Gloriosa perenidade

Durante as visitas que fiz a Roma, agradava-me discernir e sentir algo que eu chamaria de a perenidade da Igreja Católica, quer dizer, o modo maravilhoso como ela vai prolongando sua existência neste mundo. Na sua história os séculos se sucedem e como que se confundem, formando uma espécie de miscelânea suavíssima, importantíssima, seríssima, de tal maneira que, ao  contemplarmos os vários templos católicos de Roma, admiramos os passos da Igreja através dos tempos.

Dir-se-ia que todas as épocas vividas por ela ali se revelam, num estado ligeiramente melancólico, porém doce, tranqüilo — não isento de bem-estar — e olhando para a eternidade, como quem diz: “Meu dever está cumprindo, mas resta-me a mim o estar aqui, para representar o papel no cortejo dos séculos até que a peregrinação do homem sobre a face da Terra se complete”.

O visitante com uma alma sensível a esses aspectos, pode se deter diante de qualquer uma dessas igrejas romanas e talvez perceberá, como eu percebia, que aquele edifício sagrado traz consigo a atmosfera dos primeiros anos do Cristianismo; junto a ele, ou no seu interior, ainda ecoam gemidos de mártires, e a luz do sol, neste momento ou naquele, banha de uma luz incomparável a face de uma imagem ou a ponta de um mosaico seculares.

Essa sensação nos faz imergir no passado, e como que degustarmos as graças e a santidade da Igreja como estas se manifestavam aos homens daqueles remotos tempos. Em torno daquelas obras de arte, imagens, relicários, essa santidade e essas graças como que se mantiveram paradas.

Mais de uma vez pude constatar essa impressão. Passava diante de uma igreja romana, detinha-me por  alguns instantes a admirá-la e sentia vir do seu interior um arfar dos séculos mesclado a um vento que consigo carreava graças, e aquilo me envolvia por inteiro. Adiante, outra igreja, outra beleza, os mesmos sentimentos.

Isto fala muito da perenidade da Igreja. E, de fato, toda grande instituição que vem do fundo dos séculos e caminha séculos para frente, a fim de alcançar genuína glória precisa ter algo pelo menos desse ocaso em que se misturam todas as épocas já vividas por ela. Sem esse predicado, se tudo for novo e composto no momento presente, será como uma criança recém-nascida no berço.

Não. Viva, sofra, lute, combata sua batalha! Atravesse uma longa existência e seja a pessoa heroica em cuja alma se somam os diversos estados de espírito que a modelaram. Seja alguém no qual dorme o passado e pulsa o futuro!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/6/1987)

Como podemos imitar os santos?

Durante as décadas de 60 e 70 Dr. Plinio fazia conferências diárias, em geral comentando a vida do santo cuja festa a Igreja celebrava naquela data. Donde essas reuniões serem chamadas de “Santo do Dia”, nas quais a edificante virtude dos heróis da Fé eram propostas como modelo a quantos acompanhavam ditas exposições. Certa vez, atendendo ao interesse de seu auditório, Dr. Plinio salientou o melhor modo de seguirmos o exemplo dos grandes santos.

Com freqüência no “Santo do Dia”, fazendo comentários a respeito deste ou daquele bem-aventurado, apresento um quadro da vida espiritual que poderia ser assim resumido: a Fé ilumina a inteligência; esta dirige a vontade a qual, por sua vez, fortalece a sensibilidade humana. Agindo dessa forma, o homem está em ordem em relação a Deus. Os santos o conseguiram por meio de meditações, raciocínios, exercícios metódicos e cuidados persistentes, enfrentando lutas e sofrimentos extraordinários.

Dificuldade dos mais fracos

Sempre procuro elogiar enfaticamente esse modo de praticar a virtude, o que suscita em alguns de meus ouvintes a seguinte pergunta: “Dr. Plinio, os ‘Santos do Dia’ são feitos em grande parte para as gerações mais novas, e até novíssimas, compostas de capengas(1). Os santos sobre os quais o senhor tece comentários são o contrário da “capenguice”, porque têm muita personalidade, são capazes de sofrer, de praticar atos heroicos e fazem obras que nós não conseguimos realizar. Então, que proveito podemos tirar dessas exposições?”

Virtudes a serem admiradas, mais do que imitadas

Respondo à compreensível indagação.

Antes de tudo, cumpre considerar que, em toda a História da Igreja Deus suscita santos com virtudes tão extraordinárias que devem ser admiradas, mais do que imitadas. Exemplo frisante é o de São Simão Estilita, o qual, para fugir das atrações mundanas, subiu no alto de uma coluna e ali passou a vida inteira em oração e penitência. O que sucederia se toda pessoa com dificuldades em cumprir os Mandamentos, ficasse o dia inteiro rezando sobre uma coluna?

Não haveria colunas que bastassem. Além disso, o número de colunas abandonadas seria imenso…

Sem dúvida, o procedimento de São Simão Estilita é um modo admirável de praticar a virtude. Não há palavras que possam exprimir nosso respeito e enlevo por um homem que permanece durante anos no alto de uma coluna, não pensando em outra coisa senão em Nosso Senhor e nas verdades eternas. Contudo, se o desígnio de Deus para a maior parte dos homens não é o de imitar São Simão Estilita, a admiração pelo santo deve levá-los a praticar virtudes menores, ou pelo menos de modo menos excepcionalmente heroico.

Cada um poderia dizer a si mesmo: “Claro está, não posso chegar ao grau de virtude que São Simão Estilita atingiu, mas desejo caminhar nessa direção”.

Ora, se esse anelo nasce em nosso interior, significa que aquele santo é uma espécie de precursor de milhões de almas que, de algum modo, fazem aquilo que ele realizou. E, portanto, o extremo da admiração redunda numa como que imitação, a qual beneficia incontáveis corações.

Todos somos chamados à santidade

Em segundo lugar, precisamos compreender que, embora as virtudes heroicas de alguns santos do passado não possam ser praticadas pelos homens de hoje — e nem pertençam às vias comuns da graça —, a santidade está ao alcance de todos. Porque a perfeição moral é atingível por qualquer homem que a deseje, com o auxílio da graça. E quando admiramos um santo, nos encantamos com a santidade, e somos convidados a seguir de alguma forma o exemplo de sua vida virtuosa.

Outro não foi o pensamento que inundou a alma de Santa Teresinha do Menino Jesus, a doutora da chamada infância espiritual. Quer dizer, ela se comportava diante de Deus com a humildade e a simplicidade de uma criança. Não almejava fazer coisas extraordinárias, mas apenas servir a Deus nas formas quotidianas e comuns da virtude. Porém, praticando-as com um amor tal que este significava verdadeiramente a santidade.

O teor de relações de Santa Teresinha com Nosso Senhor era semelhante ao da criança com seus pais, e poderia ser qualificado quase de filial e reverentemente sem cerimônia. Ela não procurava de modo algum ser grande diante de Deus, e sim humilde e pequena, vivendo da confiança na misericórdia do Altíssimo minuto a minuto. Dessa maneira ela alcançou a santidade.

Como águia que fita o sol através das nuvens

Pode-se dizer que Santa Teresinha levou essa confiança a extremos singulares. Por exemplo, ela era um braseiro de amor a Deus, mas sua alma passou por longos períodos de aridez. Em certas ocasiões essas penas espirituais a afligiam até mesmo durante o cântico do Ofício.

Entretanto, nas mais diversas provações, ela se mantinha serena, e já no fim de sua vida, devorada por tentações contra a fé, ela resistia de modo admirável e completo. Diante de tudo isso, conservava a atitude de pequenez, vazia de si mesmo, sabendo que valia muito aos olhos de Deus. Por isso costumava reafirmar que Nosso Senhor a protegia, embora ela não o sentisse.

Nesse sentido, empregava a linda metáfora da águia que fita o sol através das nuvens: não lhe era possível divisar o sol divino, mas estava com as vistas continuamente voltadas para Ele, amando-O do modo mais intenso possível.

Certa feita lhe perguntaram como ela agiria se tivesse a infelicidade de cometer um pecado grave. Resposta: “A misericórdia de Deus é tão grande que eu retomaria, com a alma partida de dor, minha vida espiritual no ponto anterior à queda, e recomeçaria a ascensão tranquilamente”.

Não cabe chamar Santa Teresinha de capenga, mas ela abriu a pequena via para os capengas que viriam depois dela, proporcionando-lhes uma vida espiritual modesta, humilde, mas repleta de amor, dando-lhes a oportunidade de realizar, à sua maneira, grandes coisas.

Concluímos, portanto, dizendo que convém conhecermos as altas virtudes dos santos insignes para amá-las, admirá-las e, na medida do possível, imitá-las, segundo as disposições propostas pela “pequena via”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 12/1/1966)

 

1) Dr. Plinio costumava empregar a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo, e assim como o capenga de corpo precisa de muleta para caminhar, o de alma, por ser inconstante, necessita sempre de especial apoio para progredir na piedade.

Parece um conto de fadas

Uma pequena igreja da Itália, em contraste com o prosaísmo e a feiura de tantos prédios atuais — construídos  conforme o espírito revolucionário —, é mimosa com distinção e solenidade, remetendo-nos a uma atmosfera irreal e maravilhosa.

O ponto de vista sob o qual analiso e comento os monumentos europeus é o de despertar o amor a um tipo de maravilhoso existente na Europa, elaborado pela civilização cristã, e que é, portanto, um fruto do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo e das lágrimas de Nossa Senhora.

Maravilhoso sapiencial, de caráter religioso

Foi disto, do senso da cruz, da virtude, do sacrifício que nasceu uma civilização que engendrou essas maravilhas, as quais exprimem algo do espírito e da sabedoria da Igreja. É esse maravilhoso sapiencial, de caráter religioso que consideraremos agora.

Temos aqui fotografias da Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo, na cidade de Lecce, na Itália, contendo vários elementos ornamentais explorados a diversos títulos, constituindo várias formas de beleza do panorama italiano.

O panorama italiano é peculiar, pois certas coisas que são bonitas em qualquer parte do mundo, mas possuem dessas belezas comuns e vulgares que vemos e passamos adiante, na Itália existem de um modo especial, por onde elas tomam uma beleza quase clássica, que forma um dos maiores ornamentos desse país e um dos mais altos pontos de atenção do gênero humano.

Por exemplo, quem já esteve na Itália compreende, mas para quem nunca a visitou não é tão fácil compreender a beleza dos muros velhos escalavrados, de pedras que duram séculos, com cicatrizes de todas as molecagens que se fizeram em cima delas, de todos os granizos que caíram sobre elas, e que conservam a dignidade de uma face envelhecida, rugosa, mas com ar de matrona régia.

Notem esse muro. Uma pessoa com espírito moderno e pragmático teria mandado passar massa e depois pintar a óleo, para ficar lisinho e bonitinho, porque esse tipo de pessoas não entende senão o que seja lisinho e bonitinho.

Vejam quantas cicatrizes há nessas pedras! Todas cheias de poros, de sujeiras, de calosidades. Entretanto, isso batido pelo Sol da Itália dá uma ideia de eternidade, de uma coisa que nada destrói.

Essa trepadeira dá a impressão de algo com uma forma de vida endêmica que não há Sol que acabe com ela, e segura com força o prédio, como quem diz: “Eu viverei”. As próprias pedras, batidas pelo Sol, têm qualquer coisa da boa natureza que resiste a tudo. Disso desprende-se uma noção de perenidade.

É preciso saber entender o pitoresco

Pode-se imaginar em uma dessas ruelas uma pizzaria onde se vende a famosa pizza napolitana, outro estabelecimento cheirando a polenta ou a mortadela, de dentro do qual se ouve um berro do patrão para a filha dele: “Angelina, eu já disse que me traga tal coisa para este freguês!” — com ares de Nero proclamando a queda de Roma, atrás do balcão como se fosse um trono, e com aquela tendência declamatória pitoresca do italiano.

O filho do dono, por sua vez, é um homem que toca guitarra e canta “O Sole mio…” De repente, atrás de um arco desses ouve-se um gato miando… Há dentro disso qualquer coisa de rústico, de elementar, de simples, de uma plebe sadia, vigorosa, que canta o Sol sem nenhuma espécie de artifício, e que constitui um dos verdadeiros encantos da Itália.

É muito bonito esse contraste no velho urbanismo da Itália: ruazinhas completamente emaranhadas, sem calçada e dentro das quais entram motocicletas, vespas, lambretas e automoveisinhos modernos. As pessoas se afastam, passa o automóvel, elas protestam, berram… Uma viazinha estreita que, de repente, dá num laguinho inesperado.

Segundo um urbanismo “hollywoodiano” o bonito seria uma avenida muito larga, terminando num lago ainda mais largo do que ela. E o transeunte, de longe, vai vendo a avenida por onde vai.

Quando chega ao final, não  tem nada de novo. Boceja ao chegar ao lago, pois já o estava vendo à distância.

Na Itália, não. Tudo isso é pitoresco, e é preciso saber entendê-lo. Do contrário, não se viajou pela Itália, não se viu a Itália.

Vamos, agora, analisar a igreja. Quem a construiu parece ter tido a pretensão de edificá-la como se fosse uma basílica. Ela é de proporções pequenas, mas toda sua fachada é trabalhada com a distinção e com a solenidade que caberiam a uma igreja grande. Poder-se-ia imaginar uma imensa basílica construída com essa fachada; ficaria linda! Mas o artista soube dar a isso o tamanho reduzido, para ficar, ao mesmo tempo, digno e engraçadinho.

Temos, então, a beleza específica dessa fachada, na qual distinguimos dois elementos: uma cúpula e depois a fachada propriamente dita. Esta se compõe de uma linha central, que é a linha grande, e de duas linhas colaterais que são acólitas da linha central, existem para ela. Se analisarmos a linha central, notaremos ser relativamente simples. Ela tem um porte bonito, harmonioso, muito bem feito, uma proporção entre a altura e a largura muito bem tomada, a proporção de altura entre as colunas e o arco é muito bem tirada também.

A porta é trabalhada, mas sem excesso. Acima dela encontramos uma longa parede vazia, onde o único elemento decorativo é a rosácea que existe, provavelmente, para conduzir luz ao coro dentro da igreja. Quer dizer, tem uma finalidade prática.

O ornamento só aparece bem no alto. São formas, figuras com o seguinte objetivo: a largura dessa parte central, quando chega a certa altura se estreita um pouco. Esta sucessão de larguras diferentes culmina num ponto terminal leve, por onde acaba quase se fundindo no céu.

O sorriso da Arte

Ao lado desta parte central muito simples vemos duas partes colaterais bastante ornadas. Tudo é muito bem construído: as duas partes se repetem e têm colunas com dois nichos nos quais se encontram imagens de Santos.

Essas são colunas jônicas, todas caneladas, como o fuste em cima também, todo ele com as clássicas folhagens de acanto, e depois, em cima, uma trave. Cada uma dessas partes poderia constituir um edifício autônomo, tão bonitas são. Entretanto, encaixam-se harmoniosamente dentro do conjunto da igreja.

Se abstrairmos a parte superior, veremos como o restante forma uma linha básica larga e sólida em relação ao que vem acima, que é mais leve em função do princípio de que o mais pesado carrega o mais leve e o mais forte sustenta o mais fraco. É o contrário do princípio existente em determinados prédios modernos, nos quais uma superfície pequena parece esmagada por uma massa de  cimento sobreposta.

Aqui não: o elemento com aparência de débil fica em cima e o componente pesado embaixo.

Por fim, nota-se toda uma ornamentação abundante terminando o edifício, porque a parte mais nobre, mais leve, mais etérea, deve estar junto do céu. As figuras leves ficam colocadas perto do teto para dar ideia de algo que está subindo para o firmamento e ali se perde. Todas as construções antigas observavam essa norma, que se perdeu depois por artifícios da Revolução.

Considerando o conjunto do edifício temos um monumento muito bem feito, mimoso, mas com ares de pequeno rei. Mais ou menos como seria o Príncipe de Mônaco; é um rei em miniatura. Ninguém dá risada dele; ele é o “garnisé” no gênero dos reis. O garnisé é o sorriso de Deus a propósito do galo, que o mesmo Deus criou.

Aqui é o sorriso da Arte a respeito de suas próprias grandezas. Ao invés de construir uma obra linda e grande, ela faz uma coisa pequena e igualmente linda, para poder sorrir a respeito de si  mesma. O monumento, considerado deste ponto de vista e em contraste com o prosaico de outros prédios, parece um pouco um conto de fadas, uma coisa um tanto irreal, maravilhosa.

Temos, então, um dos ângulos bonitos da Europa sagrada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1967)

O rochedo saltará como um cabrito

Estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução gnóstica e igualitária. Assim como em Lourdes Maria Santíssima realizou e realiza inúmeros milagres, Ela fará com que esse rochedo se esboroe.

A respeito de Nossa Senhora de Lourdes, na biografia de Santa Bernadete Soubirous, a vidente de Lourdes, escrita pelo Pe. Trochu(1), encontramos alguns dados que nos  falam a respeito da devoção dessa Santa a Nossa Senhora.

O Rosário era sua devoção preferida A devoção à Santíssima Virgem tinha que ser particularmente terna e particularmente filial. “Maria, seu ideal vivo, ocupava em seu  coração um lugar muito próximo a Nosso Senhor” — declarou sua vizinha de enfermaria, Sóror Marta du Rais. Tinha que ouvi-la quando recitava a Ave-Maria.

Que acento de piedade, especialmente quando pronunciava as palavras “pobres pecadores”. Quando dizia “Minha Mãe celestial”, não podia dizer mais. Alguém se atreveu a  perguntar-lhe se a lembrança da aparição se tinha apagado em sua memória. “Esquecer-me? — exclamou com tom de censura — Oh, não, jamais!” E levando sua mão direita sobre a fronte, dizia: “Está aqui”.

“Teria que nos fazer — sugeriu-lhe uma companheira — uma descrição de como era a Virgem, posto que a senhora sabe como era Ela. Não poderia nem saberia fazê-lo — foi a única resposta que deu. Eu para mim não necessito; levo-A no coração.”

A devoção mariana encheu de certo modo toda a sua vida. Tinha necessidade de meditar sobre a Virgem. Via Maria em tudo e por tudo com seu coração e seu entendimento. Nunca, para uma alma religiosa, a oração de quietude podia ter sido mais desejada. Quando rezava à Santíssima Virgem — atesta Sóror Gonzaga Champy —, parecia ainda que estava vendo. Quando alguém lhe pedia que alcançasse alguma graça, imediatamente respondia que pediria à Santíssima Virgem.

Arrebatada pelo Cântico dos Cânticos — informa um grande servidor de Maria — Sóror Maria Bernadete se comprazia em louvá-La, fazê-La conhecer, amá-La e servi-La.

Esforçava-se por imitar suas virtudes, especialmente sua humildade e sua renúncia. Dedicou-se, para sua devoção, a compor acrósticos. A primeira dessas modestas composições se refere à Santíssima Virgem, e era:

Mortificação
Amor
Regularidade
Inocência
Abandono

No dia da Assunção, na capela, a Madre Henri Fabre, que estava situada um pouco distante de Sóror Maria Bernadete, de modo que lhe era fácil poder observá-la, “às palavras do canto ‘é minha Mãe, eu vejo’, eu a vi — conta — como se ela tivesse um arrebatamento e uma comoção de alegria”. […]

Toda sua vida desfiou o Rosário como tinha feito em Lourdes. “O Rosário era sua devoção preferida”, disse uma Superiora Geral. Mais de uma vez, na enfermaria, a Irmã Gonzaga Champy alternou as Ave-Marias com ela.

“Então — recorda essa religiosa — os olhos escuros, profundos e brilhantes de Bernadete pareciam como se estivessem vendo Nossa Senhora.” Pela noite, quando ia dormir, recomendava a uma companheira: “Toma o Rosário e durma rezando. Farás o mesmo que fazem as crianças pequenas que adormecem dizendo ‘mamãe, mamãe’.”.

Vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima

Esses dados sobre Santa Maria Bernadete atestam bem a ardente devoção que ela teve a Nossa Senhora. Mas há uma coisa curiosa na vida dessa Santa: ficou provado que ela tinha essa grande devoção a Nossa Senhora, mas ela não deixou transparecer senão muito pouca coisa. Quer dizer, algum dado novo, alguma reflexão nova, algum  enriquecimento da Mariologia, algum sistema de devoção novo, algo que pudesse, enfim, representar um impulso para a devoção a Nossa Senhora, ela não deu.

Isso porque Santa Bernadete teve uma vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima. Quer dizer, ela teve a vocação de revelar ao mundo as aparições de Lourdes. Uma vez que ela revelou essas aparições, ela as prestigiou tornando-se freira e sendo canonizada pela Igreja.

Embora a Igreja não mande crer nas aparições de Lourdes, porque são de caráter privado — e em matéria de fatos sobrenaturais nós só somos obrigados a acreditar nos fatos oficiais, não nos privados —, roça pela heresia quem conteste as aparições de Lourdes. Porque seria preciso admitir que uma Santa canonizada pela Igreja tivesse tido essas ilusões.

Ora, isso é uma coisa que não se pode admitir. De maneira que a vida e a santidade de Santa Bernadete de algum modo atestam a autenticidade das aparições de Lourdes.

A santidade de Bernadete atesta a autenticidade das aparições Aliás, também exuberantemente atestadas pelo fato dos milagres que se operaram depois, e que são uma  prova de que em Lourdes realmente é a graça que atua. Santa Bernadete Soubirous, durante uma das visões — o povo não via Nossa Senhora, mas percebia que ela falava com uma pessoa que ninguém via —, a certa altura essa pessoa disse a ela: “Passe a mão na terra, revolva-a, que daí vai nascer uma fonte.” E, num lugar onde ninguém supunha que existisse água, viu-se ela meter diretamente a mão na terra — era uma camponesa — e a água brotar. Daí veio exatamente a fonte de Lourdes e ela disse que  nessa fonte se operariam muitas curas.

Ela fez uma profecia: nessa fonte maravilhosamente aparecida haveria curas, e depois houve as curas. De maneira que cada uma dessas coisas é milagrosa por si. Além disso, a vida de santidade dela atestava o seu equilíbrio mental e, portanto, a autenticidade das visões e dos fatos milagrosos que em Lourdes se deram.

Depois que esses fatos se deram, ela não teve uma missão pública, mas privada. E por causa disso ela se calou. Isso é muito bonito para nós vermos a diferença de vocações dentro da Igreja, e como a Providência suscita cada pessoa para ordenadamente seguir uma determinada vocação.

Um tem uma tarefa, um segundo outra tarefa, um terceiro tem outra. Nossa Senhora distribui essas missões de maneira tal que ninguém se mete na tarefa na qual não foi chamado e cada pessoa se dedica inteiramente à missão para a qual foi escolhida.

Temos, então, Santa Bernadete Soubirous como uma espécie de testemunho vivo do milagre de Lourdes. Em Lourdes Maria Santíssima quis ser conhecida enquanto  sumamente benfazeja. Por isso, nas nossas orações devemos ser ousados, fazer pedidos arrojados — não insensatos; é uma coisa profundamente diferente —, difíceis de alcançar, e precisamos, ao mesmo tempo, pedir com muita insistência.

Por exemplo, pedir uma graça que diga respeito à nossa santificação. Isso nos leva a refletir um pouco em nossa vida espiritual. E, por essa forma, a ter uma visão de nós mesmos e de nossas atividades, de nossos rumos, mais precisa. E leva-nos a fazer uma oração grata a Nossa Senhora.

Mais do que os corpos mortais, Nossa Senhora quer curar as almas imortais Não devemos nos esquecer de que as doenças do corpo, no Evangelho, costumam ser  consideradas, pelos comentaristas e exegetas, como sendo símbolos das doenças da alma. E que assim como alguns sofrem de paralisia do corpo, outros sofrem de paralisia
da alma; sofrem de cegueira do corpo, outros, da alma; e assim surdez, mudez e outras enfermidades. O que é mais difícil: curar o corpo  ou curar a alma? Evidentemente,
para a Rainha do Céu e da Terra não é difícil nem uma coisa nem outra.

Aquilo que Nossa Senhora pedir, Ela obtém. Se Ela cura tanto os corpos, vamos pedir-Lhe para curar as nossas almas também. Se tivermos defeitos da alma que gostaríamos de corrigir, seria o momento adequado para levarmos aos pés d’Ela esses nossos defeitos e rogar- Lhe que nos cure. Esse pedido tem muita razão de ser, porque se a Santíssima Virgem quer tanto curar os corpos perecíveis, mortais, quanto mais Ela quererá curar almas imperecíveis e imortais. Nosso Senhor Jesus Cristo não veio à Terra para salvar corpos, e sim para salvar almas, e por isso nossos pedidos não podem deixar de ser muitos gratos a Ele. Podemos rogar por nós ou a favor de alguém por quem  nos interessamos, com quem façamos apostolado, por uma alma cujas dificuldades nos amedrontam, por um amigo cujas aflições ou tentações pelas quais passa constituem para nós uma fonte de preocupação.

A Festa de Nossa Senhora de Lourdes nos inspira, contudo, outra consideração e nos traz à memória, naturalmente, a gruta bem conhecida de Massabielle na qual se encontra o nicho com a imagem da Imaculada Conceição, onde há os dizeres dirigidos por Nossa Senhora a Santa Bernadete Soubirous: “Eu sou a Imaculada Conceição.”

Embaixo, o Rio Gave que espuma e, pouco adiante, as piscinas nas quais se fazem os banhos dos doentes, e onde ocorrem os milagres. Bem acima, numa posição bonita, encontra-se a Basílica. Confirmando o dogma da Imaculada Conceição Nesse quadro clássico, temos uma nota que diz tudo. A Santíssima Virgem quis aparecer e manifestar-se em Lourdes para dar especial força à Fé dos fiéis quanto ao dogma da Imaculada Conceição. Para isso, a Igreja tinha quase dois mil anos de ensino e, definindo o dogma por sua autoridade infalível, este foi aceito por quase toda a Cristandade. Foi recusado apenas por alguns que saíram ingloriamente, torpemente da Igreja nessa ocasião, a tal seita dos Velhos Católicos.

Nesta situação, entretanto, Nossa Senhora quis que um milagre, a aparição d’Ela a uma pastorinha, Santa Bernadete Soubirous, ainda realçasse isso, para que a crença dos fiéis na Imaculada Conceição fosse bem firme.

Para ainda tornar este milagre mais evidente, Maria Santíssima prolongou-o numa espécie de rosário de milagres através dos séculos. Será que realmente Nossa Senhora apareceu a essa pastorinha? Será que ela não foi sugestionada pelo  clero? Será que não foi paga, não foi ensinada?

Qual a prova do contrário? É o milagre. É uma cura, duas, dez, incontestáveis,  indiscutíveis, perfeitas, que provam ao longo dos tempos, como um sino que toca longamente, e de vez em quando soa de novo e não se contenta com seu próprio eco, mas se prolonga a si próprio na sua atividade, pela noite adentro… Assim também, na noite da impiedade que ia avançando pelo mundo, os sinos dos milagres de Lourdes continuaram a tocar.

As curas operadas em Lourdes

A esta importância do milagre se contrapõe, entretanto, também outra situação. Não é só mais a Imaculada Conceição cuja confirmação é a finalidade essencial dos milagres, mas há também outro aspecto a considerar: os doentes com todas as misérias que podem afligir o pobre corpo humano, e que ali vão para serem curados.

Algumas curas são claramente milagrosas. Outras, de cujo caráter milagroso não há prova científica, mas que são curas autênticas. Apenas a Igreja não declara oficialmente que são milagres porque são doenças, em última análise, curáveis também por outro agente. E a Igreja se dá ao justo e sábio luxo de só reconhecer aquelas curas de doenças realmente incuráveis.

Mas, quantas curas de doenças curáveis! Quantas pessoas que palpitam ali aos pés da imagem da Imaculada Conceição em Lourdes e cantam, rezam, choram e suplicam  porque trazem fardos no corpo, os fardos das doenças; trazem sofrimentos, provações terríveis e pedem a Nossa Senhora que as cure.

A respeito dessas curas, qual é o ensinamento da Igreja? Descartadas outras circunstâncias a considerar, esta pesa fundamentalmente: é preciso que o doente tenha Fé católica apostólica romana viva, acesa. E que ele creia no milagre que vai acontecer. Desmentindo o que estou dizendo, há casos de ateus que se curaram.

Analisando os fatos, verifica-se que eles eram acompanhados muitas vezes por gente que tinha Fé, a velha mãe, a irmã piedosa, o irmão católico ardoroso que rezavam, em atenção a cujos rogos os milagres foram dados aos ateus.

Se alguma vez a cura foi concedida a um homem desacompanhado de pessoas e que não tinha Fé, havia em algum lugar do mundo uma alma reta, uma alma justa que, sem rezar por aquele homem individualmente cuja existência ignorava até, entretanto orou para que a glória de  Nossa Senhora se manifestasse. Esta é a realidade. Quer dizer, o que determina, o último elo para que o milagre toque no miraculado e a luz do Céu penetre, assim, aos olhos dos incrédulos para provar a Imaculada Conceição, é a Fé  daquele que pediu; a Fé que move as montanhas.

Estamos diante do maior rochedo da História: a Revolução Ora, nós estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução, e devemos crer que a nossa força de alma aplicada, cotidianamente, contra esse rochedo o moverá. O sinal de nossa Fé é o ímpeto da força. Para usar a metáfora do aríete, é preciso que no impulso desse aríete cada um coloque toda a sua força.

E, não adianta dizer que qualitativamente a força de um de nós pode valer mais do que a do outro, porque é um argumento errado. Assim como Nosso Senhor quer que uma gota d’água esteja misturada ao vinho para operar- e a transubstanciação na Santa Missa, assim também, por este exemplo augusto, quer Ele nos provar que o esforço do menor tem que estar somado, por inteiro, ao esforço do maior.

O que é a força no caso? É aquela violência que move os Céus. Está dito: “O reino dos Céus é dos violentos” (Mt 11,12). E é essa a violência que nós devemos ter. Violência com que Jacó lutou contra o Anjo e obrigou-o a dar a bênção. Assim nós temos que lutar contra as circunstâncias e obter da Santíssima Virgem que o Anjo d’Ela desça do Céu e nos dê a sua bênção.

Então a Providência exigiria de todos nós que aplicássemos, cada um, toda a força sobre o rochedo dizendo: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” Um dia, quando menos  esperássemos, o rochedo saltaria como um cabrito. Nossa Senhora terá, nesse momento, premiado dias, meses e anos em que, sem cessar, a alma foi aplicada com toda a intensidade. Dia virá em que o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria ordenará ao rochedo: “Salte!” E ele saltará.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/2/1965, 11/2/1967 e 12/2/1982)

Conhecendo as vias da Confiança

Entre os quatro livros que mais marcaram a alma de Dr. Plinio figura o “Livro da Confiança”. Na conferência que a seguir transcrevemos, ele conta como foi seu encontro com essa obra.

Voz de Cristo, voz misteriosa da graça que ressoais no silêncio dos corações, vós murmurais no fundo das nossas consciências palavras de doçura e de paz…

Essa frase se prende, para mim, a dias de muita aflição. Aos 25 anos, achava-me numa encruzilhada de meus caminhos, em virtude de uma determinada circunstância de minha vida em que o problema de discernir a voz de Cristo, a voz misteriosa da graça, se me punha de modo bastante agudo.

Aos 24 anos, parti para o Rio de Janeiro a fim de assumir meu lugar de deputado na Assembléia Constituinte. Viajei despreocupado com relação à minha família, pois a deixava em condições de vida inteiramente normais.

Apesar de ainda jovem, eu me dirigia tranqüilo para lá, porque, se minha eleição correspondia aos planos de Deus, eu haveria de me sair bem. A Divina Providência não traça para um homem um caminho sem dar-lhe o necessário apoio. Assim, estava convicto de que, mesmo tendo de suportar alguma amargura, tudo acabaria bem.

Aflições e desapontamentos

Entretanto, nem tudo no Rio de Janeiro saiu para mim como um jovem idealista esperava. A vida parlamentar trouxe-me enormes dissabores, os quais, somados a outras dificuldades, fizeram-me sentir um certo desapontamento, como se a Providência não fosse cumprir as perspectivas que Ela mesma tinha aberto diante de mim.

Pouco tempo depois, uma informação vinda de São Paulo veio turvar mais o meu horizonte. Com efeito, o futuro de meus pais e o de seus dois filhos estava praticamente assegurado pela vultosa herança que nos legaria um parente próximo.

Porém essa pessoa, já idosa, fez um mau negócio e perdeu todo o seu patrimônio. Em conseqüência, não iríamos herdar nada. Pior. Ficávamos reduzidos a uma grave situação financeira.

Pensei: “Como pode uma coisa dessa acontecer? Agora terei de fazer o quê? Quando terminar este mandato de deputado, que ofício vou exercer? Era melhor não ter sido eleito do que, encerrada a carreira parlamentar, ser obrigado a pegar um emprego inferior”.

Então, aquilo que à primeira vista parecia um presente da Providência, transformara-se em algo que caía sobre mim. Como se não bastasse a preocupação com esse futuro tão carrancudo, sombrio, ameaçador, começo a sentir todas as noites, por volta das três horas, uma nevralgia no rosto.

Fortíssima, como se fosse um prego cravado na face, e que me impedia de dormir. O único jeito que tinha de encontrar um certo alívio era sentar-me e ficar com a cabeça apoiada sobre dois ou três travesseiros, permanecendo assim até que me viesse algum sono. Então eu conseguia descansar mais um pouco.

Acordava e tinha de sair às pressas para a reunião dos deputados paulistas e, em seguida, para a sessão da Assembléia. À noite, sobrava-me algum tempo para rezar meu rosário, cuidar de minha vida espiritual,etc.

Quem nunca esteve às voltas com uma nevralgia não imagina o que seja ficar essas horas noturnas assim dobrado, sentindo um prego enfiado no rosto e sem conseguir dormir. No meu caso, pensando em todos os problemas que me afligiam. Quer dizer, perda da fortuna, carreira profissional comprometida, enfim, vendo minha vida muito dificultada.

Meu porvir parecia uma flor que desabrochara de manhã sob um lindo sol e que, antes do anoitecer, tivera suas pétalas arrancadas e espalhadas por uma borrasca… Sem falar de uma circunstância que só fazia aumentar essa angústia.

Tomara eu a resolução de consagrar toda a minha vida ao apostolado católico. Compreende-se que, para tanto, eu não podia dedicar muito tempo ao trabalho profissional.

Por outro lado, se não exercesse uma profissão, não teria como proporcionar a meus pais, que já caminhavam para a velhice, uma vida condizente com sua posição social.

Como achar um caminho? Que problemas, que coisas misteriosas! E assim ficava eu esfacelado diante dessas perspectivas, horas e horas, noites a fio, sem saber que saída encontrar, até o momento determinado por Nossa Senhora para se fazer uma luz nesse tão sombrio panorama.

Um livro comprado a esmo

Perto do meu hotel erguia-se a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde eu ia comungar todos os dias. Acontece que, devido às nevralgias e às preocupações, era-me difícil acordar tão cedo quanto seria necessário para receber a Sagrada Eucaristia durante as missas da manhã, já rezadas quando eu chagava na igreja. Mas o pároco era extremamente amável comigo: percebendo meus horários bastante apertados, sempre se dispunha a me dar a comunhão na hora em que eu por lá aparecesse. Supérfluo dizer quanto lhe ficava agradecido por essa caridade, fazendo-o entender ao cumprimentá-lo com particular gentileza.

E era só, pois eu tinha de sair correndo para a Assembléia Constituinte, e não havia tempo para entabular uma conversa com ele. Certo dia, porém, o padre se aproximou de mim e disse: “Dr. Plinio, nós estamos organizando uma exposição de livros piedosos aqui na sacristia. Se o senhor quiser examinar essa mostra, talvez tenha alguma obra que lhe agrade ver”.

De fato ele desejava me dizer outra coisa: “Para manter a paróquia, estamos vendendo alguns livros. O senhor não quer nos ajudar, comprando alguns deles?”

Eu, devendo tantos favores, não podia nem tinha vontade de recusar. Auxiliar aquela paróquia era uma coisa muito boa, e eu queria colaborar nessa forma de bem. Assim, terminada minha ação de graças, fui correndo para a sacristia disposto a adquirir dois ou três livros, escolhidos a esmo. Peguei um de cujo tema já não me lembro, e outro
chamado O Livro da Confiança.

Retirei-me apressadamente, tomei um táxi e fui trabalhar, levando os livros na mão. À noite, de volta ao meu quarto de hotel, deixei-os sobre um móvel qualquer, sem lhes dar maior atenção.

tendia que confiar em Deus é uma atitude boa. Lembrava-me até de um canto entoado pelo coro da paróquia em que me fiz Congregado Mariano, cuja letra em latim era:
“Beatus homo qui confidet in te —Bem-aventurado o homem que confia em Vós, Senhor”. Eu gostava de ouvir aquilo, era uma canção que me dizia alguma coisa, porém não aprofundava seu significado.

Agora, naquela amargura, ao ler as palavras “voz de Cristo, voz misteriosa da graça”, tive uma sensação curiosa, como se uma atmosfera dulcíssima e cheia de afeto penetrasse em mim, afastasse todos os espantalhos e receios, e me dissesse: “Repita, meu filho: voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós murmurais em minha alma palavras de doçura e de paz”.

Eu sentia algo que fazia desaparecer todas as minhas angústias e me dava uma certeza de que, realmente, aqueles fantasmas de perspectivas e de preocupações futuras sumiriam. E de que Nosso Senhor e Nossa Senhora resolveriam bem os problemas que tanto me amarguravam.

Continuei a ler o livro, e a cada nova frase, a mesma sensação de tranqüilidade se produzia em mim. Eu tinha a impressão de estar entrando num bosque encantado onde davam flores maravilhosas, onde passarinhos cantavam do modo mais sonoro e agradável possível, etc.

E onde fica a razão? Contudo, habituado sempre a raciocinar muito, e não conhecendo a doutrina católica a respeito da confiança, eu tinha duas objeções contra esses  sentimentos.

Em primeiro lugar, não se me apresentava nenhuma razão plausível para confiar em que Nossa Senhora me ajudaria naquela emergência, pois não via no meu horizonte nada que me prometesse uma solução. E o homem tem de ser concreto, não pode viver de impressões interiores. Para confiar, ser-me-iam necessários motivos pão-pão, queijo-queijo, filhos da razão. Ora, onde estava a razão dentro dessa história?

Depois, havia o fato de que em certas horas do dia eu lia aquelas frases, e era para mim como se estivesse mascando serragem de madeira. Não me diziam nada. Em outras horas, pelo contrário, era como se penetrasse um pedaço do Céu dentro de meu espírito. Logo, objeção: “Que propósito tem isto?

Eu não entregarei minha alma a essas sensações interiores sem antes ter uma explicação de como se fundamentam na boa e ortodoxa doutrina da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.” Mas, não havia remédio, era uma experiência curiosa: eu abria o livro e penetrava em mim essa doçura. Nesse momento, as objeções desapareciam,
tornando evidente ser aquilo uma ação da graça, um favor de Deus e de Nossa Senhora.

Porém, quando fechava o livro, aquela suavidade se eclipsava, e para mim já não era tão patente tratar-se de um movimento da graça. Então, eu precisava de provas.

A solução exata, no momento exato

Estas apareceram, de modo bem inesperado. Vinha eu passar os fins de semana em São Paulo para estar com meus pais, e no domingo à noite ou segunda-feira de manhã retornava ao Rio de Janeiro.

Certa noite, numa dessas minhas passagens por São Paulo, encontrava-me no prédio da Congregação Mariana de Santa Cecília, quando um congregado amigou meu, pessoa muito viva e inteligente, aproximou-se de mim e, num tom de voz baixo, quase sussurrado, me disse: — Plinio, você gostaria que eu lhe pusesse na pista de um emprego
muito bom? Quando você deixar de ser deputado, você fica com esse trabalho… Eu caí das nuvens! “Esse homem não sabe nada a respeito de minha vida, não conhece os apuros e os problemas em que ando, como pode ele vir me oferecer algo tão capaz de me satisfazer e de me aliviar em  tantas preocupações?!”

Enfim, quando se está afogando no mar, pega-se qualquer corda que apareça, pois ela deve estar presa a algum lugar sólido. Imediatamente puxei duas cadeiras e o fiz  sentar-se ao meu lado: — Venha cá e me conte esta história direito.

Ele ficara sabendo da abertura de vagas para professores no Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São Paulo, e verificou que eu estava talhado para uma delas.

Com algumas providências, eu conseguiria um lugar, com um ótimo ordenado. Eu hesitei um pouco, mas afinal resolvi agir conforme ele me indico. E de fato, após alguns trâmites, acabei sendo nomeado professor catedrático vitalício e com o vencimento irredutível. Era o cargo que desejava, com o ordenado de que precisava, e uma posição honrosa para um ex-deputado.

Terminou o mandato, voltei para São Paulo, e o emprego estava à minha espera.

Mais ou menos por essa época, foram-me oferecidos dois outros cargos de professor catedrático, nas duas primeiras faculdades católicas abertas em São Paulo, a Sedes Sapientiae e a São Bento.

Nesse ínterim, as nevralgias desapareceram, como se nunca tivessem existido. Alguns fardos haviam sido tirados de cima de mim, e eu fiquei entendendo a verdade desta afirmação: Voz de Cristo, voz misteriosa da graça…

As razões para se confiar

Tudo o que nos leva para a virtude será sempre uma ação que baixa do Céu até nossas almas. E se algo nos impele a procedermos conforme à Fé e à Doutrina Católica, há todas as razões para acharmos que isso vem de Deus. Máxime quando nos sentimos fracos e notamos em determinado momento uma força nos ajudando a realizar aquilo que não julgávamos ao alcance de nossa fraqueza. É Deus quem está nos levantando e nos fazendo andar. Ele nos prova, pede-nos uma tarefa árdua e pesada, porém nos sustenta para caminharmos.

“Deus qui ponit pondus, supponit manum”, diz a Escritura. Deus, que impõe o peso, coloca por baixo a mão para que o aguentemos.

Portanto, se sentirmos coragem e tivermos vôo de alma para empreender o que antes nos parecia tão difícil, poderemos verdadeiramente dizer: “A graça está me levando. Deus me chama. Eu vou!”

O que se passara comigo ao ler o Livro da Confiança era, então, obra da graça. Através de suas páginas benditas, fiquei conhecendo as vias da confiança, que deve conduzir  cada um de nós a este ponto: mesmo se houver um grande perigo de que os planos de Deus a nosso respeito não se concretizem, devemos permanecer tranquilos porque, no fim, se realizarão.

Tranquilos, é verdade, mas não indolentes. É preciso rezar e pedir para obter, seguindo o conselho de Nosso Senhor: “Pedi e recebereis; batei e ser-vos-á aberto”. E lembro que nunca fazemos um pedido verdadeiramente grato a Ele, se não for por meio de Nossa Senhora, Mãe d’Ele e nossa. Mãe de Misericórdia, nossa vida, doçura e esperança.

Então, peçamos a Ela, e por meio d’Ela a Nosso Senhor Jesus Cristo, dizendo: “Minha Mãe, vosso Divino Filho tem tais desígnios a meu respeito, mas os problemas se avolumam à frente de meu caminho. Contudo, não me deixo tomar por angústias nem inquietações, porque eu confio em Vós. Ajudai-me!”

E assim praticamos, do melhor modo possível, a virtude da confiança.

Alguns lutam por um ideal… Outros… por uma vida gostosa

Passando pela Europa no ano de 1988, Dr. Plinio teve ocasião de assistir a uma campanha feita por membros de seu Movimento no centro de Madri. Muito propenso a analisar mentalidades, Dr. Plinio fez elucidativos comentários dos diversos tipos humanos presentes nas ruas dessa cidade.

 

Para bem analisarmos a opinião pública, devemos nos despir dos preconceitos espalhados por uma espécie de mito numérico que sempre faz consistir a vitória na obtenção da maioria.

Distinção entre povo e massa

Pio XII, num discurso admirável, faz a distinção entre a massa humana e o povo. A massa é um aglomerado de indivíduos que simplesmente existem juntos e formam uma espécie de multidão, sem especiais vinculações de uns com os outros. Pelo contrário, o povo é um conjunto de pessoas em que cada uma tem com as outras determinadas relações, certos modos de se impostar, formando uma espécie de organismo vivo. Para compreendermos a diferença entre povo e massa, consideremos o seguinte:

Nestas três salas conjugadas em que estou falando, há aproximadamente cem pessoas. Imaginem meus ouvintes que não fossem membros de nosso Movimento e estivessem num grande ônibus, sem se conhecerem, não tendo, portanto, entre si relações individuais e pessoais, mas apenas as vinculações anônimas existentes entre os passageiros de um veículo coletivo.

Quer dizer, eles têm o interesse comum de que o ônibus ande, pare nos locais solicitados para o desembarque de alguns passageiros e chegue até o ponto terminal. Por isso não querem briga nem encrenca dentro do veículo; desejam boa paz e mais nada. Cada um gosta de ser um anônimo para o outro.

Se alguém pergunta de repente a um passageiro “O senhor, quem é?”, ele fica desagradado e pensa: “Para que deseja saber quem sou eu? Sou um passageiro de ônibus como ele, um anônimo. O que esse indivíduo está querendo comigo?”

O anonimato é a regra da massa, a qual vale pelo número de seus componentes: cinco, dez, cem indivíduos.

Entre os que estão aqui presentes a situação é bem diferente: não constituem massa, e sim um organismo, uma gota de povo. Quer dizer, todos se conhecem individualmente e, pelo convívio cotidiano, cada um acaba tendo uma espécie de situação criada por ele mesmo, a qual — por inabilidade ou qualquer outra razão — pode não ser a que desejaria. A vida se faz com base nessas relações pessoais; não é um mecanismo que se reduz a um número, mas algo vivo, uma interseção de várias personalidades que, dando graças a Nossa Senhora, tenho diante de mim e constituem um conjunto de filhos.

Vejo que são de várias partes da Espanha e também de outras nações, formando um conjunto vivo, orgânico, em que cada um é, não como uma gotinha de metal fundido, integrando uma máquina, mas  uma célula viva dentro de um tecido.

Se olharmos pelo microscópio um tecido celular vivo, discerniremos grande quantidade de células; cada uma atua como se fosse uma pequena personalidade: tem sua dose de vitalidade e de reatividade sobre as outras, análoga à de um indivíduo dentro de uma família ou numa organização como a nossa.

É da vida de cada pessoa encontrando-se com a das outras que se forma um tecido, daí resultando um povo.

Considerado nosso Movimento como um tecido, um organismo vivo, qual a repercussão de nossa campanha na Espanha, que é um tecido, um organismo incomparavelmente maior? A campanha está conseguindo sua finalidade?

O mais baixo grau onde o ente humano pode chegar

A vitória sobre a opinião pública não consiste em obter a maioria, como os plebiscitos e as eleições fazem pensar: quantos espanhóis querem tal coisa, quantos desejam tal outra. Trata-se de saber: que espécie de pessoas estamos influenciando, e, dentro do tecido vivo que é a Espanha, que possibilidades têm elas de influenciar outras?

O público que estava na praça Puerta del Sol(1) se dividia em três partes bem claras.

Havia um círculo formado em torno da nossa fanfarra e do nosso sistema de propaganda. Em sua parte externa era impreciso, pois algumas pessoas chegavam, outras saíam, mas a parte interna do círculo apresentava certa precisão de desenho.

Pouco adiante, existiam dois pequenos círculos de indivíduos, sentados em volta dos dois chafarizes, simplesmente porque as bordaduras dos mesmos, um tanto largas, forneciam-lhes um assento cômodo. Constituíam um público contrário àquele reunido em torno dos nossos. Alheios uns aos outros e dando as costas para o que na aparência os unia — os chafarizes —, eles estavam todos adormecidos. Alguns mastigavam alguma coisa, e o faziam com preguiça, não olhando para nada de fixo, não pensando em nada de determinado, mas sentindo que estão vivendo, e encontrando nisto certo prazer. É o gosto de respirar, de digerir, de mexer as pernas, de ter um corpo, e não o de possuir uma alma.

Têm essas pessoas uma vida vegetativa a mais parecida possível com a do animal. Olhando certos animais, às vezes temos impressão de que possuem bem-estar. Quer dizer, eles sentem deleite de estar vivendo, mas não têm conhecimento desse deleite.

São Tomás de Aquino, com uma linguagem muito precisa, diz que o bicho não conhece nada. Ele tem notícia das coisas, mas não o conhecimento, que é uma compreensão intelectiva. A palavra “notícia” é perfeita. Por exemplo, um pássaro vê diante dele uma folha que cai. Ele tem notícia de que caiu alguma coisa, mas nem sabe que é uma folha; e não pensa a respeito disso, porque não tem pensamento.

Aqueles indivíduos são entes humanos; entretanto têm o menor grau de pensamento possível: “Que gostoso! Eu estou aqui sentindo viver. Estou mastigando, piscando, olhando, respirando, batendo as pernas, mexendo os braços, estou vivo”.

Sob certa perspectiva — mas que atinge uma realidade muito profunda — é o mais baixo grau aonde a criatura humana pode chegar. Essa é propriamente a descrição do dormente.

Os dormentes

Para tudo quanto é fenômeno de pensamento, de ideal, de ato de vontade, de definição, de atitude, eles estão no sono.

Sucede inúmeras vezes com todo indivíduo que, acordando de manhã, diz para consigo: “Que bom sono eu dormi essa noite!” Estando dormindo e não tendo consciência de nada, como sabe ele que teve um sono bom?

Em parte é porque, quando despertou e sentou-se na cama, as últimas névoas do sono estavam se retirando.  Ele não tinha acabado de dormir inteiramente e sentiu o gostoso do sono que ainda existia. E, por memória, teve a ideia de que aquele prazer, cujo último fim estava notando, ele havia sentido a noite inteira.

Esses indivíduos têm o gostoso de estarem acordados e sentados próximo aos chafarizes. E, de modo analógico, digo que eles estão dormentes.

Como se chega a esse estado?

A graça atua no fundo das pessoas, máxime das batizadas, e proporciona movimentos de alma elevados, nobres.

A Revolução explora o desejo do gostoso

Mas, de outro lado, o corpo age no sentido de a pessoa se entregar aos meros prazeres materiais. Quando criança, ela pensa, por exemplo: “Como é gostoso correr de bicicleta, tomar vento!” E, em todas as idades: “Como é gostoso megalar(2)!” Ela comparece no colégio com um sorvete especial que comprou, dizendo que um sorveteiro perto de sua casa lho deu porque a achou muito simpática; inventa uma série de mentiras.

 Tais indivíduos querem levar uma vida gostosa e recusam os movimentos da graça que conduzem suas almas para as coisas mais elevadas. E se alguém afirma que a vida não consiste em gozar, mas é necessário o sacrifício, consideram-no como louco e não se interessam por ele.

Cada época revolucionária que sucede outra acrescenta um gostoso para a vida.

Por exemplo, a sensualidade. O pecado contra a castidade, há trinta anos atrás, tinha a intensidade X, a frequência X. Mas as modas tornaram-se cada vez mais imorais, o convívio entre as pessoas de sexo diferente foi ficando mais frequente, mais livre e menos controlado. A Revolução na mentalidade delas caminha em direção ao cada vez mais gostoso.

Nós nos opomos a isso, somos os arautos do sacrifício, os que lutam contra o mero gostoso, a favor de um ideal; assim, estragamos a festa daqueles que só procuram o gozo. E não pugnamos por um ideal qualquer, mas por um ideal de Fé. E a Fé não se refere a uma crença religiosa qualquer, mas à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isso os revolucionários rejeitam e dormem porque já não têm remorsos. Estão entregues completamente às suas próprias delícias, lamentando precisar aguentar dificuldades, inconvenientes, etc. E por esse processo vai ficando cada vez mais fácil adormecer os partidários do gostoso.

E existia uma terceira categoria: os que vão e vêm, olham a campanha, e os que estão sentados, mas não prestam atenção. Esses estão dormindo também? O que se passa na alma deles?

Um deles é, digamos, um advogado que vai ao escritório de um outro para discutir uma questão, e está preparando seu raciocínio para derrotar o colega. Ele passa tão preocupado, que não presta atenção em nossa campanha ou a observa muito por alto.

O mesmo pode acontecer com um médico que se dirige à casa de um cliente, o qual ele examinou na véspera, consultou alguns livros e colegas, mas está na dúvida quanto ao diagnóstico. Às vezes, a vida de um paciente depende do diagnóstico de seu médico: opera ou não opera? Se for feita a cirurgia, provavelmente ele morrerá. O que fazer?

É possível que isso também suceda a um homem de negócios, o qual se pergunta: “Telegrafo ou não para os Estados Unidos ou Canadá a fim de fechar um negócio?”

Porém, a maior parte dos passantes está pensando nos seus próprios interesses, muito menos cogentes. Um caminha para o seu escritório, mas não tem nada de muito importante para tratar; outro é médico que vai ver um cliente atingido por um resfriado muito forte, ao qual ele quer receitar um remedinho; um terceiro é homem de negócios que, para fechar um negociozinho em algum lugar da Espanha, precisa dar um telefonema. São coisas que não preocupam.

Entretanto, são da mesma categoria daqueles que estão em torno dos chafarizes. Eles fazem andando o que os outros fazem sentados. Julgam que os trabalhos e os problemas da vida são interessantes e a eles se dedicam para ganhar dinheiro, pois este proporciona facilidades gostosas para a vida.

Alguns acionam o intelecto porque acham gostoso

Poder-se-ia perguntar: como é possível uma pessoa achar gostoso enfrentar complicações?

A resposta é simples. Em vários jornais do mundo há uma secção onde se publicam problemas de xadrez. Viajando de ônibus ou de trem, às vezes há passageiros procurando solucioná-los. Tomam as questões existentes somente no tabuleiro, não na própria vida, e gostam de resolver problemas difíceis porque pertencem a uma categoria um pouco mais elevada do que os amantes do gostoso, sentados em torno dos chafarizes.

Eles usam a inteligência, que é uma faculdade tão nobre, não para conhecer a verdade, o bem, o belo, Deus, mas porque acham gostoso acionar o intelecto. Assim, são eles semelhantes aos indivíduos dos chafarizes.

É comum verem-se nas ruas pessoas correndo a pé, usando traje o mais sumário possível, achando que estão fazendo um bonito papel junto aos outros.

Antes desse desastre de automóvel que me semi-imobilizou(3), eu andava pouco, pois não gostava de fazê-lo. E pensava o seguinte: “As minhas pernas foram feitas para me carregar e não para que eu as carregue. Um homem que anda pelo gosto de andar, vai carregando as pernas pelo caminho. Eu ando apenas se for necessário”.

Quando eu era menino me diziam:

— Para você ser um homem forte é preciso fazer esporte.

Eu cogitava: “Não acredito nessa balela. Sinto em mim mesmo que serei um homem razoavelmente forte e não vou fazer esforço físico, pois não tenho obrigação de tornar-me um touro. Preciso pensar, ler, lutar, tenho um ideal para servir”.

Os que somente pensam em jogar xadrez são esportistas da cabeça: não procuram um livro para resolver um alto problema, nem indagam sobre as elevadas questões da inteligência e da vida, porque não lhes interessa. A seu modo, são vegetativos; vegetam com o espírito.

Compreendo que uma pessoa jogue xadrez para descansar o espírito. É legítimo, como beber água.

Qual a diferença entre a mentalidade dessas pessoas e os membros de nosso Movimento?

A parábola do fermento

Considerem uma paróquia. Antigamente a Espanha era uma nação com muitas vocações sacerdotais. Mas deve estar havendo uma infeliz diminuição dessas vocações.

A Igreja espera e nós esperamos que, se em cada paróquia com quatro ou cinco mil fiéis houvesse dois ou três padres completamente da Santa Igreja Católica, e contrarrevolucionários, uma cidade mudaria.

Células de uma alta vitalidade, com uma missão divina — o sacerdócio —, e por isso favorecidos especialmente pelas bênçãos de Deus, eles poderiam levar quatro ou cinco mil pessoas. É a realidade evidente.

Nosso Senhor estigmatizou essa adoração das maiorias numéricas quando empregou aquela parábola tão bonita da massa e do fermento, dizendo aos Apóstolos: “Vós sois o fermento. A massa são os outros. Vós deveis fermentar a massa”.

A cena que presenciei hoje na “Puerta del Sol” era o fermento agindo…

Pouco importa que grande número de pessoas recuse. Não se trata de transformar tudo em fermento, mas de fermentar a massa. Assim se reconquista o país.

O participante da campanha deve se perguntar: “Como está minha alma quando vou para a rua? Qual é o meu grau de fervor e de amor à nossa Causa? Enquanto estou abordando as pessoas, etc., lembro-me de que a Providência está seguindo a cada um de nós e se servindo de minhas palavras para falar-lhes?” De fato, alguma delas pode logo depois ser chamada por Deus, como aconteceu com o nosso Lúcio(4), cujo nono mês de morte se celebra hoje. Tendo agora um bom movimento, um ato de amor, poderá receber os últimos sacramentos e salvar sua alma.

Se cada um de nós durante a campanha se lembrasse disso sumariamente…

São João Batista Vianey, Cura d’Ars, na França, viveu no século XIX e praticava milagres. Foi um grande Santo.

Dom Chautard, em seu livro magnífico “A Alma de Todo Apostolado”, o qual lhes recomendo muito, conta este fato:

Um advogado de Paris viajou até Ars para conhecer o Santo. Tendo regressado, um amigo perguntou-lhe:

— O que você foi ver em Ars?

— Fui ver Deus num homem.

Devemos ser mais modestos. Não suponhamos que se vai ver Deus em nós; nossa dimensão não é essa, pelo menos por enquanto. Mas se pode ver em nós nosso Anjo da Guarda, no qual se pode ver a Deus.

Em termos mais concretos: pode-se perceber algum reluzimento da graça também em nós. E esse é o ponto essencial da campanha.

Atrair os maravilháveis

Aquelas pessoas que estavam em torno dos nossos, após lhes ser explicada a campanha, entendiam melhor e ficavam maravilhadas.

A campanha realiza o fundamental de sua tarefa: atrai os maravilháveis, o que da Espanha é espanhol. Através desse aspecto da alma espanhola, Dom Pelayo(5) começou sua epopeia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1988)

 

1) Situada no centro de Madri.

2) Palavra criada por Dr. Plinio para indicar a mania de imaginar-se possuidor de qualidades que não tem, ou exagerar as que possui.

3) Em 3 de fevereiro de 1975, Dr. Plinio sofreu grave acidente automobilístico, na estrada Jundiaí-Amparo, Estado de São Paulo

4) Lúcio Chao. Membro do Movimento fundado por Dr. Plinio, o qual morreu em Madri, vítima de atropelamento.

5) Dom Pelayo (+ 737), chefe dos visigodos e Rei das Astúrias; em 718 obteve a vitória de Covadonga, considerada como o início da Reconquista espanhola.

 

Lição das flores

A rosa, a orquídea, a tulipa, três belas flores criadas por Deus. Que ensinamentos elas nos dão? Acompanhemos Dr. Plinio na consideração destas maravilhas.

 

Há três flores que especialmente me agradam: a tulipa, a rosa e a orquídea.

A rosa

Para meu gosto pessoal, a rosa ocupa o primeiro lugar entre as flores. Ela é inteiramente bonita, perfeita e acabada, é uma glória, uma beleza, uma maravilha.

A rosa é eminentemente ordenada. Nela, todas as pétalas estão postas em ordem e todas as suas formas de beleza obedecem a um raciocínio. Eu estaria longe de afirmar que a rosa é planejada, mas dir-se-ia que, como que, um poeta a planejou. Sim, Deus Nosso Senhor a planejou, a destinou.

Ela tem o perfume próprio à sua forma de beleza. A rosa tem a beleza da ordem prevista, racional e explícita, ela é uma soberba explicitação do conceito da beleza.

A orquídea

Depois da rosa, na escala das flores, está uma que é abundante no Brasil e na Colômbia: a orquídea.

Se a rosa traz consigo o esplendor da ordem, a orquídea é bem o contrário! Ela é singular, prega surpresas. Suas pétalas se “movem” semelhantemente a um “ballet”. Parece dançar um “ballet” vegetal para direções que ninguém imagina.

Sua parte central possui uma beleza magnífica, mas imprevista. Algumas destas flores têm, por exemplo, uma coloração branco-avermelhada na orla de suas pétalas que vai se intensificando e assumindo uma profunda cor vermelha à medida em que se aproxima da parte central, de modo que quanto mais se aproxima do interior da flor, mais misteriosa fica. Tem-se a impressão de que há um vermelhíssimo sublime que não se mostra, por uma espécie de recato.

Assim, as orquídeas possuem uma beleza fantasiosa, inesperada, de uma alta distinção, mas de uma distinção que parece dizer a quem a vê: “Confessa que tu não me imaginavas e que eu sou superior a tudo quanto pensavas”.

Há um “não me toque” na orquídea, que faz parte de outra família de beleza. Não é a beleza da desordem — porque a desordem não tem nenhuma forma de beleza —, mas é uma forma superior da ordem, que o raciocínio não constrói e que só a fantasia sabe compor.

Dir-se-ia que a orquídea é semelhante ao espírito de duas nações latino-americanas psicologicamente muito parecidas: Brasil e Colômbia.

O capricho, o inesperado, o entusiasmo; às vezes, o ressentimento, a vingança; conforme a ocasião, a violência, mas sempre seguida de uma reconciliação afetuosa; todo este “vai-e-vem temperamental” muito comum no brasileiro e no colombiano, estão marcados de alguma maneira na orquídea.

A tulipa

A tulipa, por sua vez, é uma flor tão bonita que, quando a vemos, nos perguntamos se algo pode ser mais belo do que ela. É grande sua variedade de cores, mas entre as mais belas está a bordeaux. Ao contrário das cores da orquídea, a tulipa tem uma coloração leal, estável, definida.

Enquanto a orquídea é, como que, uma parasita, o todo da tulipa fala de autossuficiência, de independência. Ela se levanta altaneira, e carrega, bem na ponta, uma espécie de equilíbrio. É um equilíbrio um pouco altivo, as próprias folhas cercam a haste e se desprendem para deixar passar a haste, a qual vence todos os obstáculos, se afirma quase como uma lança.

Alguém poderia perguntar: em síntese, qual é então a beleza da tulipa? Eu diria que é beleza da harmonia. Há uma proporção entre a altura, o diâmetro, o tamanho de cada pétala, que faz dela uma obra-prima de coerência. E quando se admira isto, sente-se alegria de ser um ente racional, sente-se a beleza da razão. É uma ordem de belezas no estilo da maravilhosa Europa: equilibrada, racional!

Certa vez, ao saber que existiam tulipas negras, tive certa perplexidade e me perguntei: “Para que servirá uma flor preta? Será para cruzes de Missas de defunto? Eu não compreendo. Mas haverá uma razão qualquer para que Deus tenha criado a tulipa negra”.

Qual não foi minha surpresa quando, passando de automóvel por uma rua de Paris, vi um jarro com tulipas de várias cores, entre as quais havia também uma negra, posto junto à vitrine de uma loja.

O automóvel passou rápido — com a rapidez dos velhos táxis da França —, e eu arregalei os olhos com aquilo, mas, sobretudo, regalei minha inteligência, compreendendo a razão de ser daquela maravilha de Deus.

Ao analisar o jarro e ver como a tulipa negra realçava a beleza de todas as outras cores, eu compreendi por que Deus criou as tulipas pretas. Era tal o contraste produzido por ela junto às demais cores, que se alguém quisesse tirá-la de lá eu diria: não tire, porque é uma das notas mais bonitas do jarro.

Era uma forma de fantasia racional, à maneira francesa. Era um teorema a respeito de cores.

Escala de valores

A análise destas flores nos dá uma interessante lição:
Para muitos homens, só tem verdadeiro valor aquilo que for de primeira ordem; o que for de segunda não serve para nada, é lixo. Isto não é verdade, há uma gradação entre as coisas, a qual nos incita a amar a beleza própria a cada grau.

Bela como a rosa, para meu gosto, a tulipa não é. Entretanto, ela não é de “segunda classe”, no sentido pejorativo da expressão.

A escala hierárquica não impõe um achatamento do inferior, mas sim um “resplandecimento” do superior.

Até entre as flores há uma hierarquia de valores. Aplicando o princípio de hierarquia à análise feita, podemos dizer que a rosa e a tulipa são as flores do anti-igualitarismo. Uma é bela no grau supremo; a outra, não sendo a primeira, dá a Deus glória, mostrando a beleza que há também nos graus intermediários.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/3/1971)

Energia combativa

A história do pontificado do grande Pio IX mereceria ser estudada a fundo pelos católicos. Ela contém ensinamentos para nossa época muito mais oportunos e profundos do que geralmente se pensa.

Quer pela definição do dogma da Imaculada Conceição, em 1854, quer pela convocação do Concílio do Vaticano em 1869, e a definição do dogma da infalibilidade papal no ano seguinte, este grande Papa enfrentou aguerrida e resolutamente o naturalismo e o racionalismo do século.

Pio IX julgou que a época era ainda menos propícia do que outra qualquer para uma atitude de impassibilidade sorridente, cujo efeito necessário seria o encorajamento dos maus e o entibiamento dos bons. Com isto, calcando aos pés qualquer falso sentimentalismo, Pio IX enfrentou decididamente a impiedade.

Sua energia combativa venceu. Depois da definição do dogma da infalibilidade pontifícia pelo Concílio do Vaticano, a onda do racionalismo naturalista tem decrescido incessantemente, e embora ela ainda conserve formas disfarçadas dignas da maior cautela dos católicos, é certo que perdeu aquela agressividade truculenta e blasfema com que se pavoneava nas altas rodas literárias, políticas e sociais da Europa do século XIX.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “O Legionário” de 18/12/1938)

Eucaristia – Mane nobiscum Domine

A Sagrada Eucaristia constituiu um dos principais pilares da espiritualidade de Dr. Plinio. Inaugurando a seção “Ardoroso devoto da Eucaristia”, procuraremos dar a lume o amor que transbordava de sua alma: “A boca fala do que transborda o coração!” No presente artigo, Dr. Plinio nos ensina a bem nos prepararmos para a Sagrada Comunhão.

Para compreender a variedade de métodos e modos que há para realizar a ação de graças e a preparação para a Comunhão, é necessário compreender o modo pelo qual a graça trabalha as almas. O Apóstolo São Paulo afirma que “stella differt stella”(1) — uma estrela é diferente da outra. Desta forma, não existem dois santos iguais, pois cada qual tem sua vida espiritual própria, com características inconfundíveis. E, como não pode deixar de ser, a graça guia cada alma no caminho da virtude de acordo com seus desígnios, proporcionando atrativos, ou também aversões, que modelam o espírito e indicam o itinerário que a alma deve seguir.

Portanto, não se pode dizer que um método de preparação para a Comunhão é igualmente válido a todas as almas.

Entretanto, São Luís Maria Grignion de Montfort possui um ponto de vista marial para a Comunhão, onde ele coloca Nossa Senhora como mediadora entre Deus e quem recebe a Eucaristia. Isto sim é valido para todos os católicos, em todos os tempos e lugares. Sendo a variedade de métodos imensa, descreverei, então, um que possa ser benéfico a todos.

Ação de graças por meio de Maria

Sendo Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima é perfeita. Ele A criou com tudo quanto Ela deveria possuir para ser sua Mãe. Concebida sem pecado original desde o primeiro instante de seu ser; Virgem antes, durante e depois do parto, de tal forma perfeita, que em todos os instantes de sua vida nunca deixou de corresponder inteiramente à graça de Deus, estava numa altura inimaginável de virtude quando chegou o momento bendito em que Deus resolveu colhê-La da Terra para o Céu!

Nossa Senhora é também Mãe de todos nós, e a Mãe tem sempre pena do filho mais esfarrapado, mais torto e mais desarranjado. Quanto pior o filho, mais Ela se compadece.

Devemos, pois, ao receber a Eucaristia, nos colocar na presença d’Ela como filhos necessitados, implorando que Ela tenha pena de nós. Naturalmente, Ela sempre se compadecerá em relação aos seus filhos. E quando o Divino Filho d’Ela vier a nós na Comunhão, será por sua intercessão.

Contudo, o pedido feito por Maria a seu Divino Filho, é que Ele entre na “cabana” que é a alma de cada um de nós. Mas essa “cabana” pode ser ordenada e enfeitada por Nossa Senhora, para que esteja agradável a Ele. E, como a intercessora é a própria Mãe d’Ele, Nosso Senhor se sentirá comprazido.

Por isso devemos pedir que Nossa Senhora esteja espiritualmente presente em nossa comunhão a fim de que preencha, de algum modo, o infinito espaço que nos separa de seu Divino Filho, o qual nos acolherá satisfeito por havermos recorrido à sua Mãe. Ele então nos dirá: “Tu és um filho de Maria, minha Mãe; pede-me o que queres”. Ao que devemos responder: “Senhor, antes de pedir, eu Vos agradeço! Quanta bondade, quanta misericórdia! Mas, como agradecer-Vos suficientemente? Suplico, pois, à Vossa Mãe — que também é minha — que agradeça por mim”.

Servir-se das moções espirituais na preparação para a Comunhão

Ao nos prepararmos para a Sagrada Comunhão, devemos também rememorar alguns momentos do dia que tivemos, como também as perspectivas do dia que ainda teremos diante de nós. Não me refiro aos problemas corriqueiros, mas sim, aos de nossa vida espiritual.

Supondo que se faça uma Comunhão vespertina, devo me perguntar como foi meu dia em matéria de vida espiritual: o que necessito, o que desejo, o que mais profundamente tocou minha alma e o que a atraiu mais durante o dia. Isto mais facilmente nos estimulará a um ato de amor, de louvor e de reparação mais perfeitos.

Caso haja um pensamento que considere ser mais fecundo para minha alma, é louvável concentrar nele minha atenção. Muitas vezes esses pensamentos correspondem a um atrativo especial da graça à alma.

Podemos também apanhar uma invocação de alguma ladainha que tenha tocado mais especialmente, por exemplo, a do Sagrado Coração de Jesus, e meditar sobre ela. Este é um modo muito vivo — e para muitas etapas da vida espiritual, excelente — de nos preparar bem.

Uma das invocações muito bonitas nesse sentido é: “Coração Eucarístico de Jesus”. Meditando nesta jaculatória, adoramos Nosso Senhor enquanto tendo o desejo de instituir a Eucaristia, movido por aquele amor especial que Ele demonstrou na última ceia: “Desejei ardentemente comer convosco esta ceia”.

O Coração Eucarístico de Jesus, transbordante de misericórdia, vem a nós na Comunhão; peçamos então que o Imaculado Coração de Maria nos prepare para bem recebê-Lo, a fim de que na Sagrada Eucaristia recebamos especialmente as graças que dizem respeito ao cumprimento de nosso chamado individual.

Este é um modo bonito e lícito de variar as ações de graças e as preparações para a Comunhão, quase ao infinito, de acordo com a inclinação e as aspirações da alma.

Aridez e consolação: benefícios distintos, porém, eficazes!

Haverá também ocasiões onde nossas Comunhões — segundo a linguagem muito adequada da piedade católica — serão áridas. Assim como a terra árida não produz fruto, temos, muitas vezes, a impressão da aridez em nossa alma: comungamos e não sentimos nada.

Reza-se e pede-se, mas tem-se a sensação de que nossas súplicas foram meros termos piedosos sem nenhuma profundidade. Nessa situação, qual o valor de aproximar-se do sacramento da Eucaristia? A pergunta que parece ser tão razoável, quando bem analisada mostra-se infantil.

Seria como a pergunta de uma pessoa que toma um remédio cientificamente certo de produzir um bem incalculável. Após a ingestão, e nos dez minutos que se seguem, não se sente melhora alguma. Neste caso, diríamos que tal medicina é ineficaz? Claro que não: seus efeitos se prolongarão no decurso dos dias, e até dos anos. Só então sentir-se-á a melhora desejada.

Algo parecido dá-se, sem dúvida, com a Sagrada Comunhão. Muitas vezes comungamos, mas a ação de graças é árida; abrimos um livro de piedade, mas o livro não nos inspira nada; temos impressão de que não adiantou rezar.

Ora, Deus visitou minha alma, mas a presença d’Ele foi inútil? Aquele que é Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, de todas as maravilhas, esteve presente em mim, e não me fez um bem sequer?

Devemos ter presente que, não raras vezes, a Comunhão inteiramente árida traz, em si, mais vantagens para a alma do que aquela que nos dá consolações inúmeras. Isto porque Nossa Senhora e Nosso Senhor querem, como homenagem, que peçamos ainda quando não percebemos como nossa oração Lhes é grata.

Ou seja, Ele não desejou que este contato fosse sensível, para que minha Fé crescesse. Pois muitas vezes Ele nos prova a fim de verificar se somos daquela espécie de almas que só creem quando sentem: “Tomé, tu creste porque viste; bem-aventurados os que não viram, mas creram!”

São Francisco de Sales, exímio nas comparações encantadoras, tem um magnífico exemplo:

Dois cantores apresentam-se sucessivamente ao rei.

Um deles é normalmente constituído em sua natureza física, e, enquanto canta, vê a fisionomia de encantamento do rei ao ouvi-lo. Ele ouve sua própria voz, nota como ela é bela, compreende como o rei se deleita com seu cântico, e, enfim, contenta-se em ver o rei comprazido. Este homem possui duas alegrias: de ver o encanto do rei, e de ouvir a sua própria voz.

O outro cantor, por sua vez, é cego e surdo! Ele não vê o rei, contudo sabe que o rei está lá; não ouve sua própria voz, mas diz ao rei: “Senhor, eu estou aqui por obediência. Na minha ‘noite’, eu não vejo onde estais; na minha surdez, não ouço minha voz; mas para fazer a vossa vontade eu cantarei, encantado de saber que minha voz também vos agradou!”

Qual dos dois músicos dá maior prova de amor ao rei?

Pois bem, muitas de nossas Comunhões são as do “cego e do surdo”. Não vemos, nem sequer sentimos a presença de Nosso Senhor em nós. Não percebemos como é bela a nossa súplica, nem como Ele se encanta com ela. Mas, pela Fé, cremos que estamos em estado de graça, e que Ele se alegra de estar em nós, ao ponto de dizer: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens”.

Ele estará realmente presente em mim, embora na aridez. Nestas horas, será de grande benefício lembrarmo-nos disso.

Aproveitando as perspectivas angustiosas…

Quando o meu dia não tenha contribuído para a sensibilidade eucarística, mas, pelo contrário, tenha sido um dia de luta, o qual deixa prever que o dia seguinte será angustioso, é louvável fazer que minha Comunhão centre-se nessa dificuldade, dizendo: “Senhor, em vossa agonia no Horto, quando suastes sangue, Vós fizestes a seguinte oração: ‘Pai, se for possível, afaste-se de mim esse cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha’; Senhor, eu temo o que vai me suceder, e estremeço de terror diante de uma hipótese que me gela até os ossos. Peço-Vos, através de vossa Mãe Santíssima, que afasteis de mim essa provação, mas, se essa não for a vossa vontade, faça-se a vossa e não a minha. E Vos peço que isso concorra para o bem de minha alma”.

Podemos rezar repetidas vezes nesse sentido, no momento em que se recebe a Eucaristia: “Senhor, Vós estais presente em minha alma, com inteira intimidade. E não pode haver intimidade maior que a vossa, quando, através da Sagrada Comunhão, Vos fazeis presente numa alma. Neste momento de dificuldade, Vos peço que ouçais o brado de angústia vindo de minha alma. Quantos Salmos inspirados por Vós foram também brados de angústia! Aqui está também o meu: Tende pena de mim, e atendei-me”.

Desenvolver a ação de graças em função das necessidades diárias

Muitas vezes, para bem nos prepararmos para o divino encontro com Jesus na Eucaristia, bastará nos lembrarmos de algo que lemos em algum livro de piedade, que nos marcou profundamente, ou então de alguma graça que recebemos no decorrer do dia.

Às vezes, algum aspecto novo de Nossa Senhora nos impressiona. Neste caso, nossa preparação poderá ser: “Nossa Senhora é Mãe de Nosso Senhor; Ele concedeu a Ela tal privilégio que eu não conhecia. Vou pedir a Ela que me obtenha na Sagrada Eucaristia tal favor que necessito”.

A propósito de qualquer movimento de piedade durante o dia, pode-se articular a Comunhão e depois a ação de graças. Caso tenhamos um dia de grande alegria, e essa alegria tenha sido um sinal manifesto da bondade de Nossa Senhora e de Deus Nosso Senhor para conosco, podemos fazer a ação de graças tomando em consideração esta graça recebida.

Quem recebe uma manifestação da bondade de Deus, deve contemplá-Lo como Ele se mostra: sorridente, afável, manifestando afeto e desejo de proteger-me. Neste caso, quando recebê-Lo, devo adorar n’Ele a bondade, o amor especial que Ele me tem, o encorajamento que Ele quis me dar em meu apostolado ou em minha vida interior.

Ubi Spiritus, ibi libertas, onde está o Espírito Santo, aí sopra a liberdade. Enfim, há uma tal variedade de movimentações das almas, que é impossível descrever todos os métodos que cabem para alguém fazer a Sagrada Comunhão. Aqui ficam, entretanto, algumas sugestões.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

(Extraído de conferências de 28/3/1967 e 4/2/1984)

1) I Cor 15, 41.

Formadora exímia

Vendo Dona Lucilia tão meticulosa, precisa e exigente — embora bondosa e suave —, constituiu-se em Dr. Plinio um essencial aspecto de sua personalidade: a combatividade contrarrevolucionária.

 

No que Dona Lucilia concorreu para que eu fosse contrarrevolucionário?

Enganar-se-ia quem supusesse que ela fez discursos, explicando que se deve ser combativo e contrarrevolucionário. Ela realizou uma coisa muito melhor, mais límpida, muito mais clara. Foi o seguinte: mamãe pôs em meu cérebro as seguintes coisas:

Em primeiro lugar, que Deus é o Ser supremo, Criador de todas as coisas e, portanto, merece nosso amor primordialmente. Mais do que à mamãe, eu deveria querer bem a Deus. Isso ela me ensinou muito bem, com o talento que têm as boas mães de falar aos filhos, de maneira que estes ouvem a voz delas como ao longo da vida não ouvirão voz nenhuma.

Antes de minha irmã e eu aprendermos a dizer “papai” e “mamãe”, aprendemos a dizer “Jesus”. Minha irmã era um ano e meio mais velha do que eu. Mamãe, estando de vez em quando em seu quarto, arranjando alguma coisa, colocava minha irmã nos braços e, apontando com um dedo para a imagem de Nosso Senhor, de modo que os olhos da criança acompanhassem, dizia-lhe sorrindo afetuosamente, meigamente: “Onde está Jesus? Jesus está ali. Agora repita: Jesus, Jesus.” Minha irmã, que tinha muita vivacidade, respondia: “Jesus, Jesus.”

Depois ela fez a mesma coisa comigo. De maneira que mais tarde, quando chegava a hora, espontaneamente íamos aprendendo a dizer “papai”, “mamãe”, como todas as crianças.

Antes e acima de tudo, precisamos cumprir os Dez Mandamentos 

A segunda ideia é que, em relação a Deus, nós temos deveres os quais são mais importantes do que as obrigações para com qualquer pessoa na Terra. Devemos obedecê-Lo antes e acima de tudo, cumprindo os dez Mandamentos.

Já no meu tempo de criança — nasci em 1908 —, a preocupação principal de um grande número de paulistas era ficar rico. Ficou rico, acertou na vida. Não ficou rico, foi um nulo. Perdeu fortuna, tornou-se pobre, foi um elemento negativo na vida, desprezado por todo mundo.

Mamãe dizia o contrário: “Eu prefiro ter um filho empobrecido, tido em conta de nada, mas que cumpra os Mandamentos da Lei de Deus, do que um filho rico, a quem todo mundo faça cortesias, mas que não pratica os Mandamentos. A primeira obrigação é fazer a vontade de Deus; as outras coisas vêm depois.”

Fazer a vontade de Deus significa conhecer o que Ele ensinou e cumprir exatamente o que Ele mandou. Não se pode relaxar, dizendo: “Dou tal jeitinho.” É preciso, antes de qualquer outra coisa, cumprir inteiramente a vontade de Deus com amor.

“Uma espécie de libré da Revolução”

E, pelo seu modo de ser, ela era muito minuciosa nas coisas. Nos tempos de minha infância tudo era diferente de hoje. Atualmente, as senhoras compram roupas feitas em lojas. Naquela época, para tornar o trabalho mais cômodo, mandavam vir uma costureira em suas casas. Eu vi muitas vezes mamãe experimentar vestido com a costureira. Notando algumas dobrazinhas, mamãe dizia: “Aqui falta não sei o quê. Ali precisa fazer tal coisa”, até que o vestido ficasse na perfeição, porque o que ela fazia era perfeito.

Lembro-me de que, quando se tratava de fazer roupas para nós, mamãe também mandava vir a costureira, para elaborar uma roupa de menina para minha irmã, e para mim um traje de menino.

Quando chegava a minha vez de experimentar a roupa, eu tinha que ficar de pé, e Dona Lucilia dizia à costureira:

— Olha aqui, as costas não estão caindo bem. Por favor, ponha um alfinete aqui no paletó do Plinio e vamos ver se assim fica melhor.

A costureira objetava:

— Não vai bem, Dona Lucilia, porque se prende aqui, puxa lá.

E mamãe:

— É verdade, então vamos pensar um pouco onde colocar esse alfinete…

E isto ia de alfinete em alfinete, e eu já não aguentava mais…

Para escapar das provas das roupas, certo dia eu disse a Dona Lucilia:

— Olha mamãe, deixa que eu mesmo me arranje com o meu alfaiate.

E comecei a ir a qualquer alfaiate no centro da cidade, que não tinha interesse em fazer uma boa roupa, nem eu dava a mínima importância aos meus trajes. Ele punha os alfinetes onde queria, eu dizia que estava muito bom. Quando eu vestia a roupa pela primeira vez, eu nem prestava muita atenção, porque achava que aquele traje era uma espécie de libré da Revolução. É claro que eu tinha razão. Aquilo não era uma roupa minha; a Revolução é que estava impondo tais trajes e eu os usava com relaxamento ostensivo, desdenhoso, fazendo pouco caso.

Servir a Deus com ufania

Mas aprendi com mamãe que as coisas verdadeiramente sérias devem ser feitas até o último ponto do exato; por exemplo, a Doutrina Católica. Se um Papa ensinou uma coisa, gozando do privilégio da infalibilidade, falando “ex cathedra”, ou seguindo o ensino ordinário, repetindo o que outros Papas disseram, devemos crer. Mas, para acreditar, a pessoa precisa ler o que o Sumo Pontífice escreveu, para compreender bem o que ele quis dizer, e depois quais são as consequências que decorrem, embora não estejam presentes porque o Papa não pode escrever tudo; há muita coisa que é preciso saber deduzir. E deduzir por inteiro e cumprir por inteiro, brigue com quem brigar, encrenque com quem encrencar, mas é necessário fazer.

Não basta isso. Deve-se servir a Deus não de modo escondido, com vergonha, mas com ufania e, portanto, ostensiva e publicamente.

Por exemplo, usar o terço. No tempo de minha juventude, homem nenhum usava o terço. Eu comprei um terço e comecei a usá-lo publicamente. Era uma afronta.

A alta sociedade de São Paulo era pequena, de maneira que todos se conheciam e, portanto, eu era conhecido por todo mundo. E, para fazer uma afronta maior a eles, nem comprei um terço de homem, mas um azul claro de Filha de Maria. Nas igrejas, diante de meus colegas da faculdade, eu puxava o tercinho e começava a rezar. Porque, se é preciso afrontar, vou afrontar até o fim! Assim, todos os cuidados que Dona Lucilia punha nos alfinetes e nos vestidos eu colocava na profissão da Fé Católica.

Encontro com um rapaz muito rico, mas profundamente revolucionário

Recordo-me de que naquele tempo havia um rapaz muito rico no colégio em que eu estudava. E na casa dele esteve hospedada a Família Imperial brasileira, no ano de 1922.

Todos se lembrarão com certeza que a Independência do Brasil foi proclamada em 1822, tendo o Brasil se tornado nação separada de Portugal. Em 1922 fez cem anos em que o Brasil estava independente e se realizaram festas, comemorações etc. E entre essas comemorações houve um decreto do Presidente da República, Epitácio Pessoa, que era um homem muito inteligente, culto, nobre, revogando o banimento dos descendentes de D. Pedro I. De fato, era um absurdo que, na comemoração do centenário, os descendentes do imperador que tinha proclamado a independência, não pudessem pôr os pés no Brasil sem serem levados para a cadeia. Era um decreto feito pela liberalidade do Governo republicano. Assim, a Família Imperial veio para o Brasil.

Minha avó e minha mãe eram muito monarquistas; e minha avó mantinha correspondência com a Princesa Isabel etc. Quando os membros da Família Imperial chegaram a São Paulo, foram logo visitados por minha mãe e minha avó, em casa de uma família riquíssima — creio que era a família mais rica daquele tempo —, a qual lhes ofereceu apartamentos suntuosos para se hospedarem.

A senhora dona dessa casa tinha netos que eram meus colegas no Colégio São Luís, de maneira que nos conhecíamos e nos tratávamos.

Um desses netos era um rapaz finíssimo, muito bem educado, com jeito de verdadeiro aristocrata, mas comunista apaixonado; depois se tornou um dos líderes comunistas mais conhecidos do Brasil.

Esse rapaz, nas horas vagas, fazia um pouco de sala para Dom Pedro Henrique e um irmão deste, que morreu ainda menino, em odor de santidade: o príncipe Dom Luís Gastão. Dom Pedro Henrique jogava tênis com o futuro líder comunista ao qual me referi.

Quando a Família Imperial foi embora, certa vez eu estava indo de bonde para o Colégio São Luís e, numa esquina da Avenida da Consolação, vejo entrar esse rapaz; não nos gostávamos, era natural. Ele sentou-se ao meu lado; após pequenos cumprimentos frios, ele me perguntou:

— Você esteve com a Família Imperial?

Respondi:

— Estive, sim.

— Você esteve muito com o Pedro Henrique?

— Várias vezes. E você também?

— Sim, eu joguei tênis com ele.

Após uma pausazinha, ele disse:

— Já estou vendo como você tratou a ele de Alteza, não é?

Eu estava percebendo que ele estava armando uma caçoada por cima de mim; então, voltei-me para ele e disse:

— Sim, senhor. Alteza! Você como tratou?

— Ah, não! Eu tratei de você, porque sou democrata.

— Pois bem, é fácil ser democrata com um príncipe que perdeu o trono. Mas com príncipe que está no trono você trataria de Alteza, não é?

— Não me amole!

— Amolo, sim, porque essa é a lógica.

Fomos até o Colégio São Luís sem conversarmos. Ele já morreu; depois desse fato, nós nunca mais nos falamos. Esse era o modo de ser combativo já para uma criança.

Como o menino Plinio classificava seus estudos

Como expliquei, eu não me importava com a minha roupa, porque era a libré da Revolução; porém, quanto aos meus estudos minha atitude era diferente.

Eu classificava meus estudos em dois grupos: aqueles que se relacionam com a Revolução e a Contra-Revolução; os que não se relacionam.

Estudos que têm relações com a Revolução e a Contra-Revolução:

Primeiro, a Religião: aprender o catecismo melhor do que todas as outras coisas. Em segundo lugar, o Francês, idioma que eu admirava, já conhecia e falava correntemente, e do qual gostava muito. Eu compreendia que o meio de combater a influência Hollywood do cinema era manter a cultura francesa. Então, chegando junto aos colegas eu dizia:

— Que linda língua o Francês!

Um deles logo me respondia:

— Não, o Inglês é muito mais bonito.

— Nunca! Onde é que você está com a cabeça?

— Serve melhor para entender as fitas de cinema.

— Mas isso não quer dizer nada, pois essas fitas não valem nada.

E saía uma discussão…

A grande matéria, depois de Religião: História. Analisando como tinha sido o passado, vim a compreender melhor o presente. Execrei a Revolução Francesa. E tudo quanto pode haver de ódio ao mal no coração de uma criança, havia no meu coração contrarrevolucionário.

Eu gostava muito de Latim; a boçalidade do cinema era contrariada pela penetração do Latim. E apreciava também análise lógica: sujeito, verbo, objeto direto, indireto, complemento circunstancial de tal espécie… Então, tomar uma frase e desarticulá-la, entender as palavras, pôr em ordem: coisa magnífica!

Tudo isto já visava a combatividade.

Por fim, comecei a formar meu vocabulário. As pessoas que, segundo me parecia, falavam um Português bonito eram muito mais velhas do que eu; mas eu me colocava perto delas para ouvi-las falar e notava as palavras que não se diziam todo dia, as quais, entretanto, tinham suco, eram ricas de significado. E comecei a empregar um vocabulário antigo. Muitas pessoas ficavam indignadas porque era uma provocação; e eu sustentava a provocação.

Aí está, conforme a formação dada por Dona Lucilia, a origem de minha combatividade. Dessa forma, ao que me foi perguntado, respondo com muito afeto.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 11/2/1995)