Palácio do Vaticano

Pervadido de admiração, Dr. Plinio descreve o panorama descortinado ao subir a rampa que conduz ao Pátio de São Dâmaso, as cenas presenciadas nesse local e as salas, com suas grandiosas ornamentações, do Palácio onde vive o Sumo Pontífice. Indica também os significados da “Sedia Gestatoria”, dos “flabelli” e dos dosséis existentes na Sala do Conclave, mostrando como tudo ali é prático e sublime.

Como era a vida de um Papa?

Ela transcorria em um Palácio ou na Basílica de São Pedro, a maior igreja da Terra, magnífica pela sua riqueza, pelo seu valor artístico, pelo fato de estar construída sobre a sepultura de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, pelo grande número de relíquias de toda ordem ali reunidas, pelos acontecimentos históricos que ali se passaram. E, ao lado da Basílica, o Palácio do Vaticano, residência para onde o Papa se recolheu depois que os Estados Pontifícios, que constituíam dentro da Itália um verdadeiro reino, foram tomados por Garibaldi.

Do Portão Santa Marta até o Pátio São Dâmaso

Em virtude do Tratado de Latrão(1), a própria Itália reconheceu que a Basílica de São Pedro, o Palácio do Vaticano, jardins anexos e alguns outros edifícios do Vaticano existentes em Roma constituíam um reino próprio, distinto do governo da Itália, com todos os poderes de uma soberania temporal, perfeita e acabada, inclusive com sua alfândega e seus correios e telégrafos. Dentro do Vaticano havia uma estação de estrada de ferro. E o Papa era o rei deste Estado, o monarca da Igreja que ali vivia cercado de todo o protocolo de uma corte; protocolo voltado a estimular sentimentos de veneração e de amor para com o Soberano Pontífice, e a organizar convenientemente sua vida.

Lembro-me da impressão que eu tive — numa das vezes em que fui ao Vaticano — quando subi pelo Portão Santa Marta, situado à esquerda de quem entra na Basílica de São Pedro. Caminha-se por uma rampa muito bonita, onde se passa perto de um pequeno palácio no qual morou o Cardeal Merry del Val(2), de um pequeno cemitério — chamado dei Tedeschi, porque ali alguns alemães estão sepultados; depois se passa pelo governatorato de Roma. Roça-se no fundo, na abside da Basílica de São Pedro e se chega ao pátio mais alto, o cume de uma verdadeira montanha, chamado Pátio de São Dâmaso, que é o pátio interno do Palácio do Vaticano, donde partem os elevadores que levam os visitantes para os vários andares, nos quais estão Monsenhores, Cardeais e finalmente o Papa.

Chegada de uma princesa dos antigos tempos e do embaixador dos Estados Unidos

Quando chego ao alto da rampa, vejo uma cena bonita: de um automóvel saem dois camareiros, vestidos com damasco roxo e meias compridas, com jeito de nobres, e ajudam uma princesa dos antigos tempos, trajada como se vestia para visitar o Papa — toda de preto, com véu, tule, uma coroazinha etc. —, a qual foi caminhando em passo cadenciado, com um pequeno séquito, no meio do pátio; mas ninguém prestava atenção especial porque passava de tudo por lá.

Em seguida, ouço uma buzina prestigiosa, que toca com delicadeza para afastar um pouco as pessoas, e vejo um automóvel enorme e reluzente que chega. Era o representante do presidente dos Estados Unidos junto ao Papa, que entrava para ser recebido pelo Sumo Pontífice.

Então essa conjunção da princesa dos antigos tempos, já sem poder temporal, com pouco dinheiro, hospedada com certeza num hotelzinho médio de Roma, que descia de um automovelzinho “tremblotant”(3), como se diz em francês — em que os paralamas e todas as outras partes do veículo pareciam ter uma espécie de dificuldade de se manter unidos —, mas ela descia no esplendor de sua tradição, da verdadeira tradição que não morre nunca e que não se incomoda nem sequer com sua própria pobreza, recebida por dois guardas de honra também tradicionais, e caminhando com a serenidade e o alheamento a todas as coisas. E, ao lado, o embaixador do país rico, magnífico, pomposo, a maior potência temporal da Terra, que também vai ouvir uma palavra do mesmo sucessor de São Pedro. Mais acima passa um Cardeal armênio, com sua barba; é toda a velha História da Igreja nos países do Oriente próximo. E tudo isso afluindo para cumprimentar o Papa.

Os Papas não recebiam só as pessoas grandiosas, mas todas as pessoas, porque ele é pai de todo mundo, e é preciso que todos sintam que têm acesso junto ao Soberano Pontífice. E era preciso organizar essa vida de maneira que toda essa gente visse o Papa.

Ornatos grandiosos fazem com que o homem se sinta pequenino

A residência papal precisa ter vários salões sucessivos. Nenhum salão repleto, nem abarrotado ou cheio de gente como num cinema moderno. Fileiras de duas ou três pessoas ao longo dos muros, um longo espaço vazio entre elas, objetos ornamentais magníficos, quadros, afrescos esplêndidos, tapetes, tetos esculturais.

O Papa entra vestido de branco, diferente de todo mundo, solidéu branco, discreto. Ele se aproxima de cada um no recolhimento da sala. Uma palavrinha com esse, aquele e aquele outro, e vai para outra sala. Como as pessoas que estão numa sala sabem que há várias outras depois, cada um entende que o Sumo Pontífice diga uma palavrinha e passe.

Poderíamos examinar como as menores coisas convivem com isso. Os ornatos das salas são grandiosos! Nada de pinturazinhas, com figurinhas, florezinhas. São cenas enormes, em geral de tamanho maior do que o homem. Por quê? Isso faz com que o homem se sinta pequenino e compreenda o respeito que deve ter. Depois, todos sabem que são afrescos de pintores famosos; cada uma daquelas salas valeria uma fábula, não têm preço aquelas pinturas que ornam a mais alta autoridade da Terra. Tudo isso incute respeito.

Há também a sala preparada para o Conclave que elege o Papa, onde se notam as cadeiras colocadas uma ao lado da outra, e em cima de cada cadeira um dossel. Quando o Soberano Pontífice é eleito, funcionários baixam os dosséis, e o único dossel que fica elevado sobre a cadeira é o do trono do novo Papa.

O que quer dizer isso? Quando o Sumo Pontífice morre, o governo da Igreja passa a pertencer ao Sacro Colégio, o qual exerce temporariamente uma parte da soberania do Papa. Como o que caracterizava o soberano antigamente era sentar-se sob um dossel, há dosséis para todos os Cardeais que constituem no seu conjunto o Sacro Colégio. Quando o Papa é eleito, o Sacro Colégio que o aclamou ou escolheu deixa de ser soberano. Assim, os Cardeais, ato contínuo, vão fazer seu ato de obediência ao novo Papa. Baixam-se os outros dosséis, pois a soberania pertence apenas ao Papa. É uma coisa bonita!

A ”Sedia Gestatoria” e os ”flabelli”

A “Sedia Gestatoria” é um trono ambulante.

Quanto eu saiba, esta é a única monarquia de velhos. A Igreja verdadeira nunca teve a fobia da velhice; pelo contrário, teve a admiração e a veneração por ela.

Reporto-me à teoria da soma das idades. À medida que a pessoa envelhece, ela vai somando a vantagem de todas as idades; e, se é católica, vai se tornando mais plena de tudo aquilo que a velhice pode dar. A velhice não é considerada uma catástrofe, mas um êxito.

Lembro-me de uma anedota: dois franceses velhos encontraram-se e ficaram conversando numa ponte sobre o Sena. Um deles disse: “Como é desagradável envelhecer!”, e o outro respondeu: “Eu não acho, é o único jeito de viver muito.”

É tão evidente…

Todos os Papas, com raras exceções, eram mais do que sexagenários. Para percorrer aquelas distâncias enormes no interior do palácio deles, deviam usar um veículo de transporte à mão, porque muitas vezes eram septuagenários ou octogenários. Daí então essa espécie de liteira descoberta, que era a “Sedia Gestatoria”, carregada por portadores que se revezavam ao longo do trajeto, todos com trajes tradicionais. E o Sumo Pontífice ia sentado ali com aqueles leques em forma de semicírculos, com plumas, chamados “flabelli”, que eram na aparência para afugentar as moscas. É possível que a velha Roma pontifícia tenha tido muito mosquito, e que os “flabelli” foram feitos com essa intenção. Mas com o tempo os famosos pântanos romanos foram sendo secos, e os mosquitos desaparecendo de Roma. Mas os “flabelli” ficaram. Porque aquele objeto, destinado primeiramente a espantar mosquitos, foi de tal maneira modelado pela arte que se transformou numa obra-prima, colocada sempre perto do Papa e movendo-se discretamente; passou a ser um símbolo da suavidade, da graça e da glória, adornando a fronte venerável do ancião que é o Vigário de Cristo na Terra. Então os “flabelli”, movendo-se lentamente em torno do Papa, passaram a ser o complemento cênico — e digo cênico com o maior respeito à palavra — necessário do Romano Pontífice levado na sua “Sedia Gestatoria”.

Então, tudo está preparado ali. É só o novo Papa ser eleito que se desencadeia um mundo de tradições que o cercam e o vão levando dentro da linha dos seus antecessores. Isso tudo é tão prático, corre depressa, porém sem correria; não como a pressa moderna, filha da aflição e da torcida, mas uma pressa filha da reflexão, do recolhimento, da meditação, e por causa disso particularmente eficiente. Tudo se passava sem corre-corre, com um mínimo de dispêndio de tempo possível. Sublime e prático ao mesmo tempo. Coisas que o espírito moderno não compreende bem que estejam unidas.

Para concluir, desejo que lhes seja dado o seguinte: a alegria, a graça e a glória de presenciarem o começo do Reino de Maria. E que possam assistir a toda a pompa vaticana como ela deve ser.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/1/1976)

 

1) Tratado assinado em 11 de fevereiro de 1929 e ratificado a 7 de julho do mesmo ano. Por ele, o Vaticano ficava reconhecido oficialmente como Estado soberano, neutro e inviolável, sob a autoridade do Papa, incluindo o palácio de Castelgandolfo e as basílicas de São João de Latrão, Santa Maria Maior e São Paulo Extramuros. Por sua vez, a Santa Sé renunciava aos territórios que lhe pertenciam desde a Idade Média e reconhecia Roma como capital da Itália.
2) Secretário de Estado de São Pio X.
3) Trêmulo.

Oh, maravilha!

A formosura posta pelo Criador em suas criaturas constitui um meio através do qual podemos chegar até Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito. Desta maneira, as regras da estética são para nós elementos de consideração para compreendermos a verdadeira beleza da santidade.

Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica da unidade e da variedade. Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e uma definição fria desses princípios, seria mais interessante que os considerássemos enquanto realizados em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos. Comecemos pelo mar.

A imensidão do mar…

Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da Terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre.

Assim, postos em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida que se estende diante de nós, até as fímbrias do horizonte, não se encerra ali, mas tem atrás de si imensidades sucessivas formando a grande e única imensidade do mar que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da Terra.

Mas, ao mesmo tempo em que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.

Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranquilidade e de quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender nosso espírito como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder existente no mais profundo dele e que não se suspeitava, nem um pouco, nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heroicos da História.

Beleza da unidade na variedade

Também há variedades estéticas do mar.

Às vezes é ele extremamente claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos onde, por assim dizer, ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.

O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia, que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo semelhante à prosa de um velho amigo que já muitas vezes se ouviu. Mas pouco depois ele nos fala como o bramido dominador de um rei que quer impor a sua vontade a todos os elementos.

O modo pelo qual ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante; outras vezes, caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado que se diria quase contentar-se ele em ver a terra sem tocá-la.

Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade do mar.

Variedades harmônicas

Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas, sim, oferecer em alto grau os caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.

Essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Esta variedade, pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não “soubesse” ser, por exemplo, tão extremamente manso e tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e no extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.

Tal variedade de oposição deve comportar uma certa simetria, quer dizer, é necessário que quando uma coisa tem um caráter e leva a um extremo, o lado oposto chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa ser tão grande quanto furioso em umas horas, quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.

Harmonia das gamas intermediárias

Mas, ao mesmo tempo, as variedades harmônicas das gamas intermediárias também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Essas situações de transição são tão harmônicas que nós, em determinados momentos, nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará escuro? Não o sabemos dizer porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.

Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso, mas quanto se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição, tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos existentes no mesmo meio-termo, tem-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários que o mar atravessa.

Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo a outro o mar não salta, mas passa sempre com rapidez maior ou menor por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Mas quando a sucessão dos matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis que excederam a precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.

Variedade do progresso

Há por outro lado uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas é muito relevante no céu: a variedade do progresso.

Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite, de maneira tal que oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vem ganhando em colorido, em força e em majestade, até chegar à gloriosa plenitude do meio-dia. Em seguida ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e, por fim, ele toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora. Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aparências que vão dos primórdios ao apogeu, e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.

Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação das múltiplas formas e variedades em torno de um elemento ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do Sol no firmamento. Em função dele, no céu, todas as variedades não são senão fundos de quadro que cooperam para realçá-lo de mil modos em toda a sua beleza.

Reflexo da santidade de Deus

Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente sob os nossos olhos e que são esplêndidos vestígios da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.

Sabemos pela Doutrina Católica que a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito. Assim também, tendo o homem sido feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também suas imagens: o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus.

Desta maneira, essas regras de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade em Nossa Senhora — a mais alta de todas as meras criaturas —, que, com tanta e tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.

Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente, da qual nenhum de nós pode ter uma ideia exata, Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado, e que com todas as suas forças deve procurar amar e imitar.

Unidade na variedade dos dons de Deus

Em Nossa Senhora se encontra também a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Ela é Nossa Senhora da Paz; Ela é Nossa Senhora das Dores; Ela é Nossa Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo “Auxílio dos Cristãos”, mas “Refúgio dos Pecadores”; Maria é glorificada por sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar comentam a sua soberana majestade; Ela se apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata”, mas ao mesmo tempo como “Mater clementiae et misericordiae”.

N’Ela há a perfeita harmonia entre contrastes aparentemente irreconciliáveis: Virgem e Mãe! Ninguém mais plenamente mãe do que Nossa Senhora, Ela é Mãe por excelência; mas também, ninguém mais plenamente virgem do que a Virgem por excelência!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência 15/11/1958)

CINTILAÇÕES DAS EXCELÊNCIAS DIVINAS

A partir dos mais remotos flashes que tive desde minha infância, através dessas graças especiais que foram se explicitando e maturando ao longo da vida, a Providência me colocou diante desta ideia: Deus emitiu para o mundo um “lumen” [uma luz], que é Nosso Senhor Jesus Cristo; mas este “lumen” que nos aparece em seu auge na pessoa divina d’Ele, e numa perfeição indizível na pessoa criada de Nossa Senhora, também pode ser percebido nos demais aspectos da criação, essencialmente considerados à luz da Civilização Cristã.

Portanto, a atração que sempre senti — menino, jovem ou homem maduro — pelas mais diversas maravilhas da Cristandade, devia-se não só à beleza delas, mas, sobretudo, ao fato de que me remetiam para algo diáfano, superior, lindíssimo, que desde logo conquistava minha alma. Eram reflexos de uma perfeição absoluta que reluziam aos meus olhos e a tornavam mais próxima de mim. Lembro-me, por exemplo, dos primeiros flashes que tive a respeito da Idade Média quando, num corso de Carnaval, reparei numa moça portando um chapéu cônico característico daquela época, com um grande tule pendurado e que o vento fazia tremular de modo elegante e airoso.

Quando ela passou perto do local em que me encontrava e meu olhar recaiu sobre o chapéu, abandonei o jogo das serpentinas e exclamei: “Ahhh! O que é aquilo?” E me disseram: “Um chapéu da Idade Média”. Eu pensei comigo: “Idade Média! Preciso reter esse nome. É da Idade Média. Aqui existe algo para mim!”

A graça me tocara, fazendo-me sentir uma espécie de avidez de segurar aquele objeto tão bonito. E se eu pudesse, faria parar o automóvel dela e diria à moça: — Não se mexa! Eu quero ver como é o seu chapéu! Era como se uma nuvem de ouro passasse sobre mim a propósito de um fruto da cristandade medieval, e que representava um “tréssaillement” [sobressalto] das graças da Idade Média ainda presente nas almas. A ideia que ficou no meu espírito de menino foi: “Esta beleza religiosa é tudo, é a fórmula de tudo, é a solução de tudo!” Era um flash, eco e reminiscência do luminoso flash em função do qual, penso eu, vivia toda a Civilização Cristã nos seus mais esplendorosos dias.

E assim como aquele chapéu cônico me transportou de entusiasmo, do mesmo modo, quando considero qualquer obra nascida da alma medieval — por exemplo, uma catedral, um vitral, uma fila de santos nos seus pedestais, uma torre ou um castelo — tenho a impressão de que por detrás dela como que se manifesta e se faz sentir um Espírito altíssimo, diante do qual eu não sou senão uma poeirazinha perdida, de tal maneira Ele é alto e sublime.

Um Espírito que nos envolve com sua inextinguível bondade, desejoso de comunicar à criação todas as suas sublimidades e riquezas, de forma que, para com a menor criaturazinha existente, Ele tem um amor pelo qual a atrai, vivifica e inunda, como se só existisse para ela. Ele a penetra com uma ternura absoluta, quase lírica, perto da qual a ternura materna não é senão pálida imagem.

Um Espírito que pensa profundamente sobre si próprio e sobre o que faz, tendo a respeito de tudo idéias prodigiosas, que eu não alcanço a não ser de longe e pelas fímbrias. Mas, a fímbria que eu alcanço me deixa maravilhado com o que há naquele interior imenso. Ele é um mar meio fechado para mim, do qual degusto algo que me encanta e arrebata, de modo pleno, cheio.

Um Espírito ao mesmo tempo infinitamente justo e equitativo, e que na sua equidade e justiça é rígido, intransigente e terrível, contrário a tudo quanto seja negação, caos, pecado, desordem, sujeira, erro, que n’Ele não podem encontrar senão a recusa inflexível como uma espada. Ele é a fonte de todas as bênçãos e de todas as misericórdias, assim como o é de todas as necessárias punições.

E essa diferença de aspectos, entretanto harmoniosos e complementares, também nos devem encher de enlevo e adoração. São perfeições divinas, cujos reflexos aparecem nas magnificências engendradas pela Igreja Católica, e que os flashes fazem reluzir aos nossos olhos, dando-nos como que visões de Deus. Num vitral de um azul fabuloso, por exemplo, com todas as tonalidades de  delicadeza que no azul cabem, veremos a suavidade deste Ser. Num vitral vermelho no qual a luz do sol acende incandescências, discerniremos a fornalha de caridade com que Ele inflama seu  próprio Coração Divino.

E assim, a propósito das extraordinárias policromias dos vitrais, dos sons graves ou festivos dos bronzes tangidos nos altos dos campanários, da imponência religiosa das torres que se erguem aos céus, da força vigilante e destemida das muralhas e ameias, da riqueza dos altares recamados de ouro e de prata, da singeleza austera e contemplativa dos claustros — a propósito de todas as maravilhas da Civilização Cristã, enfim, nossas almas podem conhecer algo das rutilantes excelências de Deus.

E o que me encanta de modo todo particular é saber que esse Ser, o próprio Deus, está realmente presente em todos os tabernáculos da Terra, na hóstia consagrada, numa pequena rodela de trigo com água transubstanciada no corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aí, então, sinto-me completamente satisfeito. Não há mais nada a dizer…

(Revista Dr Plinio, Janeiro de 2003, p. 30)

A perfeita felicidade

Por vezes, a primeira etapa da vida de uma pessoa parece ser a mais feliz de sua existência. Será que a vida consiste na procura inútil de uma felicidade que ficou para trás? Ora, Deus não poderia permitir que assim fosse, e nos faz ser visitados por uma felicidade provinda da alegria do esforço vitorioso, prenúncio da eterna bem-aventurança, que baixa sobre nós como uma estrela saída das maternais mãos de Maria.

 

Há um período inicial da vida do homem, ao menos para a grande maioria dos homens, que vai pouco mais ou menos do momento em que ele começa a conhecer o mundo externo até as primeiras desilusões com os seus amigos, quando estas não se dão dentro de sua própria casa. Inesquecível felicidade da primeira etapa da vida Nessa primeira etapa a vida há uma sequência contínua de felicidades, e as pessoas têm uma alegria da qual não se esquecem até o fim de sua existência.

Quando chegam à extrema velhice, depois de terem passado pelas situações de alma as mais  diferentes e, portanto, tendo alcançado às vezes os maiores triunfos, como também escorregado até o mais baixo das derrotas mais aflitivas, elas gostam de se lembrar daquela felicidade primeira, como se tivesse sido algo que, uma vez perdido, não se recupera mais. E isso era, para elas, o verdadeiro sentido da felicidade.

]Por vezes, ainda na juventude, depois de o indivíduo percorrer os primeiros quatro ou cinco passos da vida,  olha para trás e percebe que naquele período ele realmente era feliz, mas não sabia que o era. Parecia-lhe tão natural tudo correr bem, ele acomodava-se facilmente ao muito ou ao pouco que sua família possuía; oh, felicidade!

O sujeito avança um pouco na vida e percebe, de repente, que está cercado de preocupações, decepções, tem interrogações confusas, obscuras em relação ao futuro, sente carências, perplexidades e, ao mesmo tempo, uma vontade louca de viver. Mas, no meio de tudo isso, aquela felicidade sem mancha e sem nuvens do passado ficou para trás.

Para gozar bem a vida na Terra, a pergunta verdadeira seria: Como voltar àquela felicidade? Por vezes, os maiores poetas, os homens que passaram por situações as mais emocionantes e  agradáveis, quando falam do tempo de sua primeira infância se comovem.

Considerem a tragédia do homem que, pouco depois de ter dado uns passos iniciais numa grande estrada em busca de algo, percebe ter ficado para trás o que ele procurava, mas ele não pode  voltar.

Napoleão não encontrou a felicidade na carreira gloriosa…

A Córsega é uma ilha que no século XVIII tinha sido incorporada à França. Havia lá a família Bonaparte a qual, perseguida por razões políticas, por ter participado de guerrilhas naquelas  montanhas íngremes, teve que se mudar para a França, em condição pobre. Lá, o mais velho da família, Napoleão, por condescendência do rei, foi recebido como cadete na escola de oficiais.

Ele, então, começou sua carreira que comportou tudo, teve uma ascensão contínua, passou por vitórias militares inebriantes, foi coroado imperador dos franceses, casou-se com uma  arquiduquesa da casa imperial mais ilustre do mundo, a de Habsburg, presidiu congressos de imperadores, reis, príncipes, duques; aos seus pés as plateias eram de cabeças coroadas. Contava-se  este caso: Em determinado palácio onde

Napoleão se encontrava, foi dado um toque característico da entrada de um hóspede ilustre. Então um soldado perguntou para o outro: – Mas quem está chegando? – Ah! não é senão um rei… Tantos eram os imperadores que iam lá, que não sendo um imperador, era zero. Podemos imaginar quantas impressões alegres Napoleão teve na vida, com as quais ele nunca contara. Basta pensar, simplesmente, na data de sua coroação. Como aquilo havia de torná-lo radiante!

…nem na glória reconquistada, após terríveis reveses

Também as desgraças mais fulminantes o acometeram. Em 1814 ele caiu. Os russos, austríacos e prussianos invadiram a França, e ele foi deposto. Tão odiado a ponto de ter que caminhar para o Sul da França e ali tomar um pequeno navio que o conduziria a seu exílio, uma ilha pequena no Mediterrâneo, onde ele tinha o título ridículo de “Rei da Ilha de Elba”. E ele, para quem era  bondade receber um rei, começou a anunciar que Sua Majestade, o Rei da Ilha de Elba, Napoleão Bonaparte receberia todas as pessoas de passagem pela ilha que quisessem conhecê-lo. E se transformou, assim, numa espécie de atração turística, para ter gente com quem conversar.

Em certo momento, as situações políticas lhe são favoráveis, há mil circunstâncias, e ele volta para a França. Em pouco tempo está em Paris, o Rei da Casa de Bourbon foge, e Napoleão retorna ao  palácio, carregado por todos os seus fiéis, e ele é de novo o imperador dos franceses. Imaginem a ebriedade de dormir na cama que ele tinha deixado, servido novamente pelos cortesões
no palácio que ele perdera.

Pois bem, ao cabo de cem dias, exatamente, ele sofre uma derrota em Waterloo e tem que fugir, desta vez para o Norte, onde ele toma um navio inglês, e escreve ao Rei da Inglaterra uma carta na qual ele diz: “Eu vim me refugiar junto ao mais generoso e maior dos meus adversários. Espero de vossa parte uma magnânima acolhida.”

Ao que o monarca inglês responde: “Pois não, você está preso!” Ele vai para Santa Helena, uma ilha vulcânica no meio do Oceano Atlântico, num abandono, uma coisa tremenda! Abandonado  pelos maiores amigos, ele sobe numa embarcação e se dirige ao exílio acompanhado de uma cortezinha de gente que ficara fiel a ele, que o segue para se pendurar nas abas do paletó do homem ilustre.

Trinta dias de viagem, durante a qual ele passa longas horas silencioso, vendo o mar passar . Às vezes, desce para a sala de jantar onde, nas horas das refeições, tem longas conversas com pessoas de terceira ordem, que tomam nota do que ele diz para, quando ele morrer, publicarem suas confidências para ganhar dinheiro .

Desembarcam em Santa Helena e, daí a pouco, dá uma espécie de câncer no estômago dele . No fim de sua vida, ele estava tão fraco que não tinha força para levantar as pálpebras, e assim morreu.

Em determinada altura de sua vida, ainda no auge de seu triunfo, perguntaram para ele:

Qual foi o dia mais feliz de sua vida?

A resposta dele é famosa:

O dia de minha Primeira Comunhão .

Portanto, era a felicidade que ficara para trás.

Um prelúdio da felicidade futura

Mas, então, se é para caminhar cada vez mais se distanciando daquilo que nós procuramos com ebriedade, o que é a vida?

Uma vez que não posso evitar os dissabores, inquietações, desilusões, e encontro a fórmula da felicidade nas saudades dos primeiros passos de minha existência, devo compreender o seguinte: nesta vida, a felicidade é relativa.

Entretanto, Deus não seria Deus se fizesse dessa primeira felicidade originária apenas um sarcasmo: “Vive, Eu te dou uma lambiscada na taça inefável da felicidade e te solto no mar das dores. Anda”.

Não, Deus não faz isso. Ele dá ao homem uma promessa magnífica:

“Aquela felicidade que tiveste no início, meu filho, foi uma amostra da bem-aventurança  eterna  que terás no fim. Não é real que vais te afundando de infelicidade em infelicidade. Pelo contrário, a verdade é que, no fim do caminho, encontrarás a felicidade. Terás que passar pelos umbrais da morte, mas para além desta encontra-se a felicidade radiosa da qual Jesus Cristo goza no Céu. Tudo quanto foi felicidade em tua infância está para a que terás no futuro como a luz de um vaga-lume está para a de dez mil sóis reunidos. Não se pode ter ideia do que seja essa felicidade que te espera. Terás de caminhar e sofrer . Sofre com retidão e receberás esse prêmio. Caminha, afunda-te na dor, na dificuldade, com resignação e coragem, transpõe esse mar de tormentas e cai na sepultura; do outro lado será a aurora eterna! Não olha para teu passado como para a felicidade perdida. Olha para ele como a promessa da felicidade a ser adquirida.”

Gemendo sob o peso da cruz

Ao que alguém poderia responder: “Senhor, como tudo isso é grandioso, como é magnífico! Permiti-me dizer: como é misericordioso, como é terrível! Uma tão longa caminhada durante a qual não encontro um oásis, uma gota de água cristalina, uma sombra, um pouco de grama verde, um coqueiro, e tenho que caminhar, caminhar, caminhar, partir do Mar Vermelho para chegar ao outro lado do oceano . . . Senhor, sei que é um oceano de delícias, pois Vós o afirmais. E dizeis mais: a delícia para mim sereis Vós, e eu creio, meu Deus. Mas, Senhor, tende pena de mim! Quero muito chegar lá, mas não tenho forças para atravessar esse deserto. Tanto mais que não se trata apenas de transpô-lo. Muito mais do que isso, é mister atravessá–lo direito. É a lei da minha cruz, ó meu Deus: carregar a vossa.

“Carregar a cruz de não pecar, de ser virtuoso, de cumprir os vossos santos e magníficos Mandamentos . Mas estes são como a felicidade: encantam-me, começo a cumpri-los e eles me pesam. E o peso é tão grande que às vezes, por minha culpa, caio e tenho a desgraça de Vos ofender. Em minha jovem idade, quando vejo Dr Plinio com setenta e sete anos, imagino quanto tempo vou ter que andar nesse deserto!”

Um outro dirá a esse coitado:

Então peça a Deus para morrer .

Também não, – responderia o jovem – tenho medo de morrer Meu Deus, tenho medo da vida, tenho medo da morte! Oh, tempo dourado, que ficou para trás, quando eu não pensava nisso! Dr . Plinio, o senhor não percebe que eu não tinha vontade de olhar de frente o que o senhor está me mostrando? E o senhor abre, à machadinha, minha cabeça e me conta o que eu tinha medo de ouvir! Agora o fato está consumado, vi que é isso mesmo, e o senhor não leva em conta o quanto eu procurava envolver-me em nuvens para não olhar de frente. O senhor sopra em cima da minha nuvem e estou eu diante desse quadro. Oh! Dr . Plinio, por que o senhor fez isso?

O reencontro da felicidade primeira

Deus é Pai cheio de misericórdia e nos dá um meio de sentirmos, de vez em quando, ao longo do caminho, a felicidade que deixamos. Ela nos visita multiplicada por si mesma, como uma estrela que baixasse do céu para nos iluminar a via, e com a qual pudéssemos brincar.

É uma coisa que depende de  nós. De tal maneira depende tanto de nós que se diria depender só de nós e não d’Ele. Mas depende tanto d’Ele que se diria depender só d’Ele e não nós.

Quando o homem, nesta vida, tem a consciência reta, cumpre os Mandamentos pela graça que recebe do Céu e sabe estar caminhando para o Céu no meio de mil dores, há momentos em que a estrela cai do céu e visita-o. É o momento em que a pessoa se sente pura, tem alegria de consciência por estar levando a vida que devia, e correspondendo às felicidades enunciadas por Nosso Senhor no Sermão das Bem-aventuranças. E, por um lado de sua alma, aquela felicidade inicial continua até a pessoa chegar aos bordos iluminados de toda felicidade, e então morre tranquila.

Não há quem, sendo católico praticante, pela graça de Deus e rogos de Maria, não tenha sentido a alegria de confessar-se e sair deste sacramento com a impressão de que sua alma ficou limpa, a absolvição pousou sobre ele e o reconciliou com Deus, e ele deixou o confessionário satisfeito, com o corpo e a alma mais leves. Às vezes dura pouco, embora a pessoa mantenha-se por muito tempo em estado de graça. Mas que sensação, que felicidade! Não é verdade que reencontramos aquela felicidade primeira?

Um grau a mais da felicidade: a do heroísmo!

Daí a pouco  chega a tentação e começa a luta. Com a luta, tem-se a impressão de que a felicidade se afastou. E, realmente, muitas vezes a luta é terrível . Mas quando a luta passa, compreendemos que até durante a luta éramos felizes, porque tínhamos consciência de estar vencendo, sendo fiéis a Nossa Senhora, a Nosso Senhor e calcando o demônio aos pés.

Às felicidades da infância se junta uma nova que a infância não conhece: a felicidade da vitória, de  ter  feito o esforço e ter conseguido. A primeira infância não conhece isso. Tudo lhe cai na mão, sem esforço . A pessoa tinha a ilusão de ser aquilo felicidade  precisamente porque não exigia esforço. Mas quando conhece a alegria do esforço vitorioso, compreende: “Eu subi um grau na felicidade. Tornei-me herói, venci pela primeira vez e respirei o ar puro dos píncaros. Ah, quero mais píncaros, porque quero vencer!”

Vencer antes e acima de tudo o pecado. É essencialmente o inimigo que devemos derrotar. Que tranquilidade e gáudio quando um homem pode dizer: “Atravessei tal provação, porém cumpri meu dever. Tentado por toda forma de impureza, de cólera, de abatimento, de covardia, por tudo, resisti e venci!”

Alguém poderia objetar: “Pobre miserável, você não venceu nada. Você não fez carreira. O que você venceu?”

A resposta é simples, e agora falo do meu caso concreto. Eu venci o meu pior inimigo: Plinio Corrêa de Oliveira. Porque cada um de nós tem dentro de si o seu pior inimigo, de quem se trata de desconfiar, pegá-lo pelo pescoço e derrotá-lo. E se Nossa Senhora me conceder a graça de vencer até o fim esse inimigo, afinal de contas, olhando para meu passado eu diria: Foi um caminho de dor; é uma esteira de luz!

Então, o que vem a ser a felicidade nesta perspectiva? É a lembrança fiel, de um gosto do Céu que eu, batizado, filho da Igreja, membro do Corpo Místico de Cristo, tive na origem de minha vida. E, no fundo, é essa a felicidade que eu procurei a vida inteira e me foi dada às gotas, de vez em quando, enquanto eu ia caminhando. Eram os oásis. No fim, vem o Céu .

Todo homem que sinceramente possa dizer isso de si mesmo e para quem foi mesmo assim, dele se poderá escrever na sua sepultura: “Aqui jaz anônimo. Foi feliz porque foi para o Céu”.

O mundo nos oferece conchas cheias de aflição

Considerem um ricaço que reformou sua casa dez vezes ao longo da vida e comparem com uma pessoa que possui uma casinha média e passou a vida inteira contente naquela casa. Quem é mais feliz: o que reformou a casa uma porção de vezes ou quem soube encontrar deleite numa casa que não precisou de reformas?

O mundo apresenta padrões de felicidade que são conchas cheias de aflição . Para ver, são lindas . Experimenta-se, é aquela amargura. Que desilusão, que coisa tremenda! Uma vida sem sentido, sem significado, que leva as pessoas a se perguntarem para o que estão vivendo e, por vezes, a praticarem o suicídio.

Nossa civilização tão rica, à qual se insiste em apresentar como sendo o mundo da felicidade, é a que conheceu em alto grau uma das manifestações mais impressionantes de infelicidade, algo privativo de nossa época: o suicídio de crianças.

Alegria que desce do Céu sobre aquele que cumpre o dever

Qual é, então, o mundo da felicidade?

Pensem nos cruzados partindo para a Terra Santa. Sobre uma relva bonita os corcéis começam a desfilar, como tudo é bonito! Mas, sobretudo, é bonito notar uma certa alegria daqueles cruzados que vão para onde? Para o perigo. Eles sabem que, com as embarcações frágeis daquele tempo, podem ir parar no fundo do Mediterrâneo, e o mar se torna para eles uma sepultura .

Quando o atravessam, do lado de lá encontram o calor tórrido do deserto, com o qual não estão habituados, uma natureza seca, árida, onde o perigo maometano os aguarda. Com isso, quantas e quantas vezes a morte sem médico, sem cirurgia, tremenda, no campo de batalha; horas de sede abrasadora, porque o sangue está escorrendo e o cruzado tem vontade de beber uma gota de água, mas não tem quem a dê, porque está sem socorro. Metido naquela armadura que ele vestiu por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre a qual bate o Sol, desde a manhã até a tardinha, e ele está metido num forno .

Sabendo de tudo isso, como podem estar tão alegres na hora de partir? Há, entretanto, algo da felicidade da infância. É a alegria descida do Céu sobre o homem que está cumprindo o seu dever. Uma alegria de Anjo que não o abandona, nem sequer quando ele

estiver, como num forno, dentro de sua própria couraça, exangue, morto de sede, mas lembrando-se de que Nosso Senhor, antes de expiar disse: “Tenho sede!” E na consideração de estar sofrendo o que Cristo sofreu, o cruzado tem o ósculo da graça na sua alma e morre em paz. Ah, isso é felicidade!

A perfeita alegria

Conta-se que estando São Francisco de Assis em viagem, em pleno inverno, junto com outro frade de sua Ordem, este lhe perguntou, atormentado pelo intenso frio.

Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas: onde está a perfeita alegria?

Ao que o Santo respondeu:

Quando chegarmos ao Convento, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta, e o porteiro chegar irritado e disser: “Quem são vocês?” E nós dissermos: “Somos dois dos vossos irmãos”, e ele replicar: “Estão mentindo; são dois vagabundos . Fora daqui!” E nos deixar sob a neve e a chuva, com frio e fome até à noite; se então suportarmos tal injúria e crueldade sem nos perturbarmos nem murmurarmos contra ele, nisso está a perfeita alegria.

E acrescentava São Francisco:

– E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio, voltarmos a bater à porta durante a noite e pedirmos, pelo amor de Deus e com muitas lágrimas, que nos abra e nos deixe entrar, e ele mais escandalizado disser: “Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem”. E sair com um bastão, nos agarrar pelo capuz, nos atirar ao chão, nos arrastar pela neve e nos bater; e suportarmos todas essas coisas pacientemente, pensando nos sofrimentos de Cristo; ó irmão Leão, nisso está a perfeita alegria!

A meu ver São Francisco fez uma grande descoberta. Quer dizer, na hora em que renunciamos a tudo por Nossa Senhora e vamos para a frente, em certo momento baixa sobre nós a perfeita felicidade.

Como uma estrela vinda das maternais mãos de Nossa Senhora

Se do alto píncaro franciscano é lícito descer para a vida corrente de nossos dias, conto um pequeno episódio para concluir estas reflexões.

Eu tinha mais ou menos vinte anos quando passei por uma série de provações espirituais tremendas, como eu nunca pensei que sofreria em minha vida.

Passados seis meses de tormento, certa manhã, na São Paulinho de então, com o movimento ainda pequeno, os primeiros bondes, os primeiros automóveis começavam a circular, eu estava esperando um bonde que me levaria à Avenida Paulista, numa esquina de onde eu podia ver a imagem de Nossa Senhora no alto da cúpula da Igreja da Imaculada Conceição .

De repente, começo a notar uma coisa assim: “Que luz particularmente bonita hoje! Como isso aqui está cheio de passarinhos que cantam! Essa aurora quer dizer alguma coisa. Está mais bonita até do  que

o costume, não pensei que auroras fossem bonitas assim. Que bem-estar sinto em mim, não posso compreender o que é isso. Tenho até a impressão de que o meu infortúnio está passando. Estou começando a sentir uma alegria como nunca senti na minha vida, ela me enche a alma, mas não sei explicá-la”.

Isso durou algumas horas, mas logo após o infortúnio se reapresentou com garra de ferro .

Dali a alguns dias, em meio à batalha, abro um livro de leitura espiritual e começo a ler. Aquilo me inundou de felicidade novamente, mas muito mais definida do que aquela que experimentara dias antes.

A partir de certo momento iniciou-se para mim um período de uns seis meses durante os quais sentia uma felicidade indizível e contínua. Eu vivia, então, no meio da alegria, da satisfação, e me sentia, por assim dizer, no Céu. Assim, depois de ter dito a mim mesmo: “Não pensei ser possível tanto sofrimento”, passei a pensar o seguinte: “Não pensei que se pudesse ser tão feliz nesta Terra”.

Atravessemos, pois, todos os infortúnios, e vamos para a frente, e encontraremos a verdadeira felicidade dos primeiros passos da vida reapresentando-se, de vez em quando, como uma estrela que Nossa Senhora deixa cair de suas maternais mãos para as nossas, para nos dar um certo gáudio que Ela, melhor do que ninguém, gradua para cada um, pois sendo nossa Mãe, sabe o que nos é necessário. A cada felicidade dessas nós devemos oscular e dizer, como a Santíssima Virgem: “Magnificat anima mea Dominum” e pensar:  “Ó Céu, eu caminho em direção a ti!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/7/1986)

Uma ave radiante de beleza

Ainda que não consigamos expressar o que nos vai à alma quando nos deparamos com a beleza posta por Deus em suas criaturas, estas nos encantam e arrebatam.
Dr. Plinio, entretanto, além de enlevar-se com elas, era capaz de, ao analisá-las, explicitar verdadeiras maravilhas.

Quando o pavão abre sua cauda, tem-se uma primeira impressão estonteantemente rica, ordenada e atraente, que faz a pessoa ficar um pouco agredida pela beleza que ela tem.

Depois, num segundo momento, após haver absorvido o aspecto geral que há na ave, começa-se a deitar os olhos neste ou naquele pormenor, a fim de explicitar a primeira impressão.

Começa-se, evidentemente, pelas penas da cauda. Elas têm qualquer coisa de sedoso, próprio do brilho da seda ou do brilho do cristal, eu diria até, do brilho da pedra. Seu brilho fica entre a pedra e a seda. Para compreendermos bem a beleza que há na cauda do pavão, deveríamos imaginar uma pedra sedosa, ou uma seda pétrea.

Suas penas possuem uns semicírculos formados por diferentes cores; no interior há umas como que sub-cores que se acumulam e se resolvem umas nas outras, deixando pasmo quem as contemple.

Quando já estamos pasmos nessa contemplação, o pavão fecha sua cauda e vai passear noutro lugar, tranquilo, arrastando no chão aquela cauda feita de pseudo pedrarias incomparáveis. Temos vontade de apanhá-lo e dizer-lhe: “Não ande assim com essa cauda, ponha isso no alto porque estraga!” Porém, sua cauda é tão superior ao solo que nada a suja. Ela tampouco varreu o chão; apenas passou sobre o solo à semelhança de um avião que sobrevoa uma cidade, sem, entretanto, derrubar nenhum prédio, mas também sem se deixar abalar pelos edifícios!

Em seguida, quando estamos entusiasmados na contemplação de sua cauda, nosso olhar deita-se no pescoço do pavão.

Éclatant1 de beleza, com um colorido composto por uma mistura de verde com azul, ele possui tal distinção que se diria quase tratar-se de uma grande dame2. O pavão, às vezes, vira-se para trás, olha de cima, toma um recuo como quem diz: “Realidade, como te atreves a estar tão próxima de meu olhar! Afasta-te, pois eu te vejo igualmente bem de longe, e tu me vês melhor quando eu estou longe de ti. Para longe!”

No alto da cabeça do pavão há um “topetinho”, que, à primeira vista, não seria necessário de nenhum modo para a beleza dele, mas que tem o encanto do supérfluo. Ele nos dá a seguinte impressão: “A partir de agora, acrescentar algo a essa ave seria demasiado, pois sua beleza não permite mais nenhum ornato”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/3/1993)

Oração: Graça da oração insistente

Ó minha Mãe, olhai misericordiosamente para minha alma e obtende-me o espírito de oração pelo qual eu recorra sempre a Vós. E tanto mais recorra quanto mais me atenderdes, pois vossos favores nos incitam a pedir dons maiores.

Rogo-Vos ainda outra graça: a de Vos pedir tanto mais quanto menos parecerdes me atender. Pois Vós amais a oração insistente e confiante; quanto maior for a aridez ou a demora, mais apreciável será a graça que desde já nos preparais. Amém

(Composta em 30/7/1971)

Rainha do Bom Sucesso

Nossa Senhora do Bom Sucesso é a Rainha no verdadeiro sentido da palavra: tem majestade e, ao mesmo tempo, bondade; é a triunfadora e também a batalhadora, cujo semblante dá a ideia de que, ao combater, possui a certeza da vitória. Esta é a Rainha do Bom Sucesso.

Para nós, o que importa em nossa luta não é ganhar a batalha amanhã, a não ser como condição de vencer a guerra, pois é isso que devemos desejar. O sucesso é a grande vitória final da Contra-Revolução na guerra empreendida pela Revolução contra a Santa Igreja e a Civilização Cristã. Esta vitória devemos pedir a Nossa Senhora.

Santo Inácio de Loyola dá um conselho muito sábio: em todas as coisas, devemos atuar como se tudo dependesse de nós e nada de Deus; mas esperar como se tudo dependesse de Deus e nada de nós. Assim, na luta contrarrevolucionária devemos atuar com energia, constância, dedicação como se tudo dependesse de nós; mas confiar reconhecendo que tudo, inclusive a nossa dedicação e energia, depende de Deus Nosso Senhor. É pelas orações de Maria Santíssima que nos vêm as graças do Céu para sermos dedicados.

Temos que começar por suplicar a Ela que nos dê essa dedicação, o amor de Deus, o entusiasmo pela causa católica, aquela compenetração do espírito católico que fez com que o grande Apóstolo São Paulo dissesse de si mesmo: “Já não sou que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).

Se pedirmos força à Santíssima Virgem, obteremos. Ela é a Rainha dos valentes. A Santa Igreja aplica à Mãe de Deus esta frase da Escritura: “Terrível como um exército em ordem de batalha” (Ct 6, 4).

Devemos, pois, impetrar a Nossa Senhora principalmente duas graças: uma grande confiança na sua misericórdia, e que Ela nos dê a sua intransigência soberana, perfeitíssima, a indignação triunfante com a qual presidirá os acontecimentos preditos por Ela em Fátima.

Então, contemplaremos em seu semblante a expressão de vitória comprazida de Rainha, como A representa a imagem do Convento das Concepcionistas de Quito, na qual encontramos esperança, força, senhorio e dominação.

Nossa Senhora do Bom Sucesso, eu interpreto como sendo, por excelência, a invocação do Reino de Maria. É dessa maneira que Ela Se nos apresentará, como a nos dizer:
“Meus filhos, alegrai-vos, levantai o vosso ânimo! Nada tem importância quando Eu resolver vencer. A minha hora de misericórdia está baixando sobre vós e, portanto, nada vos atingirá de maneira contrária a meus planos. O que atingir será de acordo com meus planos e, no fundo, para vosso bem. Alegrai-vos! O sucesso é meu, porque Eu sou a Rainha do Bom Sucesso; e o sucesso é, portanto, vosso, porque vós sois meus filhos.”

 

* Excertos de conferências de 26/8/1977, 16/11/1977 e 2/6/1979.

Espírito metafísico e espírito sobrenatural – I

Quando bem orientado, o espírito metafísico deve buscar sempre a perfeição absoluta, conduzindo a pessoa à ordem sobrenatural na qual a Igreja nos introduz. Esta disposição de alma, que se resume no espírito sacral, é o pressuposto da boa formação espiritual e da Civilização Cristã.

 

O espírito metafísico é aquela excelência do espírito humano pelo qual a inteligência não se contenta com as explicações imediatas das coisas, mas procura uma explicação suprema. Não se contenta com a satisfação limitada que as coisas terrenas podem dar, mas busca um deleite mais alto, transcendente. E com o mero uso da razão, portanto sem recursos sobrenaturais, procura fazer uma ideia de qual seja essa explicação de todas as explicações, esse bem de todos os bens, e constrói aquilo que nós chamaríamos os dados naturais da religião.

Marcha do espírito metafísico

Assim, a existência, a unidade, a eternidade, a perfeição de Deus. Ele enquanto sendo justo e, portanto, que castiga e premia, ama os homens, governa. Essas são verdades a respeito de Deus que o homem com espírito metafísico deduz pela razão, considerando o universo.

A marcha do espírito metafísico pode colocar-se da seguinte maneira. Eu vejo uma pessoa que pratica um ato extremamente bom, por exemplo, de valentia, de caridade ou de severidade. Olho para aquilo e digo: “É extraordinário como esse homem tem tal virtude. Mas ele a possui de modo limitado. Eu poderia imaginar esta virtude existindo em grau muito mais alto em outrem.”

Isto é sempre verdade. Ainda que nós conhecêssemos Aquela que é o sol das virtudes, Nossa Senhora, poderíamos dizer: “Ela tem esta virtude em grau de deslumbrar, de comover, de não se saber o que dizer.” Mas, analisando as coisas com toda a firmeza, nós diríamos: “Ainda que se pudesse ser mais santo do que Ela, Santo de uma santidade inatingível por nenhuma criatura, só Deus”.

Então, depois de eu ver uma pessoa muito boa, posso afirmar: deve existir uma bondade maior do que a dela. Porque toda bondade menor não existiria se não fosse a bondade infinita da qual ela participa. Logo, deve haver a bondade infinita, um Ser que é infinitamente bom; não é apenas infinitamente bom, mas a própria bondade: Deus.

De tudo do universo que eu vejo, posso fazer isso. Por exemplo, aquela flor francesa chamada “muguet” (lirio-do-vale) , que floresce em maio e dá a impressão de uns sinozinhos brancos, é a própria expressão da delicadeza.

Se tal flor tem aquela delicadeza, minha alma que gosta da delicadeza apreciaria conhecer, é apetente de uma delicadeza imensamente maior do que aquela.

Mais ainda. Minha alma, que é finita, apetece uma delicadeza infinita. E depois que eu conheci uma coisa delicada, minha alma só encontra repouso no momento em que encontre a delicadeza infinita.

A Igreja nos introduz numa ordem sobrenatural

Todas as coisas delicadas da Terra não me bastam, eu quero mais, sempre mais, quero o perfeito, o infinito. Esta disposição do espírito de, em matéria de bom, de belo, querer sempre o perfeito e só se contentar com o perfeito, é uma excelência da alma. Isto leva a consideração, pela via da razão, de um Deus que tenha isto, e a minha compreensão: sou um desgraçado, um miserável enquanto não conhecer este Deus. Toda a vida é pálida e inexpressiva enquanto eu não O conhecer.

É absurdo que a natureza seja mal constituída. Ora, ela seria mal constituída se não existisse a delicadeza infinita. Logo, ela existe e, portanto, há um Deus que é a delicadeza infinita. Este é o espírito metafísico.

O próprio do católico que tem a alma bem formada é possuir esses anseios sem fim, das coisas perfeitas e eternas. O característico do católico com a alma mal formada é imaginar que a vida nesta Terra pode satisfazer.

Então, há o espírito metafísico que se estende para essas coisas, e existe o espírito limitado, circunscrito, que fica apenas no físico, e não no metafísico, no além do físico – eu estou forçando um pouco os termos –, e que se contenta com esta vida. Então um dos primeiros pressupostos do amor de Deus é ser incontentável com as coisas desta vida, e só querer o infinito. 

Ademais, se Deus existe, Ele tem que ser de uma essência e de uma natureza maior do que a nossa. Daí vem a facilidade de admitirmos que Deus nos falou e nos comunicou suas verdades e sua graça, deu-nos uma Revelação e uma Igreja que nos introduz numa ordem sobrenatural, e que tudo quanto puramente na ordem natural nós tínhamos pensado é superado pelo que a Revelação nos ensina de um modo fabuloso.

Então nós temos um anseio maior do que o simplesmente metafísico, que é o anseio para o sobrenatural. Admitimos com facilidade a Revelação, não com superficialidade de espírito, por tolice, mas por uma agilidade de espírito por onde compreendemos facilmente que aquilo é verdade. Temos facilidade em amar as coisas reveladas, somos dóceis para a graça e a ordem sobrenatural.

O espírito sobrenatural e o espírito metafísico se resumem numa só palavra: espírito sacral. O espírito sacral tem um aspecto metafísico natural, e um aspecto sobrenatural que diz respeito à Revelação e à graça.

Defeito de alma que enfraquece o edifício das virtudes na mentalidade dos católicos

Então nós devemos dizer que o pressuposto de toda a Civilização Católica, de toda formação espiritual é que as almas tenham essa disposição. Pelo fato de, mesmo na Igreja, não se insistir bastante sobre isto, havia católicos “carunchados”, porque a maior parte dos meninos saía do Catecismo com a seguinte ideia: “Você morre ainda que não queira, não tem remédio, todo mundo morre. Este é o primeiro fato consumado. O segundo é que depois você vai ser julgado. Terceiro fato consumado: há uma tabela de dez pontos que você precisa obedecer, senão vai para o Inferno; queira ou não queira, você vai encontrar isto diante de si. Então trate de andar bem para não ir para o Inferno. Aliás, se você – dito mais rapidamente – não for para o Inferno, vai para o Céu, o que é muito agradável”.

A criança olha um santinho, vê um Anjo sentado numa substância azul olhando a eternidade passar. Ela pensa: “É isso o Céu? Quando eu comparo com o Inferno é uma saída. Depois me dizem que é bom. Não entendo muito aquele azul, mas enfim tem que ser bom em tese. Lá vou para o azul e está acabado”.

Isto não é despertar o senso sobrenatural, porque a criança fica com a ideia seguinte: “O gostoso seria eu viver neste mundo eternamente; sempre feliz, rico, saudável, não ter Céu nem Inferno; não quero mais nada.”

Este é o defeito de alma que torna tão fraco o edifício da virtude na mentalidade dos católicos. É um pressuposto que se deve ressaltar vivamente. Porque todo trabalho da opinião católica que não tonifique fortemente estes dois princípios resulta numa ação fraca. Vem da debilidade destes princípios o fato de que as pessoas praticam – quando praticam – os Mandamentos a duras penas, resvalando entre o bem e o mal, com concessões, e sempre aparecendo o bem como frágil e o mal como forte.

O que dá uma espécie de baixa e de desânimo. A pessoa perde a coragem na prática dos Mandamentos. E pensa: “Não sei como Deus conduz estas coisas. Ele é sempre derrotado. O partido d’Ele é sempre o mole, o fraco. A Fé, a virtude, é uma fraqueza? A força está no vício. Todas as batalhas da História têm sido ganhas pelo mal, a Igreja não faz senão recuar. Ela agora até está se liquefazendo. Eu fico desanimado.”

Ora, se a alma tivesse estes pressupostos bem nítidos e amasse a Deus como estou acabando de dizer, ela seria capaz de todas as fortalezas. Então veríamos a opinião católica caminhar para a frente. Este é o sentido profundo, o ponto fundamental de toda verdadeira formação católica nos termos que podem interessar o homem moderno.

O verdadeiro homem moderno tem que começar por ser homem, e ser moderno no sentido próprio da palavra. Não é um “Maria vai com as outras”, que acompanha o caudal, mas sim um homem à maneira de São João Batista, que era um homem moderno, quer dizer, adequado, oportuno, útil para seus dias, capaz de curar os males de sua época.

Devemos ter em mente que, antes de tudo, somos uma escola de amor de Deus. E como tal procuramos principalmente lecionar, a respeito do amor de Deus, as verdades esquecidas, mais negadas em nossa época. Nossa Senhora, que nos ajudou a caminhar bastante nesta linha, nos ajudará a ver qual é o modo de ensinar isso.

(Continua no próximo número)

 

(Extraído de conferência de 17/11/1972)

Revista Dr Plinio (Março de 2019)

A Apresentação do Menino Jesus e Nossa Senhora do Bom Sucesso

Dos episódios narrados no Evangelho, nenhum evidencia tanto o papel de Nosso Senhor enquanto gladífero como a Apresentação do Menino Jesus no Templo. Nossa Senhora apresenta ali o êxito de sua divina gestação, tornando-Se padroeira de todos quantos procuram um bom sucesso para o serviço da Causa d’Ela.

 

Nossa Senhora do Bom Sucesso, das Candeias, da Purificação. O que querem dizer essas três invocações? O que elas falam a respeito da vida da Santíssima Virgem? Em que sentido devem nos fazer compreender as relações profundas que nossa piedade pode estabelecer entre a festa do Bom Sucesso, das Candeias, da Purificação e nós? Compreendendo isso poderemos relacionar a devoção a Nossa Senhora do Bom Sucesso com as nossas esperanças.

O nascimento do Menino-Deus

Consideremos o Menino Jesus recém-nascido, deitado na manjedoura em Belém, numa noite fria. Nossa Senhora prevendo tudo com o amor que podemos imaginar, apesar de sua pobreza, arranjou pequenas túnicas para pôr n’Ele, assim que nascesse. Evidentemente dispôs essas túnicas de acordo com as várias temperaturas possíveis, de maneira tal que o Menino Deus não sentisse frio.

Como seria o interior, o íntimo de Maria Santíssima cogitando essas coisas!? Admite-se piedosamente que Nosso Senhor tenha nascido à meia-noite e que, antes de Ele nascer, Ela entrou num êxtase altíssimo, durante o qual deu à luz o Menino Jesus.

O nascimento do Homem-Deus se deu um modo maravilhoso pelo qual sua Mãe Santíssima permaneceu virgem antes, durante e depois do parto; verdade esta que a Igreja sempre afirmou com esta energia de linguagem de que só o pensamento católico é capaz, atestando assim, de modo categórico, a virgindade materna de Maria.

Como Ele pôde fazer isso? Há uma cena no Evangelho em que Nosso Senhor entra em um recinto com todas as portas e janelas fechadas. Costuma-se citar essa passagem como explicativo da virgindade durante o parto. Jesus pode atravessar todos os obstáculos materiais, pois, sendo Deus, seu Corpo terreno poderia assumir as propriedades dos corpos gloriosos e atravessar tudo, antes mesmo de sua Ressurreição.

Logo depois, o mais alto dos êxtases se interrompeu e Ela precisou cuidar do Menino que podia estar com frio.

“Aquele que excogitaste, Tu O gerarás!”

Sendo concebida sem pecado original, a Santíssima Virgem possuía uma inteligência perfeita, isenta das fraquezas inerentes à nossa natureza manchada pela nódoa original. Em consequência, ao ler as Escrituras – ainda mais inundada de graças de Deus para interpretá-las – Ela chegou a compor a fisionomia, o espírito, a mentalidade do Messias anunciado pelos profetas e tão esperado por Ela.

No momento em que Maria Santíssima completou a imagem por Ela formada, em meditação, sobre o Messias, o Anjo apareceu convidando-A para ser Mãe d’Aquele que o espírito d’Ela tinha concebido.

Portanto, uma primeira tarefa na vida de Nossa Senhora foi conceber, pela inteligência, como seria o Filho de Deus. Mas conceber com cuidado, evitando qualquer distração e negligência que pudesse tornar um pouco menos nítida, menos santíssima, a imagem que Ela era chamada a ter d’Aquele que, sem Ela saber, seria seu Divino Filho.

Que santidade é necessário possuir para imaginar o olhar, o timbre de voz, os gestos, o andar, o divino repouso do Filho de Deus! Que alma precisa ter para tentar uma coisa como esta e alcançar êxito!

Mais ainda: Que alma deve possuir para, depois de ter feito essa obra interior de composição, Deus dizer a Ela: “Aquele que Tu excogitaste, Tu gerarás!” Que prêmio maravilhoso este: “Excogitaste, dedicaste a tua mente a desvendar isso? Acertaste! Tu fizeste com tanto amor e acerto, que Eu te afirmo: ‘Tu O gerarás!’” Nunca houve e nem haverá prêmio igual na História do mundo.

Jesus despede-se de sua Mãe

Entretanto, Ela ficava encarregada de tomar conta do Menino, de maneira que em nenhum momento um arrepio de frio ou um pouco de sofrimento com o calor pudesse ser sentido por Ele. E que todo o seu desenvolvimento físico e mental fosse perfeito. Ela era a responsável por isso e tinha uma obrigação enorme de levar a sua tarefa ao ponto perfeito.

Esse ponto perfeito foi o momento gaudioso e triste em que Jesus, ficando adulto, disse a Ela:

– Mãe, estou inteiramente constituído e formado. Chegou a minha vez; Eu caminho para a pregação, a fim de maravilhar os homens e ser crucificado por eles. Minha Mãe, adeus!

Podemos imaginar Nossa Senhora indo até a porta da casa, vendo-O afastar-Se pela estrada, talvez ao cair da tarde, e contemplando a sombra d’Ele a estirar-se ao longo do caminho. Depois, Ela fechava a porta e estava sozinha. Quiçá, para consolá-La, os Anjos começaram a cantar! Sem dúvida, era maravilhoso, mas não valia um olhar, uma manifestação de carinho e de respeito do Filho d’Ela. Só de ouvir, por exemplo, o eco de seus pés divinos sobre aquele soalho tão pobre, já A enchia de contentamento. Que andar de rei, de general, de mestre! Pobres reis, pobres generais, pobres mestres… O que é tudo isso em comparação com o reboar de um passo d’Ele sobre as pranchas de madeira da santa casa que hoje está em Loreto? Quem haveria de remediar esta ausência?

Ao longo da narração do Evangelho vemos que Nossa Senhora aparece, às vezes. Sobretudo, naquele encontro com seu Divino Filho no caminho do Calvário. A meu ver, a cena mais pungente que houve na Terra.

À missão de gerar sucede a de cuidar

Maria Santíssima tinha, portanto, uma primeira missão: conceber o Homem-Deus, e O concebeu esplendidamente. Possuía, ademais, a missão de gerá-Lo e, para isso, quantos cuidados a fim de que tudo se desse perfeitamente e essa gestação fosse para o Divino Embrião como um sol que nasce, tudo perfeitamente direito, adequado, conveniente, santo. Imaginem o enlevo d’Ela quando sentia em suas entranhas virginais que Ele Se movia. Mais ainda, Ele Se comunicava com Ela, por oração conversavam.

Vemos, então, como à tarefa de gerar perfeitamente bem Jesus sucede a de cuidar perfeitamente d’Ele. Acaba uma tarefa, começa outra. O Menino nasce, é o termo de todo um período que começou desde a primeira reflexão feita por Ela sobre como seria o Salvador até o momento de seu nascimento. E Ela contempla, pela primeira vez, aquela face que tanto desejara contemplar: rosto pequeno, de criança inocente, mas já fisionomia de Rei, de Mestre, de Quem fará milagres, porque o sobrenatural de tal maneira irradiava de Nosso Senhor que se tem a impressão de que ao aproximar-se d’Ele qualquer enfermo sararia imediatamente.

Sem dúvida, uma das incumbências da Santíssima Virgem foi vestir seu Divino Filho. Quando Adão e Eva pecaram, Deus fez para eles os primeiros trajes. Quando o Menino nasceu, foi a criatura humana que vestiu a Deus. Como tudo isso é bonito e se presta a meditações!

Maria Santíssima apresenta o Menino no Templo

A Lei do Antigo Testamento determinava que, tão logo quanto possível, as mães levassem seu filho recém-nascido ao Templo para apresentá-lo a Deus e se purificassem. Essa era uma regra que toda boa mãe israelita cumpria. Aliás, linda regra na qual se espelha a santidade de Deus. A criança nasce no meio de perigos. Toda a gestação traz riscos. Mas, afinal, ela nasceu. Ó sucesso feliz! A mãe toma a criança, vai até o Templo e oferece a Deus aquele bebê que pertence a Deus, pois Ele o criou. A antiga Lei tornava isso obrigatório.

Nossa Senhora era superior à antiga Lei. Deus não está sujeito à Lei que Ele mesmo fez. O Legislador é superior à Lei, entra pelos olhos. Então, Ele não era obrigado a ir e Ela não estava obrigada a levá-Lo ao Templo de Jerusalém. Mas Ela quis por respeito à Lei, à tradição. E amando esse conceito de tradição, animada pelo amor de Deus intensíssimo que Ela possuía, Nossa Senhora leva a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao Templo de Jerusalém.

Episódio único na história do Templo: é o próprio Deus Encarnado que nele entra. Valeria a pena construir um Templo mil vezes mais esplêndido do que aquele, para ali entrar Deus Encarnado. Era a hora máxima, a hora santa, a hora perfeita. Pode-se dizer que, nesse momento, os Anjos encheram o Templo e se puseram a cantar.

Ela entrou, mas quase ninguém notou… Ninguém ouviu os Anjos. A decadência religiosa do povo eleito era enorme. Aquilo estava cheio de barracas com gente fazendo comércio de toda ordem. Os sacerdotes eram os precursores próximos daqueles que haveriam de trabalhar para a crucifixão d’Ele, ou já eram os próprios que O crucificariam. Tudo estava em ruína. Aquele que é o Autor de todas as coisas entra naquelas ruínas espirituais… E aqueles homens de ruína não O perceberam. Ela cumpre o rito da Apresentação.

Um ancião amarrado à vida por uma promessa

Simeão, que era o profeta indicado por Deus para isso, atua para purificá-La, quer dizer, faz o rito com Ela, e recebendo o Menino nos braços entoou aquele cântico que começa assim, em latim: “Nunc dimittis servum tuum in pacem…” – “Agora, Senhor, levai o vosso servo na paz, porque os meus olhos viram o Salvador…”

Ela ouve encantada aquele ancião que parecia amarrado à vida por uma promessa que não se tinha cumprido: a promessa divina de que ele veria o Messias antes de morrer. Aquele homem viu o Messias chegar e canta: “Senhor, agora levai…” E prevê o futuro daquele Menino, a glória e a Cruz. Diz: “Tu serás pedra de escândalo para que se revelem de muitas almas as cogitações”. Mas ao mesmo tempo aclama, dizendo que Ele é “Lumen ad revelationem gentium” – “Luz que se manifesta aos homens”. E uma profetiza, Ana, também canta as glórias d’Ele. Os dois sabem, por inspiração divina, o que até então só São José e Ela sabiam, que Aquele era o Filho de Deus.

Padroeira para a hora em que o Reino de Maria nasça na Terra

O que significa aí o comemorar o bom sucesso? O sucesso é um bom sucesso, digno de nota, quando se realiza algo que pede cuidado, empenho e dá seu resultado. É filho do esforço, da dedicação e do heroísmo! Aí é que há o bom sucesso. Nossa Senhora leva ao Templo Aquele que é a prova de que a gestação fora perfeita. Ali estava o Filho de Deus.

Aqueles que estão entregues a uma tarefa árdua têm uma responsabilidade grande, uma série de coisas difíceis para fazer a fim de chegar a um resultado; quando alcançam o resultado eles têm um sucesso. Nossa Senhora do Bom Sucesso é a padroeira de todos aqueles que procuram um bom sucesso para o serviço da Causa d’Ela.

Como merece ser chamado de “bom sucesso” o êxito daqueles que, nas trevas da noite do neopaganismo de nossos dias, trabalham para que nasça o sol do Reino de Maria! Não será Nossa Senhora do Bom Sucesso uma padroeira muito felizmente indicada para a hora em que o Reino de Maria afinal nasça na Terra? E filhos indignos da Santíssima Virgem, mas amorosos, transidos de enlevo, quando raiar a luz do Reino de Maria poderemos dizer a Ela:

“Senhora, nós Vos apresentamos aqui o mundo que Vós iluminais; a luz de vosso Reino é o nosso sucesso; Mãe nossa, é o vosso sucesso! Vós fizestes tudo, a começar por nós. Quando um de nós, menino ainda, foi levado às fontes batismais, que mérito tinha para isso? Que graça teve senão a de vossas orações? Que gratuidade assombrosa a desse dom!”

Ora, foi a Santíssima Virgem quem nos obteve a graça que nos levou a sermos batizados. Quem trouxe essa graça para o gênero humano senão o Filho por Ela gerado? Ele é o autor e a fonte da graça. Se Nosso Senhor não tivesse morrido na Cruz, nós não teríamos a graça. Essa torrente de graça que jorra sobre o mundo abriu-se para os homens na hora em que Ele morreu. Mas essa graça, de algum modo, começou a estar presente no mundo no momento em que Ela disse: “Fiat mihi secundum verbum tuum!” – “Faça-se em mim, segundo a tua palavra!” E jorrou sobre o mundo no momento em que o Padre Eterno pediu o consentimento d’Ela para que Nosso Senhor Jesus Cristo morresse na Cruz. E Ela fez essa coisa sublimemente terrível, dizendo: “Morra então Ele, por amor ao gênero humano e para que se faça a vossa vontade”.

Todos os que trabalham a favor da Contra-Revolução, em última análise, atuam para que nasça o sol do Reino de Maria sobre o mundo! É algo vagamente parecido com uma geração, e o Reino de Maria se parecerá admiravelmente com um bom sucesso, com um magnífico sucesso.

Indicações para esculpir uma imagem

Talvez se encontre aí a explicação para o fato de Nossa Senhora aparecer tão régia na imagem que A representa, no convento das concepcionistas de Quito, esculpida milagrosamente por Anjos.

Durante uma aparição à Madre Mariana de Jesus Torres, a Santíssima Virgem dera todas as indicações de como deveria ser sua imagem, inclusive o tamanho, tomando o cordão do hábito da Madre Mariana e medindo-Se a Si própria.

O escultor começou a fazer a imagem e não conseguia. Um belo dia, ele chegou ao coro onde estava esculpindo a imagem em madeira e a encontrou pronta.

Depois disso, Nossa Senhora aparecia para conversar com Madre Mariana de Jesus Torres e andavam juntas por aqueles claustros do convento. Como prova da autenticidade dessas aparições, ao amanhecer o manto d’Ela estava todo molhado de orvalho. Que maravilha, o orvalho cair sobre o manto da Rainha do Céu e da Terra! Nenhum palácio, nenhum diadema real, nada teve a beleza dessas gotas de orvalho pousando e cintilando sobre o manto da Virgem!

Um fatinho da vida de Madre Mariana, profetiza do Bom Sucesso de Nossa Senhora

Madre Mariana de Jesus Torres, para ser fiel a sua vocação – uma espécie de profetiza do Bom Sucesso de Nossa Senhora, do Reino de Maria –, teve que passar por provações terríveis. Eu não resisto ao desejo de contar uma:

O mosteiro dela foi erigido no tempo em que tanto o Brasil como a América hispânica eram colônias, respectivamente de Portugal e da Espanha. Teve sete fundadoras; ela era uma, mas as outras religiosas fundaram com ela o convento. Depois receberam outras vocações da Espanha, creio eu, e entraram também muitas do lugar, que eram mestiças de índias. E uma freira péssima – Judas os há por toda parte e nos dois sexos –, índia, ou mestiça de índia, chefiou a revolta das índias contra as espanholas, que eram santas. Fizeram uma perseguição medonha, e Madre Mariana de Jesus Torres chegou a ser presa na cadeia do convento. Ela rezou continuamente pela perseguidora.

Em determinado momento ficou claro que a perseguidora não tinha razão, e que Madre Mariana estava certa, e foi eleita como abadessa. A perseguidora daí a algum tempo adoeceu, entrou em agonia e ia morrer. Madre Mariana, que havia cumulado essa revolucionária de bondades durante a sua doença, quando de sua agonia pediu especialmente a Deus, por meio de Nossa Senhora, que salvasse aquela alma. A resposta que veio foi esta: “Poderá ser salva, se por amor à tua perseguidora consentires em que tua alma passe cinco anos no Inferno”.

Ela consentiu e a freira se salvou, tendo passado por um Purgatório não pequeno. E a alma de Madre Mariana foi posta no Inferno. O que ela sofreu durante esses cinco anos é uma coisa tremenda, inclusive – as memórias dela não me pareceram muito claras a esse respeito – parece que ela tinha se esquecido que fizera esse oferecimento e passou cinco anos com o pavor da ideia de ter sido condenada, e que sofreria o Inferno por toda a eternidade. Ela só pedia uma coisa a Deus: nunca permitisse que ela deixasse de amá-Lo.

Passados os cinco anos, foi-lhe revelada a realidade e o tormento cessou. E ela que era uma pessoa de uma grande beleza, um prodígio de beleza, muito rosada, com cores muito saudáveis que ela conservou até o fim da vida, durante esse tempo emagreceu, definhou, mas depois refloresceu completamente!

Por aqueles claustros, que várias pessoas aqui presentes viram, passou penando, por uma inimiga, Madre Mariana. Com a alma sofrendo os tormentos do Inferno. Ela ali conversou com Nossa Senhora do Bom Sucesso. Que conversas… parecidas com as de Adão com Deus no Paraíso! Que penas e tormentos, que alegria quando ela voltou à luz e compreendeu que diante dela estava mais um tanto de vida e o Céu se abria.

Apresentação do Menino: Nosso Senhor enquanto gladífero

É interessante notar que, de todas as páginas do Evangelho, não me lembro de nenhuma em que o papel de Nosso Senhor enquanto gladífero venha tão bem acentuado quanto nessa passagem da Apresentação do Menino Jesus no Templo. Porque Ele é qualificado pelo Profeta Simeão, o qual recebe o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora, como pedra de escândalo que vai dividir os homens para que se conheçam em muitos corações as verdadeiras cogitações.

Quer dizer, Ele cria um caso, divide as almas ao longo de toda a História. Escandaliza os escandalosos, os sem-vergonha, os maus, os hipócritas. Esses que Nosso Senhor denuncia e coloca mal à vontade levantar-se-ão contra Ele. Aquele Menino levanta uma grande batalha até a consumação dos séculos e divide a humanidade. O grande divisor da humanidade é Nosso Senhor Jesus Cristo, aquele mesmo Menino, tão encantador, que nos é apresentado no presépio no Natal.

Como seria interessante se houvesse, em alguma igreja, ao pé do presépio uma faixa citando a respeito daquele Menino tão engraçadinho e inocente, com os braços em forma de cruz, a frase afirmando que Ele vai dividir o gênero humano! Como seria bom, como conformaria bem a piedade, como seria magnífico!

Castigos, sorrisos e provas de amor maternal que sobre a América Latina sobrevirão

Ora, a profecia de Nossa Senhora, de que Madre Mariana de Jesus Torres recolheu a revelação, trata exatamente disso. Ela fala de um tempo em que o Equador se terá tornado independente da Espanha, adotará uma forma de governo próprio, e que esse país e toda a América do Sul serão sacudidos por uma grande revolução.

E se refere indiscriminadamente à América do Sul como sendo um grande todo sócio-político-econômico que vai passar por uma revolução religiosa e uma revolução de ordem temporal, as quais irão chacoalhar tudo e que será um castigo para a humanidade. E depois virá o triunfo de Maria Santíssima, o Reino d’Ela, a vitória daqueles que Nossa Senhora tiver suscitado para lutarem por Ela nessa ocasião difícil.

Compreende-se essa concepção da América do Sul como que constituindo um todo. Porque no tempo em que Madre Mariana de Jesus Torres recebeu as revelações, o Brasil fazia parte da Coroa espanhola. Quer dizer, a Coroa de Portugal fora herdada por Felipe II, que era, portanto, Rei da Espanha e de Portugal. E, enquanto tal, senhor do Brasil, que era colônia portuguesa. Razão pela qual toda a América do Sul estava debaixo do domínio de um só monarca, que era Felipe II e seus sucessores. Compreende-se que ela visse isso tudo como um abalo só.

É curioso que perante o mundo de nossos dias a América Latina é tida como um todo só também. Tem-se, portanto, a noção da grande unidade que a América Latina constitui e, consequentemente, dos grandes castigos, sorrisos e provas de amor maternal que sobre a América Latina se abrirão.

Assim, esta festa nos diz muito especialmente respeito.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1983 e 2/2/1985)

Ó Igreja Católica!

Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões, densa de coisas que se viu e sobre as quais se pensou – ao menos no meu espírito é assim –, nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte ela não está recendendo a nada, mas no terceiro dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância, há uma segunda onda de perfume que se exala da flor, e assim por diante. Deste modo são também as recordações de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários significados e bons aromas que se vão apresentando, formulando-se à medida que o tempo passa.

Obras impregnadas pelo sobrenatural

Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa que me vinha à mente em minha última visita à Europa, pela comparação entre a impressão que o Velho Continente me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.

Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor exemplificar em concreto com a Catedral de São Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução e depois faço a aplicação.

Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo é feito com espírito católico e com a intenção de servir à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer, naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.

Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio, de grandes voos literários, um notável burilador da língua francesa, sob o impulso de quem esse idioma explicitou de sua genialidade original tais aspectos novos. São impressões naturais que nos vêm ao espírito, causadas pela leitura do trabalho de São Bernardo.

Mas como aquela obra foi feita por amor de Deus, com a intenção de despertar pensamentos sobrenaturais inspirados pela Fé e tendentes à glória do Criador, entra também uma graça, porque ninguém é capaz de pensar uma obra com base na Doutrina Católica, nem de querer uma coisa para o bem da Santa Igreja ou para a glória de Deus, que não seja pela graça.

Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas operações intelectuais e da vontade, pois o homem  é inteiramente inerte e incapaz de as realizar se não tiver o auxílio da graça.

Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”, e quem a lê tem a impressão de estar essa obra embebida pela graça, e é absorvido  pela graça que baixa de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.

Então, ao operar natural da inteligência, da vontade e da sensibilidade, soma-se uma operação de origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa percebe belezas novas de caráter absolutamente superior, extraordinário. Às vezes elas reluzem aos olhos do espírito do leitor através de um fenômeno da mística. São de uma pulcritude maior do que todas as belezas naturais, pois o  sobrenatural vale mais do que o natural.

Amor de Deus, corolário das construções medievais

Isto que se diz a respeito de escritos pode-se igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens, obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente bem esculpidas de um convento, uma  armadura medieval, um vitral, obras estas realizadas com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado por uma graça que lhe faz compreender as analogias que elas têm com realidades sobrenaturais.

De onde um muito grande apreço do homem por aquilo que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população, do burgo vizinho, contra possíveis agressões de maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.

Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada pela graça, e que vem do fato de que o castelo simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.

Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos existentes na Europa foram construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média. Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores, enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.

Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo, o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc. Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial discernimento do espírito com que, em concreto, aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento especial de qual era o espírito dos sienenses daquele tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recomposição das famosas “contradas”, aqueles jogos entre as corporações e associações religiosas, que despertam esse ou aquele estado de espírito. Então aqui está uma ordem de ideias.

Há locais impregnados pelo sagrado…

Passo a considerar agora outra ordem de ideias. Não é mais o estilo, a aparência material, nem mesmo a mentalidade dos que planejaram, executaram ou viveram em determinado lugar, mas é a natureza dos atos que ali se passaram.

Há um princípio admitido pela piedade católica segundo o qual, quando em um ambiente se passou algo de muito sagrado, aquele lugar fica de algum modo sagrado também. Vou dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado, magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro mistério doloroso do Rosário, a  Agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.

Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio de seus sentidos diante da perspectiva da morte que deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).

Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado, nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando para Nosso Senhor um cálice de uma bebida que haveria de Lhe dar força sobrenatural para tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.

Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado  lugar em que essas cenas se passaram. Por essa razão, quando se está naquele lugar recebem-se graças, não raramente sensíveis, pelas quais a alma é levada ao amor de Deus, à contrição, ao arrependimento, à compunção, à piedade, à compaixão para com o Cordeiro de Deus que ali sofreu para nossa salvação.

Aquele lugar tem bênçãos especiais.

…outros, habitados por uma graça

“Mutatis mutandis”, os locais onde se passaram grandes fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos sem uma relação direta com a Religião, mas nos quais reluz algo do espírito católico.

Vem à minha memória a execução do Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão. Esse duque, último da linhagem dos Príncipes de Condé, reunia em si o aspecto heroico, a estampa afidalgada, a coragem, a ousadia, quase a temeridade de seus antepassados. Possuía qualquer coisa do espírito repentino e irresistível do Grande Condé.

Napoleão tinha intuitos de acabar com esse último descendente da Casa dos Condé, e para isso aproveitou-se do fato de que esse duque estava noivo de uma princesa francesa residente não longe da fronteira alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse  lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.

Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma a sério, mandou matá-lo. A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo, sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na época miserável em que o mundo estava conspurcado pela Revolução Francesa.

Estando em Vincennes, e sabendo onde o Duque foi executado, eu quereria ir visitar o local em espírito de peregrinação. Não tenho nenhum documento comprovatório de que esse homem fosse especialmente piedoso. Dói-me a hipótese de que não o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida nenhuma de que se ele não descendesse de ancestrais católicos, não seria essa flor do heroísmo católico a desabrochar dentro da poluição imunda da Revolução Francesa. Portanto, nessas condições, eu iria em espírito de peregrinação ao lugar onde ele foi imolado com tanto garbo, tanta galhardia, e rezaria por sua alma.

Isso nos dá a impressão – notem bem, não é a realidade – de que as cenas ocorridas em determinados lugares, como que ainda estão se passando ali. É fora de dúvida que aquele passado todo revive, e para quem está ali ele tem um prolongamento, uma continuidade misteriosa que emociona especialmente o visitante. Onde existem coisas assim, houve graças extraordinárias.

E do mesmo modo como a graça desce à alma de quem lê, com trezentos anos de diferença, um livro de São Francisco de Sales, ela também age na alma de quem, duzentos anos depois, visita o lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.

Essa impressão de lugar habitado pela  graça, no qual se tem a impressão de que os fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade com eles, é altamente benfazeja para o espírito e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra nesse local.

Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos. Vista durante a noite, quando não há turistas e os pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando perceber o branco reluzente do mármore de que foi construída, bem como seus pormenores magníficos, e torna-se especialmente evidente sua linha geral.

Faço notar as três profundidades para a vista humana diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico e, acima, um terraço.

Constituem o primeiro corpo do edifício. Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.

Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos históricos da maior importância que determinaram rotações inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.

Veneza era uma escola de diplomatas extraordinários. Nos arquivos dessa cidade se conservam relatórios que os embaixadores venezianos mandavam periodicamente, contando o que se passava nos países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras – de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte ótima para a História de qualquer país da Europa.

Imponderável de São Pio X em Veneza

Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram. Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza, portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente, as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente, ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso da responsabilidade do Papado.

Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal, pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios, cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo, acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados, entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois, com o coração pesado de presságios que via apenas obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o lugar de onde o trem o conduziria até Roma.

Seria a cena de Veneza despedindo-se do mais recente dos Papas canonizados, que previu e combateu a crise do modernismo. Quem passeia por debaixo dessas colunas do átrio ou transpõe a porta, pensando em tudo isso, tem a impressão de que São Pio X encontra-se um pouco aí revivendo tudo isso. De fato, ele não se encontra, mas está presente uma graça relacionada ao que se passou e que torna especialmente sagrado esse lugar.

Passeando de gôndola pelos canais de Veneza

Em minha última viagem à Europa, tive diante de muitos monumentos a impressão triste, de cortar o coração, de que essas graças tinham se retirado, e as cenas históricas ali desenroladas haviam perdido o nexo sobrenatural com aqueles monumentos. Ou que esses restos de continuidade da graça estavam nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo, o que a multidão de turistas não censurava, e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos como se visita um museu.

No entanto, essa densa presença de sobrenatural e de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti quando tomei uma gôndola para passear pelos canais da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios, tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica, temperamental, social, daqueles personagens de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas, com máscaras como se usava em Veneza, o bater dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando mais adiante… Esses mistérios todos de Veneza temos a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.

O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse mistério tem seu charme.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1989)