Serenidade, doçura e força

Em viagem pela Europa, no ano de 1988, Dr. Plinio visitou a Catedral de Aachen, a cidade onde o Imperador Carlos Magno instalou sua capital, e na qual morreu. Voltando ao Brasil, comentou com seus jovens discípulos os diversos aspectos dessa igreja que o marcou profundamente.

 

Há na Catedral de Aachen uma fusão de estilos com diversos elementos arquitetônicos: o domo propriamente dito — que é a cúpula central grande, encimada por outra pequena, tendo no alto uma cruz — é românico; as torres, as ogivas e as rosáceas de cristal são de estilo gótico.

Do lado de fora da catedral, há figuras muito bonitas, nas quais se nota — como é patente nas incontáveis esculturas existentes no interior e exterior das igrejas medievais — uma paz, uma serenidade extraordinárias: são homens grandes, fortes, muito másculos, com certo ar de quem tem um avô ou bisavô bárbaro.

Uma nota componente da Idade Média é a serenidade, da qual o mundo de hoje perdeu a fórmula: ligação harmoniosa entre a força e a doçura. Os varões aí representados são fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos germânicos — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E esse ambiente de serenidade provinha de um passado cheio de lutas e também de oração, de piedade e de obras de misericórdia.

Podemos imaginar o que seria uma igreja repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando canções religiosas ou aguardando, num silêncio muito meditativo, a hora da Consagração. E o grande Carlos assistindo, resplandecendo de piedade e de glória.

Observando tudo isto paralisado na pedra e nas recordações históricas, percebe-se ser uma planta que produziu depois um esplêndido ramo de flores douradas. Dir-se-ia que a glória da posteridade reluz nesses heróis esculpidos na pedra.

Apesar dos recursos que havia naquele tempo, a cúpula, vista do lado de dentro da catedral, é riquíssima. O lustre fica muito bem dentro dessa cúpula e nessa atmosfera.

Há altas arcadas, com dois andares de colunas, e por detrás se vêem os vitrais que eram lindos, famosos, e que foram destruídos durante a última guerra mundial. Foram eles substituídos por outros muito inferiores, mas bonitos vitrais, perfeitamente dignos, permitindo avaliar qual é o efeito ótico desejado por aqueles que os fabricaram. Essas arcadas lembram vagamente o estilo da Basílica de São Marcos, em Veneza. O estilo da Catedral de Aachen é clássico-românico, e o da Basílica de Veneza, bizantino.

A cúpula internamente é constituída por mosaicos dourados, muito bonitos, com cenas sacras.

Numa capela lateral, há uma bela imagem de Nossa Senhora com flores e um bom número de velas acesas, colocadas num móvel a fim de permanecerem de pé.

Para o meu gosto, o relicário que contém os restos mortais de Carlos Magno é uma das mais bonitas peças de ourivesaria que existem. Quando examinado de perto, verifica-se cada uma de suas facetas, e depois aprecia-se o conjunto. A harmonia é perfeita!

Compreende-se, assim, como as populações nascidas do esforço de Carlos Magno, que eram descendentes dos antigos bárbaros e dos romanos decadentes, foram se civilizando, se aperfeiçoando, trabalhadas pelas mãos — que eu chamaria divinas — da Igreja Católica.

Há também, próximo deste, outro relicário, o qual, como objeto de arte, é um encanto. Pergunta-se qual a autenticidade das relíquias que ele contém(1). Quer dizer, são realmente das santas e sagradas personalidades referidas? Como chegaram a Carlos Magno?

Se dependesse de mim, eu mandaria fotografar todos esses documentos para ver se apareciam neles sinais à maneira — pelo menos nos que são de pano — do Santo Sudário de Turim. E realizar testes a fim de averiguar de que época são eles, para se obter alguma probabilidade a respeito de sua autenticidade.

Encontra-se na catedral o trono de Carlos Magno.

Há uma espécie de vão abaixo do local onde está o trono. Em dias de peregrinação, pode-se passar por esse vão, tendo-se, assim, contato especial com essa gloriosa reminiscência do Império.

Do ponto de vista estritamente artístico, esse trono é muito inferior ao relicário. Entretanto, nota-se a preocupação de fazer uma coisa bela e nobre, pela quantidade de mármores que não havia no território do Império de Carlos Magno. Era necessário importá-los de outros lugares e transportá-los, com proteção de grupos armados, em dorso de mula, por estradas difíceis, enfrentando perigos como cair em abismos. Os grampos de ferro que existem no trono e o enfeiam, parecem-me ter sido postos muito tempo depois, para assegurar a coesão de suas várias partes.

Há também um busto de Carlos Magno, no qual vemos que em seu traje figuram uma série de águias e, na orla inferior, flores de lis, que são símbolos do Sacro Império Romano Alemão e da França, respectivamente. O artista que elaborou esse busto procurou colocar-se na perspectiva daquela época, e o fez de modo acertado.

Dificilmente se poderiam sintetizar duas nações tão gloriosas quanto a Alemanha e a França, e Carlos Magno conseguiu realizá-lo. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/12/1988)

1) O relicário contém: o manto de Nossa Senhora; as faixas de Jesus, usadas no presépio; o tecido que envolveu a cabeça de São João Batista, depois de sua decapitação; e o pano que cobriu Nosso Senhor na Cruz.

Seriedade, charme e grandeza

Respondendo a uma pergunta sobre a formação do Reino de Maria e as qualidades de alma necessárias para dele se fazer parte, Dr. Plinio apresenta algumas reflexões a respeito da complementaridade existente entre paternidade e primogenitura, seu papel na constituição das eras históricas, e as relações entre seriedade, charme e grandeza.

 

Quando chegar minha vez de ler o Cornélio(1), espero encontrar em sua obra o comentário a dois verbetes que são complementares: paternidade e primogenitura.

Até a Revolução Francesa ainda se encontravam restos do patriarcado

O que há na paternidade para que a primogenitura, que é apenas a primeira flor da paternidade, tenha tal valor que, por exemplo, quando Deus castigou os egípcios com aquelas dez pragas, a última e a maior delas foi a morte de todos os primogênitos, até mesmo dos animais?(2)

Do ângulo que estou considerando, quase me impressiona mais a morte dos primogênitos dos animais do que dos homens.

Os antigos tinham o senso da família muito bem constituído e desenvolvido patriarcalmente, isto é, com algumas tradições e qualidades peculiares ao período do patriarcado. E as águas do patriarcado fluíram longe dentro do leito do rio da História. Até à Revolução Francesa e a generalização dela no mundo, encontramos restos do patriarcado nesta e naquela instituição.

Compreende-se, portanto, que seja particularmente duro para o patriarca perder aquele que é o seu primogênito. É algo como que fulminando o resto todo que veio, porque quebra o elo natural entre o patriarca e o restante de sua progênie. Por causa disso a morte do primogênito causa uma dor para o patriarca, para o chefe de família patriarcal especialmente.

Em nossos dias, o senso da primogenitura parece muito apagado, quase reduzido a zero. Mas para Deus, não. Porque o requinte do castigo não consistiu em matar um filho qualquer, mas o primogênito. E para se compreender a ligação do castigo com a primogenitura, quer dizer, o que vale o primogênito não como pessoa, mas enquanto primogênito, vem então o castigo até sobre os primogênitos dos animais.

Mistérios da paternidade

Eu precisava ver no Cornélio, mas parece que isto dá a entender o seguinte: que uma estirpe animal, com a morte dos seus primogênitos, fica degradada e que há um dom de perpetuação no primogênito que os outros não têm; por onde o primogênito do primogênito do primogênito possui uma representatividade de toda a estirpe que os outros não têm. Para isso atingir assim os animais, tem algum suporte na própria biologia. É misterioso, mas me parece enormemente sensato e explicável que seja assim.

Essas considerações nos introduzem no conhecimento dos mistérios da paternidade, no que ela tem de biológico. É uma coisa tão ampla que Deus quis que houvesse homem e mulher, para que essa ideia da autoria — um ser que gera outro — se exprimisse pela severidade e grandeza do homem e pela doçura da mulher, a fim de dar um complemento, como se um ser humano só não fosse suficiente para abarcar em si toda a causalidade de outro ser, tão grande é a paternidade, tão grande é a causalidade, tantos mistérios há dentro disso.

Então se compreende o papel da paternidade. Estou falando aqui da paternidade no sentido literal da palavra, mas também de outra forma de paternidade, que é a constituição das famílias de alma.

Famílias de alma

Geralmente os reinos, os países, as nações vivem tendo como arcabouço as famílias de alma. E quando as famílias de alma desse reino decaem, o reino decai irremediavelmente.

Essas famílias de alma, em geral, são fundadas por um indivíduo, segundo o qual as outras almas são suscitadas; ele é uma espécie de molde, conforme o qual Deus modela todas as outras vocações.

Em geral, vemos na História que na raiz de toda grande época das nações católicas existem algumas grandes almas que suscitam ou ressuscitam uma grande família religiosa, e depois, como uma espécie de exalação perfumada disso, nascem os grandes líderes temporais para servir a Igreja.

Então, por exemplo, Santa Teresa, Santo Inácio, São Francisco de Borja, São Francisco Xavier, São João da Cruz, etc. Pode-se imaginar um tecido de almas, um conjunto de focos luminosos de cujo encontro nasce um Filipe II que, para a Espanha, foi um patriarca menor do que o próprio mito, mas que fez uma grande coisa: deixar um mito no qual a posteridade creu, de maneira que o bem que ele não realizou, o mito fez depois dele.

Então eu me ponho a perguntar: “Com o Grand Retour(3) para nós aqui na Terra, o que haverá no Reino de Maria? Com que graças especiais, com que reluzimentos especiais o Divino Espírito Santo se fará sentir, quando chegar a hora de Ele insuflar a graça decisiva do Reino de Maria?” Isso nos deve modelar.

Todos nós conhecemos o fenômeno do heliotropismo: a tendência das plantas a se voltarem para o Sol. O “sol”, no caso, é o Divino Espírito Santo. E é necessário que Ele nos encontre ávidos d’Ele. De maneira tal que o Espírito Santo se manifestando, nós nos voltemos e nos abramos imediatamente.

Noção de seriedade

Contribuiria para isso passarmos a analisar agora outra noção: a de seriedade.

No seu primeiro aspecto, na sua definição mais elementar, a seriedade é a disposição de alma pela qual se quer ver a realidade absolutamente como ela é, e tirando-se todas as consequências que logicamente se devem tirar.

A seriedade comporta dois elementos: a observação inteiramente objetiva do objeto visto, e a legítima extração de conhecimentos de dentro daquilo que foi visto.

Então, a seriedade é a perfeição na objetividade e a plena fecundidade no suscitar consequências, a plena abundância das conclusões, tanto quanto àquela alma foi dado ter. É sério quem vê tudo como deve ser visto e conclui até onde ele pode concluir.

O homem que tem apetência de seriedade não faz, portanto, do ver ou do julgar, algo para se deleitar a si mesmo. Ele quer ver a verdade ainda que não o deleite, quer julgar ainda que não lhe seja grato julgar daquele modo. Ele quer julgar com justiça.

Portanto, ele está numa atitude de combate habitual contra si mesmo. Porque nós todos temos uma tendência à falta de seriedade, quer dizer, a ver as coisas como não são e a julgá-las como nos convém. Assim como, por exemplo, nenhum homem escapa à tentação contra a pureza, nenhum homem escapa da tentação contra a seriedade.

A seriedade plena visa constantemente os cumes

Mas a seriedade tem mais.

Aquilo que o homem sério vê, não basta que ele veja numa superfície plana. Por exemplo, um indivíduo que fosse voar muito alto e fotografasse um sistema montanhoso muito de cima. Aquelas montanhas pareceriam meio achatadas na fotografia, e quem a visse não teria a impressão de toda a altura das montanhas, porque o ponto de vista de onde foram fotografadas foi muito alto.

O homem não pode ter uma visão achatada da realidade, porque a realidade não é chata. A realidade é hierárquica, toda feita, portanto, de ascensões, de serranias. A realidade é uma imensa serrania, e é preciso vê-la assim, saber situar-se no lugar que dentro dela nos compete, e não onde nossa fantasia quereria nos colocar.

É tão fácil pecar contra esse dever! O homem tem uma tendência quase contínua para faltar contra essa obrigação, quase como a tendência para respirar.

E a seriedade plena, porque é altamente hierárquica, visa constantemente os cumes, aquilo que constitua um píncaro de tudo.

Por exemplo, se um homem sério considerar uma pedra, como a água-marinha, regala-se com o luminoso dela, fazendo uma comparação, mais ou menos subconsciente, com pedras que ele viu. Há, portanto, uma comparação com as outras coisas já consideradas por ele. E no fundo de sua cabeça, talvez sem que ele se dê conta, há uma espécie de desejo da pedra ideal que não existe na Terra, de pedra do Paraíso Terrestre, do Céu Empíreo, que possa regalar plenamente o ser humano na sua inteligência, na sua vontade, nos seus sentidos.

Desejo contínuo de perfeição

O homem sério volta-se continuamente para essas matrizes primeiras, tratando de explicitá-las. E quando analisamos sua vida, notamos ter sido uma longa peregrinação à procura da perfeição de todas as coisas.

Mas ele não tarda em perceber que nada é perfeito, a não ser Aquele que é a Perfeição, e o seu desejo de perfeição, em última análise, se volta para Deus. E que sem Deus Nosso Senhor tudo se pulveriza, perde o sentido, só Ele é absoluto. Sem o Absoluto, tudo afunda no relativo, no nada.

A pessoa séria compreende que esse seu desejo contínuo de perfeição, que é por assim dizer o bater de coração de sua seriedade, a alma de sua intransigência, o impulso de sua combatividade, a fonte inspiradora de seu carinho, de seu afeto, é o amor de Deus, pois só Deus é perfeito. Isso deve animar continuamente o homem sério.

Charme deslumbrante

Pelo exposto até aqui, vemos como o conceito de charme e de grandeza instalam-se com naturalidade nesse panorama.

Segundo um conceito corrente de charme, este se opõe à seriedade, pois é aplicado a seres que, em geral, nos fazem sorrir. São mais miúdos, engraçadinhos e têm uma forma pequena de perfeição que desperta um pouco de compaixão, de ternura, de vontade de proteger e, de outro lado, embevece.

Tomando a palavra charme nesse sentido, Deus é charmant(4)?

O charme é uma qualidade. Logo, em Deus deve haver charme, porém não com essa conotação que sugere limitação.

Como podemos imaginar que o Criador faça sorrir? Deus até deseja que o homem sorria. Quando criou, por exemplo, o colibri, os miosótis, Ele quis que o homem sorrisse. Desejou assim mostrar algo que é uma forma de perfeição “charmante”, que n’Ele existe de um modo grandioso, majestoso, produzindo de modo deslumbrante aquele efeito. O que poderíamos chamar, sem violentar a palavra, de charme deslumbrante, que sai da categoria do pequeno e voa para uma alta categoria.

Um charme deslumbrante seria o charme por excelência, do qual esses pequenos charmes da Terra são apenas reflexos.

Deus é infinito. Portanto, algo à maneira daquilo que, nas criaturas, chamamos charme, n’Ele existe infinitamente.

Menino Jesus: charme e grandeza

O Altíssimo é eterno, não muda nunca. Mas como somos seres limitados, gostamos de certas mudanças, Deus vai nos fazendo ver aspectos sucessivamente diversos d’Ele que mudam para nós, não n’Ele. Como Ele é infinito, podemos passar milhões e milhões de anos sem nunca esgotar esses diversos aspectos. E, na sucessão desses vários “quadros”, vários “painéis” de Deus — toda linguagem se torna vacilante para falar de uma coisa tão alta —, pode haver mudanças que expliquem ao homem o que ele sente quando vê, por exemplo, o furta-cor de uma borboleta, a agilidade ou o colorido das asas de um colibri.

E tudo quanto na natureza é irisado, opalescente, nacarado não será algo que diz respeito à sucessão com que em Deus vão se manifestando os charmes grandiosos e as grandezas que, de algum modo, são “charmantes”? Não será essa abóbada entre o charme e a grandeza que constituirá um encanto no Céu? Pode-se pensar isso.

Se isso é assim, tem que ser salientíssimo em Nossa Senhora, mais do que em toda a Criação reunida. Podemos compreender, por aí, como será nossa contemplação da Mãe de Deus, no Céu.

Maria Santíssima teve alguma coisa assim na Terra? Teve. Ela reuniu de um modo terreno o charme e a grandeza quando contemplou o Menino Jesus. Porque ali realmente é o pequeno, com todo o encanto da fragilidade, mas com a majestade de Deus.

Como terá sido realmente o Menino Jesus? Quem é capaz de excogitar isso? Menino Jesus diante do qual os reis magos se aproximaram reverentes, trazendo o que tinham de melhor, e que, entretanto, era uma criancinha que se amamentava do leite puríssimo de Nossa Senhora, que dependia d’Ela até para espantar um mosquito…

Podemos imaginar Maria Santíssima olhando para o Menino Jesus e, por exemplo, vendo que a natureza humana d’Ele queria ser mimada, mimando o Menino Jesus e pensando: “Deus quer ser mimado por Mim!”

É de não se saber o que dizer!

São temas nos quais eu gostaria de me aprofundar antes de morrer, para me apresentar diante de Deus com isso estudado, e com meu espírito formado para isso e por isso. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/8/1983)

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Ex 11.

3) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

4) Do francês: charmoso.

 

Harmonia pensada por Deus

É fato que a graça de Deus toca a alma humana a propósito deste ou daquele aspecto que o mundo contemporâneo herdou do passado, de modo a nos dar a impressão de que o objeto contemplado se acha todo impregnado da mesma graça. Na verdade, o que admiramos será uma coisa natural, repassada de beleza e proporção, porém mero instrumento através do qual o dom divino exerce sua ação benfazeja sobre nosso espírito.

Assim nos aparecem, por exemplo, os monumentos europeus, muitos deles construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média, quando se delineou o sorriso — prenhe de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia — do gótico.

Tal impressão se faz notar, particularmente, quando admiramos uma ogiva: esta, pelo mencionado influxo da graça que nos move a admirá-la, desperta em nós bons sentimentos em relação ao Primeiro Mandamento, eleva nossas cogitações para as maravilhas divinas, de um lado; enquanto, de outro, produz sobre o temperamento do homem uma forma de quietude equilibrada, uma ordenação interior, um certo bem-estar e deleite de espírito sem os quais o existir quotidiano se lhe torna árduo ao extremo. Através desse deleite, desse equilíbrio, ele encontra a paz.

Mais ainda. A ogiva, conferindo-lhe essa tranqüilidade de alma, amaina por isso mil ansiedades e ardências, e o convida a uma necessária e comedida ascese. Dir-se-ia ser a ogiva uma espécie de gráfico da ordem do universo, que orienta o homem para essa valiosa disposição ascética, não rebarbativa, mas florida, mais espiritual que física. Porque o gótico empenha-se em manifestar mil doçuras e mil flores, as quais são de molde a oferecer ao homem alegrias e satisfações que desarmam muitas das objeções da anti‑ascese.

Com essa suavidade, a ogiva acerta, ajeita e tranquiliza o que houver de desarranjado no coração humano. Filha de uma arte inspirada pela graça divina, ela acaba exprimindo uma harmonia mais pensada por Deus do que pelos homens. Por isso é de uma extraordinária beleza!  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 11/11/1988)

Por vossa bondade, salvai-me!

Ó clemente, ó piedosa, ó doce e sempre Virgem Maria! Vós fostes concebida sem pecado original, e nunca tivestes a menor falta nem deixastes de progredir tanto quanto Deus quis que progredísseis ao longo de vossa vida.

Sois a Virgem por respeito de cuja virgindade Deus operou o milagre estupendo: quis que fôsseis a Mãe de seu Divino Filho, mas por onipotência d’Ele, fostes preservada virgem antes, durante e depois do parto; de tal maneira a vossa virgindade é insondavelmente valiosa!

Mãe de Deus, Vós sois a Filha do Pai Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo, que em Vós gerou o Menino Jesus. Tendes, pois, tudo para ser atendida e, inclusive, sois cheia de misericórdia para com os pecadores.

Ora, um pecador sou eu. Venho aqui, de joelhos, Vos pedir: perdoai-me, não olheis para os meus pecados, mas para a vossa bondade. Olhai para o Sangue que vosso Divino Filho derramou para me salvar, e pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes por minha salvação.

Minha Mãe, não por meus méritos, mas por vossa bondade: salvai-me!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 29/11/1992)

A Igreja Católica vivendo na alma dos povos

Como o Sol quando atravessa vidros de cores variadas, assim é a ação da Igreja na alma dos povos produzindo acordes diferentes para cantar o Natal. Através dos cânticos natalinos de cada nação compreendemos como a Igreja Católica é riquíssima, inesgotável em frutos de santidade e de perfeição. Não terá, ela mesma, sua própria canção de Natal?

 

Vamos fazer o comentário a algumas músicas natalinas de diferentes nações e considerar nelas o modo de cada povo cantar o Natal.

Povo da bravura e da proeza, mas dotado de delicadeza de alma

Comecemos pelos alemães, conhecidos no mundo inteiro principalmente como sendo um povo filosófico e militar. Enquanto militar, o povo da bravura, da proeza e, em certo sentido, da cavalaria, das Cruzadas. Entretanto, dotados de tal delicadeza de alma para a canção de Natal, que compuseram o cântico natalino universal: o “Stille Nacht”, no qual eles imaginaram e interpretaram o sentimento de ternura que deveria despertar em alguém que visse no presepe uma Criança fraquinha, com todas as debilidades físicas da infância, chorando, com frio, mas sendo o próprio Deus. Destinado, porém, a sofrer tanto! Quando abre seus braços para as pessoas, já forma uma cruz que faz pensar na dor insondável pela qual Ele vai passar, e convida a considerar todo o amor que O levou a padecer isso por nós, para nosso bem e nossa salvação, sem outra finalidade a não ser esta.

Tudo isso desperta a ternura no mais alto grau. E num paradoxo porque se trata da ternura para com Quem é infinitamente mais do que nós. É um sentimento paradoxal, porém não contraditório. Deve ser, pois, uma compaixão altamente delicada, fruto de um elevado critério de sentimento para tornar-se digna de ser apresentada Àquele que, de fato, merece essa compaixão, mas que é Deus. A compaixão humana para o que há de mais delicado, entretanto ao mesmo tempo admirativa e súplice, pela qual quem tem pena faz um pedido Àquele de quem possui comiseração, é outro paradoxo de uma grande beleza.

Em qualquer canção natalina alemã encontramos esses sentimentos ligados magnificamente e formando o espírito do Natal alemão, o qual lucra em ser considerado não só como o Natal ocorrido na Terra Santa no dia em que Nosso Senhor nasceu, mas o Natal como o alemão o festeja. Quer dizer, imaginar a igrejazinha da paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando dez para a meia-noite; os aldeões caminhando com os tamancões, porque a neve está enchendo o caminho e ainda cai aos flocos; a igreja bem aquecidazinha dentro, todo mundo entra depressa para poder tirar seus capotões e se sentir mais à vontade. Ao longe estão as casinhas da aldeia, e vê-se a fumaça que sobe das chaminés… É a comemoração do Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, deliciosas e substanciosas guloseimas da culinária alemã que já estão no forno para a festa de Natal que se segue à solenidade litúrgica.

Tudo isso constitui, dentro da inocência da neve, um quadro só que completa os sentimentos da canção natalina alemã.

A inflexão da voz comenta o sentido da palavra cantada

No “Stille Nacht” há um misto de submissão de espírito, reverência e compaixão, de um lado e, de outro, uma alta cogitação. Ao longo do cântico nota-se esta alternativa: quando a melodia desce é a ternura vigilante pousando sobre o berço; que nada toque no Menino, que nada O moleste. O Menino está chorando, mas a Mãe O consola… Então, aquele desvelo… Mas depois, em certo momento, a melodia se eleva e traz a ideia de que é Deus Quem está ali.

“Schlafe in himmlischer Ruh” quer dizer “durma em celestial tranquilidade”. O pensamento então é: o Menino está dormindo, mas a tranquilidade com que Ele dorme é celeste, pois esse Menino não é da Terra, mas do Céu. Daí a ênfase dada, pela melodia, à palavra “himmlischer”, que significa “celeste”. Assim, é característico dessa canção que a própria inflexão da voz faça um comentário do sentido da palavra cantada. Aqui há um conceito de música que, a meu ver, só é superado pelo gregoriano.

O Menino transforma os espinhos em rosas perfumadas

“Maria durch ein Dornwald ging, der hat in sieben Jahrn kein Laub getragen.

Was trug Maria unter ihrem Herzen? Ein kleines Kindlein ohne Schmerzen.

Da haben die Dornen Rosen getragen, als das Kindlein durch den Wald getragen”(1).

O pressuposto dessa outra música é Nossa Senhora com o Menino Jesus. A Virgem Santíssima extremamente moça e trazendo consigo o Menino. Evoca uma ideia de juventude, de delicadeza, de virginal fragilidade e de virginal força. Ela anda com o Menino, mas vê-se que está sozinha, porque a canção não se refere a mais ninguém, e traz bem protegido sob seu coração o Menino, numa floresta que há sete anos não produz senão espinhos.

Então, há uma espécie de contraste: Como aquela flor de delicadeza que é Maria Santíssima, com aquele Menino, o tesouro do Universo, podem estar sujeitos a uma trajetória através de tantos espinhos? Que coisa horrorosa! E se acontecer algo ao Menino do qual uma gota de Sangue, por si só, vale mais do que todo o Céu e toda a Terra?

Esse Menino Ela traz bem junto ao Coração e O protege. Prevalece a ideia de Nossa Senhora cuidando de seu Divino Filho e como que atemorizada pelos espinhos que O cercam. Estes fazem parte da natureza hostil, amaldiçoada, daquele lugar que há sete anos não produz nada. O Menino que em seu seio virginal repousa e parece estar fora do uso da razão é o Homem-Deus. De maneira que sabe tudo, pode tudo, dá a solução para tudo. Então, o perigo para Ele, representado pelos espinhos, o agreste e o hostil de quanto O envolve, Ele resolve: pelo seu poder transforma os espinhos em rosas que, com seu perfume, agradam a Mãe d’Ele. Assim, Nossa Senhora vai atravessando a floresta e, vendo os espinhos se transformarem em rosas perfumadas orientadas para Ela, compreende: foi uma amabilidade de seu Filho. Ele está dormindo… Entretanto, governa a natureza!

Todas essas ideias encontram-se nessa canção. O começo é um pouco jovial; depois vêm a ternura e o respeito. Tudo tratado com um tom de voz que é um pouco o de uma pessoa que conta uma história – isto é uma lenda, não aconteceu – para um menino ouvir. Por onde a ternura é um pouco para o Menino Jesus e um pouco para a criança que está ouvindo, a quem se conta uma coisa delicada e ela fica contente. Isso explica os mil tons e entretons da canção.

Entretanto, lembrem-se de que é o povo dos grandes exércitos, das grandes invasões, das grandes batalhas; do qual, na sua fase imperial última, faziam parte os couraceiros com capacetes encimados por águias. É esse povo que na hora da ternura sabe cantar assim. Isso desbarata uma espécie de preconceito pacifista e sentimental segundo o qual quem guerreia não tem sentimento e, talvez pior ainda, quem possui sentimento não deve combater. Não é verdade. O equilíbrio magnífico dessas coisas se encontra na alma alemã quando é retamente católica.

O espanhol se oferece a si próprio e a sua alegria em ação de graças a Deus

Consideremos agora a canção natalina popular espanhola.

Para entendermos bem esse estilo de música devemos levar em conta que, assim como o povo alemão, também o espanhol é feito para o heroísmo. Contudo, são tipos de heroísmo muito diferentes.

O alemão é feito para avançar em conjuntos de grande quantidade. O espanhol é individualista ao último ponto e concebe a coragem como lance individual. Ele se joga na peleja sozinho, vai batalhando, se atraca, mata ou morre, mas é ele que se arrisca inteiro.

Entre as muitas coisas boas concedidas por Deus aos espanhóis está uma natureza pobre completada por um panorama montanhoso, do qual se tem a impressão de que um gigante qualquer, um quebra-montes, esteve passando por lá, quebrando as montanhas a murros e pontapés enquanto dançava e cantava uma jota ou uma saeta; uma paisagem trágica, sob um Sol que calcina, esturrica aquilo tudo.

Mas eles têm uma riqueza de vida e uma superabundância de coragem de viver, que lhes confere uma qualidade que deixa outros povos boquiabertos: são alegres na pobreza. Resolvidos a viver sem terem necessidade de molas, doces, confortos, ou tantos outros “tóxicos” para acharem a vida agradável. Eles lá vão, cantando de “banderilla” na mão, por cima do touro!

Tudo o que torna a vida bastante agradável para muitos povos, o espanhol não tem. Mas ele possui uma coisa que poucos encontram na opulência: a alegria de viver, de sentir a sua própria vida, de olhar para o Céu e pensar em Deus.

Em canções alemãs como a “Stille Nacht” há um misto de alegria e de tristeza: o Menino nasceu, alegria; mas Ele nasceu para ser vítima; tristeza.

Já a canção natalina espanhola manifesta mais a alegria do espanhol a propósito do Natal, do que canta o Menino Jesus. Mas oferece a Ele a sua alegria de ser espanhol, como quem diz: “Senhor, Vós me deixais muito alegre e cheio da coragem que Vós me destes! Homenagem a Vós, Senhor!”

Ninguém ousaria afirmar não ser um modo muito digno de cantar o Natal. Porque o espanhol se oferece a si próprio e a sua alegria em ação de graças a Deus. É a ação de graças mais preciosa. E é assim que devemos interpretar muitos dos cânticos natalinos espanhóis.

O inglês gosta da proporcionalidade

Tratemos agora de um aspecto da canção natalina inglesa.

O inglês e o espanhol são dois povos tão diferentes, mas há uma analogia no modo de cantar e apresentar a música de Natal. O espanhol, embora pronto para a morte e tendo feito um pacto com ela, é, entretanto, otimista. Enquanto ele não morre, está achando que vai vencer e se alegra com isso. Se vem a morte, ele se mete dentro dela de “banderilla” em punho! Chegou a hora da morte, lá vai! Não tem medo.

O inglês canta também a alegria de viver, à sua maneira. Porém, seu estilo não é saltitante e não procura exprimir-se através dos superlativos como o espanhol, mas se exprime por meio de uma canção cuja principal preocupação é ser equilibrada. Enquanto o espanhol exclama e vai ao extremo, o inglês mantém a proporção, quase como quem diz: “O tema é extremo, mas eu não saio da proporção devida, porque gosto da coisa nas proporções adequadas. E faço da proporcionalidade o meu encanto predileto.”

E ele oferece ao Menino Jesus a sua anglicidade, o seu modo de ser e os seus problemas. É um povo de gentis-homens. Por isso, há uma canção que se dirige ao “gentleman” exortando-o a não estar triste nem aborrecido porque o Menino Jesus o ajuda.

No início, essa canção tem um tom delicado e ligeiramente infantil, quase como se fosse um menino falando a outro. Toda a inocência infantil está posta ali. Depois desabrocha o homem, e vem o “gentleman” com seus problemas, inclusive o pecado. O “gentleman” luta contra o pecado, e às vezes é derrotado. Mas vem já a promessa de misericórdia: “Se você cair, não desanime; o Menino o tira das garras de satanás.”

Faz lembrar os espinhos que se transformam em rosas, ao olhar de Nossa Senhora. Eis um comentário da canção inglesa de Natal.

O cântico da Igreja

Assim compreendemos como a Igreja Católica, vivendo na alma de povos diversos, produz acordes diferentes. Porque ela é riquíssima, inesgotável em frutos de santidade e de perfeição. É como o Sol quando atravessa vidros de cores variadas: ao passar por um vermelho, acende um rubi; ao transpor um pedaço verde, faz fulgurar uma esmeralda. No fundo, é o Sol. Durante a noite aquele vitral não quer dizer nada.

O gênio da Igreja passando pelo alemão faz isso, pelo espanhol realiza aquilo, e assim por diante. No fundo, é a Igreja. É a Divina Providência Quem faz essas maravilhas. E nós devemos saber gostar disso, ficar alegres e louvar a Deus.

Ora, a Igreja não terá, ela mesma, sua própria canção de Natal? Será que as nossas pátrias terrenas são capazes de nos modelar de maneira a nascerem tão belas músicas natalinas, e não há um cântico de Natal modelado pela Pátria de nossas almas que é a Igreja? É uma pergunta válida.

Encontramos a resposta ao ouvir um canto gregoriano de Natal como, por exemplo, o “Puer natus”.

O interior da alma do varão católico deve ser sereno, cheio de significado e elevado como o interior de uma igreja! A vitalidade dele é inesgotável porque sobrenatural, e resulta de uma paz profunda, de uma vontade indomável de herói e, ao mesmo tempo, voltada completamente para as coisas do Céu.

Nas outras canções, são as almas católicas de cada nação que cantam, nas quais está presente a Igreja. No cântico da Igreja, é ela mesma quem canta. Aqui o Sol não passa por nenhum vitral, é direto. O vitral é muito bonito, mas o Sol é o Sol! Isso é feito para ser cantado por todos os povos. É a alma da Igreja universal em todas as latitudes, em todos os lugares, sempre serena, com uma alegria que sobe diretamente ao Céu, um recolhimento que exclui todas as coisas da Terra e, sem agitação nem folia, vai dizendo com toda naturalidade o que tem a dizer.

Serenidade e dignidade do gregoriano

Vejam a saudação angélica narrada no Evangelho: uma cena sublime! Um Anjo que desce para junto de uma Virgem e Lhe comunica que Ela vai ser a Mãe de Deus, e que conceberá do Divino Espírito Santo. Como isto é anunciado? O Anjo entrou onde Ela estava e disse: “Ave, cheia de graça!” E transmite a mensagem. Não tem literatura, não tem enfeite, não tem florido nem nada.

O Evangelho conta que Ela ficou perturbada e pensava qual o significado dessa saudação. Tendo recebido a explicação, Ela dá a resposta mais simples do mundo: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra.”

Imaginem um ator lírico pondo isso numa peça de teatro. A atriz se levantaria, dançaria a dança da alegria, depois iria se ornar e perfumar para responder ao anjo… Aqui não. “Ecce ancila Domini, fiat mihi secundum verbum tuum”. Serena, tranquila, mas dizendo tudo admiravelmente!

Nosso Senhor na Paixão. Situação trágica. Ele, na previsão do que vai acontecer, começa a tremer e a chorar. E diz: “Meu Pai, se for possível afaste de Mim esse cálice”. A frase mais simples que pode haver. “Se não for, faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Resposta? Baixa do céu um Anjo e traz a Ele o cálice de uma bebida que Lhe dá aquela força que O leva até o alto do Calvário. Tudo simples, sereno, mas com significado, com suco. É o que eu disse do interior de uma igreja. Cada palavra dessas tem no seu interior uma catedral!

Em função disso compreendemos a serenidade, a tranquilidade dessa música, sua dignidade e seu caráter profundamente religioso. É a voz da Igreja cantando, sob o sopro do Espírito Santo, o dom que Deus fez à Santíssima Virgem.

É o que torna, a meu ver, o canto gregoriano superior a toda outra forma de música. Não tem comparação.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/1/1989)

 

 

1) Cântico para Tempo do Advento: Maria andava por um roseiral que por sete anos não florescia. / O que levava Maria sob seu Coração? Uma pequenina Criança, sem dores. / Então, dos espinhos brotaram rosas, quando o Menino passava pela floresta.

 

Alegria e dor junto ao Presépio

O cântico de Natal por excelência, o Stille Nacht, expressa em si o equilíbrio das almas santas na junção entre a alegria e a dor. Não seria esta a própria canção de Maria Santíssima a seu Divino Filho?

 

Nas vésperas da noite de Natal, da “Stille Nacht, heilige Nacht” – a noite de graça por excelência –, que meditação me vem ao espírito?

Os acontecimentos que nos circundam são tão tumultuosos, tudo quanto nos cerca é tão premente, meditamos de dentro de uma luta tão forte, que não é possível que as marcas de tormento, de sangue e de lágrimas não repercutam em nossa meditação. É desta maneira que apresento o que está em meu espírito.

Plano metafísico de Deus a respeito da Encarnação

Segundo uma corrente de teólogos, Nosso Senhor Jesus Cristo ter-Se-ia encarnado e vindo ao mundo ainda que não tivesse havido o pecado original e, com este, a necessidade da Redenção.

Por que teria Ele vindo ao mundo se o gênero humano não precisasse ser redimido? Por causa de um plano metafísico de Deus, de uma beleza incomparável, sem o qual creio que as festas do Santo Natal não podem ser adequadamente compreendidas e aquilatadas.

A ideia de que o Verbo de Deus Se faria carne e habitaria entre nós e que haveria de ser um Homem com plena natureza humana, unido por união hipostática à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, este plano divino existia em virtude do princípio metafísico da “reductio ad unum”.

Tendo Deus criado os homens, não era necessária a Encarnação, mas convinha, era excelente que o Filho de Deus se fizesse Homem. Por quê? Por causa de uma excelência que aos Anjos não foi dada, e sim aos homens, inferiores aos espíritos angélicos.

Explico-me. Quando existe uma pluralidade de seres congêneres, há a conveniência de que haja um ser mais excelente do que todos, o qual reúna em si em alto grau todas as qualidades que nenhum daqueles seres plurais possui individualmente.

Exemplificando o princípio da “reductio ad unum”

Imaginem uma praia de onde alguém tomasse um punhado de areia com grãos prateados e brilhantes como se fossem pequenas estrelas, e utilizando um microscópio potentíssimo fosse contemplando grão por grão. Essa pessoa veria que cada grão é diverso dos outros e tem, por algum lado, uma excelência própria.

Qual seria a operação do espírito humano analítico, inteligente, capaz de se encantar com a beleza própria de cada grão, como quem vê um só? Ele tenderia a formar uma imagem una e se perguntaria como seria um grão ideal, que tivesse uma beleza plena. Este é o princípio da “reductio ad unum”.

Os grãos de areia são de um mesmo gênero, mas plurais. São milhões numa praia. Como seres plurais que são, cada um deles tem um dos aspectos de beleza de que o gênero “grão de areia” é capaz. Assim, depois de percorrer todos esses aspectos como quem lê as letras que formam palavras das quais nasce um livro, a alma humana, por ser una, pede uma figura também una e se pergunta, necessariamente, como seria o super-grão, o arqui-grão, o grão perfeito que contivesse magnificamente todos os outros.

Poderíamos supor a existência de um homem que quando menino tivesse começado a analisar grãos de areia e ao chegar à senectude, quando a sua vista cansada já não pudesse mais ver novos grãos, começaria a excogitar, com o poder de sua inteligência alcandorada pela vida, como seria o arqui-grão. Então realizaria a obra de arte de sua vida, deixando o grão arquetípico desenhado ou pintado num papel, evidentemente em dimensões maiores que a original, mas tão reduzidas quanto ele pudesse representá-lo, porque o homem não é capaz de acumular tantas perfeições em tão pequena superfície. Pode-se compreender que, no momento em que ele tivesse acabado de pintar o arqui-grão, de sua mão envelhecida caísse o pincel e ele morresse cantando o “Gloria in excelsis Deo” – Glória no mais alto dos Céus a Deus, e paz na Terra aos homens de boa vontade. “O arqui-grão eu concebi, a minha mente o desenhou!” Compreende-se que essa seria uma linda vida.

Alguém diria: “Vida de poeta!” Outros pensariam: “Vida de artista!” Nós afirmaríamos: “Vida de teólogo!” Mais ainda, diríamos: “Vida de um homem cheio do espírito do Reino de Maria!” Porque aqui está o espírito do Reino de Maria: assomar a pluralidade das belezas de um mesmo gênero e procurar reduzi-las a um só arqui-modelo que supere em qualidade tudo aquilo que ele sintetiza, e que ao mesmo tempo se veja representado e multiplicado ao infinito por aquilo tudo em que ele se reflete.

Isso nós vemos também no céu. Quando contemplamos todas as estrelas do firmamento, pensamos numa arqui-estrela. E tão misericordioso foi Deus, que não tendo querido criar a arqui-estrela, por desígnio de sua infinita Sabedoria, deu-nos uma ilusão de que essa arqui-estrela existe: o Sol e a Lua. Mas, ao mesmo tempo, Ele nos deu a ciência de que essa arqui-estrela não existe, porque com o telescópio vemos o Sol e sabemos que, embora ele nos pareça tão grande, é uma bolinha perdida nessa quantidade infinita de sóis existente no Universo.

Então, ao mesmo tempo em que Deus nos mostrou uma grandeza que, à primeira vista, não tem “unum” no céu, implantou ali, entretanto, a ilusão desse “unum” na Lua. Ao vê-la, nós sossegamos dizendo: “Ó Lua, tu és verdadeiramente rainha!” Contudo, enquanto a nossa sensibilidade aclama a Lua como rainha, a inteligência glorifica a Deus dizendo: “Não! Há algo de muito maior, de muito mais belo. Como a Lua é pequena! Ela não é senão uma insignificante representação da Mãe do Criador. E se esta é a Lua, como é Aquele que Se faz simbolizar no Sol?”

Tendo, pois, considerado a operação da “reductio ad unum”, pela qual o meu espírito caminhou, desde a minha juventude, com passo fiel, mas incerto durante tantos anos até conseguir encontrar a pista que nesse momento estou apontando, passarei a apresentar algumas aplicações correntes dessa ideia.

Reversibilidade própria ao Reino de Maria

Há poesias que declamam a beleza da flor. O que é essa flor em abstrato que tantos poetas cantam? Eles não percebem, porque os poetas muitas vezes não sabem Filosofia…

Aliás – abro aqui um parêntese –, o mal dos poetas é que não sabem Filosofia; e o mal dos filósofos é não saberem poesia. Eles mesmos não têm espírito voltado para a “reductio ad unum”. Se os filósofos fossem poetas de grande alma, não parariam sem ter sondado pelo sentimento a beleza do pensamento que tiveram. E se fossem filósofos de corpo inteiro, não descansariam sem ter expressado a beleza que seu pensamento concebeu, mas não sentiu. É nessa reversibilidade que a alma, sobretudo no Reino de Maria, se encontrará plena; assim as nossas almas devem ser.

Pois bem, o poeta canta, sem perceber, uma flor metafísica, ideal, que teria as qualidades de todas as flores: “flos florum” – a flor das flores, perfeita –, que encontra no miosótis, na rosa, em quantas outras flores a expressão suprema de sua beleza. Esta também não existe no reino das flores, mas é a poesia que a cria, é o homem que a imagina.

Encontramo-nos, portanto, nesta situação: para determinados seres Deus cria um padrão perfeito, onde se vê o arquétipo. Para outros Ele cria um imenso e esplendoroso farelo de maravilhas, mas não cria o padrão perfeito.

Deus quis que houvesse uma “Arqui-alma” entre os homens

Notamos isso em seres magníficos: os Anjos. Poder-se-ia argumentar: “Mas os Arcanjos não são o arquétipo dos Anjos?” Eu digo: São! Mas quem é o arquétipo dos Arcanjos? Há sete espíritos angélicos supremos que diante do trono de Deus O adoram eternamente. Serão sete, contados nos dedos das mãos, ou este deve ser um número simbólico? Quiçá seja simbólico, e ninguém sabe qual é o número desses Anjos mais magníficos do que todos, os quais, por sua natureza, são os mais altos dos seres criados, e que rutilam diante de Deus por toda a eternidade, arrancando d’Ele, por assim dizer, esta exclamação comprazida e eterna: “Como são perfeitos!” Entretanto são sete… E o “unum” desses Anjos não existe.

Deus, entretanto, ao criar o gênero humano tão inferior aos Anjos, ao conceber esta multidão incalculável de almas, desde Adão até o último que viverá sobre a face da Terra, fez cada uma à maneira de uma coleção tal, que cada alma é inteiramente única, e se ela se entregar a Deus será uma maravilha inteiramente singular como nenhuma outra. Umas poderão ser maiores, outras menores, mas como aquela só ela. Se Deus criasse duas almas iguais, Ele faria um absurdo, seria como se Ele gaguejasse repetindo errada e inutilmente duas sílabas na “palavra” perfeita que é a Criação. Isso Ele não pode fazer. O seu Verbo tem todos os poderes, menos o de tartamudear, pois isso seria imperfeito.

Deus teve a intenção de criar essa variedade prodigiosa de almas, todas destinadas a um ideal de santidade.

Consideremos não só os inúmeros povos dos quais a História nos dá uma ideia, ainda que vaga e pálida, cujos restos existem mais ou menos espalhados pela Terra, mas quantos povos houve que a História tragou. Há, por exemplo, pela Indonésia, cidades enormes em ruínas, com inscrições que ninguém entende, de povos com civilizações que nasceram e morreram não se sabe como, duraram não se sabe quanto. Ali estão na solidão, metidos nas selvas, em ilhas no meio dos mares, monumentos esplêndidos representando os anseios dos homens, de povos, de raças a respeito dos quais nada há no registro da História. Assim podemos fazer ideia da insondável quantidade de homens que nasceram, de almas surgidas do poder criador de Deus, desde o momento em que Ele criou Adão.

Mas para nós, homens, tão menores do que os Anjos, Deus deliberou criar uma Arqui-alma, e essa variedade Ele quis que tivesse um “unum”. Assim como o arqui-grão de areia, deveria haver um Homem tão prodigiosamente grande, que tivesse na sua inteligência mais do que as inteligências de todos os homens, em quem houvesse as peculiaridades de todos os homens em tão alto grau, e que seria enormemente mais perfeito do que todos eles.

O Unum de todos os homens

Suponhamos que conhecêssemos um homem dotado de tal poder que, quando ele se movesse, os astros parariam de pasmo; quando passasse, as flores se voltariam para ele, os animais viriam prestar-lhe homenagem, as plantas e as ervas se estenderiam à procura dos pés dele para, pelo menos, serem calcadas por ele; as brisas iriam a seu encontro; as águas que o refletissem estremeceriam de alegria. Pois bem, imaginemos esse varão, o Arqui-Homem, deitado numa manjedoura e teremos uma ideia irremediavelmente pálida e imperfeita do Menino-Deus nascido da Virgem Maria, que chorou e sorriu em Belém.

Com efeito, os clamores dos cruzados, a misericórdia de todos os Santos que se entregaram às obras espirituais ou temporais de caridade ao longo da História, tudo isso nasceu d’Ele, esteve na alma d’Ele de um modo inimaginável. Antes de encontrar algum reflexo na alma dos Bem-aventurados, cujos nomes, ao declinarmos, nos sentimos cheios de respeito e veneração, essa coorte incalculável ao longo dos séculos estava n’Ele, mas de um modo tal, que se nós temos vontade de fletir os joelhos pensando em Santa Teresa, em São Francisco de Assis, na majestade pensativa, meditativa, solene de São Bento, não podemos ter nem sequer uma pálida ideia de como tudo isso foi em Nosso Senhor. Eles todos foram fagulhas d’Ele. Fagulhas tão bonitas que não chegamos a poder representá-las; contudo, em face d’Ele tão pequenas que passam a ser insignificantes. Entretanto, por elas compreendemos o que foram essas perfeições em Nosso Senhor Jesus Cristo.

A essas perfeições estava associado um dom que se Jesus Cristo fosse apenas um arqui-homem não teria: a união hipostática fazendo de duas naturezas inteiramente distintas uma só Pessoa Divina. Ele é a própria imagem do Padre Eterno com todos os seus resplendores, contendo a expressão desses resplendores eternos de tal maneira que Ele, voltando-se para o Padre Eterno, como que se adora a Si próprio vendo-O. Dessa adoração entre essas duas perfeitas identidades procede a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade que é o Divino Espírito Santo.

A união deste Arqui-Homem com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Lhe confere algo em comparação do qual nada é nada! De tal maneira isso é possante, reluzente, eterno, divino, que vai acima de tudo quanto possamos pensar.

Vê-se como Deus quis fazer a nós, homens, tão inferiores aos Anjos, esta honra. Não houve um Anjo que fosse a “reductio ad unum” de todos os Anjos. Não houve um Anjo ligado por união hipostática a alguma das Pessoas da Santíssima Trindade. Mas houve um Arqui-Homem ligado por união hipostática ao Verbo Divino. “Hic taceat omnis lingua”! – aqui toda língua se cale!

Beleza da grandeza que se faz pequena

Quis a Providência – e aqui está o encanto do Natal – fazer-nos ver até que ponto esse Homem-Deus continha todas as belezas possíveis do homem, mas que toda meditação sobre o Santo Natal começasse por contemplar esse Homem divinamente grande como pequeno.

Aquele do qual nós cantamos a grandeza dizendo ser o firmamento pequeno para contê-Lo, começamos por analisá-Lo numa manjedoura; frágil, entregue ao zelo de Maria e José, objeto da adoração dos pastores e dos magos, ao bafo dos animais que O foram aquecer na noite fria daquele inverno.

Deus quis que Aquele que criou o Sol fosse acalentado pelo bafo dos animais. Deu-nos com isso uma lição da dignidade da vida: um boi vale mais do que o Sol, porque é um ser vivo. E, ao mesmo tempo, há uma humildade enorme em Deus Nosso Senhor permitir que o bafo desse animal, desta Terra de exílio, pousasse sobre quem criou o Astro-Rei. Há, porém, uma glorificação do que é vivo nessa honra primeira: enquanto o Sol “dormia”, o boi estava acordado e os Anjos chamavam os pastores. Percebem-se facilmente os contrastes magníficos contidos nisso.

Deus faz entender que o menor dos homens, mais torto, mais burro, mais “capenga”, mais doente, seja o que for, comparado com o Sol é muito mais, desde que não seja pecador, mas fiel à graça de Deus. Pois se o menor dos homens dista mais do boi do que este dista do Sol, quanto mais o menor dos homens vale mais do que o Astro-Rei!

Então, Nosso Senhor Jesus Cristo entra na Terra dando-nos esta magnífica e inesquecível lição: tão pequeno para mostrar a grandeza de tudo quanto é pequeno, de tudo quanto nasce e se desenvolve a partir de um determinado ponto, a grandeza das eras históricas no momento em que nascem de dentro da luta, das cóleras sagradas, das oposições irredutíveis de um pequeno grupo de perseguidos. Aí está a beleza e a grandeza de tudo quanto germina.

Ternura e compaixão no cântico natalino por excelência

Vemos, portanto, quanta meditação filosófica cabe dentro da consideração do Menino na manjedoura. Isso está bem expresso nos acentos da “Stille Nacht! Heilige Nacht! Alles schläft. Einsam wacht. Nur das traute heilige Paar”. A alma de um professorzinho da Baviera, no século XIX, cantou; houve um compositor e um poeta que, para tirar um vigário do apuro numa noite de Natal, exalaram uma canção que se poderia dizer que a humanidade tinha pressa de cantar.

Passaram-se mil e oitocentos anos da era cristã e o cântico de Natal popular e perfeito não tinha ainda aparecido, mas dir-se-ia que nas sombras todos o tateavam. Quando afinal esse anseio foi se acumulando nessas duas almas, que não tinham nenhuma noção disso, na hora certa desejada pela Providência eles compuseram a canção certa que em determinado momento o mundo ouviu maravilhado; ela se espalhou pelo mundo como o cântico natalino por excelência.

Ouçamos os acentos dessa música. Está o Menino Jesus, tão grande e tão pequeno, na manjedoura. Ele poderia ser tão terrível se nos manifestasse sua força. Mas está tão desarmado, e quis de tal maneira colocar-Se ao nosso alcance que para nos convencer bem de que Ele quer ter essa familiaridade, esse contato absolutamente desembaraçado conosco, fez-Se menor do que nós, embora seja infinitamente maior. Quis que o alfa da meditação a respeito d’Ele fosse considerá-Lo tão pequenino, e que nos extasiássemos não por vê-Lo criar os sóis, reerguer a Terra, presidir a História, criando as almas e modelando os corpos, inspirando as ações dos bons e punindo os maus; nada disso. Mas contemplá-Lo tão pequeno que exclamemos: “Mas como Ele, tão grande, veio a ser tão pequenino! Ele é tão imenso! Infinito! Entretanto, tem tanta ternura que chegou a esse extremo inimaginável de querer inspirar pena como proêmio de provocar admiração!”

Toda meditação da vida d’Ele é uma sequência de admirações. Ele quis que o primeiro movimento de admiração fosse misturado com compaixão. Como Ele quereria depois, que o último movimento de admiração fosse misturado com pena também. E quando chegasse o último episódio da vida terrena d’Ele, na última agonia, disséssemos: “Meu Deus! Que pena de Vós!” Quer dizer, Ele é tão maior do que nós, que não conseguiríamos amá-Lo caso Ele não Se nos apresentasse menor. Em sua bondade, para ter proporção conosco, tão pequenos, só Ele fazendo-Se criança é que a relação conosco podia começar. Só fazendo-Se verme e não homem, opróbrio dos homens e gargalhada do povo – como d’Ele diz o Profeta Isaías –, fazendo-Se assim no alto do Calvário é que poderíamos nos comover. Nós somos tão pequenos que não leríamos o livro inteiro se a primeira e a última letra não tivesse uma estatura menor até do que nossos olhos.

Ajoelhados diante do Presépio, contemplando o Menino Jesus, sentimos um respeito sacral acompanhado de ternura e compaixão. O amálgama entre o respeito e a compaixão – sentimentos aparentemente incompatíveis, à primeira vista – inspira, do princípio ao fim, a “Stille Nacht”.

Ogiva de incomparável esplendor

As palavras falam da noite silenciosa, santa; enquanto tudo dorme, vela isolado o respeitabilíssimo e altamente santo casal. Mas enquanto essas lindas palavras são proferidas, a melodia diz mais do que os vocábulos. A música exprime não tanto o que se sente a respeito da noite silenciosa durante a qual todos os filhos das trevas dormem e só o casal justo por excelência está acordado, mas o sentimento desse casal vendo o Menino Jesus.

Quando ouvimos cantar “Stille ­Nacht”, temos a impressão de entrar no Sapiencial e Imaculado Coração de Maria e de ouvir ali a própria canção d’Ela dizendo: “Meu Filho! Meu Deus e tão menino, tão pequenino, tão grande e tão adorável! Como Te adoro! Como tenho pena de Ti! Como Te respeito! Protege-Me! Como Te amo! Eu Te protegerei!”

Nessa música está a ogiva incomparável que para mim é o símbolo perfeito do sentimento que a noite de Natal deve despertar. Há qualquer coisa de muito alto! Ele está lá! Perto d’Ele está Ela, e perto d’Ela está São José! Mas, sobretudo, está Ele, tão infinito e tão pequeno, e ao mesmo tempo tão adorável!

Do começo ao fim no “Stille Nacht”, o sentimento que se desenvolve é esse. Se entoarmos este cântico debaixo dessa interpretação, notaremos ora o grave do pensamento adulto, ora qualquer coisa que fala do sentimento do menino; e é quase um diálogo entre o adulto e a criança. Por outro lado, há momentos em que se tem impressão de se ouvir o Menino chorar, e outros nos quais o Ele sorri.

Tristeza augusta, admiração jubilosa

Há mais algo no “Stille Nacht” que participa da atmosfera natalina à maneira de como Cristo Nosso Senhor, presente e vivo na Igreja Católica, faz parte da atmosfera interna de toda catedral gótica. Há, ao longo de toda a música, um certo amálgama harmonioso de alegria e de tristeza, independente dos momentos em que a nota de alegria ou de tristeza é maior. Desde o começo, no “Stille Nacht” há uma certa tristeza augusta, ao lado de uma admiração jubilosa. Mesmo quando fala de pranto, há uma certa alegria subjacente.

Quando entramos numa catedral e vemos uma rosácea na qual bate o Sol – a penumbra da catedral e aqueles dardos de luz multicolor que espalham safiras, esmeraldas e outras “pedras” pelo chão –, por todos os lados encontramos o esplendor cercado pela penumbra, percebemos uma composição de alegria e dor que forma um dos mais altos aspectos do equilíbrio da alma humana. Creio que esse aspecto se exprime muito na Liturgia católica, que muitos consideram enfadonha por só saberem viver de gargalhadas. Mesmo nos dias das comemorações de Páscoa, há qualquer coisa de tristonho; assim como na Semana Santa há um fundo de esperança que nada consegue apagar.

Se analisarmos bem o que fez a Revolução dessa ogiva composta de alegria e de dor, veremos como ela tentou destruí-la. Essa ogiva que se vê tão bem nas boas imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, no Santo Sudário, por exemplo, a dor tremenda, mas aquela decisão, o olhar daqueles olhos fechados, a proclamação daquela boca muda, o teso daquele corpo flácido; é uma coisa admirável! Eu não digo que não haja artista capaz de representar, não há artista capaz de conceber!

Dor no fundo da qual habita a alegria inefável

Pois bem, esse equilíbrio de alegria e de dor, se prestarmos atenção, a Revolução rachou. E as pessoas imaginam a dor como um estado de alma sem alegria, e definem alegria como um estado de alma sem dor. Olhando ao nosso redor vemos isso com uma frequência impressionante, para não dizer que só encontramos essa concepção, mesmo entre almas muito piedosas. Por exemplo, considerar a Semana Santa como a semana de dor, na qual só se chora; enquanto o Natal, a semana da alegria, onde só se fica contente.

Ora, quando uma cinde a alegria da dor, só concebe dores sem alegria e alegria sem dores, ela se racha ao meio. A Revolução, por não considerar a não ser desse modo, é maldita, porque rachou, liquidou e tirou de dentro das almas a paz da “Stille ­Nacht! Heilige Nacht”!, a paz do Natal e ao mesmo tempo da Sexta-Feira Santa.

Todos hoje fogem da dor. Há pregadores que querem convencer os homens a se resignar com a dor. Eles têm razão, mas quão raros são eles… Foram mais numerosos outrora. Será que eles sabiam pintar aos homens essa verdadeira dor no fundo da qual habita a alegria inefável de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, Ele crucificado, e Ela aos pés da Cruz? Será que na hora de júbilo eles sabiam comunicar as alegrias que não eram contrárias à dor, mas preparavam para ela? Quem não vê na alegria do “Stille Nacht” uma preparação para a Paixão? E quem não percebe que no meio daquelas alegrias arrebenta um pouco do soluço da Santíssima Virgem junto à Cruz?

Um dos meus primeiros encantos com a Igreja Católica foi quando eu era menino, tão pequeno que nem sabia bem o que era alegria nem dor, mas sentia essa penumbra na igreja e ouvia o órgão, o qual sempre tem algo de Sexta-Feira Santa e de Natal em tudo quanto toca, e dizia de mim para comigo: “Há aqui um equilíbrio ao qual dou um nome: santidade! Este é o estado temperamental, a fisionomia moral dos Santos. Encontro isso no interior de tantas igrejas, refletido em tantas imagens…” De onde vem o equilíbrio? Dessa junção do qual a “Stille ­Nacht” nos dá um exemplo, mas da qual a Igreja Católica nos dá mil outros.

Peçamos à Mãe de Deus, presente aos pés do Menino Jesus, e cujo Sapiencial e Imaculado Coração é o reflexo indizivelmente perfeito de tudo quanto há n’Ele, que nos dê muitas graças à maneira de sorrisos cumulativos de alegria e dor; e nos conceda esse especial equilíbrio de alma, o qual fará de nós os heróis que queremos ser, ou seja, os santos, pois só eles são os verdadeiros heróis.

É nessa perspectiva que, diante do Presépio que começa a se engalanar, dobro os joelhos e peço o auxílio de Nossa Senhora.              v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1978)

Os novíssimos do homem

É difícil encontrar quem não se preocupe com o próprio futuro. Entretanto, será que todos olham a realidade de frente?

 

Trataremos hoje a respeito dos novíssimos do homem.

A questão nos interessa no mais alto grau. Diz-nos o Eclesiástico: “Lembra-te dos teus novíssimos, nunca jamais pecarás”(1). Ou seja, se o homem for assíduo, correto e fervoroso na meditação dos seus novíssimos, ele não cometerá pecado.

Não pecarás eternamente quer dizer: irás para o Céu, evitarás o inferno.

O que encerra a vida do homem?

O termo “novíssimos” aqui desconcerta um pouco; ele é tomado não no significado que tem nas línguas vivas de hoje em dia, mas no sentido latino. Em latim, “novissimus” quer dizer as ultimíssimas coisas. E “novissimus dies” é o último dia. Assim, a frase quer dizer: Medita nas últimas coisas que te acontecerão e não pecarás eternamente.

A Igreja, Mãe sábia e infalível, nos ensina: as últimas coisas que o homem encontrará, não tendo por onde escapar, por ocasião do encerramento da sua existência terrena, são quatro: Morte: todos os homens morrerão; Juízo: ato contínuo depois da morte, todos serão julgados; Inferno: para os que morrerem impenitentes, em estado de pecado mortal, ou Paraíso: para os que falecerem na graça de Deus.

Assim se encerra a vida de um homem. Nesta Terra ele será mendigo ou rei, milionário, potentado que enfeixa em suas mãos mais ou menos todos os poderes, o mais deslumbrante ou o mais miserável do mundo; poderá ter a vida mais cômoda, ou a mais cheia de aventuras, de imprevistos.

Mas, quando fechar para sempre os olhos, ele se apresenta diante de Deus: Se foi bom, será aceito, será bom eternamente; se foi mau, será mau eternamente.

E Deus o julgará: “Tu és o contrário do que sou Eu! Tiveste outras cogitações e outras vias! As tuas obras, Eu as reprovo, as rejeito. A tua vida desenrolou-se num sentido oposto ao que Eu queria de ti, e deixei expresso pelos meus Mandamentos. Inferno!”

Ou o contrário: pousando amorosamente o olhar sobre ele, Deus lhe diz: “Tu foste criado à minha imagem e semelhança. Reconheço em ti um espelho vivo de Mim mesmo. Tu és meu filho, senta-te à minha direita.”

Ou seja, à direita de Deus Padre está Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus, e à sua direita ficarão os eleitos. Os réprobos serão mandados para a esquerda.

Se o homem foi bom, praticou os mandamentos exatamente, morreu na graça de Deus, tenha acontecido nesta Terra o que for, sua vida deu certo por toda a eternidade.

Porém, se praticou o mal e faleceu fora da graça divina, a sua vida foi errada, catastrófica. Ele vai para o inferno, não tem por onde escapar.

Quer dizer, tudo se mede pela disposição da alma no momento da morte.

Essas são as ultimíssimas coisas, encerram a vida do homem. Não há mais história para uma pessoa, depois de ter sido julgada e ocupar para todo o sempre o lugar no Céu ou no inferno, que a justiça de Deus lhe determinar. Na eternidade não há mais história; há apenas, para os bem-aventurados, amor e deleite. E para os que forem para o inferno, horror, geena e maldição.

Constantemente andando sobre o fio da navalha…

E, em relação ao homem, Deus dispôs as coisas de tal maneira que, se quisermos olhá-las de frente, estamos o tempo inteiro andando em cima do fio de uma navalha, podendo, a qualquer momento, merecer o Céu ou cair no inferno. Porque o homem, enquanto vive nesta Terra, está entre a virtude e o pecado.

A graça divina opera no seu interior; Nossa Senhora, os anjos, os santos rezam por ele. Nas solicitações da graça, o homem sente apelos para ser bom, e aí está a possibilidade de ele ir para o Céu de um momento para outro. Porque a morte a todos nos espreita e, a qualquer momento, nos colhe.

Imaginemos que no teto deste auditório houvesse um terrorista, o qual dissesse o seguinte: “Eu, de vez em quando, darei um tiro e matarei um dos que estão aqui.”

Com que cuidado, atenção, cada um dos presentes prepararia sua alma para morrer! Poderíamos passar longas horas tranquilas, falando de vários assuntos bonitos. De repente: pam! Alguém cai. Todos então se lembram: “Ah, tem esse terrorista, é verdade!” Afervoram-se de novo.

E alguns podem ir para o inferno. É o que acontece com uma pessoa que cometeu um pecado mortal, não se confessou, não fez um ato de arrependimento perfeito, e a bala do terrorista a atingiu, tendo ela morrido naquele instante.

De certo modo, estamos nessa situação. Porque qualquer um de nós — eu, pela idade, muito mais provavelmente do que todos meus ouvintes — pode falecer de um momento para outro.

A morte bate à porta de qualquer um, mas, às vezes, ela a arromba!

Ao longo dos meus 74 anos e meio de vida, quanta gente deixei pelo caminho e que era mais moça que eu! A morte os colheu devido a uma doença ou, às vezes, de repente: um acidente, uma parada cardíaca, que os médicos não conseguem explicar.

Quantos sustos o indivíduo tem!

Quando vou a um consultório médico, olho para as fisionomias das pessoas que estão, como eu, sentadas na sala de espera e penso o seguinte: Quantas delas têm bem a ideia das incertezas da vida? Realmente, sucede às vezes que o indivíduo diz ao médico:

— Doutor, eu tenho uma dorzinha aqui.

E pensa que o facultativo vai lhe dar um remediozinho. O médico o examina e lhe recomenda:

— O senhor precisa tirar uma radiografia.

Ele vai ao radiólogo. No dia seguinte, este lhe entrega um envelope fechado, destinado ao médico. O indivíduo volta ao consultório se abanando com aquele envelope. O médico o abre e lhe diz:

— O senhor está com uma doença que exige tratamentos… É câncer.

E passa por operações, com poucas possibilidades de sobreviver! E que operações! Tudo começou com uma dorzinha. Pois bem, no consultório ninguém está pensando nisso. Um está lendo uma revista humorística, outro bocejando, dois outros estão cochichando e um outro está fazendo o que se percebe ter feito a vida inteira: nada! Rezando ou preparando-se para receber alguma má notícia do médico, ninguém. De repente, pam! É a morte que bateu na porta: “Vou entrar.”

Mas às vezes ela arromba a porta!

Contaram-me um caso apavorante. Uma pessoa começou a sentir uma pequena perturbação nas vistas e foi ao oculista. O médico assestou aquele aparelho e lhe disse:

— O senhor está com um câncer em cada olho!

Quer dizer, ficaria cego desde logo. Mas, se ficasse só nisso… Esse câncer progride, vai para o cérebro e não adianta cobalto, nem mais nada, mata o indivíduo.

Dos que estavam na sala de espera, quantos pensaram que lhes podia acontecer isto? São pessoas que não cogitam nos novíssimos, nem na facilidade com que a morte as espreita e às vezes as chama, na ocasião em que menos esperam.

O indivíduo está executando um plano, tem um desígnio, possui algo que ele conquistou a duras penas e do qual está começando a gozar. A morte se apresenta e lhe diz: “Venha! Está tudo acabado.”

Quer dizer, nossa situação é parecida àquela em que nos encontraríamos se houvesse um terrorista no teto deste auditório.

Caso a morte tivesse data marcada, a que decadência chegaria a humanidade!

Alguém poderia perguntar: “Mas então o senhor está comparando Deus a um terrorista?”

Eu disse uma coisa bem diferente. Estou considerando a misericórdia que Ele mostrou ao homem, colocando-o nessa situação, de vez em quando colhendo um, com a intenção, entre outras, de que mil se assustem e entrem nas vias da virtude.

A que decadência chegaria a humanidade se não houvesse mortes repentinas! Se todo homem tivesse certeza que a morte só o colheria depois de completar os oitenta anos, quantos pecados ele cometeria antes de atingir essa idade? Incontáveis. Por efeito da bondade de Deus, existe uma espada sobre a cabeça de cada um de nós, para nos dar juízo, nos convidar a pensar na morte e compreender que todas as coisas desta vida só valem alguma coisa na medida em que contribuírem para morrermos bem. Morrendo bem, teremos a eternidade; morrendo mal, também a eternidade, mas que diferença entre as duas eternidades!

Esperada ou repentina, a morte é sempre tremenda!

A morte! Quantas variedades de morte há! Já vi pessoas morrendo aos poucos, com doenças horrorosas; e outras, de velhice. Lembro-me de uma pobre senhora idosa, simpática e respeitável, cujo cérebro estava em condições tão arruinadas que ela era continuamente assaltada por fantasias, as quais não tinham proporção com a realidade. Gemia e gritava; não se sabe o que ela via, mas percebia-se que estava diante de coisas horríveis. Foi preciso amarrá-la com cordas para que não se contorcesse demais e assim morresse.

Essa senhora levou uma vida bastante dura, sempre foi pobre, lutou muito. Por misteriosos desígnios de Deus, teve uma morte mais terrível do que a vida.  Que morrer tremendo! No meio dos delírios e desvarios! Pode ser que nossa morte seja assim…

Houve pessoas que, devido a alguma doença, sofreram diversas cirurgias: foi-lhes cortado um membro, depois outro… Quando atingidas num ponto vital, morreram.

Certa vez fui à residência de um alfaiate a fim de mandar fazer uma roupa. Achei a casa dele atraente, embora modesta, e disse-lhe:

— Que construção interessante, simpática!

Ele então afirmou:

— Eu morava aqui com meu padrasto e minha mãe, que ainda está viva.

Pareceu-me curioso o alfaiate falar do padrasto dele com tanta simpatia. Então, perguntei-lhe:

— Seu padrasto morreu?

O alfaiate respondeu-me:

— Sim, faleceu de uma doença atroz: a cada ano era necessário amputar um novo segmento das suas pernas e assim foi até o seu falecimento.

Já pensaram o que significa morrer desse modo? Ou, então, cair morto de repente?

O que será a dor da alma sendo arrancada do corpo?

Alguém poderia dizer: “Não. Quem morreu repentinamente não sofreu.”

Que ilusão!

Não posso me esquecer da impressão que tive, quando estava estudando no colégio São Luís — eu era menino —, e um padre, que era jesuíta, fez um raciocínio a fim de preparar a mentalidade dos alunos para a morte. Inicialmente, ele disse:

— Nunca ninguém voltou depois de morto para contar o que custa morrer.

Realmente há algo de respeitável na morte, e as pouquíssimas pessoas que conheceram outras que Deus ressuscitou, não consta terem tido coragem de perguntar-lhes: “O que você sentiu enquanto morria? O que lhe aconteceu depois que você morreu?” Há um grande mistério na morte.

E o sacerdote continuou:

— Apesar desse tremendo mistério, uma coisa é certa: a morte causa terríveis dores. Se — vou adaptar um pouco suas palavras — a ponta de um de meus dedos for arrancada, terei dores crudelíssimas. E julgarei que o homem que me causou isso foi um carrasco.

Lembro-me de um fato que li nas memórias de uma mulher, tida como uma das mais vigorosas do século XVIII, Catarina, Imperatriz da Rússia. Ela sentiu uma dor de dente muito forte e, naquele tempo, não havia anestesia. Em suas memórias, nas quais conta os fatos mais importantes da política de seu tempo — ela foi, se assim se pudesse dizer, uma potentada —, Catarina fala também a respeito de sua dor de dente. Tendo o dentista afirmado ser preciso arrancar o dente, ela — que era alemã, e alemã decidida — lhe disse que poderia fazê-lo. O dentista meteu mãos à obra. Ela escreveu que, depois de arrancado o dente, sentiu-se de tal maneira desvairada de dor que acabou sentada embaixo de uma mesa, gemendo e chorando.

São dores ocasionadas por se arrancar do todo humano um dente ou uma falange. Agora transmito o raciocínio do meu jesuíta:

— Imaginaram o que sente o corpo no momento em que a alma é separada dele? Que coisa tremenda!

A dor que a pessoa sente no momento em que sua alma deixou o corpo, embora terrível, não é nada em comparação do que vem depois.

A alma, separada do corpo, vê o próprio cadáver, as pessoas que estão em volta, chorando, pensando na herança, ou contentes por julgar que aquele trambolho vai para o cemitério. Olha tudo quanto deixou e que já não lhe adianta de mais nada: a bonita casa, o bonito automóvel, a aprazível situação, os filhos queridos, o esposo ou a esposa. E não tem mais possibilidade de comunicação, está numa outra esfera, é um espírito.

Diante de Deus, os maiores homens do mundo não são nada!

Naquele instante em que a pessoa expira, sua alma é projetada diante de Deus.

Para se ter uma fraca ideia do que é essa projeção perante Deus, imaginemos que um dos presentes neste auditório fosse transportado de repente, por uma mão misteriosa, a um tribunal constituído pelas maiores autoridades do mundo: o mais sábio, que lhe fizesse um interrogatório para verificar sua cultura e instrução; o mais fino, a fim de saber que espécie de educação possui; o mais elegante e bem vestido, para olhá-lo; o mais capaz, para examinar o que vale; e assim outros componentes desse cenáculo de sumidades.

Ele sentir-se-ia inseguro quando alguém lhe dissesse: “Você está na fila e daqui a pouco será chamado.” E pensaria: “Que sentença eles vão pronunciar a meu respeito? Deixe ao menos eu me arranjar um pouquinho, reavivar minhas noções de Geografia, História e de tudo o que sei, para não parecer tonto demais diante desta gente aqui”.

É chamado e um homem lhe diz:

— Dou-te um raciocínio errado, mas simples; responda onde está meu sofisma.

— Não encontro.

— Imbecil, vai para fora!

Outro personagem, que possui as melhores maneiras do mundo, apresenta-lhe um teorema:

— Imagine um homem que esteja em tal situação e que recebe, nessas condições, uma afronta. Mas essa ofensa lhe é feita pelo seu próprio rei. Como ele deve responder a essa afronta?

— Nunca pensei nisso.

— Tonto, retire-se!

Comparando-se com aqueles que o estão julgando, ele sente sua insuficiência radical, fundamental, a desproporção esmagadora.

Mas, diante de Deus, os maiores homens do mundo não são nada! O Altíssimo, falando a Moisés, definiu-se a Si mesmo: “Eu sou aquele que é.”2 Ele é o Criador do Céu, da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. No mistério de sua Santíssima Trindade se desenrolaram eternamente realidades que não posso nem sequer excogitar; Deus é a santidade, a sabedoria, e está acima de mim a perder de vista. E sinto que seus olhos penetram em mim, não escapa nada!

De repente eu morro e me dou conta de tudo quanto tenho de errado e também de certo. Mas o que acho de mim já não interessa. O que importa é o que Ele acha de mim. E, num instante, Ele me julga. Instintivamente meu olhar procura Nossa Senhora. Mas, as cartas estão jogadas.

É possível que, antes de acabar a frase que estou pronunciando, um dos presentes, ou eu, compareça diante de Deus. E o Criador faz assim, para estarmos sempre em ordem, a fim de nos apresentarmos diante d’Ele.

A terrível rejeição que há no inferno

Vejamos agora como são o Céu e o inferno. Talvez seja mais fácil compreender como é o inferno, para depois entender como é o Paraíso.

O primeiro tormento que o homem tem no inferno, o mais profundo de todos, não é o fogo, mas o saber-se rejeitado por Deus. Esse é um tormento irremediável, terrível, maior do que todos os outros tormentos.

Vou dar uma fraca imagem disso. Imaginemos que um dos presentes passe a viver comumente no ambiente onde nasceu, sendo aceito por todo o mundo.

E que, devido a uma razão qualquer, ele fosse rejeitado como indigno por esse ambiente, e depois por todos os homens. E tivesse que habitar numa tribo de selvagens monstruosos, que põem um pedaço de pau circular nos beiços, e dizem coisas elementares; fazem danças e saracoteios horríveis e, de vez em quando, comem uma pessoa.  E ficasse reduzido a viver no meio deles, porque todo o resto do gênero humano o desprezou e não o quis, tomando uma dura atitude, pois ele foi indigno. Fez uma coisa tal que causou horror a todos os homens. Só aqueles indígenas consentem em conviver com ele.

O fato de ele estar nessa situação, isolado de todos pelo horror, lhe é mais penoso do que tudo quanto perdeu, porque foi deslocado do seu ambiente natural.

Se o homem é assim com seu ambiente natural, é incomparavelmente mais com Deus. E quando ele morre, percebe que seu fim, sua ordem, sua bem-aventurança é Deus. Ora, ele rejeitou essa bem-aventurança, por um mau olhar, um mau pensamento, um mau ato, ou qualquer outra coisa, e por causa disso ele não tem mais nexo com Deus. Fica estraçalhado e completamente inexplicável. E no inferno ele tem a dor chamada do dano, percebe que é danado — “damnatus” em latim significa condenado, rompido. E essa ruptura pesa eternamente sobre ele como uma garra.

Local físico e real

O inferno é um lugar material, onde há um fogo material. E esse fogo é tão mais terrível, em relação ao fogo da Terra, que Santo Afonso de Ligório, o grande doutor dos novíssimos, dizia que há uma regra de três.

Considerem uma chama muito bem pintada num quadro; ela produz a ilusão visual do fogo, mas não tem calor. Já a chama de uma vela tem calor. A diferença entre a chama pintada e a da vela é muito menor do que a existente entre o fogo da Terra e o do inferno. Não sabemos que espécie de material alimenta o fogo do inferno. Mas Deus sabe, e isto basta. Quem morre condenado não precisa conhecer o que é esse fogo, porém o sente. E, por um desígnio d’Ele, o fogo dói na alma, se bem que esta seja espiritual. E queima a alma como queima o corpo.

De maneira que as almas atiradas ali sentem aquele fogo inteiramente. E, para usar a expressão de muitos que viram o inferno — São João Bosco é um deles —, a alma está no inferno não como um de nós, por exemplo, que sofresse com uma queimadura de terceiro grau na superfície do corpo, mas como uma brasa; ela é fogo!

Quer dizer, nada haverá na alma que não esteja em combustão com o fogo maldito do inferno. Uma combustão tremenda, que não se apaga, não cessa nem cede um instante. É continuamente terrível.

Segundo algumas revelações privadas, no inferno existe uma movimentação interna com rios e caudais de fogo. E as almas são banhadas em fogos diferentes, que não as deixam nunca. Seriam como brasas atiradas dentro de um fogareiro enorme; depois saem desse fogareiro e são jogadas em outro. E há no inferno — a expressão é figurada — como que lagos de fogo, com ondas de fogo. E, de vez em quando, por ordem de Deus, esses malditos têm que ir para lá e banhar-se nas ondas de fogo, vindas de todos os lados. E isso eternamente.  v

 

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 23/7/1983)
Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)

 

1) Eclo 7, 40.

2) Ex 3,14.

União de alma com o Divino Infante

Na noite de Natal o Menino Jesus possuía o pleno uso de sua inteligência. E já no seu pobre berço, sofria ao prever a incredulidade e a impiedade se espalhando em tantos lugares da terra. Mas, por outro lado, contemplou também todas as almas zelosas da glória e do serviço de Deus, vivendo e batalhando para o triunfo da virtude, sofrendo com os pecados e as ofensas que os homens cometem contra Ele, reparando-as com penitências e espírito de ascese.

Desse modo, a mente e o coração sagrados do divino Recém-nascido voltavam-se para os católicos fervorosos enquanto implorava ao Pai Eterno as forças necessárias para eles perseverarem no bom combate pelo bem.

Acerquemo-nos então do Presépio, e peçamos a Jesus, por meio de Nossa Senhora, de São José, dos Anjos, dos pastores e dos Reis Magos, que aceite nosso desejo de sermos conforme aos seus divinos desígnios. Ofereçamos-Lhe o nosso anelo de nos unirmos às cogitações, meditações e considerações proféticas que Ele fez na manjedoura, a fim de vivermos o Natal em uníssono com Ele.

Imploremos uma inteira união de alma com o Divino Infante, de maneira a que tudo quanto existe no coração d’Ele esteja no nosso, tudo quanto palpite no Imaculado Coração de Maria lateje também no nosso, e que o Natal celebrado por nós reflita exatamente o sentido de tudo quanto Jesus e Maria experimentaram naquela noite mil vezes bendita nas montanhas de Belém.

Plinio Corrêa de Oliveira

Felicidade e temperança

Se esta vida é um “vale de lágrimas”, o homem está fadado a ser continuamente infeliz? Ou deve, pelo contrário, procurar sempre o divertimento? De modo magistral, Dr. Plinio analisa o delicado equilíbrio entre essas duas posturas extremas, em reunião dedicada a comentar o interessante livro de Marcel Brion — “A vida quotidiana em Viena nos tempos de Mozart e de Schubert”.

 

O tema dessa exposição me foi sugerido por este pensamento exarado na obra de Brion: “Uma época que se diverte é sempre, em grau maior ou menor, uma época inquieta, pois a procura  desenfreada  do prazer corresponde, conscientemente ou não, ao desejo de fazer emudecer uma inquietação lancinante”. A meu ver, apesar de excelente escritor e membro da Academia Francesa, algo claudica nessa afirmação de Brion.

Ele deveria dizer que uma sociedade que se diverte desenfreadamente, esta sim oculta uma tristeza lancinante, uma inquietação dolorosa. Esse seria o pensamento verdadeiro. O simples divertir-se, o ter um lazer de vez em quando, não configura uma sociedade triste.

Uma falsa filosofia de vida Creio, porém, haver muita gente adepta de uma filosofia de vida segundo a qual “só o divertir-se é realmente agradável”. Essa gente ou se diverte ou trabalha. Como um trabalho  sério é sempre penoso e, portanto, desagradável, não se pode chamá-lo de autêntica fonte de entretenimento.

Fora dessas duas alternativas, há o repouso insípido, sem nenhuma graça.

De maneira que, para tais pessoas, a única forma de alegria possível nesta vida se encontra na diversão, a qual, quanto mais intensa, mais felicidade proporcionará. Tomadas por essa ideia equivocada, correm malucamente atrás dos divertimentos. Ainda segundo essa concepção, deve-se aceitar a infelicidade por amor ao Céu, por amor a Deus Nosso Senhor, por temor do inferno.

Mas, a vida morigerada, regular, sem maiores folguedos, não é uma vida que traga alegria, pois esta só se acha na diversão. Existe a felicidade neste vale de lágrimas? Podemos nos perguntar se realmente essa mentalidade tem razão de ser, e se o prazer que se alcança nas recreações é idêntico à felicidade.

Para resolver esta questão, não deve alguém se satisfazer com o seguinte pensamento piedoso: “Doutor Plinio, a felicidade não existe neste vale de lágrimas. O homem aqui é perpetuamente infeliz. Ele sai de um infortúnio para cair em outro, e no seu caminho só encontra tristeza, achaques e dores”.

Essa idéia é uma meia-verdade e, portanto, um meio-erro. De acordo com São Tomás de Aquino, o homem precisa ter na sua existência algo, por menor que seja, capaz de lhe proporcionar algum  prazer. Se imaginássemos um homem sem um grão de felicidade, ele morreria.

E a Providência Divina, materna e bondosa, permite duas coisas: primeiro, que a grande maioria dos homens possua ao menos uma parcela de felicidade (não inteira, pois esta não existe mesmo  neste mundo). De outro lado, também dispõe que aqueles aos quais Ela mais ama passem por períodos inteiramente áridos, sem qualquer forma de alegria. São as grandes horas da vida de um homem: quando se faz “noite”, todo contentamento desaparece — inclusive a consolação sobrenatural — e se entra no túnel obscuro, “plumbeamente” pesado de uma infelicidade imensa.

Mas os males críticos, muito agudos, não duram. Ou conduzem à morte, ou passam logo. Assim também é preciso ver essas partes trágicas da existência como permitidas por uma disposição especial da Providência, em geral com pouca duração.

Portanto, em algo o homem precisa ter um fragmento de felicidade. Então, é preciso perguntar se essa parcela de alegria se identifica com o prazer, e qual seria o papel deste na posse daquela. Numa tentativa de resposta, acredito que há fases da história de certos povos, de certas civilizações, em que o prazer é tão excepcional na vida, e o divertimento é tão pouco freqüente, que se diria  não existirem.

São duas ou três festas por ano, de qualquer natureza, e, fora disso, as pessoas não se divertem. Alguém pode ser feliz assim? Pode. Desde que compreenda bem a sua situação, e saiba encontrar a  felicidade que ela lhe proporciona.

A felicidade de um fazendeiro dos antigos tempos

Considere-se, por exemplo, a vida de um fazendeiro brasileiro no tempo do Império (falo do Brasil, mas é evidente que situações análogas se dão em outros povos, em outras circunstâncias). omo era o quotidiano desse fazendeiro e de sua família?

Em geral, vivia numa casa de fazenda confortável, segundo as necessidades e conveniências dele. Estava separado da cidade próxima por algumas léguas de estrada difícil de percorrer, e na qual,  não raras vezes, corria-se o perigo de ser assaltado, sofrer emboscadas dos capangas de um inimigo político, etc. Assim, esse homem tinha tendência a se isolar na própria fazenda, desfrutando ali da placidez de sua existência rural.

Duas ou três grandes diversões por ano lhe bastavam. Havia a festa da Novena do Padroeiro da Matriz, ocasião em que se dirigia com toda a família para a cidade. O evento comportava atos de  piedade de gala, as pessoas se apresentavam trajadas com suas melhores roupas, e nas saídas os encontros tomavam um caráter de reunião, senão necessariamente mundana, pelo menos social. Depois, havia também casamentos de parentes ou algum batizado, dando lugar a mais celebrações e festejos sociais.

Qual era, pois, a felicidade de um fazendeiro nessa vida campesina? Era a alegria de exercer a sua atividade, conferindo a ela os vários caracteres de que toda ação simultaneamente deve estar  cercada. Em primeiro lugar, vinha o interesse e o prazer natural da ocupação  agrícola: o plantio e desenvolvimento da safra, dirigir os homens na colheita, guardar, fazer o plano de uma melhoria  para o ano seguinte, etc. Isso significava, em escala muito pequena, reinar. De fato, o fazendeiro era muito mais rei da sua fazenda do que o prefeito do município onde ela se incrustava. O  verdadeiro soberanozinho era ele.

Ora, esse pequeno papel governativo que o individuo exercia na sua fazenda, era uma função que podia propiciar deleite, por uma vida inteira, a um homem equilibrado, sensato  e temperante. Ao  lado disso, ele tinha o prazer de ser o patriarca do lugar. Quer dizer,  o homem em torno do qual se compõe a vida da fazenda. Era o líder  natural, que, naquele tempo, dava um conselho para a família dos seus subordinados, colonos e administradores, conforme as mais diversas situações: sobre a educação dos filhos, na receita para curar uma doença, sobre o curandeiro que passou, acerca do modo de tratarem das  próprias terras, ou sobre qualquer problema para o qual lhe iam solicitar ajuda. Enfim, para lembrar a distinção que fazem os ingleses, o fazendeiro não governava  apenas, mas também reinava. Ele era a chave de cúpula simbólica da vida da fazenda.

E ser detentor dessa condição naquela comunidade, pelo interesse que tem cada alma para a família humana, era de molde a distrair e causar felicidade a um homem que entendia  bem as coisas.

De mais a mais, naquele pequeno local onde ele existia, o fazendeiro auferia um dos reais prazeres que a vida pode conceder a alguém: o de receber o legítimo respeito e a consideração proporcionais à função que ele desempenha.

Ser acatado não só pelos seus subalternos, mais igualmente pelos seus mais próximos. Com efeito, ele estava cercado por sua família que, dentro da fazenda, constituía um outro reinozinho dele.  Os filhos lhe eram muito obedientes e respeitadores no mais alto grau.

Quando visitava a cidade vizinha, ele entrava na frente, seguido pela sua “corte”. Era o Senhor de tal engenho, o dono de tal fazenda que chegava, e o prestígio que o impunha na metropolezinha, era a repercussão do prestígio que granjeara na sua propriedade. Ora, como as cidades viviam em função do campo e todas elas estavam penetradas pela vida da agricultura, transformavam-se  numa espécie de súmula e ao mesmo tempo de apêndice de todas as fazendas das redondezas. De maneira que o nosso personagem entrava lá “cantando de galo”…

Dirigia-se à casa do compadre (e ser compadre naqueles tempos era algo muito mais sério do que hoje) onde ficaria hospedado, e se apresentava dizendo: “Ó compadre, como vai “Mecê”?”

Propalava-se rapidamente na cidade a notícia de que ele havia chegado. E os importantes do lugar o vinham visitar, cumprimentar, fazer  política — porque ele era dono dos votos dos seus colonos, e, portanto, um inapreciável cabo eleitoral.

Toda essa influência lhe outorgava uma certa autoridade quando ele visitava a capital da Província. Então era ali recebido pelo governador, conversava com algum deputado importante e, se fosse  em São Paulo, com tal professor da Faculdade de Direito que lhe dava audiência. De volta ao seu pequeno feudo, ele não poupava comentários sobre a sua viagem, o que apenas reforçava o seu prestígio local.

Características da verdadeira felicidade

Ora, um homem que sabe compreender essas coisas, sabe degustar o que elas têm de legítimo, e vive dessa degustação temperante. É um homem em cuja vida a felicidade, e não a diversão, ocupa  um bom papel. Ele tem uma forma de alegria que não é a do prazer desenfreado.

Quais são as características dessa felicidade?

Antes de tudo, é sumamente razoável. Em segundo lugar, ela cria e interpõe a temperança, e por isso mesmo só pode ser degustada por um indivíduo temperante. Neste não há as ânsias, os  delírios, as inquietações e agitações que dominam o homem moderno. Os episódios da vida de uma pessoa temperante procedem da calma, e a mantêm serena. Conduzem-na a uma sensação de  harmonia, de equilíbrio, de abastança, e a fazem se sentir segura e tranquila sobre si mesma.

Tome-se, por exemplo, a existência de um pequeno comerciante do início do século [XX]. A ele se poderia aplicar o que dissemos sobre o fazendeiro do tempo do Império, ambos imbuídos dessa  temperante disposição de alma. Figura característica desse homem de comércio, profundamente tranqüilo, sereno e equilibrado seria, a meu ver, o “Monsieur” Martin, pai de Santa Teresinha. Na  modesta cidade de Alençon, de nome lindo como uma música, ele era relojoeiro, vendendo suas peças que não deviam ser lá grandes maravilhas da ourivesaria. Seja como for, com honestidade e   probidade ele reuniu um bom pecúlio. A certa altura da vida encerrou seu comércio, tinha suficiente dinheiro para viver de renda e se retirou da atividade comercial.

Costruiu seus Buissonnets, um poema da graça miúda da pequeno-burguesia, e viveu na tranqüilidade daquela fisionomia magnífica de paz, de estabilidade e equilíbrio de alma que ele tinha.

Ele vivera uma existência na qual o prazer representara pouco. Mas as pessoas eram educadas pelo ambiente para gostar dessa forma de felicidade.

A chave do problema está na temperança

Essa degustação das situações, esse deleite morigerado constitui propriamente a felicidade, da qual não se exclui o prazer como se este lhe fosse contrário. Antes, é como um tempero, um sal que  confere à alegria um certo sabor. Porque uma vida dessas, “à la longue”, pode se tornar um tanto sensaborona. Faz parte da mutabilidade do espírito humano que ele queira, de vez em quando, certa variedade. E é concebível que ele deseje um prazer honesto o qual, portanto, não se opõe à felicidade.

A chave da questão está, então, no problema da temperança. Com efeito, se o indivíduo é temperante,  é capaz de degustar a situação legítima em que se acha e de nela encontrar felicidade. Se é ou  se deixa tornar intemperante, ele corre atrás dos prazeres e das sensações. Correndo atrás destes, ele volta à estaca zero.

É próprio do espírito “hollywoodiano” o ter transformado em uma fonte de prazer intemperante até mesmo as coisas que, de si, não são deleitosas.

O alemão típico, por exemplo, encontra a felicidade no trabalho intenso, mas calmo. O estilo “hollywoodiano” busca o prazer no trabalho agitadíssimo, que produz como que uma embriaguez da  realização. O antigo turista europeu se comprazia numa viagem ponderada, equilibrada, tranquila. O turista americano, segundo a imagem convencional, tem gosto em devorar as distâncias e em se intoxicar de sensações sucessivas que ele não é capaz de digerir.

Febricitação, oposto da temperança e da felicidade

Essa última mentalidade, ao invés  de se caracterizar pela temperança,é marcada pela febricitação. Ou seja, a mania de estar imerso continuamente nas sensações fortes e de não querer viver na placidez de uma vida ordenada e comum.

Essa mania é a extensão lógica da sede do prazer para a apetência de outras sensações em outros terrenos da vida, que criam o estilo do existir contemporâneo. É uma corrida atrás das sensações a  propósito de tudo e de nada. Enquanto o homem temperante se defende delas, o intemperante vive apenas perseguindo-as e tentando sugá-las a todo custo.

Daí nascem, em larga medida, o desequilíbrio da sociedade hodierna, e a pseudo-alegria que uma pessoa do interior encontra quando chega na cidade grande, deslumbrando-se com as sensações fortes que esta lhe promete. Ainda que seja a emoção de quase se ver atropelado num acidente de automóvel.

Ela volta para a sua cidadezinha e começa a contar na praça pública como esteve num lugar onde os automóveis correm tão depressa que ela só faltou morrer debaixo de um. Para  ela, esse perigo   de vida pareceu bonito, e se comprouve não só em senti-lo, como também em contar que o sentiu, para participar a sensação aos outros, como se lhes estivesse oferecendo a degustação de um  vinho capitoso. Essa é a febricitação, da qual o homem do nosso tempo se tornou quase um escravo.

O “Ângelus” de Millet

O contrário desse estado de espírito agitado pode ser compreendido na consideração de uma pintura célebre — o “Ângelus”, de Millet. O que esse grande artista quis exprimir (talvez de modo um  tanto romântico) no seu quadro é a felicidade calma e tranquila, sem as intemperanças do prazer desenfreado.

É a imensa serenidade do campo, do trabalho que terminou, do “Ângelus” que está tilintando no sino da igreja próxima; do casal que reza na castidade da vida agrícola, com os trajes rurais e com  os instrumentos de sua labuta diária. E que, naquela calma bucólica, voltará para casa onde logo o jantar será servido.

Enquanto a mulher se dirige à cozinha, o homem se põe a descansar um pouco, sentindo o cheio da comida que começa a tomar as exíguas dependências do seu modesto lar, observando o teto de  colmo e a fumaça que sobe pela chaminé; ouvindo o barulho de um pássaro que procura um pouso, ou uma criancinha que faz suas últimas piruetas antes  de dormir.

Vem a noite, e com ela aquela segurança dentro da casa, enquanto a existência noturna da natureza impera em volta dela. É a alegria, a felicidade das situações.

Creio que todo homem lucraria muito em inalar essa felicidade, essa tranqüilidade de quem leva uma existência normal, calma, sem sensações,  de uma atividade fecunda, enriquecida pela vida de  oração. Assim como creio que é infeliz o indivíduo intoxicado pela posição de espírito oposta.

Plinio Corrêa de Oliveira

O luminoso caminho dos “flashes”

Evocando marcantes momentos de sua infância, Dr. Plinio prossegue na descrição das graças especiais que, como verdadeiros “flashes”, foram-lhe concedidas para discernir e amar as perfeições de Deus, de Maria Santíssima e da Igreja. Esses dons divinos, insistirá Dr. Plinio, longe de serem um privilégio, estão ao alcance de todos nós: basta que tenhamos o espírito atento para as belezas celestiais e seguirmos a radiosa trajetória que elas nos traçam.

 

Em anterior ocasião, narrei aqui alguns flashes que tive em menino, os quais me levaram a compreender a santidade e a divindade da Igreja.

“Flashes” com a pureza de Nossa Senhora

Também na infância, outras graças dessa natureza me foram concedidas, ao contemplar as imagens de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, e de Nossa Senhora do Bom Conselho, no Colégio São Luís.

Em ambos os casos não houve milagre, como se as imagens se movessem e se manifestassem a mim de modo extraordinário. Porém, elas me foram ocasião de graças sensíveis, à maneira das que recebemos, por exemplo, diante da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima( 1), cuja maravilhosa expressividade nos faz ter a sensação de que ela muda de fisionomia, como se quisesse nos dizer algo.

Assim, de modo análogo, junto àquelas imagens tive uma dupla noção, da realeza e da misericórdia de Nossa Senhora.

Poder-se-ia afirmar tratar-se da realeza da castidade. Maria Santíssima é a Soberana de todo esse setor do universo chamado pureza, de tudo capaz de ser considerado casto, com primazia para a alma humana. Nossa Senhora possui a castidade em grau tão supereminente, que todas as purezas abaixo da d’Ela não são senão pálida figura da sua virgindade.

E a pureza tem em si algo que é oposto, não contraditório, com a misericórdia. Porque a castidade é profundamente exclusiva. A pessoa pura constitui em torno dela uma espécie de halo que se chama pudor, uma distância de tudo que não seja casto. Ela é inquebrantável quanto à impureza, mostra-se altaneira em relação a esta e a afasta para longe. Donde entre o puro e o impuro se estabelecer uma situação parecida com a que se poderia imaginar numa cena da Revolução Francesa, entre a Rainha Maria Antonieta e um daqueles ferozes revolucionários. Ela representaria de algum modo a pureza, a ordem, e ele, a revolta, o partidário de toda feiura, sordície e más maneiras.

Tal cena exprimiria de maneira tênue a ideia de que realeza e pureza se casam com toda a intransigência inerente aos conceitos de ambas. Isto de um lado.

De outro, porém, Nossa Senhora possui insondável misericórdia, inclusive e principalmente para com o impuro. Embora faltoso, este continua sendo seu filho, e Ela o considera com seu ilimitado desvelo de Mãe, com sua incansável bondade, desejando perdoá-lo a todo momento, reerguê-lo e tirá-lo da charneca.

Ora, a conjunção de todas essas qualidades da Santíssima Virgem me falou na alma de forma inenarrável. E vi naquelas imagens d’Ela essas várias expressões. Marcou para minha vida inteira a devoção a Nossa Senhora, com a ideia de que Ela é um modelo a ser imitado custe o que custar, um auxílio no qual se deve confiar a todo preço, por pior que seja a situação. A bem dizer, ­duas incondicionalidades: na vontade de imitar, no propósito de esperar o perdão e a clemência.

Um muro de horror ao pecado

A graça de compreender e admirar a realeza da pureza de Nossa Senhora, cuja noção adquiri através desses flashes, veio trazendo dentro de si um verdadeiro muro de horror contra a impureza.

Para se entender essa afirmação, imagine-se uma pérola absolutamente branca. Qualquer grão de poeira que se deposite sobre ela a deprecia, porque macula em algum ponto aquela alvura, quebra sua homogeneidade. Assim, a virtude da pureza imaculada, ilibada, traz consigo o padrão do muro de horror contra a impureza e, por extensão, também contra tudo quanto é erro e mal. Por exemplo, entre o deplorável defeito da inveja e a virtude contrária (isto é, a admiração e a alegria pelos dons concedidos por Deus a outros), há um muro de horror semelhante àquele da relação pureza-impureza.

Essa parede de aversão se repete ao longo de toda a muralha das virtudes, sobretudo no tocante à principal delas, a Fé, face ao pecado que a ela se opõe: a heresia.

Por definição, a Fé é tão casta que, muitas vezes, quando a Escri­tura se refere a alguém que pecou contra essa virtude, afirma ter ele ­caído na impureza. E quando o Antigo Testamento nos apresenta os judeus praticando atos impuros no alto das montanhas, alude com isso ao pecado de apostasia que eles cometiam ao adorar ídolos postos naqueles locais. Ou seja, entregar-se à idolatria é cometer atos impuros, é pecar contra a Fé.

Em contrapartida, a Santa Igreja, guardiã da verdadeira Fé, é a Mãe casta, virgem e reta, a santa, a ilibada, que nos leva à pratica da virtude e à repulsa ao vício.

Certo estou, portanto, de que naqueles momentos dos meus flashes com Ela, Nossa Senhora me concedeu a graça de edificar em minha alma esse muro de horror ao pecado. Muro este que todos devemos procurar desenvolver em nosso interior, em relação a qualquer defeito e pecado que nos afastam do caminho da santidade.

“Flashes” que se desdobram em princípios

A esse propósito, alguém poderia me indagar: “Para se criar esse muro de horror, importa ter tido antes um flash?”

O flash produz necessariamente o muro do horror. Porém, com freqüência este último é obtido através do estudo da boa doutrina, feito de modo sério por uma alma honesta que deteste o vício e o mal, embora não tenha recebido a graça sensível que chamamos de flash. Entretanto, a meu ver, na vida espiritual de uma pessoa é indispensável haver certo número de flashes, a fim de que ela construa de maneira profunda essa muralha de repulsa ao pecado. E para minha cara “geração nova”(2), o flash é uma graça particularmente valiosa, devido à própria contextura de seu espírito.

Agora, os flashes devem se desdobrar em princípios, os quais cumprem ser, não analisados como coisa geométrica, mas amados. Quer dizer, compreendendo uma verdade a partir do flash, é necessário amá-la e detestar o erro oposto. Nesse sentido, lembra-me um Salmo que diz: “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso Deus me ungiu com seu óleo santo”. Na linguagem da Escritura, a justiça é o símbolo de todas as virtudes, e a iniquidade representa o conjunto dos erros. A unção da qual fala o Salmo seria, pois, o flash que torna a alma articulada, leve, aromatizada, azeitada para a prática do bem.

Trilhando o caminho dos “flashes”

Para concluir essas considerações, é oportuno dizer que cada um, com a peculiaridade de seu espírito e a riqueza de sua personalidade, em relação aos flashes deve ir apalpando e tateando suas impressões, a fim de procurar seguir um caminho análogo ao que trilhei. Esforçar-se em lembrar dessas graças recebidas, explicitar as sensações que causaram, de maneira a saber dizer qual foi sua substância e, posteriormente, estabelecer correlações e princípios.

Assim foi como procedi: recordei meus flashes de menino, explicitei-os, compus com eles um quadro de impressões, de correlações e conceitos: a santidade da Igreja, a realeza da virgindade de Maria Santíssima, etc.

Naturalmente, cada alma realiza essa operação num movimento que lhe é próprio. Não pretendo que façam como eu, mas acredito ser este um bom método para, efetuando as necessárias adaptações, seguir esse luminoso “caminho dos flashes”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Essa imagem verteu lágrimas em Nova Orléans (EUA), em 1972. Em suas peregrinações através do mundo, passou diversas vezes pelo Brasil, sendo aqui venerada por Dr. Plinio e seus discípulos.

2 ) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”.