Ponto culminante na luta entre o bem e o mal

Depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o mal nunca teve tanta audácia em se mostrar como na Revolução Francesa. Na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é uma espécie de ponto culminante. Ela pode ser considerada, sob esse aspecto, como um grande e horrível livro no qual se aprendem verdades terríveis e admiráveis.

 

Suponhamos a existência de um palácio tão admirável que, se não tivéssemos conhecido pelo menos em fotografia, nossa mente não seria capaz de imaginá-lo.

Encanto por um belo palácio

Entretanto, obtida uma boa fotografia, a mostrássemos a um colega que nos dissesse:

– Mas que palácio lindo, que fotografia maravilhosa! Você não poderia me emprestar isto durante alguns dias para eu levar para casa?

– Por que olhar isto, qual é a vantagem? – perguntaríamos para experimentá-lo.

– Não sei, isso eleva a minha alma. Vendo esse palácio, esses mármores, essas tapeçarias, esses móveis, o prédio na sua beleza, na sua distinção, em sua imponência, a minha alma como que sobe. E sinto necessidade disto, porque tudo no mundo contemporâneo abaixa, deprime, avilta, corrói, destrói, decepciona. Encontrei algo que produz o efeito contrário na minha alma; isto é o remédio. Se você pudesse me dar uma cópia dessa fotografia, seria a maior obra de caridade que me faria, porque fico encantado com esse palácio.

Notaríamos imediatamente a nobreza de alma de nosso interlocutor e pensaríamos em nosso íntimo: “Certamente vou fazer o sacrifício de dar-lhe essa fotografia, porque ela realiza o papel de um par de asas para a alma dele subir mais alto, até Nossa Senhora, a fim de aumentar os horizontes intelectuais dele e, com isso, seus horizontes religiosos, espirituais. Se esse palácio é uma imagem do Céu na Terra, este pobre coitado, que não tem ideia alguma do Paraíso, ao contemplar esse palácio poderá sentir-se mais elevado rumo ao Céu, para onde eu quero tanto que ele vá.”

Ódio a tudo que é distinto, nobre, elevado

Imaginemos agora o contrário:

Um de nós está folheando um álbum com fotografias do Palácio de Versailles. Alguém se aproxima e pergunta:

– O que tem Versailles de extraordinário?

– Ora, Versailles é uma obra de Deus.

– De Deus não, foi o Rei Luís XIV que mandou o arquiteto Mansart fazer os planos e construir o palácio. Deus não entrou em nada nisso.

– Versailles é filho dos homens, é verdade, mas os homens são filhos de Deus; logo, Versailles é um neto de Deus, como diz Dante Alighieri. Tudo o que existe, direta ou indiretamente, foi feito por Deus. Portanto, admire esse palácio porque é um meio de chegar até o Criador. Pois para amar a Deus que não vemos é preciso amarmos as criaturas terrenas que vemos. Versailles é uma criatura de Deus; amemo-la para amarmos inteiramente a Deus. Você não o acha bonito?

– Sim, e precisamente por isso eu o odeio, porque detesto tudo quanto é nobre, distinto e eleva o espírito.

Aqui estariam delineadas duas visões opostas da vida: uma é a dos filhos da luz, de Nossa Senhora, Ela mesma de uma perfeição, beleza e santidade maiores do que tudo quanto possamos imaginar. A outra é a dos filhos das trevas.

Santa Bernadette era de educação muito primitiva…

No século XIX, na gruta de Massabielle, na cidadezinha de Lourdes, Nossa Senhora apareceu a uma camponesa chamada Bernadette Soubirous, filha de um casal extremamente pobre. Era gente do povo, reta, de costumes muito bons, mas de educação bastante primitiva, porque eram trabalhadores manuais da terra e não tinham contato com nada de superior, de mais elevado.

Um dia em que estava perto dessa gruta, Bernadette escutou uma voz e, olhando para o seu interior, viu uma Senhora de uma beleza admirável. Era Maria Santíssima em pessoa que começou a dirigir-lhe a palavra. A jovem camponesa, com toda a simplicidade, principiou a falar com Nossa Senhora, mantendo as mãos postas na atitude de quem reza.

A Santíssima Virgem deu-lhe uma série de explicações e depois acabou recomendando-lhe que arranhasse a terra ali onde ela estava, pois começaria a aparecer água. A água se tornaria mais abundante e, de um simples filão, passaria a ser uma corrente de água forte, grande; usando essa água muitas pessoas se curariam e ali se tornaria um lugar onde Nossa Senhora seria muito glorificada.

Bernadette imediatamente começou a arranhar o chão, que era uma terra comum. E, para seu espanto, ela viu que de repente começou a minar água, apareceu um regato e formou-se o tal curso de água.

Houve várias visões e Santa Bernadette, em sua ingenuidade, contava para o povo. Então, cada vez que estava marcada uma aparição de Nossa Senhora, um número crescente de pessoas vinha para presenciar o fato.

A Santíssima Virgem só aparecia para Santa Bernadette, a qual falava de tal maneira que se percebia estar vendo alguém, embora os circunstantes não ouvissem as respostas de Maria Santíssima.

…mas se nobilitava quando conversava com Nossa Senhora

Certa ocasião li este bonito depoimento de um padre que presenciou as aparições: ele, que frequentara ambientes da alta sociedade, tratara com gente de muita categoria e vira, portanto, senhoras de muita distinção, declarava nunca ter notado um sorriso tão bondoso, uma atitude tão fina, distinta e amável num rosto feminino, do que em Santa Bernadette quando conversava com a Santíssima Virgem. Portanto, segundo ele, não havia marquesa nem duquesa francesa que se comparasse com a elevação de Santa Bernadette que, nesses momentos, se nobilitava inteira e ficava com uma distinção extraordinária. Terminada a conversa, ela voltava imediatamente a apresentar a fisionomia tosca de uma simples camponesa.

Esse pormenor das aparições de Lourdes mostra bem o quanto Deus ama tudo aquilo que é distinto, nobre, que se parece com a Mãe Santíssima d’Ele, a mais perfeita das criaturas.

Há uma canção na qual Nossa Senhora é invocada como “summi Regis palatium” – palácio onde habita o sumo Rei. Ela é comparada a um palácio porque o Verbo de Deus, ao encarnar-Se, habitou dentro d’Ela. Durante todo o tempo em que o Corpo sagrado de Nosso Senhor esteve sendo gerado e desenvolvido pela Santíssima Virgem, até o momento do nascimento, Ela foi o palácio de Cristo na Terra, mais excelente e magnífico do que todos os palácios reais e de tudo quanto se possa imaginar, porque feito para abrigar Aquele que é o próprio Deus feito Homem.

Explosão de ódio contra tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom

Isso posto, compreende-se que se daquelas duas mentalidades opostas acima descritas – uma favorável e outra contrária à existência de palácios – se constituíssem dois grupos de homens, eles entrariam em luta um contra o outro, porque um amaria e outro odiaria tudo quanto é verdadeiro, bom e belo. Teríamos uma luta tremenda parecida com a batalha entre São Miguel Arcanjo e os Anjos bons, de um lado, e os demônios capitaneados por Lúcifer, de outro lado.

Ao se revoltar contra Deus, Lúcifer, até então o anjo que conduzia a luz, tornou-se trevas e a mais hedionda das criaturas, pois odiou Aquele que é a Verdade, o Bem e a Beleza.

Essas considerações resumem o sentido da Revolução Francesa. Todos os elementos de verdade, bondade e beleza existentes na Terra antes dessa Revolução foram construídos, organizados por pessoas dotadas de um espírito voltado para Deus, que eram segundo o Criador e amavam o verdadeiro, o bem e o belo.

Em sentido oposto, a Revolução Francesa foi a explosão do ódio daqueles que detestavam tudo quanto é grandioso, nobre, legítimo, bom, e queriam estabelecer um mundo chulo, desordenado, imoral, sem fé.

Tal Revolução foi uma revolta dos homens que se deixaram dominar pelo Inferno, para acabar com tudo quanto era elevado, belo e bom na Terra.

Por essa razão, como não queriam que houvesse reis, rainhas, nobres, palácios, grandeza nem beleza, estragaram aqueles parques, quebraram ou roubaram os objetos do palácio, espandongaram os lustres, despedaçaram os espelhos. Aprisionaram a família real, culminando, após meses de tormento e de abominação, na condenação à morte do Rei Luís XVI, da Rainha Maria Antonieta e de uma irmã do Rei, Madame Elizabeth, dando início ao período histórico chamado do Terror, em que bastava alguém ser nobre para estar condenado à morte.

A mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas do século XVIII

Para encerrar, conto um fato que ilustra bem o espírito que animava a Revolução Francesa.

Morto o Rei Luís XVI, a Rainha ficou viúva. Chegou o dia de ser apresentada ao tribunal para ser julgada, e ela queria muito salvar a própria vida para defender seus filhos, ainda crianças, pois não queria que estas fossem educadas pelos revolucionários.

Então Maria Antonieta preparou um discurso no qual ela mesma realizava a sua defesa, enquanto os revolucionários iriam apresentar testemunhas que fariam acusações falsas contra ela.

Certa noite, os revolucionários invadiram o recinto onde seu filho dormia. A mãe, embora fosse uma dama frágil, lutou contra eles fisicamente para defender o menino, mas afinal não pôde resistir, e os revolucionários o raptaram, tendo ele passado meses sem ver a mãe.

Estabelecido o tribunal revolucionário, o menino entra como testemunha para depor contra a própria mãe. Ele calçava tamancos ordinários muito grandes, dentro dos quais puseram palha para não caírem dos pés; estava bêbado e ao ver a mãe não teve o menor sentimento de afeto, permanecendo parado com uma cara abestalhada.

O presidente do tribunal disse a ele:

– Menino, conta aqui a todas as pessoas presentes os crimes que a tua mãe cometeu contigo.

Haviam ensinado para ele, como a um autômato, a mais infame das coisas. O menino disse que sua mãe o tinha iniciado na imoralidade.

Maria Antonieta ouviu aquilo e, diante dessa acusação torpe que todo mundo via ser uma calúnia, notando que a galeria estava cheia de mulheres do povo, disse: “Eu apelo a todas as mães da França para que digam se acreditam nessa acusação”.

As mulheres bateram palmas à Rainha a mais não poder.

Contudo, era o período da Revolução Francesa em que se dizia ser a época da liberdade, mas na realidade imperava a tirania. O presidente do tribunal, que deveria declarar inválido o testemunho de uma criança bêbada, sobretudo quando ela diz algo que ninguém podia acreditar e apenas provava a infâmia dos acusadores, entretanto deu ordem para retirarem da sala todas as mulheres, a fim de evitar que aplaudissem novamente Maria Antonieta. E, por fim, condenou-a à morte. Assim morreu a mais distinta, elevada e sofredora de todas as damas daquele século.

Podemos afirmar que o mal nunca teve, depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, tanta desfaçatez, tanta audácia em se mostrar, como na Revolução Francesa. De maneira que na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, essa Revolução é um episódio central e uma espécie de ponto culminante. Não compreende os fatos que vieram antes nem depois quem não analisa a Revolução Francesa assim. Ela pode ser considerada, sob esse ponto de vista, como um grande e horrível livro no qual, entretanto, se aprendem verdades terríveis e admiráveis.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1993)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)

 

Sacralidade e beleza em duas pontes europeias

Em sua contínua busca da sacralidade e beleza nas coisas, Dr. Plinio era levado a analisar tudo sob este ponto de vista. Tecendo considerações a respeito de duas pontes — uma veneziana e outra francesa —, descreve o que elas têm de sacral e dessacralizante.

A ponte do Rialto tem como característica marcante a extrema delicadeza da estrutura do arco. Nota-se que houve a intenção de fazer a ponte coberta, de maneira a garantir os transeuntes contra a chuva. Mas essa ideia funcional foi superada de tal maneira, que nem se é levado a pensar nela diante da delicadeza das arcadas sucessivas e do movimento de ascensão de uma parte e de outra, terminando num elemento monárquico e central que dá vagamente a impressão de um nicho de imagem num arco de triunfo.

Delicadeza e seriedade

De tal modo a parte funcional foi englobada pela parte arquitetônica, artística, que uma pessoa que olhasse para a ponte do Rialto não pensaria em chuva, nem em galeria, nem em nada disso. Teria a impressão de que isso foi colocado ali em cima como mero enfeite, o qual se destaca por um misto de delicadeza e de seriedade. Há seriedade aí porque há pensamento em tudo, há um desejo verdadeiro de fazer as coisas muito bem feitas, com uma grande aplicação de espírito.

Essa aplicação de espírito, entretanto, se disfarça a si própria de maneira a se ter a impressão de que o artista que concebeu isso desenhou em poucos minutos e mandou colocar ali em cima essa estrutura. Chamo a atenção para os menores acabamentos. Notem a balaustrada como é bonita. Depois, o próprio arco da ponte, como é de um movimento delicado.

Passando por debaixo, as águas prestigiosíssimas de Veneza, que parecem carregar consigo a beleza de todos os palácios por onde elas se movimentam.

Vê-se aqui a proa de uma gôndola e outras embarcações. Na gôndola temos algo de muito delicado e que afirma vigorosamente a superioridade do espírito sobre a matéria, da arte sobre o funcional, do nobre sobre aquilo que é vulgar. O gondoleiro é um homem do povo; contudo, notem a elegância, a beleza do movimento e da posição dele; a nobreza com que ele desloca esse imenso remo. Ele está fazendo força, mas não nos dá ideia, nem um pouco, de uma força vulgar. Dir-se-ia quase que ele está executando uma figura especialmente para ficar elegante nessa fotografia.

Hierarquia de valores e predomínio do estético sobre o útil

Isso é sacral. Em que sentido é sacral? No sentido de que apresenta uma hierarquia de valores que conduz para o sacral, prepara para o sacral, sem que se possa afirmar diretamente que tenha uma nota intensamente sacral. O aristocrático, de si, tem uma parcela de sacral. Essa ponte, evidentemente, é aristocrática. O predomínio do estético sobre o útil tem qualquer coisa de sacral também, porque é uma forma de predomínio do espírito sobre a matéria.

Há qualquer coisa de sacral nesse elemento monárquico central da ponte. Poder-se-ia imaginar uma imagem colocada em cada um desses arcos, de tal maneira que não se diria que o sacral se sentiria isolado, expulso, maltratado dentro desse ambiente.

Eu deixo de me referir a esse pano, porque é uma propaganda comercial, e lamenta-se que aí esteja.

O que existe aqui de não sacral? Não há nenhum emblema, nenhum sinal religioso. A influência da Renascença quase não deixou reminiscência alguma da Idade Média dentro disso. E se é verdade que nesses arcos caberiam bustos de imagens, caberiam também bustos de grandes homens de Florença ou da Antiguidade. Num desses arcos se poderia pôr, tanto São João Evangelista, São João Batista, como Pitágoras ou deuses profanos. Quer dizer, a atmosfera da Renascença já entrou aqui. Entrou no quê? Tudo isso é muito bonito, muito nobre, mas tem qualquer coisa de fruitivo, que não foi feito para a contemplação, mas para o gozo da vida, para o prazer. E com isso vai abrindo as portas para coisas piores. Esse seria o comentário sobre a ponte do Rialto.

[Dr. Plinio comenta em seguida uma fotografia da ponte Alexandre III, situada sobre o rio Sena, em Paris.]

Doçura do gênio francês

Faz parte da doçura do gênio francês afirmar-se nas circunstâncias mais inesperadas. Esses bonitos lampadários são feitos de tal maneira que, ao menos a mim, causam a impressão de que são vidros de perfume. A forma, o colorido é tal que, se soubéssemos que se guarda perfume dentro deles, acharíamos natural. Quer dizer, há qualquer coisa de mesa de toilette nessas luminárias. Elas são tão bem trabalhadas, tão doces, tão delicadas que não parecem ter sido feitas para estar expostas à intempérie: neve, todos os ventos soprando; entretanto, no meio de tudo isso a nota francesa põe essa doçura, essa suavidade que é própria do espírito francês.

Essa doçura, entretanto, se afirma também em uma coisa que Deus pôs na França — não foram os franceses que fizeram; eles se inspiraram na doçura da natureza da França. Vejam essa árvore reduzida apenas a um esquema, porque toda a folhagem desapareceu. Ficou só a galharia. Considerem a beleza da cor. Ela é de um marrom lindo! Percebem a delicadeza com que essa árvore deixa transparecer uma impressão de tristeza? A árvore é incapaz de tristeza, mas dir-se-ia que ela está triste, desolada. Essa galharia dá a impressão de penachos caindo; são penachos isolados que se estendem pelo céu, levados ao vento. Mas tudo tão esguio! Cada um desses galhozinhos se entronca no outro com tanta elegância e cai de um modo tão langoroso, que se diria que essa árvore é quase romântica. Não é romântica porque ela é feita pela natureza, não foi modelada por nenhum escultor.

A entrada da ponte é monumental. Uma coluna no alto da qual se encontram figuras finas, segurando espadas, e cujos braços efetuam gestos elegantes, delicados. Tudo isso dá a impressão de algo de etéreo, e também de muito nobre. A nota aristocrática está visivelmente presente na construção dessa ponte. A nota espiritual, no sentido de predomínio do espírito sobre a matéria, que a modela de maneira a se pensar numa porção de coisas espirituais, de estados de espírito do homem, também está presente.

Obra da ”Belle Époque” com eflúvios do ”Ancien Régime”

Também nessa ponte vemos o predomínio do artístico sobre o funcional. Essas são afirmações de sacralidade. Quando contemplamos essas lâmpadas, achamo-las tão bonitas que temos a impressão de serem enfeites desenhados para esse lugar, e nem pensamos em sua utilidade.

Entretanto, podemos dizer que a nota fruitiva está mais presente do que na ponte do Rialto. Essa ponte francesa é obra da “Belle Époque”, uma época histórica que se desenvolvia na França sob o regime republicano, mas dentro do quadro de uma Europa inteiramente monarquista e de uma sociedade francesa ainda profundamente aristocrática. Há eflúvios de “Ancien Régime”(1) que estão presentes nisso. Mas a sensação de gozo da vida é intensa. A ideia da capital de todos os prazeres do mundo, de uma ponte construída para causar sensações agradáveis aos olhos, para divertir o homem, para dar-lhe vontade de viver nesta Terra, também parece muito presente aqui.

De maneira que esse seria o lado, a meu ver, dessacralizante da ponte Alexandre III.

Quanto à Idade Média, nem se põe sequer uma consideração a respeito. Se o Rialto tem ainda um vago perfume de Idade Média, aqui há um perfume de “Ancien Régime”. Portanto, um perfume muito menos denso de Contra-Revolução do que o da Idade Média.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1971)

1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

A necessária virtude da previdência

Dentre os valiosos conselhos legados por Dr. Plinio aos seus seguidores destaca-se, com a ênfase que nos tem sido dado conhecer ao longo destas páginas, o constante apelo à confiança na maternal e infalível misericórdia de Maria Santíssima. Disposição de alma essa que ele recomendava, sobretudo, para as encruzilhadas da vida espiritual e os momentos cruciantes do quotidiano terreno.

Porém, ao lado da confiança, empenhava-se Dr. Plinio em incentivar a prática de outra virtude, não menos importante e necessária que aquela — a da previdência. Assim, ensinava ele: “O homem previdente procura perceber o perigo quando este é ainda pequeno e remoto, pois melhor se prepara o confronto contra algo distante, e mais facilmente se vence o que tem menores proporções.

“Ora, na existência de todos os dias constatamos que a maior parte das pessoas não possui o hábito dessa previdência. Na teoria, todos concordam com o acerto de tal atitude de espírito, mas, de fato, poucos a observam. Deixa-se o perigo remoto e pequeno crescer, avolumar-se, imbuídos da ideia segundo a qual, em última análise, sempre pode sobrevir um imprevisto que afaste o risco. Desse modo, não nos aflige a preocupação de estarmos atentos quanto a uma eventualidade ruim. Esta, provavelmente, se resolverá por si mesma.

“Ademais, aos imprevidentes acode amiúde a noção de que para tudo há o famoso ‘jeitinho’: caso o perigo se torne grande, ao invés de se fazer um imenso esforço e preparar uma tenaz investida contra ele, dá-se um ‘jeitinho’ e o mal se afasta…

“Devemos nos lembrar, porém, desta outra verdade: se o ‘jeitinho’ por vezes soluciona, o mínimo que se pode dizer é que por vezes não nos socorre. E se alguém não deseja ser derrotado em nenhuma circunstância, o remédio é ser continuamente previdente, pois, do contrário, num belo momento ele não prevê o perigo, este cresce de modo súbito e o estrangula. Portanto, quem possui o senso da responsabilidade e do dever, não pode pensar de outra forma.

“Essa disposição de alma, mais do que em relação às dificuldades temporais, vale para enfrentar os perigos da vida espiritual. Começa a se delinear em nós um pequeno defeito. Se o combatermos de imediato, nossa integridade espiritual estará salva. Se lhe opusermos resistência apenas quando ele avulta, já nos tornamos débeis: diante do defeito fraco, o homem é forte; diante do defeito forte, o homem é fraco.

“Cumpre, pois, termos uma vigilância continuamente voltada para nossa vida interior. Importa sermos desconfiados contra nós mesmos. De Plinio Corrêa de Oliveira quem mais deve desconfiar é Plinio Corrêa de Oliveira, pois o principal responsável por mim junto a Deus e à Santíssima Virgem sou eu próprio. E como me sei concebido no pecado original, portanto com más inclinações e defeitos, devo nutrir desconfiança contra essas imperfeições, não lhes fazendo concessão alguma, vendo todos os ardis que a fraqueza humana pode sugerir em mim para ceder a elas. Desse modo as poderei vencer. Se não combato a pequena lacuna, a armadilha quase imperceptível, dentro em pouco estarei na voragem de uma tentação sob a qual posso sucumbir.

“Vigiai e orai para não cairdes em tentação, recomendou o Divino Mestre. Quer dizer, é preciso vigiar, é necessário prever. O homem vigilante e previdente não se assusta com a proximidade do perigo, pois já se preparou para enfrentá-lo, planejou todos os lances da luta e compreende que fez o que devia ter feito. Sobretudo suplica o misericordioso auxílio de Nossa Senhora, principal fator de qualquer êxito na vida espiritual. Nosso próprio esforço será indispensável, porém secundário: o elemento primordial é a graça divina, obtida pelo Sangue de Jesus Cristo, sempre sob o poderoso amparo de Maria Santíssima.

“Pelo contrário, o homem imprevidente e sem vigilância procura não pensar no perigo e quando este se apresenta, não sabe como agir. Aturdido, não encontra os meios adequados para se defender em tal confronto. Pode ser derrotado. Já o vigilante, mesmo diante do revés, não se deixa esmorecer. Recobra forças e novo ânimo face ao infortúnio. Sua consciência está tranquila, pois ele procedeu como devia. Sabe que Nossa Senhora o protegerá ainda mais. Outras e maiores vitórias lhe estão reservadas.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Desigualdade: um bem ou um mal?

Como devemos considerar as pessoas superiores a nós? Admirando-as por suas qualidades, ou invejando-as por não sermos iguais a elas? Igualdade e desigualdade, até que ponto constituem um bem para o homem?

 

É notória a complexidade do universo. Nele há seres inteligentes como o homem; seres dotados de vida, mas sem inteligência, como os animais e as plantas; seres sem vida nem inteligência, como os minerais.

De fato, à medida que a Ciência progride e verifica quão numerosos são os seres que compõe o universo, constatamos as inter-relações e as desigualdades postas na criação.

Os anjos são mais numerosos que os homens

Ora, as ciências naturais nos apresentam algo muito inferior ao que alcançamos pela Fé. Sabemos existirem os anjos, puros espíritos que não podemos ver. E a Teologia nos ensina serem os anjos incomparavelmente mais numerosos do que os homens.

São Tomás dá para isso uma bonita explicação, apresentando uma razão metafísica que toca no estético: a Criação é excelente; o melhor deve ser mais numeroso1. Ora, como puros espíritos, os anjos são superiores a quem não é puro espírito.

Suponhamos um tapete. O que ocupa mais espaço, a franja ou propriamente o tapete? É o tapete. Pois uma franja enorme e um tapete pequenino é uma coisa caricata. Ora, o tapete da Criação são os anjos, puros espíritos. E à medida que vai se aproximando da matéria vem a franja. Então, os anjos são mais numerosos do que os homens.

Compreende-se que haja uma escala, e no alto, como qualidade e quantidade superiores, estão os anjos.

A desigualdade entre os anjos é maior do que a existente entre os homens

Não devemos imaginar que um anjo está para outro anjo como um homem para outro homem. Nós, homens, por mais diferentes que sejamos uns dos outros, somos da mesma espécie. Os anjos, não. Cada anjo é de uma espécie diferente da do outro2.

E o anjo inferior foi feito para servir o superior; aquele é menos inteligente e tem uma capacidade menor de amar do que este. Por causa disso, recebe de Deus uma glória e uma graça menor do que aquele que está acima.

Assim, se fôssemos fazer um gráfico do mundo angélico, traçaríamos uma espécie de fio de linha enorme, em que cada anjo seria um ponto; cada um deles está a serviço do anjo superior, e através deste conhece a Deus, mas ele mesmo também vê diretamente o Criador. Todos os anjos O veem diretamente, mas não contemplam tudo; e pelos anjos superiores cada anjo inferior conhece alguma coisa mais a respeito de Deus.

Dessa forma, a desigualdade entre os anjos é enormemente maior do que a existente entre os homens. Ora, os anjos são uma porção da Criação muito mais preciosa do que os homens.

Devemos agradecer a Deus por ter criado pessoas superiores a nós

Vemos assim que a desigualdade é algo existente no universo, de tal maneira que em sua parte mais excelente ela ainda é maior. Podemos então fazer as seguintes perguntas: Foi bom que Deus fizesse assim? Não teria sido melhor que Ele criasse todos os anjos iguais? E que desse a nós homens a natureza dos anjos? E concedido aos animais, às plantas, aos seres inanimados, inteligência e vontade como os maiores dos anjos? Ou, então, que Deus não fizesse anjos, mas só nós, homens, e todos iguais uns aos outros? Não seria mais justo? O Criador não teria desse modo revelado mais bondade?

Alguém diria: Pareceria que sim, pois sempre que um homem vê um superior ele se entristece, por desejar ser igual ao outro. Sendo assim, Deus, criando a desigualdade, fez uma fonte de tristeza. Ora, não é próprio à bondade criar a tristeza. Logo, Ele não deveria ter feito a desigualdade.

Primeiramente, não é verdade que cada homem, quando vê no outro um superior, fica triste. A tristeza pelo fato de ver que outro tem mais é própria do invejoso.

De acordo com a Doutrina Católica, quando vemos alguém que tem mais do que nós, possui uma perfeição por onde se parece mais com Deus, devemos nos alegrar.

Qual deveria ser a reação de quem tivesse a honra de conhecer São Tomás de Aquino?

Dou uma comparação. Eu creio não ofender a ninguém dizendo que São Tomás de Aquino era incomparavelmente mais inteligente do que qualquer um de nós. A prova disso são algumas confidências que ele fez a Frei Reginaldo, irmão leigo, uma espécie de secretário dele. São Tomás disse-lhe nunca ter feito uma leitura sem que se lembrasse com toda a facilidade, para a vida inteira, de tudo quanto tinha lido. De outro lado, ele nunca precisara reler nada, porque tinha entendido até o fundo tudo quanto lera.

Algo desconcertante em sua obra é que, para resolver os problemas, ele cita de um modo triunfal trechos da Bíblia, os quais passariam despercebidos para outros. Vê-se que ele conhecia a Bíblia perfeitamente. Pode-se dizer que possuía uma inteligência incomparável, fabulosa.

Sabendo que São Tomás foi tão mais inteligente do que eu, se tivesse a honra imerecida de conhecê-lo, qual deveria ser a minha reação?

Imaginemos que ele estivesse aqui ao meu lado, e eu ousando fazer esta conferência em sua presença. São Tomás era um homem alto, corpulento, com pescoço muito grosso — os colegas o chamavam de boi, porque ele tinha olhos grandes, era calmo, constantemente pensando. Eu me perguntaria: “Que coisas sublimíssimas ele está cogitando a respeito do que estou dizendo?”

Creio que, na hora de ele falar, os presentes neste auditório ficariam em suspense: “O que ele vai dizer eu anoto, gravo, fico ajoelhado, rezo, já que tal homem vai falar na minha presença!”

O invejoso, espiritualmente descendente de Caim, diria: “Por que Deus não me fez igual a São Tomás?”

E o homem reto, espiritualmente descendente de Abel, exclamaria: “Que maravilha é essa obra-prima do Criador, São Tomás de Aquino! Considerando sua grande inteligência, compreendo melhor como Deus é inteligente. Portanto, através do seu conhecimento, conheço melhor a Deus. Como agradeço ao Criador o ter-me dado São Tomás, imagem viva, criada, da infinita e incriada inteligência d’Ele! Meu Deus, eu Vos agradeço do fundo da alma; vi um pouco de Vós em São Tomás de Aquino.” Esse é um homem segundo Deus.

O superior deve ser uma imagem de Deus para o inferior

Conforme a Doutrina Católica, a desigualdade existe para que os seres superiores imitem melhor o Criador e O tornem mais conhecido pelos que são menos. Por causa disso, todo maior, se corresponder à sua vocação, deve ser para o menor como uma imagem de Deus.

São Tomás de Aquino exemplifica com a riqueza. Ele pergunta se é bom que haja pessoas mais ricas do que outras.

E responde que é bom porque os mais ricos, dando aos mais pobres, fazem que estes compreendam o que é a generosidade e, desse modo, entendam e amem a generosidade de Deus. A generosidade do rico para com o pobre é uma imagem criada da generosidade do Criador para com o homem. A desigualdade de fortuna, portanto, é um bem.

Alguns seres devem velar por outros

Há dois princípios que regem o problema da desigualdade: o maior é uma imagem de Deus para o menor; em todo o universo, uns seres devem velar pelos outros.

Embora Deus cuide diretamente das criaturas, Ele concebeu a Criação de modo que uns seres velam por outros. Assim, os anjos maiores governam os menores; os homens superiores dirigem os inferiores.

Quer dizer, há uma colaboração: os maiores orientam e elevam os inferiores até Deus; estes os servem. Nesta colaboração, que não poderia existir se os seres fossem todos iguais, se afirma o plano do Criador. Por esta forma, na desigualdade, vemos realizar-se a Providência de Deus.

A desigualdade é um meio para amarmos a Deus

Que atitude devemos tomar diante daqueles que são mais do que nós? De respeito, reverência e de agradecimento a Deus pelos dons que lhes deu. Devemos nos alegrar pelos dons que lhes foram concedidos pelo Criador, e também porque esses dons são benéficos para nós.

Por exemplo, falando sobre a inteligência de São Tomás de Aquino, estou certo de que abri os horizontes de alguns dos presentes, pois não imaginavam que houvesse homens tão inteligentes. Ao imaginá-los, em algo esclarecemos a nossa própria inteligência.

São Tomás morreu, sua alma está no Céu e seu corpo se desfez em pó. Num continente que ele não sabia  existir, a América; num país que não imaginava que existiria, o Brasil; numa cidade a qual não pensava que um dia haveria, São Paulo; no local onde no tempo dele talvez houvesse uma taba de índio, entretanto, no ano de 1975, a recordação de São Tomás de Aquino abre horizontes.

É um bem para nós que ele tenha existido. Trata-se de uma desigualdade benfazeja. Assim devemos olhar aqueles que são mais do que nós.

Pulcritude da hierarquia existente na Igreja

Esta impostação de alma explica, em boa parte, a diferença entre os católicos e os protestantes. No ápice da Igreja existe a figura do Papa, monarca da Igreja universal, Vigário de Cristo, a quem foi dito: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16,18). Mais do que um Papa não se pode ser.

Lendo a história dos grandes imperadores romanos, tem-se a impressão de que foram homens como depois não houve mais na Terra. Ora, qualquer Papa tem muito mais poder do que Júlio César. Um Pontífice, hoje em dia, governa seiscentos milhões de católicos3, mais ou menos, e não é um poder como o de César, na ponta da lança, mas espiritual, que obriga em consciência. Ele fala e os outros devem crer.

Houve alguma vez na História um poder igual a este? “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”  (Mt 16,19). O católico se rejubila com isso. Quão belo é haver na Igreja um chefe, um rei, uma cabeça tão alta e adornada com poderes tão esplêndidos! E, logo abaixo do Soberano Pontífice, os príncipes da Igreja, os Arcebispos, os Bispos, colocados cada qual para governar uma parcela da Igreja universal, sob a autoridade do Papa! Como é pulcro ver um Bispo que entra numa igreja, de mitra, com báculo, e o coro cantando a plenos pulmões: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedech”; ele avança, o povo se ajoelha e o Bispo distribui as bênçãos de um lado e de outro, usando luvas bordadas a ouro e um anel de ametista. Que beleza!

Alguns dizem o contrário: “Por que não eu? Seria bom aplicar o livre exame… nada de infalibilidade! Sou tão infalível quanto o Papa. Na minha cabeça sou eu que mando. Nada de Papa!” Outros afirmam: “Nada de Bispos!” E outros declaram: “Nada de padres!” Tais indivíduos são movidos pelo orgulho, portanto pela inveja. Nós somos movidos pelo Espírito Santo e, portanto, pelo espírito de abnegação, de respeito, de amor. A pessoa que compreende quem é um Papa entende muito melhor quem é Deus Nosso Senhor. O Papa e Bispos são imagens vivas de Deus.

Cosmos: um conjunto de coisas ordenadas

Passemos agora ao ponto terminal da conferência.

A desigualdade é um bem, mas não é o único bem que existe no universo. Todos conhecem a diferença que há entre caos e cosmos.

Na linguagem comum, corrente, caos é uma desordem, um amontoado de coisas que não têm relação entre si. Por exemplo, se chegássemos aqui nesta sala e encontrássemos as cadeiras em desordem, algumas delas dependuradas no teto com cordéis, os lustres no chão, perguntaríamos: “Quem fez esse caos?” Todo mundo acharia a palavra “caos” bem aplicada, pois ela se refere ao conjunto de coisas que não estão colocadas em ordem, umas em relação às outras.

Cosmos é, pelo contrário, um conjunto de coisas postas em ordem entre si. Por isso dizemos que Deus criou um cosmos ou um universo. As palavras “cosmos” e “universo” querem dizer a mesma coisa, ou seja, tudo ordenado.

Para que as coisas estejam ordenadas, é preciso que elas sejam, de algum modo, iguais e também desiguais. Porque se forem totalmente desiguais, não há ordem possível entre elas.

Imaginemos que alguém veja um sapato, um canário, uma fotografia de Churchill e diz para um subalterno: “Ponha esses objetos em ordem nesta mesa.” Não há ordem possível, porque são coisas totalmente heterogêneas. A ordem supõe certa relação.

Se fossem três fotografias de Churchill, poder-se-ia colocá-las em ordem, considerando o tamanho da foto, a idade dele etc. Ou, então, três canários ou três sapatos poderiam ser postos em ordem.

A igualdade e a desigualdade devem compor-se para formar uma ordem

Quer dizer, para se pôr em ordem as coisas é preciso que elas tenham algo de comum e também desigualdades fáceis de se perceber. Se uma pessoa faz três cópias de uma fotografia de Churchill e me pede para pô-las em ordem, eu respondo: “Meu caro, a olho nu, não! Se você me der uma superluneta, vou verificar que há entre as cópias alguma diferença de tamanho; mas a olho nu, sem eu perceber as desigualdades existentes entre elas, não é possível colocá-las em ordem.”

A ordem supõe um misto de igualdade e desigualdade. Assim, para que houvesse cosmos eram necessários seres por algum lado iguais e por outro lado desiguais.

A desigualdade não é um mal, é um bem. Ambas — a igualdade e a desigualdade — devem compor-se para formar uma ordem.

Esta é a tese da Doutrina Católica, mas que nosso Movimento exprime e reproduz. Deve haver entre as coisas uma hierarquia proporcionada e harmônica. Uma hierarquia desarmônica não vale nada, porque destrói essa relação.

Apresento mais um exemplo muito ao alcance dos que estão neste auditório, porque quanto mais eu der exemplos fáceis, tanto menos canso a mente dos presentes, que podem assim melhor acompanhar a doutrina.

A lei da proporção concilia a igualdade com a desigualdade

Um exército possui uma hierarquia: general, coronel, tenente-coronel, etc. Se alguém me disser: “Dr. Plinio, o exército do país X é excelente; nele há generais e tenentes-coronéis, mas não coronéis”, farei a observação: “É preciso verificar, pois, se for assim, as coisas não funcionam. Porque todo exército é uma engrenagem; em certo momento, uma ordem tem que passar pelo coronel, e, se este posto não existir, será um exército manco.”

Porque na verdadeira hierarquia, entre o mais alto grau até o ínfimo, é preciso que haja vários graus intermediários, de maneira que entre o maior e o menor exista uma proporção. Trata-se da lei da proporção, que concilia a igualdade com a desigualdade.

Imaginemos uma escada muito bonita, em que os degraus mais altos sejam menores e, à medida que se vai descendo, os degraus se tornam longos; a escada vai se abrindo. É uma obra-prima. Se nessa escada faltasse um degrau intermediário, ela se tornaria horrenda, uma caricatura, porque perdeu a proporção entre o degrau mais alto e o mais baixo.

Então a hierarquia deve ser proporcionada, de maneira que entre o maior e o menor haja sempre um contato, uma proporção.

É o que vemos na Igreja Católica. O Papa está colocado no fastígio; abaixo dele estão os Cardeais, depois os Arcebispos, os Bispos, os Monsenhores, os Cônegos e depois os simples Padres. São graus que, de alto a baixo, existem dentro da Igreja. Isso torna suave o acesso ao Papa e estabelece uma engrenagem que faz da hierarquia algo amável, afável e agradável; há um misto de igualdade e desigualdade.

Assim, fica demonstrado como devemos ter espírito hierárquico.

Deve-se desejar progredir para servir a Deus

Tratarei finalmente da seguinte questão: Se é bom que haja desigualdade, nunca se deve procurar subir?

Depende da razão pela qual a pessoa queira progredir. Se desejar subir por amor de Deus, para servi-Lo — não por orgulho —-, ela está agindo conforme a ordem do universo. A pessoa deve procurar progredir na proporção dos meios que o Criador lhe concede.

Por isso um indivíduo estuda e torna maior sua ciência, outro trabalha e aumenta seu dinheiro, um terceiro faz exercícios físicos e desenvolve sua musculatura. Deus dá a cada pessoa possibilidades para se aperfeiçoar. Na medida em que procuremos a perfeição para ficarmos mais semelhantes a Deus, é bom subir.

Se uma pessoa, por exemplo, quer cantar e diz: “Como o cântico harmonioso é uma bela criatura e a canção em si é bela, eu quero cantar para possuir essa beleza, que é um reflexo do Criador.” Isso é uma coisa justa, direita.

Entretanto, se ela pensa: “Não tolero que tal indivíduo saiba cantar e eu não. Então vou aprender a cantar apenas para ser mais que ele.” Isso é inveja, um pecado.

Também não é direito querer aprender alguma coisa, ou subir, em qualquer sentido da palavra, para ter o gosto de ver o outro em baixo. “Sou igual a meu irmão, mas vou dar uma tacada financeira e farei uma casa magnífica em frente à dele, que a transformará numa barraca.” Isso é um péssimo sentimento, vontade de oprimir os outros; não é uma coisa católica.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/1/1975)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

 

 

1) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 3.

2) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 4.

3) Atualmente, o número de católicos excede a cifra de 1.250.000.000.

Os suaves fulgores da penitência

Dotado de especial senso histórico, Dr. Plinio conhecia, entre outras coisas, as características mais profundas das civilizações, dos povos e dos estilos de arte. Nessa exposição ele explica como decaiu o gótico, e nos adverte a respeito da necessidade da graça do arrependimento e da penitência, para que surja o estilo artístico do Reino de Maria.

 

Consideremos o estilo clássico e o românico: não há dúvida de que o estilo românico, de algum modo, inspirou-se no estilo clássico. Por exemplo, aquelas arcadas e colunas do estilo românico são do estilo romano, é evidente. Mas entrou um elemento artístico e arquitetônico novo, que corresponde ao elemento psicológico novo também, o qual em alguns dos seus aspectos se percebe.

Arte clássica e o ideal do homem olímpico

Por diversas razões, a fortaleza não foi um ideal arquitetônico nem dos gregos nem dos romanos. Isso se deve talvez aos conceitos deles de arte militar, com exércitos muito móveis, e depois a noção de falanges e de legião, que era uma espécie de fortaleza viva a qual de algum modo dispensava a muralha.

Mas o fato concreto é que a fortaleza não esteve presente, a não ser muito esporadicamente, nas suas cogitações e não marcou a fundo a sua arquitetura. E por causa disso nenhum prédio deles visa ser forte. Por exemplo, a mais típica das construções dos gregos, o Parthenon. Também a tribuna das Cariátides, que eu acho tão bonita, não visa de nenhum modo proteger o orador contra uma agressão; é uma tribuna no sentido mais próprio da palavra, em que o orador faz-se ver e tem facilidade de dar alcance à sua voz.

Uma coisa curiosa que está em toda a psicologia clássica: fica insinuado, sem dizer, que a produção intelectual e a artística se fazem de modo indolor. De maneira que na arte não está de nenhum modo representado o esforço da elucubração; esta é olímpica, se desenvolve com a facilidade de um cortejo de bailarinos que vão saindo de um templo para executar um ato religioso qualquer. Assim também os raciocínios vão se desenvolvendo uns depois dos outros.

Ora, é impossível que a elucubração deles não fosse penosa. Isso que eles procuravam ocultar dava o ar olímpico às suas construções, as quais não visavam de nenhum modo ser fortes.

O estilo românico e a noção do homem real

Na concepção medieval, não. Entre os bárbaros há qualquer ideia de ocultar o pecado original, ideia essa que entre eles era co-idêntica com a civilização. Aliás, os bárbaros nem tinham ideia clara do pecado original, mas sim dos efeitos desse pecado, que eles procuravam esconder.

E a arte, simplesmente, começa a conviver abraçada nos efeitos do pecado original, mais ou menos como o homem que precisa andar apoiado numa bengala e se apresenta naturalmente com ela. E tira até uma fotografia solene com a bengala na mão; ele e a sua bengala formam um todo.

E entre os bárbaros o belo surge como uma trepadeira que se enrosca numa árvore dura, rugosa, num sulco dos mais rebarbativos que se possa imaginar, fica cheia dessas contingências, florescem umas rosinhas cor de coral e se forma uma coluna toda rósea.

Assim a arte, com essas contingências, produz uma coisa nova que a meu ver é o românico. Vê-se que o traçado de muitas igrejas românicas era para ser um, mas foi outro porque de repente o terreno começou a ceder e tiveram medo; então, puseram uma estaca, quer dizer, não levaram o prédio até onde pretendiam. E a igreja se apresenta como se tivesse levado um murro de um lado, mas de outro lado apareceu a necessidade de prestar culto à santa tal, que protege contra as intempéries; então acrescentam uma capelinha, que perturba o plano da igreja. Tudo somando, ficou um encanto, muito mais bonito do que estava no original. Mas que é o fruto da aceitação da contingência pelo homem, e a sua modelagem de acordo com a contingência, não para ser o homem olímpico, mas o homem real, descendente de Adão e Eva, remido por Nosso Senhor Jesus Cristo e entrando na vida desta Terra.

Acho que até Saumur tem algo disso, com aqueles campanários em cima, meio inesperados, mas sua planta geral é um quadrilátero compacto, maciço. Mas Saumur já é gótico, e estou falando do românico.

Não vou dizer que uma reflexão soberba de Aristóteles não seja séria, mas não tem a seriedade total. Na medida em que procura ocultar sua elaboração mental e sua dor, a pessoa não é séria, escamoteia uma parte da realidade.

O Parthenon é seríssimo por alguns lados; por outros lados falta-lhe seriedade.

O sério irrompe na arte e por detrás dele uma luz que vale infinitamente mais do que ele: o sobrenatural, o sacral.

O gótico causa a impressão de algo fechado

Dada esta teoria, poderíamos nos perguntar: Com o que nos é dado entrever sobre a Idade Média, o que podemos prever do Reino de Maria?

Ao examinar as coisas da Idade Média, creio haver um problema que perturba, o qual só se deve analisar bem quando se tiver o aparato da cultura e erudição necessária; nós não temos esse aparelhamento. Mas que é preciso considerar que havia algo que tornava um tanto pesadas as asas do voo medieval: frequentemente se apresentam manifestações diabólicas ou gnósticas dentro da arte medieval. E um trato sério da questão não pode deixar de levar isso em consideração.

Por exemplo, há algum tempo atrás eu estava vendo um monumento funerário gótico, mas daquele gótico moribundo já no século XV, em que a arte funerária começou a se desdobrar um pouco exageradamente; depois atingiu no século XVI exageros únicos. Nesse monumento, seis anjos carregavam o esquife de um senhor feudal, mas um desses anjos era um demônio com a cara voltada para trás, dando risada. Como é que isso foi feito, estava à vista de todo mundo, ninguém destruiu, ninguém sabe da explicação disso, a família aceitou, entrou na igreja, o padre celebrou Missa? Mais ainda, nós olhamos o monumento e, se não nos advertissem para aquele anjo de cara virada, o acharíamos sublimíssimo; entretanto a nota gnóstica está ali presente. E isso aflui em várias coisas.

Não estou falando dos demônios nas gárgulas, postos pelos anti-gnósticos que queriam representar o demônio como horroroso e, portanto, no papel que lhe é próprio.

Além disso, há o seguinte: o gótico dá impressão de algo fechado, do qual não irá sair a inspiração nova. Ficou tão bonito, tão admirável, tão perfeito que já chegou ao termo de si mesmo, não vai elaborar nada mais de novo. E, portanto, a imobilidade pela ausência de originalidade marcará para todo o sempre aquele estilo, que será uma infidelidade abandonar, e será uma outra infidelidade ficar dentro dele.

O “flamboyant” já tem infidelidade.

O espírito comercial e a saciedade do sobrenatural

A resposta, a meu ver, é a seguinte: também a vida de sociedade naquele tempo estava admitindo uma porção de atividades novas, que já eram vistas num prisma novo do qual as pessoas não se davam conta. Vou dar o exemplo característico. Na “aldeia de marzipã” haveria pequenos comerciantes, mas estes não a deteriorariam. Porque as proporções do comércio eram, por assim dizer, domésticas e humanas, e tudo quanto se passasse ali tinha, portanto, uma certa relação com o homem.

Quando começam a se desenvolver as estradas e se faz a famosa economia aberta, nasce um espírito comercial que não é mais ligado a nenhuma aldeia, a nenhum lugar, bem ou imóvel, mas que quer apenas ter um dinheiro volátil através de todas as estradas da Europa. E que se exprime melhor pela deusa fortuna do que por qualquer outro símbolo. A sede de aventura do militar passa para a sede de aventura do mercador, que transporta as suas riquezas e procura com isso aumentá-las fabulosamente. E o ricaço no fim da vida é o aventureiro bem sucedido como o marinheiro ladrão, pirata. Ou o guerreiro que se uniu ao deus malfazejo e durante a vida foi um bandido, como aqueles tipos de senhores feudais que tinham castelos à beira das estradas para irem roubar as pessoas que passavam, etc. Há uma coisa qualquer que vai mudando.

Essa posição mostra como a sensação de ciclo terminado existia por causa de uma saciedade do sobrenatural, do sacral, do sofrimento enquanto redentor, enquanto ligado à virtude, à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entre os homens bons crescem cada vez mais aqueles que são numerários. A dedicação e a renúncia a si mesmo passam a ser, não mais da sociedade, mas de um filão de gente que vive na sociedade; o resto é pessoal que entra na patuscada. Compreende-se, assim, como o fruto social da Idade Média tivesse que caminhar para aquela extinção.

A ”cisterização”

Então, para se compreender para onde é que ela devia ter rumado, precisaríamos imaginar dois caminhos: ou o caminho de São Francisco de Assis, de São Bernardo, ou o de São Bento sublimado. Uma volta àquilo que estava sendo abandonado e uma “cisterização”(1) da Europa. Portanto, um retorno para uma ebriedade da pobreza, da simplicidade, da austeridade, que geraria padrões novos de beleza. Os vitrais das abadias cistercienses são muito bonitos, mas têm uma nota nova: são grandiosos, porém de uma certa simplicidade.

Dever-se-ia imaginar uma clara ruptura com a época anterior estagnada, e o surgimento de uma época deliciosamente penitencial sem ter nada de revolucionário. Ou uma época nova que recebesse uma graça à São Bento, e que fosse muito para cima.

Ou uma terceira hipótese: uma época que tivesse uma graça cisterciense na qual, ao cabo de uns cem anos, florescesse uma coisa beneditina, quer dizer, com o estilo, o amor muito maior às riquezas do beneditino, mas sempre com a cautela de não provocar uma nova ruptura.

Isso eu não sei verdadeiramente como imaginar, mas sei tirar da nossa vida um exemplo de algumas coisas que fazem compreender um sistema da Providência. Alguém vai andando muito bem, mas em certo momento peca, quebra. Na ruptura, reza o Miserere e faz um rebaixamento… depois surge uma flor mais alta do que a anterior.

Há um problema histórico por onde, cada vez que uma coisa vai chegando ao apogeu, os dirigentes do apogeu não se devem tomar de entusiasmo, mas precisam ter medo do demônio gnóstico, das indulgências, das tolerâncias em relação às como que gnoses. E já devem estar prontos para fazer a “cisterização”, se for necessária.

Em concreto, na História sempre houve pessoas que observaram o fenômeno, mas não tiveram coragem de falar sobre ele, produzindo baixas de que o demônio tira proveito, porque é muito desalentador.

E volto a dizer: a história de Cister mostra que também há ali, naquelas austeridades, na sensação do apogeu, a necessidade de outros apertos. Creio que se Cister não foi o que poderia ter sido é porque a marcha das “cisterizações” parou.

É lícito esperar que não seja necessário uma “cisterização”, mas, pelo contrário, progresso? É uma pergunta que se pode fazer. Eu respondo da seguinte maneira: se não houver dilúvios sucessivos de provação, não acho que seja lícito esperar. O mal está nos dirigentes da instituição, os quais esperam que, afinal, ela tenha chegado ao século de ouro, em que não terá provação nem decadência.

Pelo contrário, se não perceberem que estão vindo provações, tremam. Porque a hora da “cisterização” chegou. Ou a instituição começa a se flagelar a si própria ou, se os acontecimentos não a flagelarem, decorre a deterioração dela.

Inocência e contrição formam uma ogiva perfeita

Pode-se admitir que uma entidade, um convento, uma Ordem religiosa, uma Ordem de Cavalaria chegasse ao seu apogeu, e vá somando apogeu com apogeu para chegar até o fim do mundo, numa série inimaginável de apogeus? Essa é a pergunta que mais precisamente se poderia fazer.

Resposta: se os responsáveis por essa obra — que pode ser também uma nação ou algo semelhante — não forem capazes de compreender que, se ela não é mais provada, precisa começar a se flagelar, do contrário a obra apodrece de fato. Quer dizer, se os responsáveis de uma Ordem religiosa pensam que, por não estar mais sofrendo incursões de inimigos da Igreja, de cátaros, albigenses, ela chegou a uma espécie de era de ouro, e, portanto, eles podem praticar a virtude sem a luta, eles são os reitores do banquete da putrefação.

Acho que isso ocorre frequentemente, porque não é ensinado o que se deve fazer.

E aqui surge o inesperado mais esperado: como podemos imaginar o Reino de Maria?

É bom método tomarmos as esperanças, os anelos que Nossa Senhora nos deu, inclusive com o que havia de mais infantil, e perguntar de que forma esta luz pode acender-se na ponta do pavio da mortificação, da penitência e do arrependimento. Aí nós vemos a possibilidade do Reino de Maria.

Mas é na feeria da graça misturada, entretanto, com os suaves fulgores da penitência, da tristeza, do “Miserere mei”, da coisa que doeu e que se pagou. É do contato de duas pedras, a graça da contrição e a da inocência as quais se juntam, que nós formamos uma ogiva perfeita. O que resta em nós de inocência, e o que devemos inovar como contrição forma uma ogiva perfeita, que nos dá o estilo do Reino de Maria.

Será uma ogiva? Não sei. Será uma coisa que, quando nós formos como devemos ser, começaremos a culturalizar nessa direção.

Uma sutil fuga da penitência

O estilo beneditino primitivo era a contrição da sociedade que tinha sido pagã, havia se putrefeito depois das catacumbas e não tinha correspondido bem à graça do eremismo.

Dessa sociedade nasceu uma outra coisa que é a graça beneditina. Em certo momento, os claustros beneditinos deixaram de ser elementos de penitência. Ficou o elemento pureza, o elemento luta, mas não basta ser mosteiro-fortaleza. É preciso a penitência: “’Peccavi’, e eu vou me flagelar a mim mesmo, com as minhas próprias mãos, porque pequei”. Desta noção, que é indispensável, eu tenho impressão de que a Ordem beneditina, em certo momento, começou a escapar.

Creio, não sei se é verdade, ter sido a Alemanha o país que mais contribuiu para desnaturar nesse sentido a Ordem beneditina. Aqueles mosteiros beneditinos na neve, lugares totalmente inóspitos, oferecendo uma proteção soberba para o corpo, para que este ali procurasse, sem preocupação, praticar a virtude e a cultura… Começam a aparecer os pães pretos magníficos, as cervejas, feitos no claustro. É mais perigoso do que a sutileza francesa, porque se tornou tão parecido com a virtude que era preciso amar muito a virtude para não se cair na contrafação.

Nesse sentido, o claustro alemão me dá um certo receio. Terá sido assim? A bela Itália como trabalhou nisso? Que lavorou nisso, lavorou…

Em que consiste a penitência

Para um inocente, todas as exigências da luta já são a taça da penitência. E para ser lutador até o fim, é uma batalha tão grande que isto já dá a penitência. Para o que não é inocente, é preciso acrescentar algo; não basta isso.

E notem que para aqueles que são amados por Nossa Senhora, mais vale a pena eles mesmos irem se adiantando. Porque, como Maria Santíssima os ama mais, provavelmente Ela lhes dará um belo naco de penitência nesta Terra. Mas o que Ela faz — porque o amor de mãe às vezes é como que sublimemente fraudulento —, para não ter que castigar os filhos, é soprar em seus ouvidos que eles precisam se castigar a si próprios.

Da reunião de hoje o que mais deveríamos reter é a penitência, porque é de extrema certeza que nós mais facilmente dela esquecemos. Quer dizer, contraímos hábitos mentais devido aos quais, dois, três minutos — ao pé da letra é isso – depois de sairmos daqui, nós teremos esquecido a penitência. E no que mais devemos pensar é na penitência. Porque esta é o antibiótico que torna possíveis as condições de saúde em nós, e sem ela a própria degustação daquilo que estou falando se torna inviável.

Sobre essa penitência se poderia falar algo.

É preciso notar o seguinte: não confundir penitência com sofrimento. Porque o indivíduo pode ter sofrimento sem penitência nenhuma.

O que vem a ser penitência?

A penitência é, antes de tudo, a convicção de que se andou mal. E essa convicção, por sua vez, resulta primordialmente de admitir como pressuposto o seguinte: eu, no fundo, não sou bom, sou mau; a todo momento a tendência para o mal está levantando a cabeça dentro de mim e, se eu não desenvolver um esforço extraordinário, pratico o mal. E depois o mal muito rapidamente se torna em mim um hábito. E o indivíduo mau é o que praticou o mal, mas sobretudo é mau aquele que transformou o mal num hábito.

Se eu não tiver essa ideia de que sou coisa podre, e de que sem a graça de Deus só farei o mal — portanto, devo ter um inimigo capital na vida chamado eu mesmo —, vou acabar formando de mim uma ideia de bonzinho, meio-termo, pessoa que no total é bem melhor do que as outras, a partir da qual a penitência é impossível. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/2/1983)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2014)

 

1) Neologismo com o qual Dr. Plinio caracteriza, nesta conferência, a influência do espírito cisterciense na Europa medieval.

 

O mais belo mar! – I

Introduzindo-nos em considerações metafísicas sobre as mais variadas embarcações, Dr. Plinio nos convida a singrar os misteriosos, por vezes conturbados, mas sempre magníficos mares da História.

 

Há pouco, eu estava folheando um álbum, com panoramas da ilha de Porto Rico, e vi a fotografia de um transatlântico contemporâneo ancorado no porto. Transatlântico já não é bem uma coisa contemporânea. É um contemporâneo de ontem, porque hoje quase não há mais transatlânticos.

Mas o álbum deveria datar de uns dez anos atrás, quando os últimos transatlânticos brilhavam com seus últimos fogos e suas últimas luzes, sobre esses mares que vão ficando vazios de navios que transportam gente. São mares comerciais, rotas apenas de transporte de mercadorias.

A fotografia mostrava a cidade de Porto Rico, iluminada durante a noite com as luzes das casas refletindo-se sobre o Mar das Antilhas; e o transatlântico fortemente, quase feericamente iluminado com as luzes do tombadilho, do convés e das várias escotilhas que dão para os camarotes, todas muito acesas, formando quase um palácio de luz, junto ao porto um pouco escuro e refletindo-se também nas águas; pelo artifício da fotografia, era apresentada uma imagem verdadeiramente feérica do transatlântico.

O transatlântico: palácio de magnificência

Cogitando nisso, pensa-se no mar, na beleza de uma viagem transatlântica. Olhando aquele transatlântico de fora para dentro tem-se a impressão de um verdadeiro palácio flutuante. Se uma pessoa, fazendo o trajeto oposto ao do raio de luz, entrasse num camarote através de uma janelazinha, encontraria um ambiente de conforto, de distinção, de afago, de bem-estar, de agrado que lhe daria vontade de não sair do camarote, tão esplendoroso ele seria.

Poderíamos imaginar várias formas de camarotes: espaçosos, confortáveis, altos, ou pequenos, estreitos; superluxuosos, com cama de plumas, brocados, damascos, acolchoados, tapetes. O passageiro está com o ventilador ligado e a mão posta sobre uma mesa, pensando no tempo que corre, no navio que singra, nas ondas que passam, nas estrelas que se sucedem e no transatlântico que segue a sua rota; e ouvindo o mar que, com os seus mistérios, seus perigos, do lado de fora, como que, bate inutilmente na porta do camarote enquanto que o passageiro, dentro, sente-se tão bem, meio isolado do mundo. Dentro do mundo feérico do transatlântico há a feeria da imaginação que ajuda a pensar a respeito daquilo tudo.

Então se tem a impressão de que cada cabine do transatlântico é um ninho de bem-estar e de luxo dentro de um palácio de magnificência, de largueza, distensão e movimento.

Suponhamos que uma pessoa caminhe pelos corredores estreitos do navio, transitando diante das portas hermeticamente fechadas para quem passa. Atrás de cada uma daquelas longas portas, todas anônimas, há um passageiro que, numa viagem de alegria ou de dor, separação ou união, esperança ou decepção, ganância ou vontade de prazer, vai rumando para um destino que não tem nada que ver com o dos seus vizinhos.

Ela tem a impressão de que atravessa uma longa constelação de mistérios fechados, que se cerraram; por fim, chega aos grandes salões, tomando dois andares do transatlântico: um salão chinês de laca vermelha, um salão francês de sedas cor de água meio verde, e assim por diante, até o clássico bar alemão, com os seus pães pretos, suas linguiças, suas cervejas, seus chocolates e seus antegozos da Europa que vem chegando.

Tudo isto constitui um palácio em cujo interior gostamos de pensar e de imaginar que andamos, muito mais do que nesses poleiros ou nessas gaiolas de gente, chamadas avião, nos quais se viaja a toda pressa. Nos aviões, a beleza do ar externo não tem nenhuma consonância com o homem, o qual só toma conhecimento do que se passa no ar, mais ou menos, como um produto enlatado conhece o que se passa na vida fora dele. É enlatado que o homem percorre essa coisa tão diáfana, o ar, o qual, depois de passar por tubulações viciadas e nada possuindo da sua pureza originária, só entra no avião por uns esguichos dirigíveis que assobiam em cima do passageiro.

Caravela: sensação do risco e do heroísmo

Podemos imaginar quantos navios percorreram os mares. E a feeria das embarcações, com as suas várias formas, começa a passar por nossos olhos.

Se nos reportarmos não mais aos transatlânticos desta última fase — fim e apogeu dos transatlânticos de metal — mas, recuando no tempo, às caravelas: oh! que beleza! Entretanto, que desconforto para o corpo! Não há a cabine maravilhosa! Nem o salão chinês de laca vermelha, o substancioso bar alemão, e nem um pouco o charme do salão francês!

Mas há outro charme! O porão do navio realmente é rude, duro, inóspito, porém que tombadilho! Este possui magníficas “chaises longues”, com forma anatômica, onde a pessoa se deita, de maneira a ter a impressão de que não possui corpo? Nem um pouco! Nele há um serviço de restaurante estupendo, oferecendo “whisky”, “gins-tônicas”, sorvetes? Não!

No tombadilho da caravela existe outro jogo de belezas e encantos! O transatlântico moderno levava o homem a não prestar atenção no mar, no ar, a esquecer-se de que estava navegando. Era um palácio ambulante tão deslumbrante, que só se dava atenção ao palácio. O resto era quase acessório.

Pelo contrário, o velho veleiro, na sua rudeza, oferecia coisas simples. Mas que coisas! Antes de tudo, velas estupendas, em castelo, em ponta, umas com a Cruz de Cristo ou as quinas de Portugal, outras com armas da Espanha, da França, do Sacro Império, de algum reino da Itália ou da Inglaterra. Ele oferecia os ventos desencadeados e furiosos das tempestades, o odor salino das ondas que inundavam às vezes o tombadilho e voltavam deixando suas madeiras embebidas de água; mas o homem, com a sensação do risco e do heroísmo, ia cortando o vento e fendendo a natureza; ou as noites doces, estreladas, tépidas, nas quais se tinha a impressão de que cada estrela sorria para cada passageiro e estavam tão próximas que se poderia brincar com cada uma delas, como se alguém acendesse uma maravilhosa luz e surgisse um céu recamado de lâmpadas de Aladim!

Então, havia a doçura das brisas que bailavam em torno do rosto, afagavam, faziam promessas do feliz destino da viagem. Ou, nas noites escuras, misteriosas, o deleite da incerteza. Ao avançar, o veleiro produzia a sensação de uma conquista no escuro, de uma conquista, por isso mesmo, bela. Cada pessoa se sentia dignificada.

Que riqueza existe na alma do homem e no universo feito por Deus para haver todo um conjunto de jogos de deleites diferentes! E como os deleites do veleiro antigo são superiores aos deleites do transatlântico moderno!

Espírito admirativo

Quando falei do transatlântico, referi-me à cabine recamada de damasco – eu gosto de damasco. Em nossa sede principal há uma sala recamada de damasco; chama-se Sala da Tradição. Aquele damasco foi comprado em Buenos Aires e eu quis que ali ele fosse colocado para a glória de nosso Movimento, o qual somente visa a glória de Nossa Senhora.

Aprecio muito tudo isso. Gosto de ter uma alma tal que saiba admirar os brocados de uma cabine de um transatlântico, e também as tempestades com as quais se defronta um veleiro. Admirar esses diversos jogos de coisas, compreendê-las e ter a alma bastante flexível para se embeber de todas elas até o fim, e perceber que ainda possui outras disposições de espírito para admirar outras coisas: aí está, verdadeiramente, uma vastidão maior do que a do mar. Eu não hesito em dizer, maior do que a do ar; essa é a vastidão de qualquer alma humana que verdadeiramente saiba admirar!

Basta sabermos admirar e termos a alma com todas as elasticidades da admiração, para sermos capazes de gostar das coisas. Por causa disso, depois de passarmos pelo veleiro magnífico da era dos descobrimentos, rumando para trás, chegaremos a uma época em que o Oceano Atlântico quase não era navegado.

Então, sair do Estreito de Gibraltar, dar a volta pela Península Ibérica e chegar ao Canal da Mancha era um verdadeiro risco, uma temeridade. E o aventureiro que chegasse até os Açores ou as Canárias era tido quase como um Cristóvão Colombo, de tal maneira o homem pouco conhecia o mar. A brutalidade do Oceano Atlântico, tão menor que a do Pacífico, deixava aterrados os nossos remotos antepassados europeus.

A epopeia da conquista dos Lugares Santos

Na Idade Média, os homens, em navios pequenos, tinham a audácia de atravessar o Mediterrâneo, hoje quase considerado um lago. Naviozinhos sem grande beleza, com pequenas velas triangulares, nos quais iam homens magníficos: os cruzados! Neles poderíamos admirar Godofredo de Bouillon, São Luís e tantos outros que iam aos grupos para a Terra Santa. As navezinhas, sem beleza no seu aspecto material, conduziam homens com almas cheias de beleza.

Nas cruzadas de São Luís, podiam-se ouvir à noite os guerreiros cantarem o “Salve Regina, Mater Misericórdiæ”, que um monge de Cister, chamado Bernardo de Claraval, acabava de compor e que, como um frêmito, atravessara a Cristandade inteira. E depois, chegando ao Oriente, São Luís, com sua armadura de ouro, saltava dentro da água com pressa de pisar em terras do Egito, para atacar o adversário e começar a epopeia da conquista dos Lugares Santos.

Aí se percebia outra forma de beleza, não do navio, da vela ou do Mediterrâneo com o seu azul magnífico, mas da alma humana, mais bela que o mar. Bonito é o Sepulcro de Cristo que se trata de libertar. Mais belo ainda é Cristo Ressurrecto de dentro do Sepulcro, que se trata de glorificar.

Os vikings

E, indo mais para trás, somos transportados pela imaginação para outro tipo de navegação.

Na Europa nórdica, encontramos o Mar do Norte com suas brumas. Nas porcelanas dinamarquesas essas brumas são magnificamente representadas: um azul que se desfaz numa neblina prateada; uma neblina prateada que se desfaz em azul. Não se percebe bem o que é água e o que é neblina em toda aquela massa indefinida, dentro da qual os dinamarqueses de hoje gostam de representar algum peixe ou outra coisa viva, mas no interior dela eu gosto de imaginar a presença dos vikings.

Dos vikings dos antigos tempos, daquelas tribos com duzentos, quinhentos homens no máximo, que se aventuravam em frotas de barcos magníficos, com aquela quilha parecida com o pescoço do cisne, que vem para trás e se joga para frente. Tinham ao mesmo tempo a elegância do pescoço do cisne e a agressividade do bico de uma águia.

Quinhentos homens utilizavam aproximadamente cem barquinhos. Eles se chamavam reis do mar, porque era o reino inteiro que viajava. Enquanto as mulheres ficavam numa ilha ou num lugar qualquer onde não pudessem ser atacadas, os homens singravam os mares para descobrir terras novas a fim de levar as famílias; ou iam simplesmente à pesca de baleias, arenques e outros bichos para se alimentarem durante o inverno.

Podemos imaginar como eles viajavam. Nas horas de perigo, todos com escudos encostados uns nos outros, fazendo um paredão de um lado e do outro, com a mão esquerda seguravam o escudo e com a direita a lança em ponta, e cantando canções “pré-wagnerianas”. Depois de uma navegação arriscada, entravam por um fiorde escarpado da Noruega ou um porto brumoso da Inglaterra ou, indo mais além, chegavam até a Islândia, a qual representava já algo do mundo novo que se tratava de atingir.

Que série de embarcações maravilhosas! Entretanto, quanta outra coisa se poderia dizer sobre navios!

Veneza, a feérica, perdeu o império comercial dos mares…

Minha imaginação se reporta a outro quadro completamente diferente.

“Ancien Régime”(1): delicadezas, reverências, elegâncias. Uma cidade à beira-mar. De noite, brilham luzes e fogos; de vez em quando, cravados no fundo do mar, uns espetos com lanternas. É Veneza, a feérica!

Na cidade há uma expectativa geral. De longe, ao mar, ouve-se uma música de Vivaldi; depois se veem as luzes e se percebem as flores, das quais se sentem os perfumes; escutam-se as batidas suaves dos remos: é uma nau toda dourada, com as elegâncias do estilo do “Ancien Régime”; na frente, uma figura alta, com um barrete frígio, com aquela parte voltada para a frente, e todo vestido com um traje de cor bordô profundo e que olha como um rei.

É o Doge de Veneza, que volta na sua famosa nau de gala, o Bucentauro, da festa dos desponsórios de Veneza com o mar. Para realizar esses desponsórios, à tarde miríades de gôndolas saem, cujos gondoleiros tocam violinos e cantam festivamente; e o Bucentauro com o famoso conselho dos dez, tendo o Doge, à frente, homens e damas de sua corte, ao som de músicas. Vão até alto-mar do Adriático e, no momento solene, todos param, os remos se levantam. Expectativa geral. O Doge toma, de um escrínio precioso, um precioso anel e o joga no fundo do mar: é o casamento, os desponsórios de Veneza com o mar!

Isso afirmava outrora o poder de Veneza sobre o Adriático e o Mediterrâneo; posteriormente houve a Veneza de Marco Polo, que mandava homens ir a pé até a China e, quando voltavam, contavam o que viram.

Mas depois uma nação espalhou em Veneza a desolação. Barcos dessa nação atracaram em Veneza e deles desceram homens altos e bem largos, robustos, olhos e cabelos pretos, pele clara, passo firme, decidido, falar cantante e franco. Mostravam especiarias, dizendo: “Todas essas coisas procedem do Oriente. Nós as trouxemos por mar! Demos a volta à África, pelo Cabo da Boa Esperança!”

Contam os historiadores que os nossos ancestrais portugueses puseram à venda as mercadorias que eles traziam – pimenta, cravo, canela, açúcar, baunilha – a preço de arrebentar o varejo veneziano. Era a prova de que o domínio das especiarias pertencia a Portugal. Não se vinha mais por terra, mas por água. Portugal tinha rasgado o monopólio veneziano e, como também a Espanha faria depois, inundou a Europa com as especiarias. Houve, então, dias inteiros de pranto e consternação em Veneza.

…mas ganhou o império da beleza

Não conheço a História de Veneza nos seus pormenores, mas foi com certeza nessa circunstância que se deu uma revelação para Veneza; ela perdeu o império comercial dos mares, mas não tinha percebido que ganhara um império muito mais precioso: o da beleza.

Veneza aproveitara o tempo de sua riqueza para se encher de palácios, de obras-primas imortais e para tornar-se umas das cidades mais belas e talvez a mais original de todo o universo. E quando ela começou a decair comercialmente, as nações, inconsoláveis pela sua decadência, começaram a visitar a feérica moribunda que ia expirando. E todos lhe traziam a sua contribuição, o tributo de sua admiração: o ouro do turismo que começava. Veneza foi, talvez, o primeiro centro internacional de verdadeiro turismo. O mundo inteiro se encantava e lá gastava dinheiro, pois não queria que Veneza morresse!

Então Veneza compreendeu que, continuando a vida de luxo, de festa, de arte, prolongava sua própria vida; e que ela estava casada com o “pulchrum”, possuía uma beleza imortal. Somente nessa ocasião ela se deu conta, pela admiração dos homens da terra firme, de que cada um de seus quarteirões é como um transatlântico, e de que Veneza se assemelha a uma esquadra maravilhosa, fixa no fundo da laguna: em cada ilha, cada bloco de casas é admirável. Veneza é muito mais do que o transatlântico que, no começo desta exposição, eu fiz figurar diante de vossos olhos.

Vós ficastes encantados quando falei do transatlântico de Porto Rico. Ao ver a fotografia dele, encantei-me também; mas quando terminamos nossa viagem em Veneza, que baixa de nível esse transatlântico! Nosso espírito foge espavorido e não tem vontade de pensar nas magníficas caravelas portuguesas, nem nas naus vikings. Chegou a Veneza, parou! Ali existe qualquer coisa de feito, de acabado, de definitivo.

Percorremos mentalmente vários tipos de navios. E em cada um deles as cordas de nossa admiração, como o alaúde chinês — que aqui foi tocado no início de nossa reunião —, vibraram de um determinado modo. E fomos transportados, assim, da vida quotidiana, da terra firme, para outros horizontes. Acabamos de velejar pelos mares da História, e compreendemos que esta é um mar mais bonito do que todos os mares.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

 

1) Período da História da França que precede a Revolução Francesa.

 

Procurar sempre o mais perfeito

A alma inocente, favorecida pela graça, tem um movimento ascensional em direção a Deus, desejando sempre o maravilhoso. Entretanto, a Revolução procura perverter as pessoas desviando-as desse caminho, apresentando-lhes falsificações da verdade, do bem e do belo.

 

No fundo, o homem encontra aquilo que procura. E, segundo uma expressão francesa muito adequada, “quem não sabe o que procura, não sabe o que encontra”. Resultado: aquele que procura uma determinada coisa a encontra; se não a procura, ele acaba não a encontrando.

O princípio de todas as virtudes

Em termos mais precisos, se uma alma é colocada diante de uma coisa verdadeira, ela se pergunta qual é a conclusão, qual a verdade que parte daí. Diante de uma coisa boa: pode haver ainda melhor? Diante de uma coisa bela: há um modo de embelezá-la mais? Quando a alma tem esse movimento, ela possui em si o princípio de todas as virtudes. No fundo, a alma é feita de tal maneira que, colocada diante daquilo que é segundo Deus, ela quer ainda mais.

A verdade, o bem, a beleza criados são reflexos do Bem, da Verdade, da Beleza incriados. E quando a pessoa, diante da verdade, do bem e da beleza criados quer mais e mais, ela procura Deus. Sua alma está em ascensão, buscando crescer cada vez mais e atingir o píncaro. Instintivamente, por causa dessa disposição prévia de espírito, ela procura sempre o mais perfeito. E o resultado é que encontra.

Então, por exemplo, diante de um lindo copo de cristal, a pessoa pode se perguntar: com um quartzo rosa, meio lilás, elaborado, não se faria também um copo bonito? Que pena as esmeraldas serem tão pequenas, porque não é possível fazer um copo de esmeraldas… Mas como seria bonito um copo de esmeraldas! O que significa esse movimento da alma? Significa desejar mais alguma coisa, que é segundo Deus.

Uma pessoa ouve falar das rodas(1) da Santa Casa de Misericórdia, da caridade daquelas freiras, e no primeiro momento imagina: Como seria bonito que, em vários lugares do mundo, freiras vestidas como Santa Catarina Labouré — que recebeu a visão da Medalha Milagrosa —, com aquele chapéu branco, hábito preto, cuidando das criancinhas dos outros, com uma pena, uma condescendência que as mães não tiveram, ensinando a Religião e aguentando as ingratidões das crianças, que às vezes são ingratas com os pais e quanto mais o serão com quem não são os pais! E carregando a cruz que o pai, ou a mãe, prevaricador não carregou! Que bonito refletir: de repente algo da graça, através da freira, incide sobre a criança e a alma desta vai se modelando!

Depois de ter imaginado isso, vem uma pergunta: como seria com Santa Catarina Labouré? Poderia eu imaginá-la? E posteriormente surgiria outra indagação: e se uma criança ignota fosse parar nos braços de Nossa Senhora, como a Santíssima Virgem faria?

Querer melhorar continuamente

Por que a alma vai por si imaginando o mais maravilhoso? Porque ela tem esse movimento ascensional rumando para Deus, que é o dinamismo de sua própria inocência, favorecido pela graça, naturalmente. Com essas cogitações, que são naturais à alma inocente, ela procura coisas maiores e, procurando, encontra. E a alma tem a proteção do anjo da guarda, de Nossa Senhora.

Representam-nos tantas vezes o anjo da guarda amparando uma criança para não tropeçar numa pedra; e é verdade. Mas quanto mais ele a ajuda para não tropeçar num sofisma, num erro, para acertar com a verdade, ter mais estímulo para querer o bem, amar a beleza! Quantas e quantas vezes movimentos bons de nossa alma foram do anjo da guarda, que cochichou ao nosso espírito, sem percebermos, tal coisa, tal outra, e caminhamos para frente! Nossa alma, angelizada, transportada por ele, voa de degrau em degrau, sob os auspícios e o bafejo dele. Isto é subir!

Então, procurando se encontra, e assim se produz também formas de perfeição cada vez maiores. Começam a aparecer os artistas, os literatos, os pensadores, os filósofos, os santos, a civilização inteira floresce. É a Cristandade, a marcha para cima. Num ambiente assim, em que as pessoas são ávidas disso, cada passo numa das vias — verdade, bem ou beleza — todo mundo nota: Olha aquele lá, que vocabulário! E aquele outro, que maneiras educadas! Aquele outro, que bondade! E aquele outro, que firmeza no pensar e que coerência! E assim por diante. E todos os pequenos progressos são notados, aplaudidos por todo mundo, e tudo na sociedade trabalha para que a virtude seja fácil de praticar e atraente. É o desejo de melhorar continuamente.

Às vezes a Revolução apresenta algo com ares de “verum, bonum, pulchrum”

No meio disso, que estou apresentando quase como uma regra implacável, há, entretanto, muito de placável, que é celestialmente desconcertante. Na vida de todo mundo que vai seguindo o caminho da ascensão, de vez em quando se levanta — todos conhecem a cobra tipo naja, que se ergue e se apresenta ao homem, pondo a língua e querendo morder —, a semelhança de uma naja, uma tentação. E essa tentação é algo da Revolução que procura apresentar-se com ares de “verum, bonum, pulchrum”, como quem diz: “Olha, eu tenho até mais do que o caminho do bem que você está trilhando; siga-me!” Isso houve em várias épocas da História, como exemplificarei.

Há também o contrário, no caminho da Revolução: o “verum, bonum e pulchrum” às vezes atuam como Nosso Senhor fez com São Pedro. Jesus parou e olhou para ele. E alguns fazem como São Pedro: se deixam apanhar por aquele olhar, convertem-se e choram amargamente. Os que estão neste auditório, olhando para o tempo em que não pertenciam ao nosso Movimento — e andavam por esses caminhos que são descaminhos —, é impossível não se lembrarem de uma ou outra ocasião, quando de repente algo de “bonum”, ou de “verum”, ou de “pulchrum” lhes brilhou mais. Então vacilaram um pouco, mas não desviaram o caminho; até o momento em que Nossa Senhora lhes fez aparecer a Vocação.

São as horas terríveis e, ao mesmo tempo, comovedoras da História. Há ocasiões da História em que o mal se apresenta sem máscara e diz: “Eu sou o mal! Sigam-me!” E as pessoas o seguem. Em outras ocasiões, o mal se apresenta com aparências de “verum”, de “bonum” e de “pulchrum”. Olha resplandecente e declara: “Vou fazer um raciocínio e ninguém conseguirá desmontar!” Ou então: “Vou praticar um ato de virtude que ninguém conseguirá imitar!” E faz certo ato. Ou então: “Vou fazer uma coisa linda, que ninguém poderá copiar nem, menos ainda, exceder!” E funda uma escola artística. E diz a cada pessoa: “Você não quer “verum”, ou “bonum”, ou “pulchrum”? Venha comigo, eu lhe dou. Olha isso, aquilo, aquilo outro!”

Há uma forma do obsessivo nesse convite, semelhante ao guizo da cascavel. Antes de a cascavel morder ela toca aquele guizo. Assim também faz o mal: “Olha aqui! Olha aqui! Olha aqui!”

O princípio da tábula rasa

Estou me lembrando de uma coisa assim, que é um princípio filosófico o qual se apresenta com uma clareza extraordinária, mas é uma mentira em nome da qual não sei quantos despencaram ladeira abaixo. É o princípio da tábula rasa, que diz: antes de estudar certa coisa, devo fazer abstração de todos os dados que eu tinha sobre ela. E antes de julgar, também devo fazer um estudo novo. Porque o que eu sabia antes pode deformar o meu pensamento. Vou partir de um grau zero, como uma tábua rasa, sobre a qual um carpinteiro passou a plaina; aí estou em condições para ter um pensamento límpido e verdadeiro.

À primeira vista, parece a coisa mais evidente que há. O indivíduo pensa: “Eu me dispo de preconceitos e faço um raciocínio sereno”. Aparentemente é de uma verdade que tem garras, arrasta. Nosso instinto diz: há algo nisso de falso. Mas se alguém pedir: “Apresente o argumento verdadeiro contra isso!”, temos que pensar muito para arranjar um castelo de pequenos argumentos a fim de mostrar que o princípio da tábula rasa é errado.

Quem é intransigente com relação aos maus está progredindo na virtude

Mas, quando o mal toma ares de “bonum, verum, pulchrum”, é apenas por algum tempo. Pouco depois, ele deixa a máscara no chão e mostra a careta por inteiro. Mas o indivíduo já se habituou, se viciou com o mal e aí não tem mais jeito; ele cede mesmo. Quer dizer, é uma forma de desnaturar, de corromper, de deteriorar as pessoas. No fundo, quem segue o mal tem uma sensibilidade tão fina que, quando o “verum, bonum, pulchrum” é apresentado sob máscara, as pessoas, nas épocas de transição, se comovem e aplaudem esse “verum, bonum, pulchrum” falsificado. Aplaudem porque sentem que é falsificado; percebem ser uma ponte para elas mesmas, sem muito choque, chegarem ao mal.

Eu termino com esta conclusão: prestem atenção, quem possui muita percepção para saber quem não presta, tem vontade de subir. Quem possui pouca percepção para saber quem não presta, tem vontade de descer. Quem tem muita moleza com aquele que não presta, é conivente e está descendo. Quem possui muita intransigência com aquele que não presta, é bom e está subindo. Essas coisas à distância se percebem, se discernem. O resto não é senão hipocrisia.  v

 

(Extraído de conferência de 4/4/1981)

 

1) Caixas em formato cilíndrico colocadas junto às portarias de conventos e Santas Casas de Misericórdia, destinadas a receber crianças abandonadas pelos pais.

 

São José e a fecundidade da vida interior

Quando alguém se refere aos grandes vultos da história, imediatamente nos vem à memória a figura de um genial estadista, de um celebrado filósofo, de um brilhante general. Todavia, tudo isso não é nada em comparação com a sublimidade de ter colaborado na realização da Redenção. Eis a incomparável vocação de São José, destacada por Dr. Plinio, que no-lo apresenta como modelo a ser seguido por todos os católicos.

A ignorância religiosa em que vivemos tem produzido, entre outros efeitos nocivos, o desvirtuamento inteiro do significado real de algumas determinações da Igreja, que, quando mal  interpretadas, são inteiramente estéreis de frutos espirituais, e quando bem compreendidas, são férteis em graças e proveitos de toda ordem.

São José, modelo de todas as grandes virtudes

É o que se dá, por exemplo, em relação ao culto de São José que, proposto pela Igreja como modelo dos chefes de família e dos operários, é também, pelo imenso acervo de virtudes com que foi enriquecido pela graça, modelo ideal de todas as grandes virtudes católicas.

A maioria dos católicos, porém, não pensa seriamente em tomar São José como seu modelo. De um lado, a imensa santidade do pai [jurídico] de Jesus, a quem a Igreja cultua com a suprema dulia, parece um ideal absolutamente inatingível. De outro lado, a fraqueza humana de que nos sentimos repletos, solicitada por toda sorte de inclinações, nos afasta por tal forma de qualquer ideal espiritual, que julgamos muito já ter feito quando nos libertamos do jugo do pecado mortal e venial, e vivemos uma vida espiritual estacionária, relativamente suave, pois que se limita à conservação do terreno conquistado, mas inteiramente estéril para a Igreja e para a maior glória de Deus.

Em busca da perfeição espiritual

A Igreja certamente não pretende que seus filhos igualem em glória e em virtude aquele que, depois de Maria Santíssima, foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade.

Por outro lado, porém, ela não quer de modo algum que limitemos nossos horizontes espirituais a uma vida piedosa banal, amesquinhada pela errônea ilusão de que seria falta de humildade aspirar-se à santidade que brilhou no gênio de São Tomás, na combatividade de Santo Inácio, no recolhimento de Santa Teresa e na caridade de São Francisco.

A Igreja desmascara esta falsa humildade, apontando nela, ou um pretexto especioso da covardia espiritual, ou uma concepção orgulhosa da virtude, considerada mais como fruto do esforço humano do que da misericórdia de Deus. E, ao mesmo tempo, ela se serve do exemplo de seus grandes santos para “levantar ao alto” nossos corações, indicando-nos que a única preocupação real desta vida, o único problema verdadeiramente importante de nossa existência, é a aquisição daquela perfeição espiritual que será o único patrimônio que conservaremos, a despeito das crises financeiras, das comoções sociais e da fragilidade das coisas humanas, para, finalmente, transpormos com ele os próprios umbrais da eternidade.

É disto exemplo frisante o grande São José. Nascido de família ilustre, arrasta, no entanto, uma existência obscura que, contrastando com o brilho de seu nome, o colocou na mais baixa camada da sociedade de seu tempo. Escasseiam-lhe os dotes naturais com que os homens se fazem grandes. Não dispõe de exércitos nem de súditos, que levem ao longe a glória de seu nome. Não dispõe do dinheiro com que galgar às altas posições. Vive humilde e desprezado, à sombra do Templo majestoso, e no próprio país em que reinara a sabedoria de Salomão.

No entanto, brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade, e este homem humilde é chamado a co-participar de modo direto em acontecimentos dos quais decorreriam os mais notáveis fatos da história do mundo.

A Religião católica, coluna da civilização

A Redenção do mundo, que é o fato central de toda a nossa história, determinou a queda do paganismo, o aparecimento e o triunfo da Igreja Católica, a implantação de uma civilização baseada em concepções inteiramente novas da família, do Estado, do indivíduo e da Religião, que foram os fatos iniciais e a causa do grande progresso que hoje admiramos.

A família pagã, transformada e sobrenaturalizada pelo contato com os Sacramentos da Igreja, transformou-se em foco admirável de perfeição espiritual e em escola austera da disciplina dos instintos inferiores.

O Estado pagão, transformado em sua base pelo Catolicismo, deixou de ser privilégio de plutocratas ou demagogos, para ser antes de tudo um admirável meio de distribuição equitativa da justiça e proteção a todos os indivíduos.

O indivíduo, que no paganismo era presa de suas paixões, viu abrir-se diante de si o admirável ideal de perfeição espiritual pregado pelo Homem-Deus; e o homem medieval, descendente dos sibaritas da Antiguidade, se transformou no cruzado, no asceta ou no filósofo cristão.

A Religião, enfim, conseguiu trazer ao mundo, com seus Sacramentos, com a graça de que é veículo, e com o admirável apostolado hierárquico da Igreja, uma continuidade de ação santificadora que tem sido a coluna da civilização.

Todos esses acontecimentos gloriosos tiveram sua origem na Redenção. São José, pela admirável correspondência à graça com que se distinguiu, colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção. E, como tal, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Inestimável valor de uma vida espiritual intensa

Vemos, pois, a admirável fecundidade de uma vida que todas as circunstâncias naturais tendiam a tornar estéril. Vemos a prodigiosa capacidade de ação da santidade que, no recolhimento e na humildade, colaborou diretamente em acontecimentos muito mais importantes e teve uma participação incalculavelmente mais notável em toda a história da humanidade do que Alexandre com seus exércitos, Kant com seu saber arrogante, ou Maquiavel com sua diplomacia astuta e amoral.

Vida interior, portanto. Vida interior intensa, constante, ilimitadamente ambiciosa, no sentido espiritual da palavra, eis a grande lição que (o exemplo) de São José nos deixa.

Intimamente unidos a Nossa Senhora como o foi São José, não nos deve desanimar, ante a grandeza dessa lição, a escassez de nossas forças, pois que devemos exclamar como encorajamento: “Omnia possum in eo qui me confortat — Tudo posso n’Aquele que me conforta”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 116, de 26/3/1933. Título e subtítulos nossos.)

A primeira gota de uma torrente de graças

Ele era um pequeno funcionário público de Lourdes. E também um cético diante das recentes aparições da Santíssima Virgem que, naqueles idos de 1858, vinham comovendo essa cidade dos Pireneus. Contudo, movido pela curiosidade, decidiu comparecer certo dia à gruta de Massabielle, nos arredores de Lourdes, no momento em que a Mãe de Deus entabulava mais um colóquio com a camponesa Bernadette Soubirous.

A partir de então, a existência do incrédulo personagem mudaria para sempre, conforme ele próprio testemunhou: Após assistir à cena, senti-me como saído de um sonho, e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim e um mundo de pensamentos agitava-se em minha alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu percebera sua presença, e estava convencido de que seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando que eu, o homem das ironias e das presunções, fosse admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu!

Para Dr. Plinio, a história dessa tocante conversão era eloquente motivo para se crescer em confiança na insondável misericórdia de Maria Santíssima. E comentava: “Esse homem teve noção de que realmente existia a pessoa com quem Santa Bernardette conversava. Portanto, aquela visão não podia ser uma abstração, nem era uma fantasia. A camponesa dialogava com alguém, e o seu modo de agir nessa circunstância possuía todas as características objetivas de uma interlocutora. Donde ser inegável a autenticidade da cena. O fato de ter presenciado este diálogo diretamente, o comoveu e o levou à conversão. Ele não viu Nossa Senhora, porém pelas atitudes de Santa Bernadette soube que a Rainha do Céu ali se encontrava.

“Analisemos a situação de alma desse homem. Sentia-se, ao mesmo tempo, humilhado e pasmo, pois não podia crer que ele, cético, havia sido tão bem tratado por Nossa Senhora e transformar-se no objeto de um milagre gratuito alcançado por Ela em seu favor. De nenhum modo merecia ter essa espécie de visão indireta da aparição, e menos ainda receber aquela inestimável graça concedida pelas mãos de Maria. E entretanto, pelo simples reverberar da presença d’Ela sobre a figura de Santa Bernadette, a Virgem tocou sua alma e venceu todos os seus orgulhos, fazendo-o pensar: ‘É espantoso! Eu, até há pouco tão ruim, tão pretensioso, tão miserável, o menos indicado a obter tamanha dádiva, contra todas as expectativas a recebo. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, e de forma tal que a porta quase não pode recusar-se a abrir!’

“A obra maravilhosa que a graça realizou na alma desse homem foi precursora dos esplendores que a mesma graça operaria em milhares de almas que passariam por Lourdes e ali seriam tocadas pelo milagre. E em tantas outras que, embora achando-se distante da gruta de Massabielle, converter-se-iam ao ouvirem as descrições dos milagres. O dom extraordinário concedido àquele cético foi como a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, a partir do dia 11 de fevereiro de 1858, quando Nossa Senhora apareceu pela primeira vez a Santa Bernadette.

“Desse fato devemos colher um importante fruto. Se tomarmos em consideração que, em favor de um incrédulo, Nossa Senhora alcançou graça tão insigne, dádiva muito maior obterá Ela para aqueles que perseveram na Fé. E, portanto, podemos esperar com inteira confiança e devoção que Ela nos consiga de seu Divino Filho graças superlativas, de modo particular na festa de Nossa Senhora de Lourdes. Razão pela qual me parece assaz conveniente que, nessa data mariana, nos ajoelhemos aos pés de uma imagem d’Ela e Lhe supliquemos, com entranhado fervor, as graças de que mais necessitamos, quer para nossa vida espiritual como para remediar nossas dificuldades temporais.”

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2007)

Ladainha da Humildade – Desprendimento e amor a Deus

Dr. Plinio nutria grande apreço — e a recomendava vivamente a todos — pela  Ladainha da Humildade, composta pelo Cardeal Rafael Merry del Val, Secretário de Estado  do Papa São Pio X.
Conforme ressaltava Dr. Plinio, é a humildade um dos importantes esteios para a perseverança do católico, como salvaguarda da virtude da pureza e da autenticidade de qualquer ato piedoso.

A Ladainha da Humildade, escrita pelo Cardeal Merry del Val, embora magnífica e de inestimável proveito para as almas, devendo ser rezada amiúde, poderia admitir certo desenvolvimento particularmente útil para os membros de nossa obra.

Contrária à visão egoísta da vida

Nesse sentido, ocorreu-me fazer uma aplicação dos mesmos conceitos enunciados pelo Cardeal Merry del Val a tópicos que nos interessam de modo especial.

Sob um certo ponto de vista, essa oração poderia ser chamada “Ladainha do Desprendimento”, pois todos os pedidos nela formulados têm por objetivo evitar o egoísmo.

Assim, os desejos de ser estimado, amado, honrado, consultado, preferido, de ser mais santo do que os outros, etc., resultam, em última análise, da preocupação egoísta de considerar-se o primeiro e ter tudo para si. Em síntese, de quem possui, como ideia fixa, o “eu, eu, eu”.

Crescer no amor a Deus e ao próximo

Surge, então, este pensamento: “Está bem, não desejo ser amado, conhecido, louvado. Esse é o lado negativo do assunto. Qual será seu aspecto positivo?”

O lado positivo, contrário ao egoísmo, consiste não apenas no amor ao próximo, mas, sobretudo, no amor a Deus. O verdadeiro amor ao semelhante é um reflexo do amor a Deus, que se exprime também pela devoção a Nossa Senhora, à Santa Igreja Católica Apostólica Romana — Corpo Místico de Cristo — bem como pelo amor à vontade do Altíssimo e, portanto, à nossa vocação, ao movimento do qual participamos.

Em conseqüência, apresentar o lado positivo dessa Ladainha envolve a seguinte questão: ao entrar num ambiente, devo sinceramente estar despreocupado de ser o primeiro, de ser honrado, louvado, estimado, consultado, etc., e cumpre tomar essa atitude por amor a Deus. Portanto, preciso querer que o Criador e a Igreja sejam amados sobre todas as coisas; e seja eu capaz de amar minha vocação acima de todas as coisas meramente humanas.

Ter sempre em mente o aspecto positivo desses pedidos

Importa considerar também que, ao me esforçar para evitar que o amor próprio, o orgulho e o egoísmo me dominem, preciso ter uma certa visualização que me ajude a combater esses defeitos. Imagine-se, por exemplo, que eu pronuncie uma conferência e o público, muito indulgente e pouco dado a críticas, me cumule de aplausos. Qual deve ser o pensamento correto a se formular nessa hora?

“Que ovacionem a mim, não tem importância. Minha exposição conseguiu despertar o amor a Deus e à Igreja Católica em alguém? Esses aplausos significam um verdadeiro movimento de virtude que minhas palavras suscitaram? Se assim foi, alegrar-me-ei. Não, porém, quanto ao que diz respeito a mim, porque esta é minha razão de ser. Sou filho de Deus e da Santa Igreja, servo de Nossa Senhora: com isto devo me preocupar.”

Ter sempre em mente esse aspecto positivo da Ladainha da Humildade é um esplêndido auxílio para se praticar de modo completo essa virtude propugnada pelo Cardeal Rafael Merry del Val em sua prece, bem como para evitar os defeitos nela apontados.

O modo mais acertado de se rezar a Ladainha da Humildade

Assim, parece-me em extremo conveniente meditarmos sempre no conteúdo dessa valiosa oração. E fazê-lo com aplicações concretas à nossa vida quotidiana, ao nosso dia-a-dia na vocação. Pois o amor próprio é algo tão contínuo, polimórfico e profundamente radicado na natureza humana, que qualquer pessoa, não tendo vigilância, acaba sendo meio infiltrado — para dizer pouco! — por ele.

Exemplifico. Se desempenhamos uma tarefa de modo bem feito, obtemos um grande resultado para nosso apostolado e, por isso, somos objetos de admiração dos outros. A pergunta que devemos fazer a nós mesmos é: “Agimos assim por satisfação própria ou por Nossa Senhora? Para sermos aplaudidos ou a fim de que Ela seja bem servida?”

Se realizamos o trabalho para glorificar a Santíssima Virgem, é o correto e o desejável. Mas, se eu degustar os elogios e pensar: “Homem! Fiz tal coisa, e como os outros me admiraram naquela hora! Fulano, que sempre me contraria, ficou com uma face comprida…” — estarei me entregando a considerações lastimáveis, as quais roubam todo o mérito do meu apostolado.

Precisamos ser indiferentes ao fato de aparecermos ou não naquilo que fazemos nas vias da nossa vocação. E para se alcançar esse desprendimento, só há um meio eficaz: examinar-se e perguntar se Nossa Senhora de fato está bem servida, honrada e glorificada com nossas realizações.

Quer dizer, o modo mais prático e correto de rezar a Ladainha da Humildade é fazer continuamente essas aplicações ao nosso comportamento na vida interna de nossa associação. Por outro lado, se empreendemos um trabalho importante e ninguém nos elogia, não nos incomodemos. Desde que tenhamos procurado atender aos desígnios de Deus, o resto não importa.

É procedendo dessa forma que se combate inteiramente o egoísmo e o orgulho.