foi-lhe imposta a coroa real com seus quatro florões: o conhecimento de Deus pelo qual João compôs o Evangelho; o conhecimento de todas as criaturas da glória e dos predestinados, com o qual escreveu a sua primeira Epístola Canônica; o conhecimento dos condenados, e por ele compôs o seu segundo e terceiro epistolário. Portanto, dele podemos dizer: “Coroa de ouro sobre sua cabeça, gravada com o signo da santidade”.

A coroa de ouro é, segundo a Teologia da Bíblia, o escrito dos doutores gravado com sinal da santidade. Porque a coroa da Sabedoria que é a Teologia não tem a força se não está assinalada com o sinal da santidade que é a vida digna. São João Evangelista a manifestou em altíssimo grau.

O conhecimento de Deus e de todas as coisas criadas

É realmente um lindíssimo comentário, à altura de São Vicente Ferrer. Ele toma como ponto de partida um trecho tipicamente oriental do Livro de Ester.

O rei pergunta ao conselheiro como se deve fazer com alguém que o monarca quer honrar. Então o conselheiro, depois de pensar, diz:

“O melhor é revestir esse homem de trajes reais, cingi-lo com uma coroa régia. Depois, montá-lo num cavalo da cavalariça real. Fazer com que uma das principais figuras da corte do rei tome o cavalo pela rédea e vá pelo meio da rua, dizendo para todo o povo: ‘Eis o homem a quem Deus quis honrar!’”

Então, como todos os trechos da Sagrada Escritura têm um sentido teológico, místico, aqui São Vicente Ferrer extrai um sentido profético no que diz respeito a São João Evangelista.

Ou seja, ele foi um dos prediletos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e como tal um homem que o Redentor quis honrar aos olhos de todos, cingindo-o com a coroa do próprio Cristo. Qual?

Fixemos a atenção nisto porque é um ensinamento lindo para nós.

É a coroa da Sabedoria. Nosso Senhor recebeu essa coroa, diz São Vicente Ferrer, no próprio momento em que nasceu porque Ele gozava das formas mais profundas da Sabedoria.

No fundo, essa Sabedoria é o conhecimento de todas as coisas criadas e, sobretudo, o conhecimento de Deus. Então, a coroa possuía na frente um florão que era o do conhecimento de Deus. Outro que era do conhecimento de todos os corações dos homens, de maneira tal que ele conhecia toda a humanidade presente. Tinha depois um terceiro florão que lhe fazia conhecer toda a humanidade no Céu, toda a Igreja gloriosa e todos os espíritos bem-aventurados. E um quarto florão, quer dizer outro atributo, outra força de Sabedoria pela qual ele conhecia todas as almas que estão no Inferno, e as causas de suas condenações.

Visão sapiencial da Revolução e da Contra-Revolução

Vamos reunir esses conhecimentos, trabalhar um pouco sobre esse lindo pensamento de São Vicente Ferrer, e ver até onde ele conduz.

Conhecer todas as almas que estão na Terra não é só conhecê-las individualmente, alma por alma, mas também a sociedade humana, essas almas enquanto influenciando-se umas às outras. Portanto, a opinião pública, o ondular das grandes correntes de pensamento a propósito de todas as coisas importantes e, sobretudo, a respeito de Deus Nosso Senhor. É o conhecimento mais profundo que se possa imaginar da Igreja Católica, constituída de homens e, portanto, no seu estado presente, pode e deve ser conhecida exatamente como ela é nos homens que nela existem, nos efeitos da graça e do pecado nesses homens enquanto constituindo uma grande sociedade de almas.

São João Evangelista tinha o conhecimento do passado, do presente e do futuro, não como três pedaços isolados, sem nexo um com o outro. É evidente que ele conhecia o passado enquanto a fonte onde definir o presente; e o presente enquanto a fonte onde definir o futuro, o mais remoto, até o fim dos séculos.

Ele conhecia todo o processo histórico, toda a concatenação dos acontecimentos, das correntes ideológicas, religiosas, filosóficas, políticas, artísticas, culturais, da interpenetração dessas correntes, do modo pelo qual elas governam os homens, do processo pelo qual elas nascem umas das outras em virtude do jogo das circunstâncias, das graças e das tentações; tudo em função do livre-arbítrio humano. Tudo isso ele conhecia numa visão sapiencial e grandiosa.

Ele conhecia, entre outras coisas, o processo em nossos dias da Revolução e da Contra-Revolução. Ele via no futuro as figuras malditas do Renascimento, do Protestantismo, da Revolução Francesa e do Comunismo. Descortinava também as almas benditas preparadas por São Luís Grignion de Montfort cuja pregação foi uma espécie de luta ideológica ancestral da Chouannerie(2); via as almas da Contra-Reforma, como também as almas dos movimentos contrarrevolucionários posteriores; contemplou nossas almas e as almas que vão nos suceder numa luta até o fim do mundo; viu Elias, Henoc e tudo o mais.

Contato com o verdadeiro universo de belezas espirituais: Maria Santíssima

Portanto, o conhecimento que ele teve da História foi completo, não só enquanto ela se realiza sobre a face da Terra, mas também em seus pontos terminais. Ele viu a Igreja gloriosa, onde se encontram todos os que já foram julgados e gozam da visão beatífica. Ele viu depois todos os que estão no Inferno.

São Vicente Ferrer diz que São João viu no Inferno não só os que lá se encontram, mas por que ali estão. Significa que quando contemplou os do Céu, ele viu também por que lá estão. Logo, ele viu a Sabedoria, a Justiça e a Misericórdia de Deus exercendo-se no julgamento dos homens.

Ele pôde ver, assim, como os grandes movimentos da História levam os homens para o Céu ou para o Inferno. Ele teve, portanto, um conhecimento completo da História da humanidade.

Pergunto: do que adianta conhecer a História da humanidade? O que nos importa saber isso ou qualquer outra coisa, a não ser em função de Deus Nosso Senhor? Todo esse conhecimento sapiencial lhe foi dado como um meio para, na consideração da História do que sucede aos homens, que são a obra-prima da Criação visível, elevar-se a Nosso Senhor.

Então, o florão primeiro é o conhecimento de Deus. Os outros são florões colaterais; quão vastos, imensos, ricos, não há palavra humana que saiba dizer, mas meramente colaterais. Nesse conhecimento dos homens São João Evangelista conheceu Nossa Senhora, e podemos imaginar com que encantos, enlevos, venerações ele passou por esse verdadeiro universo de belezas espirituais que é Maria Santíssima.

Suprassumo da Sabedoria

Qual é a aplicação de tudo isto para nós? Devemos compreender bem o que é a verdadeira Sabedoria. Existe tanta gente por aí que, quando se fala que as criaturas refletem a Deus, pensa na florzinha, na graminha ou então na montanha, na águia, mas não cogita no homem. É bom pensar nessas coisas porque também espelham a Deus. Mas o por onde mais conhecemos o Criador através de suas criaturas é no homem, que sendo racional e tendo alma é feito à imagem e semelhança de Deus.

Conhecer o homem é conhecer não esta ou aquela alma individual, mas a contextura geral das relações entre as almas. Assim como quando Deus criou o universo e depois repousou, o Gênesis diz que Ele considerou que cada coisa era boa, mas o conjunto era ótimo, também quando olhamos os homens podemos nos extasiar diante da beleza de uma alma, mas o conjunto delas é mais bonito. Um santo é um sol de beleza, mas a Igreja Católica Apostólica Romana, que é o conjunto de todos os santos, é mais bela do que a pura soma aritmética de todos os seus santos.

O conjunto das almas humanas, os seus movimentos, as suas inter-relações, a sociedade de almas, as leis da História que nestas se verificam, cuja perfeição é decorrência das próprias perfeições de Deus, enquanto servindo para julgar os homens, tudo isto é o suprassumo da Sabedoria e, portanto, do conhecimento de Deus.

Lírio que floresce na noite, do lodo e sob a tempestade

Percebemos assim quanto fundamento há em insistir em que a vida espiritual se faça com esta riqueza, quando se procura utilizar, por exemplo, a temática “Revolução e Contra-Revolução” como um alimento para a vida espiritual.

As nossas reuniões são a aplicação de princípios da História, com um fundamento metafísico e teológico, aos acontecimentos presentes para nos situarmos numa espécie de mirante, de onde vemos esses acontecimentos e a nossa própria vida individual. Mirante altíssimo onde percebemos todos os séculos de civilizações anteriores que ruem numa espécie de catástrofe majestosa e grandiosa, e se espatifam em pedaços imundos de imoralidade e revolta. Castigo espetacular de um mundo grandioso que cai de tão alto e de um modo tão trágico porque abandonou a Deus. Vemos a grandeza desse castigo de nações inteiras que se liquefazem, se fundem e perdem seu espírito, que vivem dentro das ruínas de seu próprio passado, sem compreendê-lo.

Nessa liquefação de toda a humanidade para formar uma só massa animalizada e tendente para a barbárie, vemos algo de muito mais alto: a realização de um superior desígnio de Deus. Nas imensidades do castigo se nota a imensidade do pecado; mas pela imensidade do pecado percebe-se a imensidade e o poder d’Aquele que foi ofendido. Essa é uma visão que teria empolgado qualquer profeta.

De outro lado, notamos que quando tudo isso cai e se arrebenta no meio de toda a sujeira, de cá e de lá salta uma pérola, um brilhante, um rubi… São as graças da Contra-Revolução dadas para este e para aquele. É um laivo adamantino que se forma e revela a presença das melhores qualidades da humanidade nos seus melhores tempos. É o Reino de Maria que começou a sua força de regeneração dentro desse horror, como um sol que vai nascendo no meio das trevas mais trágicas de uma madrugada suja, ou à maneira de um lírio que floresce na noite, do lodo e sob a tempestade. Esse lírio é o conjunto das almas contrarrevolucionárias existentes pelo mundo, que agradam a Nossa Senhora e prognosticam o dia de amanhã.

Momento trágico e sublime em que Nossa Senhora quis que nascêssemos

Esta não é uma meditação nova, que escapa aos padrões clássicos da Igreja. Estamos vendo aqui uma meditação de São Vicente Ferrer feita exatamente segundo esses padrões. Ora, ele foi um grande profeta que previu uma porção de coisas do futuro, imenso missionário, uma das maiores figuras que a Igreja Católica tenha produzido.

Por vezes, quando temos dificuldades na vida espiritual, e não nos levantamos do fundo de nossos próprios defeitos, é porque não nos aplicamos às meditações próprias a alimentar o nosso amor de Deus, segundo a nossa vocação. Nossa Senhora preparou para nós não só os tesouros que estão ao alcance de todos os católicos, mas também outros que são gemas das melhores de dentro dos cofres inexauríveis da Doutrina Católica. Esses tesouros são essas meditações feitas a partir desse mirante magnífico e grandioso. É a consideração de nossa época, de nossas atividades pessoais, de nossa luta externa e interna, em função do momento trágico e sublime em que Nossa Senhora quis que nascêssemos.

Então, aqui está uma sugestão que sirva de alento e pórtico de esperança para as almas eventualmente aflitas, desconcertadas. E para as almas esperançadas que querem progredir ainda mais, eis um meio para maiores voos: colocarmo-nos nesse mirante que é o mais próprio para as meditações de homens na época contemporânea. Ver como Deus fala com a voz do trovão, mas tendo um sorriso, não direi paterno, mas materno para com esse lírio que Ele vai fazendo nascer do lodo. Deus em toda a sua grandeza, em toda a sua meiguice, falando em nossa época para nos santificar.

Que Nossa Senhora dê vida e força a essas palavras para que, realmente integrados nos pontos de vista de onde nossa vocação é compreensível, e dotados de energias espirituais que decorrem desta forma de fidelidade, possamos subir até as alturas às quais a Santíssima Virgem nos quer levar.   v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/12/1969)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

2) Movimento contrarrevolucionário originado na Bretanha a partir do descontentamento da população rural diante das medidas religiosas e políticas da Revolução Francesa, principalmente a criação de uma “igreja” constitucional e a venda dos bens da Igreja.

Desejo do paradisíaco

Na alma de uma criança inocente dorme um desejo do paradisíaco que acorda quando ela vê algo de maravilhoso, como uma árvore de Natal. É uma espécie de senso virginal de uma realidade existente para além desta que se vê. Numa educação verdadeiramente católica, os pais deveriam ensinar aos filhos a realidade inteira, mostrando como são belas as criaturas postas por Deus nesta Terra, mas incentivando-os a imaginar como elas seriam no Paraíso.

 

Por que uma criança fica maravilhada ao ver uma árvore de Natal?

Na inocência primeva os modelos ideais brotam na alma inteiramente inocente, que tem a noção fácil e imediata das coisas como elas devem ser e, portanto, do modelo ideal de tudo. Por isso, vendo uma árvore de Natal a criança fica encantada, pois ela possui no fundo de sua inocência a ideia – não inata, mas facilmente adquirida – do modelo ideal de como seria uma árvore paradisíaca. Pela mesma razão, a criança é facilmente sensível ao belo, encanta-se com ele.

Senso do metafísico, do maravilhoso, do sobrenatural

O espírito da criança não é fanado por certas coisas que fanam o espírito do adulto. Em geral, pelo efeito do Batismo – que é o mais importante – e por ainda não se ter corrompido com a vida, a criança tem uma propensão a crer, uma tendência a conceber as coisas sob a égide do maravilhoso e uma facilidade para admiti-lo, qualidades estas que o adulto vai perdendo até chegar ao tipo de velho desabusado, completamente cético, materialista, que representa o ocaso do espírito humano.

Assim, a alma da criança pede a árvore de Natal. Ora, a árvore de Natal é algo que imerge para o mundo do maravilhoso. A criança tem uma apetência para contos de fada. O que é o conto da fada? É o mundo do maravilhoso. A criança tem também uma grande aptidão para a Fé, acredita e não pergunta sobre as razões de crer, ela vai logo crendo.

Isso é uma espécie de senso virginal que tem a criança de uma realidade existente para além desta que nós vemos, a qual é mais bela e sacia anseios do espírito humano que o homem adulto já não possui, pois à medida que a pessoa vive ela vai se apegando às coisas terrenas e perdendo o senso do extraterreno, do metafísico, quer dizer, de uma realidade existente além do físico, e o senso do maravilhoso, do sublime, do sobrenatural. Tudo isso vai minguando na pessoa à medida que ela se torna adulta.

Essas primeiras posições de alma implicam não numa profissão explícita de Fé em Deus, mas na existência do Criador, ou porque a pressupõem, ou porque conduzem a ela, mas são corolários necessários da existência de Deus.

Aspiração por uma ordem ontologicamente mais perfeita

Por exemplo, às vezes a árvore de Natal é acusada de ser uma coisa laica, e realmente esta impostação tem algo de verdade. Mas, no fundo, ela não é laica, pois traduz a aspiração da criança para uma ordem ontologicamente mais perfeita do que a nossa, em que tudo seja de maravilhas constituídas não somente de bens para o corpo, mas de bens para a alma. Não é a árvore de Natal onde se penduram balas para comer ou brinquedos para divertir. Não é isto. Aquelas bolas coloridas, estrelas e outras coisas desse gênero são adornos inúteis para brincar. São feitos para contemplar. Contemplar o quê? No fundo, a hipótese de uma ordem de coisas maravilhosa existente fora da realidade palpável. A criança sabe que aquela árvore não é assim, que aqueles não são frutos daquela árvore. Mas por detrás está um desejo confuso, mas ardente, do extraterreno que se exprime naquilo. Ali há, portanto, a nutrição de um anseio da alma de uma coisa metafísica e, portanto, um impulso que é um ponto de partida para anelar a Deus.

Considerem uma criança na primeiríssima infância que entra numa sala onde está preparada uma árvore de Natal. Ali, naturalmente, há os objetos comuns próprios a uma sala de qualquer casa, como mesa, cadeiras, livros, quadros. Entretanto, ao entrar, a criança tem sua atenção atraída imediatamente pelos adornos natalinos maravilhosos ali colocados, e não pelos objetos comuns da vida cotidiana.

Alguém dirá que é natural porque os objetos maravilhosos não são habituais, e aquilo que é novo chama a atenção. Mas não é isso. Uma criança que vai pela primeira vez a uma casa para ver uma árvore de Natal não conhece os objetos ali presentes. Portanto, a árvore de Natal é tão nova para ela quanto os outros objetos que estão na sala. Porém, é a arvore que chama a atenção. Na primeiríssima infância, as luzes, as bolas prateadas, douradas, vermelhas, verdes, azuis, que pendem da árvore, atraem mais a atenção do que tudo.

Por que a atenção da criança fica mais atraída pelos enfeites, pelas luzes do que pela própria árvore de onde tudo isso pende? E mais atraída pela árvore no conjunto do que pelos outros objetos na sala? No fundo, é porque a criança tem uma ideia, correlata ao senso do absoluto, de que se algo fosse absolutamente como deve ser, seria muito mais maravilhoso do que é.

Uma educação verdadeiramente católica

Com efeito, sem a criança jamais ter ouvido falar de Paraíso, nem ter ainda inteligência para se representar o que seja um Paraíso, dorme dentro dela um desejo do paradisíaco que acorda quando vê aquelas coisas.

Os esmagadores, os incendiários de paraísos dizem que esse “élan” de alma de uma criança é um movimento tolo da primeira infância; quando ela ficar adulta vai se incomodar muito mais com a agência bancária das proximidades do que com a árvore de Natal armada em casa. Não se dão conta de que esse paraíso que dorme na criança é o melhor do talento e da inteligência dela.

Por estar nesta Terra de exílio, o homem não tem as coisas como as do Paraíso, onde tudo é muito mais bonito; então, ele imagina a árvore de Natal. E a criança se encanta porque sua alma é desejosa de uma perfeição não existente nas coisas desta Terra. Ela quereria uma ordem, uma natureza, outras pessoas, enfim tudo como não existe, porque a sua alma foi feita para coisas maiores.

Precisamente por desejar essas coisas maiores ela possui uma forma de talento por onde como que advinha a perfeição que tudo deve ter. Por causa disso também a criança tem uma imaginação muito criativa e o senso do maravilhoso levado a um alto grau.

Numa educação verdadeiramente católica, os pais deveriam ensinar às crianças a realidade inteira, mostrando como são belas as criaturas postas por Deus nesta Terra, mas incentivando-as a imaginar como seriam no Paraíso. Então, o esquilo é muito bonito, mas se pode conjecturar como seriam os esquilos se movimentando no Paraíso.

Por vezes, ao ver passar uma bela borboleta, um beija-flor, ou algum outro bicho bonito, a criança tem a tendência de ir atrás, pois é algo de maravilhoso que ela quer pegar, como se essas criaturas tivessem se extraviado do Paraíso e vindo parar aqui na Terra.

Diante dessa tendência os pais da criança deveriam dizer: “Olhe, Deus fez assim o Paraíso. Isso está aqui para você ter ideia de como as coisas poderiam ser. Observe o que Deus fez de maravilhoso, procure prestar atenção e imaginar como seria o Paraíso. Em tudo quanto você faça procure exprimir essa sua tendência para o Paraíso. Rume para a perfeição. Mas, pobre Paraíso terrestre em comparação com o celeste… Neste não há flores, existem Anjos. E por cima deles e de tudo está Nossa Senhora, mais sua Mãe do que sua própria mãe. Porque Ela a ama mais do que todas as mães juntas amariam o filho único que tivessem. E se você se sente um ratinho para ser amado assim por Maria Santíssima, acredite porque é de Fé, a cada “ratinho” humano Ela ama assim. Creia e confie, alegre-se e reze. Cuide de servi-La, de batalhar por Ela!

“Mas contemple os olhos de Nossa Senhora e você verá que no fundo há uma luz que vai muito além. Ela está olhando para você, mas ao mesmo tempo para o Divino Filho d’Ela! Há uma luz de Cristo n’Ela que vai além do humano. É humano, mas divino. Mais ainda, Ela está vendo Deus face a face. Fitando os olhos d’Ela é como se você olhasse num espelho para ver o Sol: o maravilhoso por excelência, a perfeição de todas as perfeições!”

Voltar a compreender e a amar o maravilhoso é uma verdadeira conversão

Se todos os homens tivessem isso presente, o mundo seria outro. É incalculável o bem que os sacerdotes fariam se nas igrejas pronunciassem sermões sobre isso. Ademais, realçado por algo que a palavra do padre tem e a do leigo não, isto é, a graça do sacerdócio, salientado pelo púlpito, pela dignidade e pelas bênçãos especiais que Deus põe no edifício sagrado.

Entretanto, já na remota época de minha infância a formação não era dada assim, mas se dizia: “Essas coisas são bobagens de infância, não pense nisso. Tudo quanto é maravilha é sonho. Você perde a partida da vida se pensar em coisas dessas. Seja prático! Para isso você precisa de duas coisas: ter saúde e ganhar dinheiro. Preocupe-se em ser saudável e fazer fortuna. Corra atrás do ouro! Não sonhe essas maravilhas. Que dinheiro ou que saúde elas lhe dão? Feche seu horizonte ao maravilhoso! Assim você terá o prazer e a riqueza”.

Ora, esta não é a perfeita formação.

Alguém objetará:

“Está bem, Dr. Plinio, mas se não nos empenharmos cem por cento em ganhar dinheiro, morremos mendigos.”

Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou: “Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham nem fiam, No entanto, Eu vos digo, nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um só dentre eles” (Mt 6, 28-29). Portanto, confiai, porque isso se arranja. É possível recuperar a saúde ou a fortuna perdida. Entretanto, não se recupera o tempo perdido. É necessária uma graça muito grande para que uma alma, que se tenha deixado trancar nesses horizontes mais baixos, volte a compreender e a querer o maravilhoso. É uma verdadeira conversão.

Tais considerações nos levam à ideia de que devemos pedir a Nossa Senhora essa inocência, para nós e para todas as pessoas, porque Deus é infinito no seu desejo de bem e quer abarcar com sua grandeza e bondade a Criação inteira.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 28/6/1969, 7/6/1974, 29/5/1981, 12/10/1985)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

Devoção mariana contrarrevolucionária

A devoção mariana deve se caracterizar também pelo espírito combativo, como o demonstra uma escultura medieval representando Nossa Senhora, com espada na mão, investindo contra o demônio. A piedade adocicada e sem luta surgiu com o Renascimento, fazendo com que os contrarrevolucionários se tornassem moles.

 

A consideração da Imaculada Conceição de Maria toca no tema do embate entre a Revolução e a Contra-Revolução no que tem de mais profundo.

Em relação à Revolução, é preciso ter uma oposição total e vigorosa

Se há tanta gente que é preguiçosamente contrarrevolucionária, isso se deve exatamente ao fato de que para ser contrarrevolucionário é preciso realizar um esforço. O homem, por sua própria natureza, pode ter algumas tendências contrarrevolucionárias. Entretanto, por outro lado, possui várias tendências revolucionárias e, por causa disso, é obrigado a desenvolver uma ação em si mesmo muito categórica, profunda, pela qual não só ele se abstenha de todas as ações revolucionárias, mas também de todos os pensamentos revolucionários, bem como de qualquer forma de simpatia ou menor rejeição para com coisas revolucionárias.

Assim, detestar uma coisa qualquer revolucionária – um monumento, por exemplo – menos do que a carga de Revolução existente naquilo exige, já é um fator para que a atitude contrarrevolucionária da alma amoleça e não tenha todo o vigor devido.

Em presença do mal e, portanto, da Revolução que se exprime, se simboliza por tal objeto ou se manifesta em tal indivíduo, escola literária, de pintura, etc., deve-se conhecer todo o mal que há ali e detestá-lo tanto quanto precisa ser detestado. Se uma pessoa tomar perante esse mal uma posição preguiçosa, indolente, que proporcione uma rejeição menor do que aquela que ele merece, naquilo em que o mal não foi detestado tanto quanto merece a pessoa acaba gostando de alguma coisa revolucionária.

Essa pílula de Revolução que a alma assim engole é suficiente para amolecer nela todas as energias contrarrevolucionárias, e fazer com que o indivíduo desenvolva um esforço que ele imagina colossal para ser contrarrevolucionário, mas não consegue ser se ele não se esforçou para combater tendências más, revolucionárias, que há nele. Porém esse combate é inútil enquanto o homem não combate tudo, não elimina tudo, porque um pouquinho que fique cria uma insistência revolucionária colossal diante dele. Ele é obrigado a desenvolver um esforço enorme para não capitular, mas está sempre voltando ao pé da mesma luta. O indivíduo toma uma atitude contrarrevolucionária, mas não é inteiramente contrarrevolucionário. Na primeira ocasião, ele vai estimar uma coisa revolucionária ou detestá-la menos do que ela merece porque, num outro ponto, foi mole com a Revolução.

Quer dizer, ou existe em relação à Revolução uma oposição total, tão vigorosa quanto ela merece em cada ponto dela, ou o indivíduo amolece.

Análise de um busto de Maria Antonieta

Isso um pouco se dá com o bem e o mal em geral, por exemplo a pureza. Eu já tenho visto pessoas que lutam seriamente para manter a castidade. Às vezes combatem de um modo a ficarmos espantados de ver como elas mantêm a pureza. Mas é uma luta que não é tão séria porque, em muitos casos – não quero dizer que seja sempre assim –, a pessoa em algum ponto conserva uma certa complacência para com a impureza. E isto faz com que, em outros pontos, ela tem para com a impureza uma moleza que não deveria ter. Então ela possui uma tendência para o pecado que não se explica à primeira vista, porque ela consegue com esforço enorme não cometer uma ação pecaminosa, mas vai-se ver no fundo esse esforço é tão grande por causa de uma conivência, uma complacência em que ela consentiu e que determina todo o resto.

Recentemente vi a fotografia de uma porcelana, feita pela famosa fábrica de Sèvres, representando um busto de Maria Antonieta com toda a grandeza que ela tem, mas com uma frieza extraordinária e uma espécie de desdém o qual afasta as pessoas que não estejam inteiramente à altura de estar na presença de uma Rainha da França como ela.

Maria Antonieta provavelmente teve atitudes de alma que correspondiam a isso, mas ela não era só isto nem principalmente isto. O charme e a graça dela foram aclamados e festejados pela Europa inteira. E quem fala em charme e em graça fala evidentemente em afabilidade, em gentileza, em aprazibilidade; uma presença que tem charme é agradável. E em algo a presença desse busto de Maria Antonieta não é agradável porque é de uma rigidez que deixa aparecer a majestade dela em toda a linha, mas sem aquilo que é o complemento harmônico da majestade régia o qual, antes de começar a “máfia” revolucionária contra ela, foi cantado em prosa e verso pela nação francesa, de todos os modos possíveis.

Resultado, a pessoa pega um busto desses, olha e diz:

“Está vendo? Aqui é evidente que ela foi isto. Esses revolucionários, coitados, certa razão tinham para fazer o que fizeram ou para serem como foram. E não se deve ser tão rigoroso no julgamento deles.”

Essa é uma conclusão injusta, não tem fundamento e leva a achar que o crime praticado pela Revolução contra Maria Antonieta tinha alguns lados de um ato de justiça. E em algo se deve ter pena daqueles agitadores ululantes e facinorosos que levaram Maria Antonieta à situação extrema a que ela foi conduzida.

Rainha que foi morta devido às qualidades que possuía

Ao olhar para uma fotografia desse busto, trazida por um amigo, e considerando tratar-se de um busto que, do ponto de vista artístico, é muito apreciável, a pessoa pode conservá-la como um marcador de livros, por exemplo. Uma vez ou outra, ao ler aquele livro, ela vai olhar a fotografia e aquela impressão se radica nela. Quando chegar a ocasião em que essa pessoa precise dar um curso de História, isso vai pesar de um modo revolucionário nesse curso.

Isso porque a pessoa foi mole no considerar esse busto, não tomou em consideração que era unilateral, apresentava um aspecto de Maria Antonieta, que a sua pessoa não podia ser julgada só segundo esse lado, pois ela tinha muitos outros aspectos relevantíssimos. E, sobretudo, é certo que não foi por isso que ela foi morta pela Revolução, mas pelas qualidades que ela possuía, pelo que havia de bom nela, porque a Revolução nunca combate o mal e jamais executa um ato de justiça contra o mal. Quando ela aponta um mal em alguém e finge combater esse mal é porque, no fundo, está combatendo um bem que existe naquela pessoa. Porque a Revolução é um movimento satânico, e satanás não é capaz de outro procedimento.

Portanto, a priori, sabendo o que foi a Revolução, devemos entrar no julgamento da coisa revolucionária certos de que, embora naqueles em que a Revolução executou violências havia coisas a punir, não foi esta a razão da punição; e nem sequer foi uma punição. Essas pessoas foram perseguidas pelos seus lados bons. Não considerar isso é ver a Revolução como ela não é.

Onde falta a luta há um dolo, uma fraude

Ora, isso exige uma firmeza, uma retidão de vontade, uma disposição de combater, uma oposição contrarrevolucionária completa que a maior parte das almas tem preguiça de ter. E por causa disso essas almas se deixam levar para baixo.

É por isso também que, por exemplo, chegando festas como a Imaculada Conceição, nós não tomamos em consideração as coisas que sabemos como teologicamente são, ou pelo menos podem ser vistas debaixo de um certo aspecto e que assim devem ser examinadas.

A imagem da Imaculada Conceição mais frequentemente difundida é a de Murillo. Esse quadro representa Nossa Senhora em pé sobre nuvens, num gesto de completo enlevo para com Deus, com as mãos postas e pensando só n’Ele. Como Rainha que está presente no seu reino e, portanto, completamente distendida, despreocupada, no terreno que Ela domina inteiramente, sentindo-Se objeto de todo o amor e comprazimento de Deus, de maneira que o amor que o Criador tem a todas as outras criaturas somadas não dá o amor que Ele tem a Ela, nem de longe.

A pessoa olha esse quadro e diz: “Que admirável!”

O contrarrevolucionário completo afirma: “É um quadro onde o combate não está presente, portanto, na realidade total, falta-lhe alguma coisa. E no representar a Imaculada Conceição alguma coisa falta. Tudo o que o quadro quer representar, Nossa Senhora tem, está presente. Mas, há algum lado para o qual não se pode fechar os olhos: a luta”.

Onde falta a luta o contrarrevolucionário percebe que há um dolo, uma fraude, que a verdade inteira não está ali.

Na realidade o que nos diz Cornélio a Lápide?

Ele não dá – tanto quanto eu me lembro, pelo menos – uma sentença como certa, mas apresenta como sentença aceita por muitos teólogos eminentes, cujos nomes e obras ele indica, o seguinte: Os que estão no Inferno têm um conhecimento sem delícias, sem alegria, sem amor, amargurado que, pelo contrário, dá-lhes uma situação de desagrado profundo do que se passa no Céu. Eles veem, quer dizer, conhecem Nossa Senhora posta na presença do Altíssimo e inundada de felicidade, etc., e o ódio neles aumenta. E do fundo do Inferno blasfemam contra Ela. Em oposição a essas blasfêmias Maria Santíssima executa neles um ato de justiça, mandando que outros Bem-aventurados respondam a elas. E se trava uma espécie de polêmica, de luta, não à maneira da batalha que houve no Céu quando satanás foi mandado embora por São Miguel Arcanjo, mas uma controvérsia em que os Bem-aventurados aclamam ainda mais a Ela por causa das blasfêmias que os precitos soltaram, e uma atmosfera de combate se torna notória no Céu, e Nossa Senhora é a vencedora que esmaga com o seu calcanhar a cabeça da serpente.

Assim o quadro da Imaculada estaria completo.

Guerra atormentante contra o maligno

Alguém poderá dizer: “Não, Dr. Plinio, devagar! O quadro de Murillo apresenta Nossa Senhora esmagando a cabeça da serpente”.

Não me lembro, mas é facilmente possível. Entretanto, Murillo A pinta como tão enlevada com Deus que nem toma conhecimento dos insultos do demônio. Aquilo é a última ralé para a qual Ela não liga e, portanto, é muito teológico que Ela seja apresentada não pensando no demônio. Se Ela tem a sua glória em que o demônio seja escarnecido, receba o ato de justiça com o vilipêndio atirado sobre ele, é justo que Ela tenha consciência disto. E que em reparação a Deus, que Maria Santíssima sabe estar sendo insultado por esse ato do demônio, Ela faça um ato de adoração. Um ato de adoração pleno como só Ela é capaz de fazer e tem os recursos para realizar, mas no qual o conhecimento da situação belicosa e a participação nesta guerra atormentante do demônio esteja presente dentro d’Ela.

Suponhamos que um católico coloque um quadro desses no retábulo da capela do seu oratório particular em casa. Ao rezar ele não tem a noção da atmosfera de luta em que todos os precitos, todos os demônios que estão no Inferno uivam contra Nossa Senhora, ao menos em certas ocasiões em que Ela majestaticamente, eu ousaria dizer – é impróprio porque Ela é tão maior do que qualquer outra criatura, que a comparação não está bem – “carolingiamente”, mete o pé em cima deles e os esmaga, e isso se dá gloriosamente.

O católico deve ter isso diante dos olhos pelo menos algumas vezes, e precisa sentir que falta alguma coisa quando, na sua devoção mariana, isso jamais lhe passa pela mente.

A Santíssima Virgem, usando um gládio, luta contra o demônio

Nunca me ensinaram isso e eu sentia que, na minha devoção à Nossa Senhora, faltava alguma coisa que procurava e não entendia o que era. Até que os meus olhos caíram sobre esse texto de Cornélio a Lápide.

Eu ali senti que havia um recôncavo da minha alma que estava vazio do necessário da devoção à Santíssima Virgem, e exultei porque me senti cheio de Nossa Senhora. E acho que a devoção contrarrevolucionária a Ela comporta este aspecto de um modo relevante.

Não quero dizer que a imagem ou o quadro, enfim a reprodução, que não se refira a isto seja censurável. Afirmo outra coisa: que quase nunca se veja isto é censurável.

Há uma escultura medieval, representando uma lenda, em que Nossa Senhora está defendendo, com espada na mão, uma alma que o demônio quer roubar. É, portanto, a Santíssima Virgem em luta contra o demônio, mas usando um gládio.

O efeito do Renascimento foi o de passar um pano molhado sobre todas essas realidades. E daí haver essa forma de piedade adocicada e sem luta, fazendo com que a Contra-Revolução não tenha lutadores. Os contendores estão do lado de lá, eles são ferozes; do lado de cá tem essa água com açúcar que conhecemos.

Mas volto a dizer, não é porque quando uma explanação de Nossa Senhora não se refere a isso seja água com açúcar, isso não é verdade. Mas é verdade que no conjunto das noções sobre Nossa Senhora deve-se ter isto presente, sob pena de não sermos verdadeiramente contrarrevolucionários. Tenho certeza de que o nosso espírito contrarrevolucionário brilha especialmente se tivermos o cuidado de sempre ter em vista que Nossa Senhora é assim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1992)

Aspecto militante do privilégio da Imaculada Conceição

Quando Adão e Eva pecaram, antes que Deus os expulsasse do Paraíso e promulgasse as penas às quais estariam sujeitos, revelou-lhes a missão de Maria Santíssima, que viria ao mundo para esmagar a cabeça da infernal serpente.

Esta inimizade, criada pelo próprio Deus, permanece viva ao longo dos séculos entre os que são da Virgem e os sequazes de satanás. Por isso, não é de admirar que o dogma da Imaculada Conceição tenha causado não pequeno rebuliço. Sobre este aspecto, comenta Dr. Plinio:

Quando o dogma da Imaculada Conceição foi definido por Pio IX, houve uma verdadeira tempestade de ódios, protestos, indignação. Como explicar esse furor?

Vejam o conteúdo do dogma: Maria Santíssima foi concebida sem pecado original, desde o primeiro instante de seu ser.

Ela, como Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, mais recentemente também como Mãe da Igreja, é odiada pelo ódio igualitário de vê-La colocada no ponto mais alto em que uma mera criatura possa estar. Ainda mais sendo uma mulher, e onde, portanto, o arbítrio de Deus se apresenta de um modo muito mais forte.

Isso fere enormemente o igualitarismo, como também a ideia de que esta criatura tenha sido objeto de uma exceção a uma regra para a qual nunca houve exceção, e tenha sido concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser.

Não é só a aversão ao aspecto anti-igualitário, mas é um ódio em relação ao que é sublime. Nossa Senhora concebida sem pecado original, Mãe de Deus, tudo isso considerado no seu conjunto é de uma sublimidade de tal maneira pura, imaculada, elevada, virginal, que transcendente a tudo em matéria de sublimidade.

O espírito revolucionário odeia tudo quanto é sublime, tudo quanto é elevado, e não somente por ser ele igualitário, mas por outra expressão que é o amor ao banal, ao trivial, quando não é o amor ao degradado. Daí decorre um verdadeiro ódio contra a Imaculada Conceição de Nossa Senhora.

Ao considerar a Festa da Imaculada Conceição, devemos pedir Maria Santíssima que nos dê cada vez mais essa bem-aventurança: sermos de tal maneira unidos a Ela, de trazermos em torno de nós de tal maneira a expressão d’Ela, que se possa dizer que realmente é por causa d’Ela que somos odiados, por causa daquilo que em nós existe de semelhante a Ela. Isto nós devemos pedir com muito afinco.

Gloriosa noite coroada de contradições

Senhor Jesus, com quantas contradições quisestes coroar a noite mil vezes gloriosa de vosso Santo Natal!

“Coroa” sim, é bem este o vocábulo que convém a esse conjunto de circunstâncias com que quisestes cercar a hora tão rica em símbolos de glória e de dor, na qual, nascendo do seio da Virgem Mãe, iniciastes a caminhada esplendorosa que, conduzindo-Vos da gruta de Belém até o alto do Tabor, e deste último ao Calvário, haveria de ter seu termo final no momento glorioso e terrível em que destruireis o Anticristo, encerrareis por um terrível decreto de extermínio a História da humanidade e baixareis à Terra para iniciar o julgamento de todos os homens!

Contemplando essas cenas de dor e de vitória, de glorificação suprema como de condenação inexorável e extrema, situamos a Festa de vosso Santo Natal em sua plena perspectiva histórica. Sim, uma perspectiva na qual Deus e o demônio, o Céu e o Inferno, num contraste implacável, em uma luta suprema, haveriam de desfechar os seus golpes até o momento em que, cessada a História, só restariam em confronto os bons e os maus, uns votados pela Justiça eterna para a felicidade inteira, perfeita, gloriosa e sem fim, e outros para o abismo perpétuo e insondável de dores, de opróbrios e de vergonha, onde tudo não é senão derrota, insucesso, gemido e revolta perfeitamente inútil.

Na Noite Feliz os Anjos cantaram “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e na Terra paz aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Sim, aos homens de boa vontade. Porém, já havia também sob a abóbada celeste, constelada de estrelas, homens de má vontade. Certamente não era para eles – os malditos, os precitos – o precônio da paz, mas o da inexorável e total desgraça.

Vós quisestes que rodeassem vosso Presépio não só as glórias de aturdir, que Vos tocam na infinitude de vossa Santidade, mas as doçuras insondáveis do perfeito Coração de Mãe que Vos adorou desde o primeiro instante de vossa concepção.

É no ápice de todas essas perfeições que nossos olhos Vos contemplam hoje, na noite de Natal. De tantas contradições ao mesmo tempo magníficas e supremas, deslumbrantes e terríveis decorre um ensinamento que, súplices, Vos pedimos marqueis em nossos corações.

Também o mundo contemporâneo está imerso na contradição entre a verdade e o erro, o bem e o mal, a beleza e a hediondez. De um lado, contemplamos-Vos, Senhor Jesus, e vossa Santa Mãe, junto a quem refulge a santidade de José; e de outro, vemos o oceano das ignomínias, dos crimes, das abjeções nas quais vai se precipitando o mundo “totus in maligno positus est” (1Jo 5, 19).

Para onde quer que nos voltemos, algo vemos ou ouvimos que Vos ofende, ultraja e conspira contra Vós. Não há o que não se volte para Vos escarnecer, golpear, fazer sangrar e arrastar à Cruz. Em torno de Vós tudo é contradição, no sentido de que quase não há senão mal, e este é essencialmente contraditório.

Senhora das Dores, fazei que compreendamos esta hora de contradição, mantendo-nos genuflexos aos pés da Cruz, mas ao mesmo tempo eretos e destemidos como guerreiros, como Anjos em pleno campo de batalha. Combatentes implacáveis, de coração abrasado de amor a Vós e a vosso Divino Filho, para esmagarmos o mal, destroçarmos as contradições, elevar-Vos ao fastígio da glória de vosso Reino, ó Maria!(*)

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

* Conferência de 23/12/1993.

Pedindo a plenitude do espírito de Maria

Mãe nossa, Senhora do universo, obtende para nós do Menino-Deus, Vós que sois sua Mãe extremosa e sem mácula, uma contrição verdadeira e profunda por tantos pecados cometidos ao longo deste ano que se encerra, e que constituem sinais inequívocos de um transbordante egoísmo e de uma inquietante falta de amor de Deus.

Vós quisestes dobrar uma página de nossa história, tomando Vós mesma a iniciativa da reconquista de nossas almas. Acabai, pois, Senhora, a obra que começastes! Não se detenha vosso braço no início da tarefa, nem descansem vossos pés antes de atingir a meta. Comunicai-nos a plenitude de vosso espírito, preparai-nos para os grandes lances que se apresentam diante de nós.

Fazei com que o vosso espírito sagrado transponha os abismos de nossas misérias e infidelidades, como outrora o Verbo de Deus transpôs os abismos que O separavam da Criação para Se unir a Vós.

Sobretudo, Senhora, fazei com que a grande batalha profética se trave, que São Miguel venha e Vós vençais. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

São Silverio – O ódio sacral da Igreja militante

Está na índole da heresia ser brutal, falsa, visar o extermínio. Os hereges empreenderam tudo contra São Silvério, entretanto nada conseguiram porque ele se manteve firme e fiel.

A má-fé do herege deve ser vencida por meio de atitudes que o desmoralizem aos olhos de terceiros, para que ele não possa ser nocivo. A Igreja é militante, e é com espírito de luta que se deve combater as heresias.

Nós estamos numa guerra declarada e a mais terrível de todas, porque é a guerra entre os filhos da serpente e os filhos da Virgem.

São Luís Grignion de Montfort disse muito bem que essa inimizade sempre existirá, pois tudo quanto Deus faz é perfeito, e essa é a única estabelecida por Ele: “Inimicitias ponam” (Gn 3, 15). É uma inimizade perfeita que ressalva o desejo de salvar as almas dos hereges, mas vai até o extremo do ódio sobrenatural. Desse ódio sacral as nossas almas devem estar cheias, fazendo de nós os apóstolos dos últimos tempos, combativos, zelosos, intransigentes; e nunca apóstolos abobados e traidores da causa que deveriam defender. Eis a grande lição que se desprende da bela vida de São Silvério.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1967)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)

A antítese mais completa do mal

Exceção feita da humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, nenhuma criatura de Deus ressalta tão bem a antítese entre o bem e o mal do que Nossa Senhora. Porque n’Ela não há nenhum mal, essa oposição é muito mais forte.

Por outro lado, a virtude que Lhe conferem a Imaculada Conceição, a confirmação em graça, enfim, tudo o mais é de tal maneira excelente que faz d’Ela a antítese mais completa do demônio. Não é dizer que Maria é tão santa quanto o demônio é ruim. A santidade d’Ela excede a perder de vista a maldade do demônio, nem é possível a comparação.

Aliás, até mesmo nesta impossibilidade de comparação, o contraste se afirma grandiosamente. Ela é muito mais do que a “anti-demônio”, porque é a Mãe Virgem do Salvador! Isto explica o “inimicitias ponam”, o calcanhar que esmaga a cabeça da serpente.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/9/1992)

Lumen honoris

A maior honra que o homem pode alcançar nesta Terra é a amizade com Deus, ou seja, o estado de graça. Partindo deste princípio, Dr. Plinio explica o que é honra e como cada nação da cristandade desenvolveu fórmulas e estilos de cortesia, respeito e honorificência

 

Honra é a forma particular de apreço que se deve àquilo que é excelente. A honra é distinta da aprovação. A simples aprovação é a declaração de que uma coisa está na altura de sua natureza, enquanto que a honra mostra a excelência de algo.

Nesta perspectiva, podemos distinguir na honra primeiramente um aspecto pelo qual a pessoa internamente percebe a sua própria excelência e tem para consigo próprio a noção do respeito que deve a si mesmo. Isso é especialmente agudo no católico, em virtude de dois pontos: o dogma do pecado original e o dogma, ou verdade de Fé, a respeito da vida da graça na alma.

Excelência e estado de graça

Só é verdadeiramente excelente aquele que está no estado de graça e a partir daí faz coisas excelentes. Quem está fora do estado de graça pode ter coisas boas, mas não é excelente. Por que razão? Imaginemos uma maçã que está quase toda podre, mas tem uma parte pequena não apodrecida. Se alguém, com uma colherinha, conseguir isolar essa parte e servir-se dela, talvez perceba que foi uma deliciosa maçã. Entretanto, dela não se pode dizer: “Que boa maçã!” Pode-se afirmar que foi, mas que é, não. Porque a podridão desnatura até aquela parte pequena, não podre, que na maçã existe. Então, o estado presente daquela maçã não é excelente.

Isso se dá com o homem, cuja natureza é muito elevada. O homem é uma síntese de todo o universo: tem o espírito como os anjos, a vida animal, vegetal e a existência mineral dentro de si. Mas entrou no homem a “podridão” do pecado original. E devido a isso ele é capaz de uma ou outra ação excelente, mas em todo o seu ser ele não será.

Assim, por exemplo, os antigos pagãos tinham uma ou outra atitude muito bonita, mas eles não possuíam toda a personalidade excelente. É como o exemplo da maçã, a qual tem um ponto em que se pode perceber que teria sido excelente, mas de fato ela não o é.

O católico é sempre auxiliado pela graça. Se ele diz “sim” à graça e se mantém na amizade de Deus, sobretudo quando está na posse habitual do estado de graça, o católico se torna bom. Se, além de possuir o estado de graça, faz alguma ação excelente, essa excelência repercute sobre todas as outras virtudes que ele possui. Ele fica excelente se tem várias disposições de alma excelentes e, mais ainda, se possui todas as disposições de alma excelentes, que é o santo.

Noção respeitosa da própria dignidade

Acontece que o católico, sabendo como é miserável por natureza, quando ele vê que se mantém em estado de graça e tem disposições de alma que vão além do que os Mandamentos exigem e entram na linha dos conselhos — relativos a atos que, mesmo não realizados, não fazem com que a alma se perca; ela os pratica por amor, sendo esses atos excelentes —, percebe que existe nele uma raiz de excelência, a qual o eleva muito acima do pecado original.

Seria mais ou menos como a maçã podre, sobre a qual Nossa Senhora pedisse a Deus que desse uma bênção e a transformasse numa maçã sadia. Ela se tornaria muito mais do que era antes de apodrecer, porque seria uma maçã “miraculada”, sobre a qual desceu o poder de Deus onipotente, como a água das Bodas de Caná: Maria Santíssima pediu e Nosso Senhor transmudou a água em vinho.

Assim também é o homem com o pecado original, que pela graça consegue praticar todos os Mandamentos. Sem a graça ninguém consegue praticar duravelmente todos os Mandamentos. Então, é uma excelência! Maior ainda é a excelência se o homem considera que, além de estar acima do nível do pecado original, habita nele a graça, uma participação criada na vida incriada de Deus.

O católico, que sente em si o pecado original — é um dos aspectos mais característicos da inocência o indivíduo sentir como ele, pelo pecado original, não vale nada —, vendo sua própria excelência, deve admirá-la, dar graças a Deus e ter uma noção respeitosa de sua própria dignidade. É semelhante ao leproso grato, a quem Nosso Senhor curou. Ele reconheceu que estava curado e se alegrou com o estado de saúde recuperado, a tal ponto que voltou para agradecer. Assim também nós, quando fazemos coisas excelentes, somos como leprosos curados. Devemos reconhecer a excelência daquilo que fazemos e, portanto, respeitar-nos por gratidão para com Deus, para com Nossa Senhora, sem A qual não teríamos obtido isso do Altíssimo, porque toda graça nos vem por meio da Santíssima Virgem.

Devemos compreender que não é por “megalice”(1) que precisamos reconhecer nossas qualidades, mas por respeito para com o dom de Deus. E esta vem a ser a primeira noção de honra: o fato de a pessoa se respeitar a si própria.

Um dos maiores ultrajes que se pode dizer a alguém é este: “Nem você sequer se respeita a si mesmo, quanto mais querer que os outros o respeitem!” Às vezes, para chamar a atenção de um homem que está fazendo uma ação indigna, pode-se dizer: “Respeite-se!”, como quem chama a atenção para razões que ele tem para se respeitar.

Admiração, respeito, benquerença

Então, a honra é um estado de excelência, o reconhecimento interno dessa excelência, com o agradecimento a Deus, por meio de Nossa Senhora. E também o reconhecimento que outro faz do que temos de excelente, por onde ele mostra uma admiração e um respeito especiais. E eu ponho exatamente em ordem: primeiro admira-se e, em razão disso, respeita-se; porque só se respeita aquilo que se admira; depois querer bem, porque a quem se admira e respeita, deve-se querer bem, ter carinho. E vou dizer mais: só se tem carinho verdadeiro por quem se admira e se respeita.

Então, numa civilização cristã e, sobretudo, no Reino de Maria — aonde, como diz São Luís Grignion de Montfort, os santos vão ser tão grandes, em comparação aos antigos, como os carvalhos em relação aos arbustos — o grau de excelência vai ser incomparavelmente maior do que conhecemos agora. E a noção que cada um terá de sua própria honra e do respeito para consigo mesmo será muito maior. Crescendo essa noção de respeito, cresce também a ideia que os outros têm do respeito a nós devido. Em consequência, no Reino de Maria o trato e o ambiente, serão impregnados de honra.

O que quer dizer “impregnado de honra”? Significa que se aproveitarão todas as ocasiões e todos os pormenores para dar a cada um a honra que merece. Será uma civilização eminentemente cerimoniosa.

O que é cerimônia? É um conjunto de palavras e de gestos por onde a pessoa exprime respeito. Portanto, uma civilização impregnada da ideia de honra é pervadida(2) de cerimônia e de cerimonial, é toda ela cerimoniosa. E a atitude das pessoas, o modo de se portar, de olhar, de se tratar, reproduzirá isto. De que forma? Com as antigas fórmulas de respeito, usadas neste ápice da respeitabilidade que houve no mundo, que foi a Idade Média? Ou com outras fórmulas ainda acrescidas? Que fórmulas?

Um problema bonito para se tratar é o seguinte: as fórmulas inventadas na Idade Média — algumas das quais decaíram no “Ancien Régime”(3), mas outras, pelo contrário, se requintaram até ao “delicioso” — são arbitrárias, podem variar ou estão de acordo com a natureza das coisas e são invariáveis? Algo de invariável elas têm, e isso devem conservar.

Relações entre o Papado e o poder temporal

Lembro-me de uma iluminura medieval representando uma cena que, tanto quanto eu saiba, não se deu; portanto, é uma cena imaginária. Era um Papa celebrando Missa, acolitado por dois coroinhas: o Imperador do Sacro Império e o Rei da França.

Tal iluminura exprime inteiramente a ideia que o católico deve ter das relações do Papado com os poderes terrenos, e o altíssimo e supremo grau de honorificência que reside no Papado, mas também no poder temporal. Sendo o Papa tão elevado, entretanto o poder temporal é digno de acolitá-lo; é uma honra ser coroinha. E um imperador que escrevesse para seu país relatando o fato, deveria redigir assim: “Tive a honra de servir de acólito na Missa celebrada pelo Vigário de Jesus Cristo na Terra, Pedro vivo em nossos dias, Sua Santidade, o Papa. Comigo acolitou o augusto Rei da França.”

O Rei da França deveria escrever: “Tive a honra etc., e também a honra de ser co-acólito com Sua Majestade Imperial.” Porque, como o Imperador é mais do que o Rei da França, é também para este uma honra ficar colocado numa situação análoga à do Imperador. E isso ele precisaria reconhecer.

E o último barão da Cristandade que estivesse presente na cerimônia deveria dizer: “Não cabia em mim de entusiasmo e de respeito. O Vigário de Cristo, o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o Rei da França participaram da Missa. O Imperador acolitou e o Rei também!”

São os vários graus de respeito devidos a cada um.

Origem dos Grandes de Espanha

A civilização ocidental, na Alemanha, na França, na Espanha, destilou manifestações de honorificência e de respeito, próprias à índole de cada país.

Por exemplo, um Grande de Espanha é uma coisa fenomenal!

A Espanha de si é grande, independente de ter ou não ter colônias ou grandes extensões geográficas. O grande império colonial foi um episódio de sua grandeza. Ela é grande por causa da grande alma que possui e do consórcio comum da alma do espanhol com o que há de maior, posto nas maiores proezas — às vezes, com um pouquinho de exagero.

Saint-Simon(4) narra a origem dos Grandes de Espanha. Havia naquelas primitivas monarquias espanholas, existentes antes da fusão dos vários reinos católicos, uma porção de outros reinos que foram se unindo, se aglutinando em dois grandes blocos: Aragão e Castela. Mas continuavam existindo aqueles vários pequenos reinos, cujos monarcas possuíam pouco poder.

Esses reis tinham em suas terras grandes vassalos, grandes senhores feudais, que por sua vez tinham sob a sua dependência grande número de trabalhadores manuais. E eram chamados “ricos homens”, e não condes ou barões, porque eram anteriores a esses títulos. E as mais antigas famílias espanholas e portuguesas descendem dos “ricos homens”, que chefiaram a rebelião do povo contra a invasão dos árabes.

Os “ricos homens” não possuíam títulos dados pelo rei, pois eram senhores naturais daquelas terras. E há uma beleza especial nisso, pois eles tinham uma nobreza que, por assim dizer, saiu do chão, das mãos de Deus, como uma flor. Poder-se-ia dizer do “rico homem” um pouquinho o que Nosso Senhor diz dos lírios do campo: “Considerai os lírios, como crescem; não fiam, nem tecem. Contudo, digo-vos: nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles” (Lc 12,27). Quer dizer, o “rico homem” é como um lírio que nasceu da ordem natural das coisas e domina suas terras.

Os reis, querendo sujeitar esses “ricos homens”, começaram a dar-lhes o título de Duque. E para alguns “ricos homens” os monarcas não lhes concediam esse título, mas tiveram que reconhecer que eles eram grandes. E então, mais do que o título de Duque era o de Grande, que não era dado pelo rei, mas criado pela ordem natural das coisas. Era, por assim dizer, um título nascido das mãos de Deus, através dos dedos da História.

Os monarcas acabaram dando o título de Duque a todos os descendentes dos antigos “ricos homens”, mas esses descendentes tratavam com certo desdém esse título, porque o importante era ser Grande de Espanha.

Por estas e aquelas “vuelteretas”, os reis acabaram distinguindo os “ricos homens” em três classes: a primeira, a segunda e a terceira.

Eles responderam muito “hidalgamente” e à la espanhola à manobra dos reis: não se revoltaram, mas não contavam a ninguém quem era de primeira, segunda e terceira classe.

E Saint-Simon, que era apaixonado por coisas nobiliárquicas, depois de muito empenho, conseguiu somente a indicação de alguns Grandes de Espanha, que eram de primeira e de segunda classe, e mais nada. Porque eles mantinham isso em segredo.

Os reis podiam ter feito decretos dizendo: “Declaramos que de primeira classe é este, de segunda é aquele, de terceira é aquele outro”, mas não ousaram fazer, provavelmente porque perceberam que, se publicassem decretos assim, os Grandes não iriam tomar em consideração do mesmo jeito. E fariam uma espécie de greve dos duques, o que seria uma atitude eminentemente espanhola. E assim ficou o título de Grande de Espanha.

Não quero dizer que é mais do que tudo, mas é uma coisa acima da qual não há nada. A tal ponto que a própria condição de Príncipe da Casa Real espanhola, que é, teoricamente, mais, eu acho menos impressionante do que dizer que alguém é um Grande de Espanha.

Para ilustrar um pouco esse assunto, um dos Grandes de Espanha é o famoso Duque de Alba, que venceu os protestantes poloneses belamente. Ele adoeceu e mandou dizer a Felipe II que precisava falar com ele, pois estava para morrer. Felipe II não foi logo, mas, com aquela majestade solene, lenta e solar que lhe era própria, chegou alguns dias depois. Quando ele entrou no quarto do Duque de Alba, este o olhou e disse: “Es tarde, señor”, virou-se para a parede e não olhou mais para o Rei! Era um Grande de Espanha!

Uma cena de Cyrano de Bergerac e o Magnata húngaro

Há muitos anos, li o Cyrano de Bergerac(5). E havia uma heroína francesa, a Roxane, que atravessou as linhas espanholas para ir visitar o exército onde estava o Cristian, que era o noivo dela, e que se encontrava lá com o Cyrano. Porque a guerra era com a Espanha e, para não dar uma volta muito grande, Roxane precisou atravessar as linhas espanholas.  Rostand imagina a cena assim: ela se apresentava, vestida com a dignidade de uma nobre francesa, e dizia ao sentinela espanhol que desejava conversar com um “gentilhomme” francês, que estava do outro lado da linha, e perguntava se ele permitia. O soldado mandava chamar o superior, um espanhol “fier comme un prince” — altivo como um príncipe —, que tirava o chapéu para ela e dizia: “Pase, señora!”

Aqui está um gênero de categoria bonita, porque todo espanhol tem algo de sombrio no fundo, um ar de desafio. Esse “Pase, señora” está longe de ser: “Madame, veuillez passer —Senhora, queira passar”. É a beleza da Europa dos mil “esmaltes” e das mil “tonalidades”.

Consideremos agora o contrário, um Magnata húngaro: nome dado aos nobres da Hungria, que faziam parte da Câmara dos Lordes. Com aquela “aigrette”(6), pele de pantera, espada curva, aquele ar vagamente huno ou mongol, que lhe dava certo fundo de brutalidade e grandeza selvagem, tem-se a impressão de que cada um deles ainda carregava alguma árvore dos tempos pré-históricos debaixo do braço. Mas, ao mesmo tempo, sabem ser imponentes como marajás e finos a ponto de frequentarem, com garbo, qualquer corte europeia. Aquilo já é outro tom, completamente diferente do Grande de Espanha. É um outro mundo e uma outra atmosfera de cerimonial.

Para a coroação dos reis da Hungria, entravam na praça os Magnatas, todos a cavalo — e cavalos fortes —, no meio ficavam os Bispos, e exigia-se destes que fossem homens fortes também.

Eu vi um filme sobre a coroação do Rei Carlos, último monarca da Hungria — o Imperador Carlos da Áustria e Rei da Hungria. Estavam presentes três Bispos do rito oriental, com coroas, e outros Bispos ocidentais, com mitras altas, e todos cavalgando. Ao descerem dos cavalos, jogavam as rédeas com garbo para os escudeiros e entravam.

O rei, quando era coroado — acho que isso ocorria na Hungria, mas não tenho certeza —, tinha de saltar por cima de um monte de trigo em grãos, com uma espécie de vasilha na mão, enchê-la de trigo e jogar para o povo, a fim de provar que ele era um bom cavaleiro e um bom guerreiro, mas que ao mesmo tempo era generoso e prometia ao povo grande abundância.

Esse vago resquício de selvageria dá uma força e uma grandeza à majestade, que é uma coisa extraordinária! Entretanto, não tem as mil finuras da coroação de um rei da França. Por exemplo, a coroa de Luís XV, no Louvre, é uma coisa extraordinária, única no gênero.

Novas formas de cortesia e de cerimonial

Os reis da França, que eram os “Reis Cristianíssimos”, depois de toda a pompa da coroação, saíam da Catedral e ficavam diante da fila dos escrofulosos, parados do lado de fora da igreja, nos quais tocavam com as suas régias mãos, e diziam a cada um: “Le roi te touche, Dieu te guérisse — O rei te toca, Deus te cure.” Afirma-se, e eu creio nisso, que vários eram curados. O soberano acabara de receber do Bispo a unção, era o ungido do Senhor, com o óleo trazido do Céu por uma pomba, na santa ampola utilizada por Saint Rémy na coroação do primeiro rei católico dos francos, Clóvis. Aqui já é outra feeria!

Feérico também é o velho Kremlin, com a velha coroa dos imperadores da Rússia, ainda tão primitivos que a orla da coroa é de pele. Eu acho essa coroa forte como a força de um magiar, e possui algo de selvagem, que não faz mal ao homem.

Essas coisas constituem uma espécie de “lumen honoris” próprio. Esses eram os excelentes do povo. E cada povo elaborava assim uma excelência correspondente à sua luz primordial(7), e algo que era a matriz de sua própria civilização e cultura.

Esses homens inspiravam os poetas, os artistas, realizavam os grandes feitos. Eram propriamente a tintura-mãe da nação, segundo a qual esta se modelava, conforme um processo muito natural, a partir da formação primeira de um núcleo excelente. Encontra-se esse processo de formação em mil fenômenos naturais. Por exemplo, se alguém quiser ter um grande exército fará muito bem possuindo, antes de tudo, um arqui-regimento, e depois constituindo outros regimentos segundo aquele. Ou se faz primeiro o excelente, e depois o resto, ou nada se realiza como deveria ser feito.

A todos esses “lumens” de honra próprios correspondiam escolas de cortesia, estilos, modos próprios etc., que eram as honras das várias nações. Em determinado momento a Europa soube perceber como eram essas honras das várias nações, e cada nação soube tributar à outra o apreço correspondente a isso. Houve, então, uma espécie de sinfonia de harmonia cristã por toda parte.

E o Reino de Maria continuará isso? Ou essas serão tradições que morreram e o Reino de Maria inovará coisas que vão servir de tintura-mãe para toda uma nova escola de “lumens” de honra e de estilos de cortesia muito mais quintessenciados? É uma pergunta diante da qual eu não tenho muito o que responder.

Só sei uma coisa: que, além de muito mais cerimoniosas, essas escolas de cortesia vão ser muito mais sérias porque serão a réplica a um mundo que pecou por falta de seriedade e por “nhonhozeira”(8). E evidentemente muito mais sacrais.

O pensamento religioso e o caráter da origem religiosa de toda superioridade, qualquer que seja a sua natureza, serão muito mais marcados do que antigamente. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1980)

 

1) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.

2) Penetrada, embebida. Neologismo usado por Dr. Plinio, derivado do verbo latino pervadere.

3) Antigo Regime. Período da História da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa. Naquele período, a sociedade caracterizou-se por um requinte de bom gosto e pela elevação no convívio humano.

4) Duque de Saint-Simon (1675-1755), cujas Memórias abrangem o reinado de Luís XIV e a Regência.

5) Obra em versos (1897), de Edmond Rostand.

6) Do francês: penacho, adorno de penas.

7) A “luz primordial”, segundo a conceitua Dr. Plinio, é a virtude dominante que uma alma — ou um povo no seu conjunto —, é chamada a refletir, imprimindo nas demais sua tonalidade particular.

8) Termo usado por Dr. Plinio para designar o espírito acomodatício, apegado ao conforto, à despreocupação e à vida  sem dedicação a um ideal.

Santa desde o primeiro instante

Conforme a sentença comum dos teólogos, Nossa Senhora, concebida sem pecado original, foi dotada do uso da razão desde o primeiro instante de seu ser. Portanto, já no claustro materno possuía altíssimos e sublimíssimos pensamentos, nele vivendo como num verdadeiro tabernáculo. Assim, pode-se acreditar que a Bem-aventurada Virgem, com a elevada ciência que recebera pela graça de Deus, ainda no seio de Sant’Ana começou a pedir a vinda do Messias e, com Ele, a derrota de todo mal no gênero humano.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 8/9/1963)