Propósito de fidelidade à luz da graça

Ó minha Mãe, Medianeira de todas as graças, na vossa luz veremos a luz!

Mãe, antes ficar cego do que deixar de ver vossa luz, porque vê-la é viver. Na sua claridade contemplaremos todas as luzes; e sem ela, nenhuma luz refulge. Não considerarei vida os momentos em que ela não brilhar; e eu, da vida, não quererei ter mais nada do que a mente banhada por essa luz.

Ó luz, eu vos seguirei custe o que custar: pelos vales, montes, desertos e ilhas; pelas torturas, pelos abandonos e olvidos; pelas perseguições e tentações, pelos infortúnios, pelas alegrias e triunfos. Eu vos seguirei de tal maneira que, mesmo no fastígio da glória, não me incomodarei com ela, porque só me preocuparei convosco. Eu vos vi, e até o Céu não desejarei outra coisa, porque, uma vez, vos contemplei!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composto na década de 1970)

Saúde dos enfermos

O  homem que, em consequência do pecado original, está sujeito às mais aflitivas doenças, amiúde recorre à Santíssima Virgem suplicando-Lhe a cura de seus males. Por isso a Igreja A invoca como a “Saúde dos enfermos”.

Não raras vezes, Nossa Senhora permite doenças e provações físicas a fim de que os homens, curados por sua intercessão, sintam a maternal bondade com que a Mãe de Deus os atende e sejam, assim, por Ela mais atraídos e conquistados. Nossa Senhora, Saúde dos enfermos é, portanto, num primeiro plano, Aquela que restitui a saúde corporal aos homens.

Será só isto? Maria é Mãe apenas quando trata de nossos males? Não será também insigne favor o fato de Ela permitir que nos acometa alguma doença, e que esta perdure longamente? Muitas vezes sim. A doença pode ser um meio mais excelente de nos aproximar d’Ela, de tomarmos distância das coisas do mundo, de compreendermos como é transitória a vida, de purificarmos nossa alma de inúmeros pecados e defeitos. Neste caso, a doença é um bem para nós. De tal sorte que podemos dizer a Nossa Senhora: “Se essa enfermidade for melhor para minha alma, eu a aceito. Porém, Vós tendes o poder de abreviá-la, caso esteja nos desígnios de Deus fazer-me mais bem a saúde do que a doença. Se tal for, se meus pecados não constituírem obstáculos à vossa misericórdia, peço-Vos que me cureis. Do contrário, acolho com humildade o que me destinais”.

Sobretudo devem se dirigir a Maria Santíssima os pecadores, para que Ela restitua a saúde às suas almas enfermas da pior das doenças, que é o pecado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1970)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

Símbolo da santidade, majestade e força – I

Analisando um leão heráldico, Dr. Plinio demonstra como, através de um ente criado, nos elevamos a considerações de caráter metafísico e sobrenatural, reconhecendo em seres materiais os símbolos de realidades espirituais.

 

Um dos modos pelos quais podemos fazer apostolado, hoje em dia, é levar as almas para a consideração da quarta via de São Tomás de Aquino(1).

Como abordar o tema

Há, entretanto, uma dificuldade que consiste no seguinte: alguns espíritos são muito sensíveis a isso; outros, pelo contrário, são pouco sensíveis. Sem dúvida, essa insensibilidade é produzida, em parte, pela Revolução, mas também por determinadas características legítimas do espírito humano, que devemos tomar em consideração.

Existem pessoas que sabem muito bem ver os reflexos de Deus numa determinada arte, mas não em outra. Por exemplo, são muito sensíveis àquilo que um fenômeno sonoro reflita de Deus, mas menos sensíveis aos fenômenos cromáticos. Outros têm grande sensibilidade ao elemento olfativo, para os quais o perfume diz extraordinariamente. Outros ainda serão mais sensíveis a uma produção literária. E assim por diante.

Quer dizer, há legítimas diferenças de espírito na consideração da quarta via, o que já estabelece uma primeira dificuldade para abordar o tema. Ademais, há demonstrações erradas que habituaram os espíritos a considerar as coisas de um modo equivocado.

Não dispondo no momento de músicas nem de perfumes, pareceu-me adequado fazer uma exposição da quarta via baseada na heráldica, disciplina nascida na Idade Média que, através de sinais e símbolos, exprime determinadas realidades referentes à vida de um indivíduo, de uma família, província, nação, instituição, enfim de qualquer entidade que se possa conceber.

Analisemos o estandarte que temos diante de nós. Começo por dizer como o símbolo que o compõe não deve ser considerado: o leão é o mais forte dos animais; portanto é legitimo que ele tenha sido escolhido como símbolo da fortaleza. O sangue derramado pelo homem é uma manifestação do martírio e da dedicação. De maneira que é legítimo que, quando se queira simbolizar a coragem levada até o limite do heroísmo do mártir ou do guerreiro, se use essa cor. Então, por essas razões, o nosso estandarte fala de combatividade e de heroísmo: a combatividade do leão e o heroísmo de quem verte o seu sangue pela causa que defende.

Este é o modo pelo qual o assunto não deve ser examinado. Não que seja errado dizer isso, mas não é sob este aspecto que o tema precisa ser abordado.

O leão heráldico, quintessência de todos os leões

O leão é um animal cuja figura foi acolhida e manipulada pelos desenhistas da heráldica, que procuraram fazer um leão evidentemente parecido com o que se vê nas selvas, mas no qual os traços característicos foram acentuados, de maneira a serem, por assim dizer, estilizados. Estilização é tomar aquilo que é característico e representá-lo de modo acentuado.

Em nosso estandarte, por exemplo, vemos que os traços característicos do leão foram acentuados pelos heraldistas. Portanto, algo que nem todo leão tem e até muito poucos leões possuirão, talvez nenhum tenha no seu conjunto, o heraldista soube, por um efeito da arte, destacar de maneira a modelar um leão que é, ao mesmo tempo, a quintessência de todos os leões. Um leão exatamente assim não existe em nenhum lugar. Em outras palavras, é um leão ultra-real, de um lado, pois o que há de mais real no leão está expresso aí; mas, de outro lado, é irreal porque nenhum leão é realmente assim.

Este leão, assim modelado, pode ser considerado como símbolo de um determinado tipo de força, não por se parecer com um animal selvagem, mas é outra ideia. Há diversos animais na natureza que podem simbolizar a força: a águia, a sucuri que estrangula um cordeiro e o come, o touro, o elefante, o rinoceronte. Mas nenhum animal simboliza o tipo de força simbolizada pelo leão.

Tomemos, por exemplo, o rinoceronte. Um animal feio, sem nenhuma arquitetura. A figura dele é uma massa de carne carregada por umas patas furibundas que escoiceiam estupidamente. Tem uma agressividade cafajeste, de botequim. É a força bruta na sua estupidez.

O leão representa, antes de tudo, uma força suprema na órbita em que ele se move. Entretanto, ele é o primeiro não apenas por ser o mais forte, mas porque é o mais glorioso. Ele tem a sua cabeça cercada por um halo de glória, porque aquela juba não se compõe de pelos desordenados como os do rinoceronte, do búfalo, não são pelos cheios de bichos, de pedaços de folga, nem nada disso, mas limpos. O leão é um animal de corte, bem arranjado; seus pelos caem como devem cair e formam uma espécie de auréola meio áurea em torno dele. Ele se move e os meneios de sua cabeça são cercados pelos movimentos prestigiosos da sua melena.

O olhar dele é fronteiro e já tritura antes de as mandíbulas terem triturado, dando a ideia de que sua força está na alma mais do que no corpo, o que é propriamente a força bem ordenada. É a força de espírito que move a do corpo. E não uma força do corpo imbecil, governada por um espírito insuficiente para regê-la; isto é uma degradação, uma supremacia da matéria sobre o espírito.

Espaços vazios de criaturas, mas cheio de vitória

Disseram-me que o leão não enxerga coisas pequenas, só as grandes. Isso que poderia parecer uma insuficiência tem também seu aspecto simbólico. Há um provérbio latino que diz: “Aquila non capit muscas” – A águia não pega moscas. O leão não olha coisinhas. Há outros bichos que cuidam delas; ele é feito para as coisas grandes, é superior em tudo.

O focinho do leão não é vilmente achatado, nem uma ponta bicuda. Tem uma nobre elevação que vai bem com a conformidade da face, cobre inteiramente a mandíbula que aperta sem nervosismo, mas quebra e come com a naturalidade com que um de nós comeria, por exemplo, uma sardinha. Assim a mandíbula do leão fará com o osso de um animal considerável. Ele tritura e ainda passa majestosamente sua língua rubra, bonita, por aquela beiçorra. A língua faz uma volta elegante, movendo-se com beleza, enquanto ele engole. Depois o leão fecha a boca e entra numa espécie de quietude: “Agora digerirei”. Está terminada a mastigação, a luta; a deglutição já tem algo do repouso, em seguida vem a digestão majestosa, com a serenidade da vitória conquistada. O leão paira nos espaços vazios de criaturas, mas cheio de vitória; e seu repouso é repleto de reflexos áureos.

Delicadeza e força

O passo do leão é dominador, mas não o domínio estúpido com que o elefante esmaga a formiga. Uma catástrofe para a formiga. Aquela montanha de carnes achatando vilmente um pequeno bichinho cheio de complexidades e de organicidade. É a derrota da subtileza diante do fato consumado, estúpido e brutal.

O leão, não. As patas dele não foram feitas para esmagar, mas para andar, correr e saltar. De maneira tal que ele salta com certa delicadeza. Não, porém, a delicadeza do frágil. Uma das belezas do leão é o modo pelo qual ele alia a delicadeza à força. O jeito da pata do leão pisar o chão é todo um movimento muscular lindo. Ele avança a pata e toma posse do chão, sem esmagá-lo; cria uma soberania de alguns centímetros em torno da pata, simplesmente pelo fato de pousar sobre ela. E depois aquela pata se encolhe e dá apoio a ele. Vê-se o serviço que a pata presta: carregar aquela massa possante. Mas quando ele se equilibrou inteiramente, a pata já está distendida e pronta para caminhar. E vai aquilo assim, numa conquista progressiva dos espaços inocupados, que é uma verdadeira beleza. É metódica, serena, não admite discussão, e quando chega a hora do leão correr é diferente. Porque aí aparece qualquer coisa de raposa dentro do leão. Ele se torna perspicaz, se assanha todo, começa a trotar preocupado e sôfrego. Cada vez que ele se aproxima mais, o olhar vai fixando e já engolindo o que as patas ainda não alcançam. O ataque é régio porque nesse momento ele vira bípede. E entra com toda a sua estatura.

Vemos nesta figura heráldica o leão que levanta as patas e já vai agarrar, mas cada pata se transforma numa espada, numa arma. Com as garras assim erguidas está feito o assalto, numa espécie de indignação tão majestosa e direita que se diria estar o leão indignado contra quem ousou não se sujeitar a ele. Essa atitude tem algo de régio. Assim Luís XVI deveria ter recebido as multidões revoltadas que atacaram o Palácio de Versailles.

A cauda, um pouco acima da cabeça, dá ideia de triunfo

O corpo do leão tem isto de muito bonito, que os nossos estandartes reproduzem bastante bem. O leão é tão arquitetônico que ele possui como que duas zonas distintas do corpo: a zona felpuda, a da cabeça, é a fachada do leão. Assim como um prédio, além da fachada, possui outras alas, o corpo do leão tem uma parte que é inteiramente raspada e lisa, de uma forma que, à medida que vai chegando para trás, se adelgaça. Nele o peito é mais saliente. A outra parte do corpo vai se tornando mais esguia até às patas traseiras, que já participam do ímpeto de combate. Quase não se percebe que as funções digestivas ocupam uma parte no corpo do leão. Ele todo é uma máquina de guerra, em que a fisiologia passa por uma coisa mais ou menos irreal. Nem se pensa em fisiologia, quando se vê um leão andando. Ele parece pairar acima das contingências fisiológicas, tão esplêndido ele é.

A cauda do leão foi aproveitada no nosso estandarte para ser um ornato a mais. O rabo é frequentemente feio nos animais. Só há dois tipos de animais em que o rabo é bonito: o cavalo e certo gênero de pássaros, a começar pelo pavão, naturalmente. Esta ave me encanta. A mentalidade moderna rejeita os pavões, pois para ela eles são o símbolo do fausto inútil que não trabalha, da coisa preciosa que vale pouco dinheiro. Se a cauda do pavão fosse feita de cheques, esse gênero de pessoas a compreenderia melhor, mas sendo de penas tão vistosas e bonitas, o que pode valer aquilo?

O artista que representou esse leão segundo a tradição heráldica aproveitou a cauda do animal como uma manifestação de galhardia a mais. Eu fiz questão de que essa galhardia fosse tal que a cauda ficasse um pouquinho acima da cabeça, dando a ideia de um triunfo. Quer dizer, mesmo aquilo que se arrasta normalmente pelo chão, o leão tem a vitalidade para levantar de um modo nobre, representando quase uma flâmula ou uma bandeira, que ele carrega para dar a ideia da leveza de seus recursos, depois de ter dado a ideia de toda a majestade de sua “personalidade”.           

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1973)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.

 

A gota d’água no cálice de vinho

Ainda sobre o papel do nosso sofrimento (que Dr. Plinio aborda neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima), mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à Paixão  redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais abundantíssimos.

Embora os merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam superabundantes, dispôs a vontade divina que deles se aproveitassem os homens, em muitas circunstâncias, unindo seus  próprios sacrifícios aos do nosso Redentor. Assim nos ensina a Santa Igreja.

Donde, para conseguir tocar e converter determinada alma, por exemplo, seriam suficientes os méritos infinitos alcançados por Jesus, sem os quais nada obteríamos. Porém, é do superior desejo  de Deus que essa conversão se efetue mediante o concurso dos nossos sofrimentos, associados aos de Nosso Senhor.

E se almejamos, portanto, uma imensa transformação moral para a sociedade contemporânea, ou um “renouveau” da vida da Igreja, cumpre que soframos todo o necessário, nos consumindo nesse  sofrimento como uma tocha ardente. Tais são os desígnios de nosso divino Salvador, para que, de fato, a dolorosíssima Paixão d’Ele se verificasse útil a essa alma, àquele grupo social, ou mesmo àquele ciclo de civilização.

A essa necessidade de unir nossas dores às de Jesus, costuma-se aplicar um dos muitos e lindos simbolismos da liturgia eclesiástica. Trata-se da gota d’água que o sacerdote verte no cálice com  vinho, durante o Ofertório, a qual representaria o sofrimento humano depositado no oceano do sofrimento divino, para, juntos, serem imolados ao Padre Eterno.

Quiçá esse simbolismo não tenha fundamento na história litúrgica, porém exprime ele adequadamente um pensamento piedoso suscitado por esse ritual da celebração eucarística. E sempre que  observo o padre fazer essa mistura da água com o vinho, lembro-me dessa ideia muito formativa: é a gota do nosso sofrimento no mar das dores de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por outro lado, reveste-se de extrema beleza o fato de essa gota d´água, uma vez dissolvida no vinho, ser também transubstanciada.

Quer dizer, o que não era matéria para consagração, acaba se tornando uma só coisa com a espécie do vinho e se transubstancia no Sangue preciosíssimo de Cristo.

Isto manifesta bem o valor descomunal de nossos méritos, de si tão minguados, quando unidos aos méritos infinitamente valiosos de Nosso Senhor.

O sofrimento humano completa o desenho da Criação

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão de ser desse vínculo entre o nosso sacrifício e o de Jesus. Considerando os desígnios divinos, chegaríamos à conclusão de que, tendo Deus criado seres  inteligentes e dotados de vontade, intencionalmente deixou que uma parte da beleza da criação fosse completada por esses seres. Daí uma série de coisas lindas da natureza surgirem graças ao engenho humano. Por exemplo, o casulo do bicho-da-seda é uma obra saída das mãos do Onipotente, com a manifesta intenção de que o homem o utilizasse para fabricar o rico tecido com que  orna mobílias, decora ambientes ou confecciona magníficas peças de vestuário.

De si feios, o verme e o casulo oferecem ao talento dos artífices a matéria para realizarem maravilhas.

E assim, mil outros elementos se encontram na criação, tornando-a semelhante a esses desenhos pontilhados no seu contorno geral, feitos para serem completados e coloridos pelas crianças.

O homem, entendendo a criação, amando-a e aperfeiçoando-a, recebe de Deus a honra incomparável de ser elevado à dignidade de continuador d’Ele no seu plano para o mundo.

Ora, tendo acontecido que Deus, além de Criador, se fez Redentor, dispondo que Jesus Cristo padecesse e morresse na Cruz para nos salvar, era natural que o homem também fosse associado a  essa obra-prima da criação, que é a Redenção. E que ele, portanto, tivesse um sofrimento complementar a oferecer ao Padre Eterno, unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.

Grandeza das almas que sofrem pelas outras

Temos, então, as mais diversas e tocantes formas de padecimento do homem nesta terra de exílio.  É belo o sofrimento do apóstolo, com seu caráter expiatório ou imprecatório, como um ato de  amor e de holocausto desinteressado, tantas vezes misturado a lutas e dificuldades de toda ordem. É belo, quando ele precisa levar a bom termo sua faina apostólica num determinado meio, e surgem as incompreensões, as calúnias, os motejos, precipitando-se sobre o apóstolo. Ele enfrenta todos os obstáculos, parecendo abandonado por Deus. Por quê?

Porque é preciso que ele sofra, assim como é necessário que ele atue e reze. Sem esse sacrifício do apóstolo, Nosso Senhor poderia recusar a aplicação dos méritos da Paixão d’Ele para aquele  ambiente, para aquele meio, para aquela alma.

Belo é, igualmente, o padecer daqueles dos quais a graça divina se serve para atuar, pela primeira vez, junto a um determinado grupo social. Esses  instrumentos suscitados por Deus são como que  fundadores, e devem ter um sofrimento mais intenso do que os outros. De fato, o homem que inicia uma obra possui a glória de tê-la começado. Mas essa glória traz para ele o peso tremendo de  sofrer pela obra inteira. E se esta for chamada a perdurar até o fim do mundo, produzindo frutos que o tornarão ainda mais engrandecido, é natural que ele irrigue com suas dores a existência inteira dessa fundação.

Para suprir a debilidade dos homens no oferecimento de seu sacrifício, existem na Igreja as almas que têm a vocação de sofrer pelas outras. Diante dessas pessoas desejosas e capazes de padecer  pelo próximo, teria vontade de me ajoelhar e lhes dizer — “servatis servandis” — como São João Batista a Nosso Senhor: “Não sou digno de desatar as correias de seu sapato”. De tal maneira me empolga e entusiasma essa forma de apostolado, merecedora de meu respeito e profunda veneração.

Nada é mais nobre e mais bonito, nada revela maior integridade de alma e maior sinceridade em todos os propósitos, nada é mais eficiente em seu gênero próprio, do que a alma que aceita sofrer pelos outros. Barreiras enormes se abatem, preconceitos tremendos caem, dificuldades fabulosas se resolvem quando uma determinada alma decide ser conseqüente e abraçar a dor até onde o  permita a vontade de Nosso Senhor. Não tenho palavras para exprimir a gratidão emocionada, o sentimento de culpa e de vergonha que me toma diante de uma alma que realmente seja capaz de  levar essa vocação até o fim.

“De culpa e de vergonha”, digo, porque sempre me fica a impressão de que, na raiz do êxito admirável de nosso apostolado, existem almas que sofreram e talvez já morreram — ou ainda estejam  vivas — padecendo para nos alcançar tudo o que a nós foi concedido por Nossa Senhora.

Se me fosse dada a felicidade de conhecer uma alma assim, sem dúvida me ajoelharia e lhe beijaria os pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria diante da causa verdadeira da nossa grandeza, da  razão primeira de nossos sucessos, da minha perseverança e do que possa haver de virtude em mim. Com efeito, se alguém não tivesse tomado a cruz às costas e subido ao alto do Calvário, imolando-se por nós, não creio que eu pudesse realizar a obra que me foi confiada.

Portanto, essa alma sofredora é o sustentáculo de minha fraqueza, o remédio para as minhas lacunas, enfim, é o fator preponderante para que nossas atividades progridam e frutifiquem.

Nada se faz sem os “micro-Cristos”

Claro está que as almas mais especialmente por Nosso Senhor para se associar ao sofrimento d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam a algo que poucos têm coragem de abraçar. Muitos estão  prontos para agir, alguns para rezar. Onde estão os dispostos a sofrer? Onde encontraremos alguém que deseje se sacrificar, com este sentimento: “Eu sofro, peço à Nossa Senhora que conforte a  minha fraqueza, mas aceito e dou esse passo”?

É natural que em nossa obra a Providência suscitasse almas dispostas a sofrer e a fazer do padecimento seu primeiro apostolado. Essas almas seriam as principais entre nós, incumbidas da missão  mais difícil, mais necessária, mais urgente.

Para se compreender o mérito dessa vocação particular, devemos tomar em consideração que o sofrimento não é só se flagelar ou se martirizar. Não. Antes de tudo, é aceitar bem as diversas  provações que Deus permite em nossa existência diária. Devemos recebê-las de frente e dizer: “É verdade, eu sofro. Posso até agir para eliminar essa dor. Mas, enquanto não for evitada, acolho-a  de bom grado, porque é algo inapreciável para a minha alma e para a dos meus semelhantes. É preciso que alguém se imole por eles.”

Penso não existir expressão mais vil do que esta: “Vê lá se eu sou um Cristo para aguentar tal coisa!”. Embora seja de uma sordície inominável, ela tem um pressuposto curioso: existem “micro-Cristos”, digamos, que aqui, lá e acolá se deixam crucificar para que as realizações humanas cheguem a bom termo. E sem esses “micro-Cristos”, nada se faz. Eles são a honra, a glória, a alegria, a  vitória dos ambientes pelos quais sofreram. É deveras inapreciável essa condição de sofredores dentro da Igreja. Almas que devemos amar entranhadamente, porque foram corajosas o bastante  para oferecerem a Nosso Senhor sua própria imolação: “Quero unir meu sofrimento ao vosso. Se tenho de ser como uma azeitona a ser espremida para dela tirardes o óleo, ou como a uva da qual  extraíreis o vinho, ou como o grão de trigo triturado para dar a hóstia, é este o meu desejo!”

Tenho a impressão de que eu diria com o Salmo: “meus ossos humilhados exultam”, se visse em nosso movimento almas chamadas por Nossa Senhora para o sofrimento e a dor.

Holocausto digno de admiração e gratidão inteiras

Em um de seus famosos escritos, Huysmans nos conta que há em Lourdes um Carmelo cujas freiras têm por missão sofrer e expiar para conseguir conversões e curas no Santuário. Porém, no  momento daquelas lindas “procissões das velas”, daquelas curas miraculosas, daquelas grandes transformações morais, daquela glorificação de Nossa Senhora em meio à felicidade do povo,  ninguém está se lembrando do convento das carmelitas, onde existem religiosas doentes, morrendo, sofrendo aridezes interiores e desolações tremendas, para que os outros estejam na alegria ou  sendo objeto da benevolência divina. Não importa: aos olhos de Nossa Senhora, a fonte de toda essa alegria está naquele Carmelo.

O mais bonito é que as freiras assumem o compromisso de não pedir a própria cura. Pergunto: haverá na Terra algo mais digno de admiração do que essa forma de holocausto?

A esse respeito, vale recordar um lindo fato da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente ser tudo na Igreja: missionário, padre, apóstolo leigo… E essa vontade intensa  chegava a constituir para ela um verdadeiro suplício. Mas, a partir do instante em que entendeu o valor do sofrimento, através do qual poderia obter graças para as almas que cumpriam essas  vocações, e, desse modo, atender o seu anelo de fazer tudo em todos os lugares ao  mesmo tempo — ela então encontrou ânimo para sofrer e achou paz para a sua alma.

É compreensível que, diante de uma pessoa assim, nos emocionemos até o extremo que nos seja possível.

E que a veneremos, respeitemos e lhe externemos nossa gratidão, em toda a medida que nos seja dado agradecer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

 

A Igreja é o centro da História

A Igreja é o princípio vital da sociedade, do Estado, da civilização e da cultura. Com essa conclusão pouco consonante com a História laica e materialista ensinada hoje em dia, Dr. Plinio encerra  seus comentários à Carta Apostólica “Annum Ingressi”, de Leão XIII. Antes ele aborda dois pressupostos para completar seu pensamento a respeito da matéria: as influências preternaturais na vida humana e a natureza dos mandamentos de Deus, de cujo cumprimento nascem a ordem e a harmonia.

 

Já vimos anteriormente que as paixões desregradas do homem, somadas ao poder das trevas, constituem no seu conjunto a “cidade do demônio”. Resta-nos dar sobre ela algumas precisões.

A escravidão “natural” ao demônio

A expressão é do próprio Jesus Cristo: “Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum” (Lc 22, 53) — “esta é vossa hora e do poder das trevas”. Se Jesus Cristo é a luz que veio a este mundo (cf Jo 1,  9), as trevas, sendo o contrário da luz, são portanto aquilo que se opõe a Jesus Cristo, isto é, o demônio.

Há, pois, uma “potestade do demônio”. Esta se exerce no inferno, que é o reino das trevas, e também neste mundo. E por isto o demônio é chamado “príncipe deste mundo”. Vejamos em que  sentido.

Desde que o pecado original trancou para os homens as portas do Céu, eles se tornaram súditos do demônio. Com efeito, foi o demônio que arrastou Adão e Eva ao pecado pela voz da serpente (Gn  , 1-5), fechando-lhes, assim, o Céu e provocando o desregramento das potências de suas almas, desregramento que é a fonte de todo pecado. Posto na impossibilidade de praticar o bem em razão dessa desordem, o homem era escravo de suas paixões e, portanto, do demônio, autor dessa servidão.

É verdade que, “ante praevisa merita”, em previsão dos méritos de Jesus Cristo, o homem começou a receber a graça logo depois da queda. Também é verdade que, com a Redenção, ele se tornou  independente do demônio e se fez escravo de Jesus Cristo.

Não obstante, pelo pecado mortal, o homem remido rompe com Deus e volta à escravidão do demônio — “volta o cão a seu vômito”, escreve São Pedro (2 Pe 2, 22) — na qual fica durante todo o  tempo em que se conservar em tal estado. E assim, mesmo depois da Redenção, o demônio tem escravos entre os homens, e estes terão mais culpa se forem cristãos, máxime se católicos.

Quanto maior é a altura de que se cai, maior a queda.

Chamamos a essa escravidão “natural”, porque ela se explica quase inteiramente pela maldade natural do homem depois do pecado.

O poder das trevas preternatural

Mas há outra forma de maldade, que degrada o homem abaixo desse nível. É a que vem da ação preternatural do demônio na alma. Quando o homem se entrega a essa ação, torna-se escravo do  príncipe das trevas a título muito especial.

Embora decaído de sua glória celeste, o demônio não perdeu a natureza angélica e na abjeção do inferno conserva toda a lucidez, pondo suas capacidades a serviço de seu ódio contra Deus.

Mas o inferno é um cárcere e o demônio, um condenado. Infinitamente inferior a Deus como inteligência e poder, só estende sua ação fora do inferno na medida em que a Providência o permite. E  Ela o permite habitualmente. No livro de Jó lê-se um impressionante diálogo entre Deus e o demônio.

Este último, agastado com a glória dada a Deus pela virtude do patriarca, afirma que essa virtude é apenas superficial, e pede licença para tentá-lo. Deus consente. E todas as desgraças da terra se   abatem sobre o heroico varão.

Cada alma tem sua história e, enquanto história de alma, vê-se que Deus permite ao demônio atormentar e tentar por todas as formas os justos, com o intuito de pôr à prova sua fidelidade. Sobre  eles se exerce de mil modos — ora com violência tempestuosa, ora com pérfidos ardis, sempre com uma sedução terrível — o misterioso poder das trevas. E eles lhe resistem.

Entretanto, muitos homens não lhe resistem e se entregam ao pecado. Note-se bem que, no caso aqui considerado, o pecado não tem por causa exclusiva as paixões humanas desregradas.

Conquanto o demônio não possa obrigar o homem a pecar, pode ter, por permissão de Deus, uma ação por vezes muito grande sobre a imaginação, de sorte que por esse meio pode aliciar vigorosamente o homem para o pecado. Sobre os que, no exercício de seu livre arbítrio, não lhe resistem, o demônio pode adquirir, por punição divina, o poder cada vez maior de exercer sua ação.

E, a correrem as coisas segundo seu desenvolvimento lógico, esse poder pode chegar a ser uma tirania à qual o homem só pode resistir com recursos excepcionais da graça e um esforço heroico da  vontade.

Essa servidão, que pode existir em modos e graus incontáveis, é preternatural, distinta da servidão natural, considerada no item anterior. “Preternatural” é um termo utilizado pela linguagem da  Igreja para designar aquilo que é superior à natureza humana, mas é distinto da ordem sobrenatural, relativa a Deus e, portanto, superior a todas as criaturas.

A ação que a graça de Deus exerce sobre o homem é sobrenatural. A ação do demônio é preternatural. Até onde pode ir essa ação preternatural?

Afirma a Sagrada Escritura que “omnes dii gentium demonia” (Sl 95, 5), e isso foi constantemente admitido pela Igreja. Satanás tem, pois, seus altares e seus adoradores por toda a Terra.

Todo culto ao demônio é intrinsecamente tão contrário à natureza humana, as profanações de hóstias consagradas, as “missas negras” que ele muitas vezes comporta revelam um tal ódio a Deus que não se podem explicar por causas exclusivamente naturais.

É preciso a atuação de algo de pior do que têm os piores homens para que sua maldade chegue a esse ponto.

À medida que, pela ação preternatural do demônio, aumentam em quantidade e em gravidade os pecados dos homens, a Justiça de Deus tende a retrair suas graças. À medida que se retraem as  graças, vai ficando livre o campo para os pecados dos homens e Deus vai dando ao demônio maior liberdade de ação.

Acontece que o homem pode inclinar sua vontade livremente, quer para o lado de Deus, quer para o do demônio. Por conseguinte, conforme uma ou outra inclinação desse verdadeiro pêndulo  entre o Céu e o inferno, que é o livre arbítrio humano, os homens e as nações caminham pelas veredas da virtude rumo ao Céu, ou pela larga estrada do vício rumo ao inferno.

Em nossa época de cepticismo, as afirmações de Leão XIII a respeito de tudo isso podem fazer sorrir. Nesse sorriso céptico não serão coerentes consigo os que admitem como inspiradas por Deus  a Sagrada Escritura.

Com efeito, a Escritura nos fala, do Gênesis ao Apocalipse, sobre duas raças espirituais em que se dividem os homens: filhos da Virgem e filhos da serpente, filhos dos homens e filhos de Deus,  filhos da luz e filhos das trevas, raça de justos e raça de víboras, filhos do demônio e filhos de Deus.

Os Mandamentos, imposição arbitrária de Deus?

Os Mandamentos nos instruem sobre os atos que devemos fazer ou não fazer para salvar nossa alma. O Divino Redentor é explícito a este respeito. Ele promete a vida eterna aos que observam a  Lei: “Si vis vitam ingredi, serva mandata” — “Se queres entrar na vida, observa os Mandamentos” (Mt 19, 17). E ameaça com as penas do inferno os que a violam.

Por que estabeleceu Deus esses Mandamentos e não outros? Poderia ter permitido que os homens praticassem as ações proibidas pelos Mandamentos, e condicionar a salvação à prática de atos que os Mandamentos não proíbem? Poderia, por exemplo, ter dispensado o homem do 6º mandamento, substituindo-o por outro que proibisse algum ato reputado inócuo pela moral católica?

Para Puffendorf e outros tratadistas protestantes, é fora de dúvida que sim. Para eles, os Mandamentos são arbitrários, são sacrifícios impostos a nós por Deus para provar nosso amor.

Pensam, assim, que a Lei foi editada com o único intuito de nos impor sofrimentos. Mas Deus poderia perfeitamente ter escolhido outros Mandamentos, em lugar dos que estão em vigor. Em  outros termos, os Mandamentos não são bons nem maus em si, e devemos obedecer a eles só porque Deus o quis.

Segundo a doutrina da Igreja, a prática dos Mandamentos realmente impõe sacrifícios que dão a prova de amor a Deus, e sem esse amor o homem não se pode salvar. Todavia, ao estabelecer os  Mandamentos, Deus não escolheu ações inócuas em si, que passaram a ser más só porque Ele as proibiu. Pelo contrário, Ele as proibiu por serem intrinsecamente más. Há, pois, para a Igreja um  bem objetivo que está em certas ações, e um mal objetivo, que está em outras. Note-se a palavra “objetivo”. Não se trata de um bem ou um mal subjetivos, existentes na mente deste ou daquele homem, deste ou daquele povo, mas de um bem e um mal reais, imutáveis, que continuariam a ser bem e mal, qualquer que fosse a ideia formada por homens ou povos a esse respeito.

Em conseqüência, sendo Deus infinitamente sábio e bom, Ele não poderia ter editado uma Lei oposta à que nos deu no Monte Sinai. Deus pode tudo, menos o erro e o mal. Esta doutrina, como se  vê, está toda baseada na ideia do bem e do mal objetivos. O que se deve entender por isto?

A lei eterna

Como ensina a doutrina católica, Deus, Criador de todas as coisas, sendo infinitamente sábio, criou cada ser com uma natureza própria, dotada de atributos próprios, e com um modo de operar conforme a essa natureza. Operando de acordo com esta, todos os seres fazem a vontade de Deus. Essa vontade, presente na mente divina antes de todos os séculos, é chamada de lei eterna (Suma  Teol. I-II, q. 91, a. 1; q. 93). Dela decorrem todas as outras leis.

A lei eterna, entretanto, não existe só na mente de Deus. A partir da criação, passou ela a vigorar objetivamente para os seres criados, de modo tal que, desde o seu primeiro instante, todos eles  passaram a participar de algum modo na lei eterna, impressa neles pelo próprio Deus (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2). Contudo, as criaturas racionais participam de uma forma mais excelente.

A lei natural

O homem é capaz de conhecer, pelos recursos de sua inteligência, a vontade de Deus. Pode, assim, conhecer os seres, sua natureza, seu modo de operar, e de proceder em relação a si mesmo, ao  próximo e a cada ser de acordo com a respectiva natureza, segundo a vontade divina. Sua propensão em proceder dessa maneira é chamada de lei natural (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 2; q. 94).

Como diz São Tomás, a lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna na criatura racional (nas criaturas irracionais essa participação se dá apenas por analogia).

A lei natural tem seu fundamento imediato, pois, na natureza humana, e seu último fundamento em Deus. Em outras palavras, a lei eterna e a lei natural não são senão a mesma vontade divina,  enquanto existente em Deus e enquanto gravada no coração das criaturas racionais.

A lei divina

Como o homem tem um fim último sobrenatural, para o qual deve ser dirigido de um modo superior, não limitado apenas aos preceitos da lei natural, era conveniente e necessário que Deus lhe  revelasse a lei divina, “pela qual a lei eterna é participada de acordo com esse modo superior” (Suma Teol. I-II, q. 91, a. 4).

A lei divina se tornou também indispensável em virtude do pecado original, pois a inteligência humana ficou sujeita a erros, podendo levar o homem, por debilidade intelectual, a não ver bem este  ou aquele ditame da lei natural. Pior do que isso, a vontade humana passou a ser propensa ao mal, podendo facilmente induzir o homem a fechar os olhos ao conhecimento da mesma lei, e assim somar, a uma causa de erros intelectuais involuntários, outra de erros voluntários.

Estando o homem nessa profunda miséria moral, Deus veio em seu auxílio e, à lei divina em vigor na época primitiva, acrescentou os Mandamentos da Antiga Aliança, dando a Moisés, no alto do  monte Sinai, a tábuas da lei.

No Decálogo estão inscritos os princípios essenciais que contêm em si toda a lei natural (Suma Teol. I-II, q. 94, a. 4, ad. 1). Séculos depois, foi promulgada por Nosso Senhor e pelos Apóstolos a Nova Lei, que aperfeiçoou a Antiga; conservou o Decálogo e ab-rogou os preceitos relativos ao povo judeu antes da Redenção. Está ela contida na Sagrada Escritura e na Tradição.

Ordem e desordem

A ordem, como diz São Tomás, é a disposição das coisas segundo sua natureza e seu fim. O cumprimento da vontade de Deus é, portanto, a própria ordem. Pois Deus quer a disposição das coisas  segundo sua natureza e seu fim. E a desobediência à vontade de Deus é a desordem. O código da ordem é, como vimos, o Decálogo.

O bem de um ser é aquilo que lhe convém, que é conforme a sua natureza e o conduz a seu fim. O mal é o contrário (Suma Teol. I, q. 48, a. 1). Todas as criaturas não racionais movem-se conforme  sua natureza e seu fim, por assim dizer cegamente. Apenas o homem, dotado de inteligência e vontade livre, tem o poder de praticar o mal. Com isto, ele desrespeita a vontade de seu Criador, e  introduz a desordem na criação, isto é, em si e em torno de si.

O bem e o mal na sociedade humana

Em nossa época de estatismo exagerado, confia-se por demais no poder das leis e da administração para resolver os problemas humanos. Essa atitude provém do fato de não nos lembrarmos  suficientemente de que a matéria-prima da qual é feita a sociedade é o homem. Se a matéria prima for boa, tudo se pode esperar do efeito de boas leis. Mas se for má, as boas leis serão  radicalmente impotentes.

Com fios podres, o que pode fazer o mais hábil dos tecelões? Com cidadãos corrompidos, o que pode fazer o mais perfeito dos governantes? Se, em determinada sociedade, cada homem se portar  bem nos ambientes sociais a que pertence — família, profissão, etc — toda a sociedade andará bem. Se se portar mal, toda a sociedade andará mal. Daí a necessidade da Igreja que, corrigindo e  santificando os homens, é princípio vital para manter no bem a sociedade.

A Igreja, centro da História

Ora, se a Igreja é assim indispensável para o bem das sociedades, é também princípio vital das nações e dos Estados. Dai-nos — dizia Santo Agostinho — “um exército composto de soldados que  observem fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os juízes, e até os contribuintes e os cobradores de impostos, todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo, e veremos se [os filósofos anticatólicos] ainda ousarão dizer que essa doutrina é nociva ao Estado, ou se, pelo contrário, terão de reconhecer que é um valioso sustentáculo para o Estado” (Ep. 138 ad Marcellinum, 2, 15).

A Igreja é igualmente o princípio vital da civilização e da cultura. Qualquer que seja o sentido que se dê a essas palavras, as realidades por elas  designadas contêm em si uma noção de perfeição, razão pela qual a Igreja tem de ser, forçosamente, sua alma.

Em outros termos, a cultura e a civilização só são plenamente elas mesmas se forem católicas.

A contrario sensu, quanto mais uma civilização ou uma cultura vai perdendo seus valores católicos, tanto mais vai deixando de ser civilização e deixando de ser cultura.

De tudo isto se segue que a grande necessidade essencial dos povos, das culturas e das civilizações é serem católicos, e que o grande perigo para eles consiste em se afastarem da Igreja. Daí ser esta  o centro de gravidade em torno do qual giram todos os fatos históricos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 59 (Fevereiro de 2003)

GRANDEZAS E PULCRITUDES DA DOR

O homem tem necessidade de tornar suportável a vida nesta Terra. Para adoçar suas agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos lícitos, entre os quais, a contemplação do que há de celeste e maravilhoso na obra da Civilização Cristã.

Acontece, porém, que um dos frutos excelentes engendrados pela Cristandade é, precisamente, a atitude que o católico deve tomar em face da dor.

Certa vez, nos meus tempos de aluno dos jesuítas, um professor de Religião nos propôs um problema muito interessante, abstraindo-se do aspecto prosaico que o envolve.

— Imaginem — dizia ele — que uma galinha fosse capaz de pensar, e que alguém se aproximasse dela e lhe dissesse: “Tu foste criada para servir de alimento ao homem. Daqui a pouco, seu dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se, então, que sentimento deveria ter a galinha: de horror, porque vai morrer? Ou de entusiasmo, porque o fim para o qual ela existe — alimentar o homem — vai se realizar?

O problema estava bem apresentado, e me impressionou de modo profundo.

Anos depois, procurando resolvê-lo à luz da doutrina católica, a solução me pareceu clara. Não se trata, é evidente, da galinha, mas do estado de espírito delineado pela figura metafórica que o professor nos pintou. A resposta que encontrei foi esta: a galinha sentiria necessariamente a dor horrorosa de sua própria imolação; porém, mais do que a dor, ela não poderia deixar de sentir a felicidade inerente ao fato de ter alcançado o seu fim último, a sua completa realização. E isto traz uma alegria muito superior à infelicidade do holocausto. Portanto, os dois sentimentos deveriam se juntar, de tal maneira que a galinha amasse o fato de chegar a seu fim, embora o fizesse com dor.

O mesmo se pode aplicar à vida humana. Neste mundo, a pessoa feliz não é a que vive muito, nem a que vive prazerosamente. É, na verdade, aquela que conduz a sua existência segundo o objetivo para o qual foi criada: amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento dos desígnios que Ele tem sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer desse senso de que a alegria elevada e serena da finalidade alcançada é a autêntica alegria da vida. Nela encontramos as forças para suportar os sofrimentos que a Providência permite em nosso caminho, e os recursos para compreender tudo quanto eles significam na consecução de nossa realização suprema.

Por isso mesmo, na época da Europa maravilhosa, nos áureos tempos da Civilização Cristã, encontramos a dor instalada no meio dos esplendores da vida, com toda a amplitude possível. Assim, a morte transformava-se numa grande solenidade, a respeito da qual a etiqueta tinha disposto todas as suas exigências.

Por exemplo, quando um arquiduque d’Áustria agonizava, no momento em que lhe seria ministrado o Santo Viático, todos os príncipes da Casa Imperial ali presentes entravam em procissão no quarto, e formavam uma corola de velas acesas em torno do Senhor Eucarístico e daquele que em breve partiria para a eternidade. No meio de toda essa magnificência, o moribundo recebia o Santíssimo Sacramento, era ungido com os santos óleos. Seu falecimento se dava em meio a esse aparato da morte realizado com as pompas da vida. Como suprema despedida, seu funeral era um requinte de gala.

Magnífica expressão desse enobrecimento da dor, dessa superior beleza de que se revestia o sofrimento, temos os garbosos e hieráticos gizantes medievais, os grandiosos monumentos fúnebres, as estátuas representando homens cobertos de véu e carregando imponentes caixões. Toda uma arte imensamente desenvolvida, para revestir de pulcritude o aspecto doloroso da vida.

Mais. O entusiasmo com que se esperava e se cantava, nas vésperas das batalhas, a agonia da luta. Nasceram as canções de gesta, nas quais cada golpe, cada “ai!” recebia a glorificação de um acento épico, de uma arrebatadora melodia. Nas salas de armas dos castelos, na noite que antecedia a partida para a frente de combate, os homens conversavam e sorriam. E nos bailes das festas de primavera, enquanto dançavam pelos salões dos palácios, aqueles nobres de cabeleira empoada, de sapatos de fivelas de prata e saltos escarlates sabiam que dali a poucas semanas estariam partindo para a guerra. Sabiam que muitos não retornariam, que várias daquelas senhoras estariam na viuvez, mães ficariam sem filhos, e os filhos, sem pais. Entretanto, dançavam… Eles encaravam a dor com serenidade e grandeza de alma.

Do mesmo modo eram respeitadas e postas em foco as mais variadas formas de sofrimento — inclusive o da maternidade ou o do esforço intelectual levado a bom termo —, porque bem se compreendia a noção de que esta Terra é um vale de lágrimas, segundo a linda expressão da Salve Rainha. Sorria-se para a dor por uma superior razão: “Vou realizar meu fim, aquilo para o que existo, e, por causa disso, apesar de todo sofrimento, estou alegre”.

Daí vêm, igualmente, o júbilo e a pompa com que a Igreja celebrava — e celebra — a entrada de alguém para a vida religiosa. É o ingresso numa existência de renúncias e provações. Mas, em se tratando de uma jovem, esta se veste de noiva, orna-se a capela de flores, toca-se o órgão, o coro canta, e tudo se passa como se fosse uma esplêndida festa de casamento. A razão disso: a moça está em vias de realizar a finalidade para a qual foi criada.

Em sua vida no claustro ela encontrará a dor, sem dúvida, porém a assumirá de “grand coeur”, com abundância de alma, sondando-a até o extremo, a exemplo do Divino Mestre que, diante da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto de comoção no qual, avantajando-se ao oceano de amargura interior, entrava uma imensa felicidade: era seu supremo objetivo, a Cruz para a qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.

São Teodoro: um mártir increpador

Descendente de uma família nobre e rica, o jovem Teodoro cheio de garbo desafia o magistrado, proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império. Foi torturado barbaramente e queimado vivo. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus a punição e, ao mesmo tempo, a conversão do Império Romano.

 

Proponho que assistamos juntos a um episódio histórico. Não é um filme de televisão, mas a descrição de um fato digno de ser lembrado na História da Igreja, contado circunstanciadamente não por mim; vou apenas ler a narração tirada da obra do Padre Rohrbacher(1).

O Império Romano decaía devido à corrupção moral

Trata-se do martírio de São Teodoro. Ele foi denunciado como católico e, convocado por um magistrado qualquer, recusou-se a abjurar a Fé. Foi levado, então, a um lugar de suplício onde ele poderia, a qualquer momento, fazer cessar os seus tormentos desde que se dispusesse a renunciar a Fé. Aguentou esses tormentos crudelíssimos até a morte. É um mártir.

Uma nota particularmente interessante nesse martírio é que o juiz e ele travam uma verdadeira batalha psicológica, na qual o magistrado procura de todos os modos amolecê-lo para evitar martirizá-lo. São Teodoro resiste, desafiando o juiz cada vez mais. O fato foi notório, conhecido e presenciado por muita gente.

Nós devemos nos perguntar qual é o efeito disso sobre a opinião pública correspondente ao Império Romano que abrangeu toda a bacia do Mediterrâneo. Os romanos se estendiam não só pelo litoral, mas eram senhores das nações ribeirinhas do Mediterrâneo. Aprofundando-se, portanto, longamente pelo território da África, Ásia, Europa, e constituindo, portanto, uma unidade impressionante.

Esse Império, pela imensa extensão e pela dificuldade de comunicação naquele tempo, fragmentou-se em dois: o do Oriente e o do Ocidente. Mas entendia-se que formava um só todo moral e até mesmo político, e que os imperadores, sem serem irmãos pelo sangue, o eram pela missão e deveriam governar em mútua colaboração, cada qual a sua parte do Império. Uma unidade, portanto, enorme, majestosa.

O Império Romano foi monumental e riquíssimo, mas também corruptíssimo. À medida que se desenrolava sua história, seu poder e sua riqueza foram crescendo, porém foi se dissolvendo moralmente e terminou na corrupção moral mais espantosa, acumulando dois aspectos diferentes.

De um lado, os romanos propriamente ditos, não só os habitantes de Roma, mas da Itália, que constituíam o núcleo do Império. Estes sentiam-se muito seguros e estáveis em função do poder e da riqueza que possuíam, e pelo fato de que os inimigos estavam longe, em fronteiras que dificilmente seriam transpostas por eles; e se as transpusessem seriam contidos com facilidade pelas legiões romanas.

Além da prosperidade e da segurança por verem o perigo bem longe, contribuía para a dissolução dos costumes o fato de que a religião dos romanos não dava o mínimo fundamento para uma atitude moralizada. Resultado: o Império foi se corrompendo até chegar a toda espécie de imoralidade e deterioração.

A Religião Católica se desenvolvia

Ao lado dessa depravação generalizada havia a Religião Católica que, do fundo das catacumbas, nascia e se desenvolvia, apresentando-lhes o oposto.

Vemos, então, o jovem Teodoro, nascido na Grécia, de uma família nobre e rica, julgado por um juiz daquela região, o qual estava, portanto, sob a influência dessa família. Esse jovem cheio de garbo desafia o magistrado e proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império, com uma força que vai crescendo à medida que o juiz oferece mais.

Dá-se, então, um debate entre o juiz – que visa despertar no jovem o desejo pela vida cômoda e agradável, sem o conseguir – e São Teodoro, que procura comunicar a Fé Católica proclamando as virtudes cristãs e o nome de Jesus Cristo, levando as verdades da Fé tão alto quanto se pode levar um estandarte; e o juiz recusando também.

A recusa de ambas as partes resulta em choque, que culmina com a morte do jovem Teodoro. Dir-se-ia que o fato está encerrado. Ora, a história começa aí. No Céu há um mártir rezando, enquanto na Terra os frutos de seu sangue se difundem.

Tertuliano disse aquela famosa frase: “O sangue dos mártires é semente de cristãos”. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus pela punição e, ao mesmo tempo, pela conversão do Império Romano. E o sangue de São Teodoro passou a clamar.

Houve uma opinião pública que em parte presenciou, em parte tomou conhecimento desse martírio. Que atitude terão tomado aquelas pessoas diante dos diálogos impressionantes que vamos ler? Imaginem aqueles romanos que faziam festa quase todas as noites, comendo e bebendo durante horas, chegando ao extremo horror de provocar-se náusea, pela ação de escravos que vinham com penas de pato coçar o paladar, para lançar fora o que haviam ingerido e, esvaziando assim o estômago, poderem continuar a beber e a comer.

Podemos nos perguntar qual o efeito produzido nessa opinião pública pelo diálogo entre São Teodoro e seus algozes.

São Teodoro proclama a sua Fé e investe contra o inimigo de Cristo

Passemos à leitura e comentário da referida ficha.

A perseguição se deu pouco depois de que os Imperadores Galério e Maximino publicaram seus editos, que mandavam continuar as perseguições aos católicos, ordenadas por Diocleciano.

Diocleciano ordenou uma das piores e mais longas perseguições.

O jovem soldado, muito longe de dissimular a sua Fé, a trazia como que escrita sobre a fronte.

Imaginemos, então, um legionário romano com aquela armadura e elmo característicos, e que trazia sobre a fronte como que escrita a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo visto por um folgazão que se embriagou na véspera e se embriagará naquela noite, e que para encher tempo vai assistir ao martírio e olha para aquilo aviltado e com o olhar embaçado pelo álcool.

Teodoro foi apresentado ao Tribuno da Legião e ao Governador da província, que lhe perguntaram por que ele não adorava os deuses, segundo as ordens dos imperadores.

Ele respondeu: “Sou soldado de Jesus Cristo, meu Rei. Eu não conheço outros deuses; meu Deus é Jesus Cristo Filho único de Deus”.

Isso é uma proclamação. Agora vem a increpação. Ele não se limita a proclamar a sua Fé, mas investe contra o outro, dizendo:

“Os deuses que quereis que eu adore não são deuses, mas demônios! Quem quer que lhes atribua honras divinas está no erro: eis qual é a minha Religião, aquela por cuja Fé estou disposto a sofrer. Se minhas palavras vos chocam, golpeai, rasgai, queimai, cortai a língua; é justo que os meus membros sofram pelo Criador.”

Esta apóstrofe tem todas as características de desafio e é metódica. Ele proclama a sua Fé, depois diz que a fé dos outros não vale nada, e desafia: “Agora, querendo, me martirizem. Eu estou disposto!” Eis o desafio total lançado por um legionário romano!

Podemos imaginar a repercussão de uma atitude como essa em pessoas incapazes de compreender como é que alguém, podendo dizer que adora aos ídolos – não precisava adorar de verdade, bastaria dizer que adora –, se expõe a tormentos dos quais elas têm horror e se prive de divertimentos, quando essa privação já lhes parece um tormento.

O Imperador é um fragilíssimo príncipe, no Céu há um Rei eterno e imutável

Os juízes, embaraçados com uma resposta tão ousada, deliberavam sobre o que eles deveriam fazer, quando um oficial, querendo caçoar do Santo que tinha dito ser fiel ao Filho de Deus, se pôs a lhe dizer:

– Então, Teodoro, teu Deus tem um filho? Ele é sujeito às paixões como os homens?

Respondeu Teodoro:

– Não, meu Deus não está sujeito a paixões. Todavia, Ele tem um Filho, mas um Filho nascido da maneira digna de Deus e bem superior a vossas ideias baixas e carnais, pois esse Filho é a palavra de verdade, pela qual Ele fez todas as coisas.

O tribuno lhe perguntou:

– Podemos nós conhecer esse Filho de Deus?

Ele respondeu:

– Eu quereria bem que Deus vos tivesse dado graças para isso.

Mas, disse o oficial:

– Se nós o tivéssemos conhecido, não poderíamos abandonar nosso Imperador para dar nossa vida ao seu Deus.

Disse Teodoro:

– Se vós O conhecêsseis, teríeis em pouco tempo saído de vossas trevas e, em lugar de pôr uma confiança frágil no vosso fragilíssimo príncipe na Terra, vos ateríeis a Deus, que é o Deus vivo, o Rei e Senhor eterno e vós combateríeis comigo em favor d’Ele.

Essa increpação de que o Imperador é um fragílimo príncipe da Terra e que há um Rei no Céu, eterno e imutável, é uma coisa de deixar aquela gente boquiaberta. Porque era gente que tinha uma vaga ideia de uma post-vida, mas tão vaga, contraditória e cheia de lendas, que praticamente não funcionava. Eles não tinham senão uma ideia ainda mais vaga, de vez em quando lampejos, de um julgamento segundo leis que ninguém sabia como eram.

Agora, vem um que afirma, mas trazendo na fronte uma espécie de prova da verdade da Fé que ele proclamava; pode-se imaginar o impacto no juiz, no tribuno e na opinião pública.

Exortava os católicos que eram conduzidos ao martírio

“Deixemo-lo por alguns dias, disse o tribuno, ele mudará e virá por si mesmo, e acabará fazendo aquilo que lhe é mais vantajoso.”

É a regra dos pagãos, que os caracteriza a cem por cento. Vantagem, vantagem, vantagem, não tem mais nada.

Deram-lhe, então, um prazo dentro do qual ele deveria sacrificar aos deuses, senão seria martirizado.

O Santo não se perdeu em vãs deliberações, mas se empregou em rezar e louvar a Deus incessantemente.

O louvar é um estilo de oração, mas é quase mais bonito do que as outras formas de rezar, no caso. Um homem que marcha para o martírio horrível e que louva a Deus, por Quem ele vai ser martirizado, que louvor bonito! Tem-se a impressão de que um Anjo não cantaria melhor.

Os gladiadores não eram mártires, mas escravos ou pessoas livres de baixa condição que lutavam uns com os outros para o público ver. Eles, antes de começar o combate, alinhavam-se diante da tribuna do imperador e diziam a frase: “Ave Cæsar, morituri te salutant” – “Ave, César, aqueles que vão morrer te saúdam.” Depois começava o combate.

São Teodoro dizia isto a Deus: “Ave, ó Deus, aquele que vai morrer Te saúda. Mas esse que vai morrer sabe que em Ti ele vai viver.” É belo!

Entretanto, os perseguidores procuraram cristãos entre os habitantes para serem conduzidos também à prisão. Teodoro os seguia, exortando a serem firmes e fiéis a Jesus Cristo.

Quer dizer, o tempo que lhe foi dado para hesitar, ele o empregava rezando ou acompanhando outros ao martírio. Era, naturalmente, gente menos importante que ele, a quem os perseguidores não tinham medo de matar. Ele acompanhava os outros ao martírio, exortando-os: “Sustentem, protestem contra o juiz, sejam firmes até o fim, confessem o nome de Jesus Cristo!”

Podemos imaginar a raiva dos que lhe tinham dado prazo, ao verem como ele o empregava. O transporte para o lugar do martírio era feito por uma espécie de piquete de soldados que levavam os condenados à vista de toda a cidade. Os pagãos vaiavam os que iam morrer. Do lado de fora do piquete, estava Teodoro, o soldado: “Aguentem, dura pouco, a eternidade vem, Deus merece, Jesus Cristo é nosso Deus!”

Em todas as ocasiões ele marcava dessa maneira o seu zelo para o serviço de Deus.

Incendeia um famoso templo pagão

Agora vem um modo de manifestar o zelo que deixa o Padre Rohrbacher hesitante, mas ele menciona pondo ao lado de São Teodoro uma grande autoridade. Diz o autor:

Havia um templo no meio da cidade, nas margens do rio chamado Ires. Esse templo era dedicado à deusa Cibeli, que as fábulas chamavam “a mãe dos deuses”. Teodoro, encontrando a ocasião favorável, pôs fogo durante a noite no templo, que foi reduzido a cinzas, com os ídolos que nele existiam.

Pela discussão que vem depois, vê-se que, entre outras intenções, estava a de mostrar que os ídolos não valem nada, qualquer um ateava fogo neles. Era, portanto, uma prova de que ele tinha razão, mas também um escárnio aos idólatras.

O que São Gregório de Nissa relata como uma generosidade louvável, se bem que o Concílio particular de Euvira pareça censurar ações desse gênero. Teodoro, apesar disso, não ocultou sua ação; ele se gabava até publicamente, nas rodas, que era ele quem tinha posto fogo. Pelo que foi denunciado e compareceu perante o tribunal do governador com tal segurança que mais parecia juiz do que acusado.

É extraordinário! Com a Fé resplandecendo na fronte, sendo o juiz de seu juiz, sabendo que ele caminhava para a morte terrível.

Ele reconheceu o fato que lhe era imputado. O juiz lhe perguntou por que ele tinha queimado a deusa do lugar, em vez de adorá-la. O Santo respondeu que ele tinha acendido uma lenha para pôr à prova a deusa e ver se era combustível ou não. E que o fogo a tinha atacado e queimado, porque toda a força dela tinha consistido apenas em matéria e isso se queima.

Ora, ele estava dando um argumento para não adorar: “Como é uma deusa, se eu a queimei? O que vale isso?” O juiz fez o que tantas vezes fazem os ímpios, isto é, quando os bons dão um argumento, não contra-argumentam porque não têm o que dizer. Então ficam indignados.

O juiz se encolerizou e mandou chicoteá-lo e o ameaçou de outros suplícios muito mais rigorosos, se ele não obedecesse às ordens dos imperadores.

Como ele era de uma família influente, o juiz mandou chicoteá-lo, mas não o condenou à morte. Queria ver se ele apostatava, para não ter encrenca com a família, ou ao menos uma encrenca tão pequena quanto possível.

O Santo respondeu que os suplícios mais terríveis não o fariam obedecer aos homens contra o que Deus mandava, e que a esperança que ele tinha nos bens do Céu lhe tirava todo o temor dos males que o ameaçavam nesta Terra.

Um dos lados de seu corpo foi rasgado com unhas de ferro

O governador, vendo-o insensível a essas ameaças, trata de suborná-lo por promessas magníficas que lhe faziam esperar honras, dignidades e até a qualidade de pontífice de um desses deuses.

Teodoro escarneceu dessas promessas para voltar às suas ameaças, cujo efeito era muito próximo; ele assegurou ao juiz, fazendo um sinal da Cruz sobre todo seu corpo, que ainda que o juiz o fizesse derreter no fogo, o cortasse em pedaços, ele não cessaria de confessar Jesus Cristo até o último alento.

O juiz, renunciando então a todos os meios de doçura, fez colocar o Santo sobre um cavalete. E ordenou lhe rasgassem um dos lados com unhas de ferro, o que foi executado com tanta crueldade que os seus ossos ficaram todos postos a descoberto.

Podemos imaginar a dor lancinante que uma coisa dessas causa!

Ele nada disse ao juiz, mas cantava: “Eu bendirei Deus em todo o tempo, sempre o seu louvor estará na minha boca”.

Ele cantava esse versículo de um salmo. “Em todo tempo” quer dizer no tempo bom, mas também no tempo ruim. “Por mais que sofra, eu O louvarei!” Se isso não é grandeza de alma, não sei o que é grandeza de alma!

Luzes pairavam sobre o Santo

O juiz, espantado por uma tão rara força no sofrimento, disse-lhe:

– Tu não tens vergonha, miserável como és, de pôr tua confiança neste homem que chamas Cristo, que houve quem fizesse morrer como um infeliz? Tu não tens vergonha de te dispor inconsideradamente aos tormentos e aos suplícios?

Respondeu Teodoro:

– Essa vergonha é para mim e para todos os que invocam o nome de Jesus Cristo uma razão de alegria e de glória.

Ele então foi exposto à tortura e depois mandado para a prisão onde Deus manifestou as maravilhas de seu poder a propósito de Teodoro. Porque, segundo conta São Gregório de Nissa, escutou-se durante a noite a voz de uma multidão de pessoas e viu-se algo como uma multidão de lâmpadas. O carcereiro, surpreso com esse duplo prodígio entrou no cárcere e não viu outra coisa senão o Santo que descansava placidamente no meio dos prisioneiros.

É uma coisa admirável! Um homem que sofreu essas torturas conseguir dormir! É inconcebível! Na véspera de outras torturas, tranquilamente.

As vozes e luzes pairavam sobre ele e se tornaram notórias ao carcereiro.

O juiz mandou, na manhã seguinte, que ele fosse levado de novo para o submeter a outras torturas. E considerando-o invencível em todos os pontos, pronunciou a sentença de morte e o condenou a ser queimado vivo, o que foi feito imediatamente.

Fortaleza sobre-humana dos mártires

Termina, assim, a história de São Teodoro. Se não fosse o fato de haver uma caudal de episódios semelhantes, ele poderia ser chamado “São Teodoro, o grande”. Mas a questão é que o conceito de grande tem dois sentidos: um é perante Deus, e nessa acepção todos os Santos são grandes; outro é diante dos homens. Neste sentido, por mais profundo que seja o conceito de grandeza, chamam-se “grandes” os que são maiores do que os do mesmo gênero. Ora, os mártires gloriosos são tão numerosos que se hesita em dizer que ele é maior do que muitos outros. Entretanto, pudemos ver como ele é grande!

Consideremos agora a repercussão desses fatos na opinião pública. Nós não temos os documentos diretos, tanto mais quanto as fontes pagãs não tratam do Cristianismo a não ser muito pouco e de passagem. Como então podemos saber qual é a reação da opinião pública? Pela marcha progressiva das conversões. Torturas, conversões; torturas, conversões… Compreende-se que, diante de um mundo dividido, atos como esses despertavam, no fundo das almas, restos de razão natural naufragados dentro da podridão romana. Junto com esses restos vinha a graça de Deus que dava às almas um discernimento, uma apetência de bens sobrenaturais que, de si, a natureza humana não tem, despertando por sua luz, por sua força, mesmo nas almas mais pútridas, ímpetos generosos.

Na luta de séculos entre os mártires e seus perseguidores vemos duas coisas espantosas. De um lado a fortaleza sobre-humana dos cristãos ao suportar tamanhos tormentos. De outro, a crueldade dos algozes.

Causa surpresa ver que instrumentos não cirúrgicos, e sim de tortura, manipulados não por mãos de cirurgiões votados ao êxito da cura e a que doa o menos possível, mas empenhados em maltratar, os quais pegam o ferro quente e põem a fundo, regozijando-se quando o paciente geme, e que cortam, recortam e estraçalham… Que pessoas dotadas da nossa natureza tenham aguentado coisas dessas é um milagre patente! O ser humano não tem forças para isso por sua natureza. Terá vigor para ir a um combate, sempre com a esperança de sair ileso, mas caminhar para a tortura dessa maneira o homem não tem força.

Ora, os mártires aguentam desafiando e morrem na serenidade de suas almas. Como se pode compreender isso sem o milagre? Há, pois, um milagre evidente convidando essa gente a se converter.

Força de Deus que penetra, embebe e toma conta de tudo

Outra coisa que também excede a estatura humana é a maldade dos homens que ordenam essas execuções e as praticam. Dir-se-ia que a criatura humana desce abaixo de si mesma quando faz isso. Encontram-se menos raramente homens que realizam isso, mas que multidões inteiras o pratiquem é inimaginável! Ainda mais multidões do maior, mais civilizado, mais culto e mais rico império que havia na Terra. Essas multidões se entregarem ao prazer de ver o tormento dos outros, essa manifestação de sadismo coletivo que dá a impressão de psicose sem o ser, isso é uma coisa também inacreditável, dentro da qual se vê a ação do demônio combatendo contra a ação de Deus. Esse é um choque maior do que os homens empenhados, de lado a lado, que dá toda beleza ao episódio. A pulcritude do episódio vem de um modo relevante, a meu ver, disto: o choque no qual Deus vence e escarnece do demônio.

Com efeito, ao longo de uma tortura dessas, na opinião pública muitos ficam piores. Entregam-se dessa maneira ao demônio! Alguns ficam melhores. Esses alguns já sabem que, melhorando, vão se expor a uma tortura daquelas, e que o caminho deles é o que estão vendo. Não é como uma conversão de hoje, em que o indivíduo é batizado, o padre felicita, ele vai para sua casa tranquilo; se sua família é católica ainda faz uma festinha para ele. Não é isso, não! Naquela época, o convertido sabia: “Isso vai me levar àqueles padecimentos. Minha conversão está me pondo na fila dos que vão morrer. Está bem, eu entro na fila!” É qualquer coisa de admirável!

Poder-se-ia objetar que o efeito disso na opinião pública é nulo. Uma opinião pública de gozadores e bandidos só pode ser insensível a isso, e jamais os católicos deixarão de ser uma minoria.

Sem dúvida, a aparência era essa. Os católicos viviam por debaixo da terra. Quando Constantino deu liberdade à Igreja e fez um edito mandando fechar os templos pagãos, não houve protestos e tudo acabou, porque, a bem dizer, não havia mais pagãos em Roma.

A ilusão era de que os pagãos tinham a popularidade e todo o poder. De fato, existe uma dinâmica do mal à maneira de um gás venenoso que se dilata e conquista facilmente. Contudo, há uma força de Deus que muitas vezes é subterrânea, não se percebe, mas que penetra, embebe, toma conta de tudo sem que se tenha ideia. Em determinado momento, quando se vai ver, Ele venceu.

Sejamos como São Teodoro e vamos para a frente com coragem!

Isso se dá com os que, em nossos dias, lutam pela Contra-Revolução. Constituem uma minoria açoitada por todas as severidades da guerra psicológica revolucionária; acossada com múltiplas formas de tortura do desdém, da ignorância, da perseguição dos seus mais próximos, e dentro da própria Igreja, de tal maneira que um católico contrarrevolucionário poderia dizer: “Alienus factus sum in domus matris meæ” – Tornei-me um estranho na casa de minha mãe (cf. Sl 69, 9). De tal maneira o contrarrevolucionário é insultado, isolado, ejetado de todos os lados. Dir-se-ia: “Minoria sem futuro, condenada eternamente a ser insignificante e para quem não trabalha a vitória”.

Sejamos nós como “Teodoros” e vamos para a frente com coragem! Quiçá não percebamos, como São Teodoro não notou as conversões que ele mesmo ia determinando; mas uma coisa é verdadeira: o sofrimento dos que padecem por Nossa Senhora é semente de novos cristãos. Eis a lição que São Teodoro nos dá. Rezemos a ele.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/8/1981)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 261-266.

 

Para Vos glorificar, ó Mãe!

Sabemos, ó Mãe boníssima, não sermos dignos de nos aproximar de vosso Filho Divino, posto o incomensurável abismo de indignidade que d’Ele nos separa. Porém, maiores do que esse abismo, ó Mãe, são a vossa misericórdia e o vosso amor por todos e cada um dos filhos que tendes sobre a face da Terra, e em especial pelos batalhadores do bom combate que, desde há muito, desejastes  lutassem por Vós e vosso adorável Filho nos dias amargos em que vivemos.

Assim, Mãe Santíssima, vida, doçura e esperança nossa, rogamo-Vos: que a vossa misericórdia preencha esses abismos e faça descer até nós a plenitude da clemência de Cristo Jesus; que a vossa  onipotente intercessão nos alcance a perfeição moral, a integridade de doação e o inteiro cumprimento de nossa vocação — para, desse modo, Vos rendermos a excelsa glória que tanto vos  devemos!

Obediência e entusiasmo

Dr. Plinio discorre sobre a estreita relação existente entre a obediência a Deus, a seus Mandamentos e aos legítimos superiores, e o entusiasmo, sem o qual nenhum ato sobrenatural atinge sua perfeição.

 

Examinando bem a ideia que, muitas vezes, é difundida a respeito do modo de ser católico, nota-se que as pessoas não percebem que amar a Deus sobre todas as coisas significa amá-Lo com entusiasmo, pois só nos entusiasmamos com as coisas que colocamos acima de todas as outras.  E não existe modo de amar a Deus sobre todas as coisas, que não seja dar a Ele todo o entusiasmo de nossa alma.

Obediência e alegria do entusiasmo

Ora, qual é o termômetro do entusiasmo? É exatamente a obediência. Quando a pessoa está muito entusiasmada, percebe o quanto ela se une com aquilo que a entusiasma, obedecendo. E ela tem aí um calor, um timbre, um amor de obediência todo especial, que leva sua alma inteira. Tanto mais que São Tomás afirma que um mínimo resíduo de felicidade o homem precisa ter, senão ele não aguenta a vida. E, mais do que tudo, o que faz aguentar a vida e ser feliz é a alegria do entusiasmo, por amor de Deus.

É entre esses entusiasmados que se vê o frescor do espírito, o calor da alma, a ligeireza das mentalidades, o voo, a deliberação, o gesto, a força de impacto, etc. E se o homem não tem a alegria desse entusiasmo, ele começa a subestimar, a sofismar, a relaxar, decair, degradar-se, tudo passa a ficar pesado e ele não aguenta a obediência.

Contaram-me um episódio da vida de Santo Inácio, que eu já ouvira falar: um noviço estava conversando, embevecido, com Santo Inácio. Vendo o noviço encantadíssimo, o Santo Fundador lhe diz: “Vá fazer tal coisa!” O noviço não caiu logo em si, e Santo Inácio acrescenta: “Não pode o amor ser maior que a obediência. Portanto, estás errado!” E lhe deu uma penitência severíssima.

Diante dessa atitude, o entusiasmado fica encantado e pensa: “Oh, que retidão, que precisão! Que sagrada intransigência! Que maravilha!” Reação do homem sem entusiasmo: “Que ruim é Santo Inácio! Eu estava tão embevecido ouvindo-o e ele fez essa brutalidade comigo!” Quer dizer, esse homem não tem fogo e não é capaz de compreender os píncaros da perfeição e da virtude.

Como cumprir os Mandamentos

Por vezes, nas aulas de Catecismo, os Mandamentos são apresentados com o seguinte fundo de quadro: “Os Mandamentos são duros, mas é preciso aguentar, porque Deus tem o direito de mandar. Ele poderia ter sido mais misericordioso e ter feito os Mandamentos mais leves. Não os fez, e quem os cumpre, afinal de contas, vai para o Céu. Se não cumprir, vai para o Inferno; está revelado. Portanto, aguente e gema! Peça a Nossa Senhora, que de vez em quando Ela atenue um pouco. Isso é assim, então comece a praticar a Religião!”

Ora, isso não é entusiasmo. Resultado: não se praticam os Mandamentos.

Cumprem-se os Mandamentos no entusiasmo! “Não pecarás contra a castidade!” A reação da alma diante disso não pode ser a seguinte: “Ih! Mas como é duro hein?! Como aguentarei?” Perdeu a batalha. A atitude tem que ser outra: “Oh, castidade, que beleza tens! Como és magnífica! Que píncaro! Claro, não pecarei!” Assim se guarda a pureza.

“Não mentirás!” Deus tem horror à boca mentirosa, diz a Escritura. Servir-se dos lábios e da língua, dons tão preciosos de Deus; da voz, símbolo tão magnífico da alma humana, para mentir, utilizar isso para um objetivo contrário à finalidade natural querida por Deus, que infâmia! Mas a veracidade… O varão veraz, que diz as coisas como são, que magnífico! O entusiasmo leva à verdade.

Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

O entusiasmo é algo tão magnífico que ele se parece com o Sol, até mesmo quando este entra em ocaso. Mas, uma coisa é o pôr de sol do entusiasmo, outra é a moleza do decadente. Não se confundem.

No pôr de sol do entusiasmo, a vontade de se sacrificar, o desejo de ideal continua intacto, embora o indivíduo não sinta nada. E o modelo disso é Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Depois que eu tenha mencionado isso, o único jeito é dobrar os joelhos, porque o Modelo é tão sagrado que não há outra coisa para dizer. Ele não estava na alegria de sua alma nessa ocasião.

São Francisco de Sales o disse bem: Jesus só tinha a alegria na fina ponta de sua alma. No resto era um mar de desolação. Mas, como Nosso Senhor aceitou o sofrimento! Bebeu o cálice, aguentou a Paixão e morreu para aquilo que Ele tinha resolvido morrer! Isso é entusiasmo!

Mas para sermos capazes desse entusiasmo na dor, precisamos ser muito capazes do outro. Quer dizer, ter na alegria e na força de nossa alma o entusiasmo no sentido corrente da palavra. Nossa Senhora saberá, quando vier o momento, como nos introduzir no entusiasmo do sofrimento. Nademos nesse entusiasmo corrente, porque essa é a hora dele.

A Igreja é a causa de nossa alegria

Como manter o entusiasmo?

O nosso entusiasmo visa como fundo de quadro, evidentemente, a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Ela é a causa de nossa alegria. Tudo quanto se diz de Nossa Senhora, “mutatis mutandis”, pode-se afirmar da Igreja. E poder-se-ia fazer uma saudação à Igreja, invocando a “Salve Rainha, Mãe de misericórdia”. Talvez com muito poucas modificações, caberia à Igreja perfeitamente a oração Salve Rainha, que é uma saudação a Nossa Senhora. Inclusive se poderia pedir, nas orações, as graças da Igreja, porque isso tudo a Esposa de Cristo possui.

Não basta conhecer a teoria

Entretanto, andam em erro aqueles que imaginam que, a partir de uma concepção doutrinária a respeito da Igreja, um homem recompõe a imagem do que deve ser o verdadeiro católico. Seria mais ou menos como uma pessoa que estudou a teoria da arte e se capacitou nela, mas nunca foi a um museu, nem viu uma obra de arte, jamais fez uma consideração artística in concreto. Aqueles meros princípios artísticos, por mais que sejam lógicos, convincentes, verdadeiros, bons, não são suficientes para a criação artística; há um passo que a mera teoria não transpõe. E é preciso ter visto a coisa concreta para que o espírito também se aplique sobre ela, e verifique a afinidade da coisa concreta com os conhecimentos doutrinários que adquiriu. E, em consequência, julgue-a boa, analise-a adequadamente e a incorpore ao seu cabedal intelectual.

As falsificações manipuladas pela Revolução

Na época atual não temos apenas uma dificuldade muito grande em ver a doutrina da Igreja viva em pessoas, mas recebemos também contrafações, falsos modelos. E a realidade de nossa situação seria como a de um homem a quem se tivesse ensinado a teoria da arte, mas meio falsificada, de maneira que ele percebesse haver muito de verdadeiro ali, mas algo lhe causasse estranheza. E isso fosse ilustrado por museus de arte moderna, com a arte falsificada. Ele, naturalmente, sairia desses museus com contraimagens, contrafiguras ajustadas a uma doutrina meio falsificada. Compreendemos assim a dificuldade desse cérebro gerar a ideia do que é uma verdadeira obra de arte.

E é isso que sucede conosco porque, devido à Revolução, temos a mente literalmente povoada, até nos últimos pormenores, de ideias, impressões e clichês falsos. E uma obra de saneamento interno, para a aquisição da plena fidelidade, supõe que a Providência mande homens que fiel e adequadamente simbolizem aquilo que ensinam. Quer dizer, eles devem ensinar o que verdadeiramente a Igreja ensina, e simbolizar aquilo que Ela ensina.

Como é que eles simbolizam?

A mentalidade de um católico

Antes de tudo pela mentalidade. Em que sentido da palavra? O mais adequado dos símbolos de Deus é o homem, evidentemente. E quando alguém se refere ao homem, fala de sua mentalidade porque é o mais nobre, o por onde ele é homem inteiramente, porque ele tem uma mente. Então esta mente, configurada como manda a Igreja, como quer Deus, é o melhor símbolo do Criador.

Assim, era preciso que a Doutrina Católica fosse ilustrada com essas mentes à maneira de Deus, quer dizer, à maneira da Igreja. Alguém poderia me dizer: “Mas, há aí um círculo vicioso, porque estar ilustrado com um exemplo concreto à maneira de Deus e da Igreja é ter a doutrina de Deus e da Igreja. De maneira que voltamos à questão, basta ter a doutrina”.

Respondo: Sem a doutrina, nada feito. Mas não se pode dizer que simplesmente com ela tudo esteja feito. Já expliquei e ilustrei, não preciso mais insistir.

Como é que conhecemos a mente de um homem?

Um homem, que é membro da Igreja, não personifica a Igreja inteira nem ele é a Igreja em abstrato. O que é um homem católico?

É aquele que inteiramente, no ponto monárquico de sua alma, disse sim à Igreja. Mas, o que quer dizer aqui “inteiramente”?

Primeiro Mandamento: amor entusiástico

A formulação existente no Antigo Testamento para o primeiro Mandamento é perfeita: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma e com todas as tuas forças”(1), quer dizer é um amor entusiástico, que exprime o amor inteiro.

Então, o católico está constituído segundo a “arquitetura” harmônica que Deus lhe concedeu e sobre a qual incide clara, luminosa, a luz de Cristo, a luz da Igreja. E, incidindo aí, propaga-se por toda a mentalidade da pessoa, à maneira de algo que vivifica e amolda todo o seu ser. E não é só isso, porque a graça envolve, circunda a alma em mil aspectos, mil circunstâncias da vida, mil ocasiões.

Os santos e o Purgatório

Essa transparência da graça num homem pode ser maior ou menor. Há pessoas que são retas, amadas por Deus, vão para o Céu, mas antes devem passar pelo Purgatório. Tais pessoas têm uma transparência maior ou menor para essa ação da graça.

Segundo foi revelado a uma mística, Santa Teresa de Ávila, antes de subir ao Céu, teve que passar rapidamente pelo Purgatório. E ela havia sofrido na Terra tudo quanto sabemos!

Os teólogos afirmam que os mártires vão para o Céu diretamente, não passam pelo Purgatório. Um São Lourenço, por exemplo, cujo martírio foi horripilante. Ele mesmo vendo as gotas da gordura de sua própria carne caírem dos seus membros sobre o corpo, porque ele estava sendo assado! Após suas costas ficarem completamente assadas, ele disse: “Nas costas tudo acabou, virem-me do outro lado!” Viraram-no de bruços, foi assado e morreu.

Encontro de São Domingos, São Francisco e Santo Ângelo

Essa transparência pode ter, portanto, graus diferentes, segundo as várias almas.

Alguém perguntaria: “Mas, se eu conheço uma pessoa assim e depois posso vir a conhecer várias outras semelhantes, por que hei de optar por uma e não por outras na linha da obediência? Só porque eu fiz um voto? Qual a razão dessa obediência, dessa opção que eu terei feito antes de ter conhecido outros?”

A pergunta está mal feita, porque, quando se trata de almas inteiramente transparentes a essa graça, nunca fazem diferença entre si. E cada uma atrai quem deve atrair, e encaminha quem deve encaminhar àquele ao qual deve ser encaminhado.

Todos conhecem, por exemplo, o famoso encontro de São Domingos, São Francisco e o carmelita Santo Ângelo, numa sacristia, creio que de Roma. Imaginemos que um passante por ali diga perplexo: “Para mim, isso deu esquizofrenia, porque são três tão grandes santos que não sei a qual deles devo seguir.”

Eu lhe diria: “Trate indiferentemente com qualquer um dos três que você verá qual tem que seguir. E se você não vir, ele mesmo indicará: ‘Meu filho, você foi feliz; não é comigo, é com outro que você vai ficar.’”

Há uma linha mestra, uma avenida de clareza onde todas as almas assim se encontram, sem nunca provocarem trombada.

Entretanto, existe um outro dado a tomar em consideração, porque esse é o lado da graça. Há o aspecto demônio, o qual não faz a obra da graça, mas sim da Providência. Por incrível que pareça, isso é assim. E ele, ouvindo-nos falar isso, fica furiosíssimo, porque bem sabe que a obra dele executa os desígnios de Deus.

A tentação coletiva, o demônio social

Foi por desígnio de Deus que satanás tentou Adão e Eva. Não era desígnio de Deus que eles pecassem, mas que fossem provados e, se fossem ruins, merecessem o castigo.

Fala-se muito, em aulas de Religião, da tentação individual, da ação do demônio sobre um homem para induzi-lo ao pecado. Está muito bem lembrado, mas me espanta e lamento que não se diga nada da tentação coletiva; desses demônios que agem simultaneamente sobre os indivíduos de todo um grupo ou setor social, de toda uma sociedade, e levam as pessoas para o Inferno por esse modo.

Nesta época em que se fala tanto do socialismo, da função social da propriedade, do demônio social não se fala. Um modo de completar a virtude para a qual a graça nos convida é a luta contra o demônio, por onde ficamos o contrário daquilo a que ele também nos convida.

Portanto, a graça leva para um lado, e a luta contra a tentação conduz para o lado da graça. E esse é o furor do demônio quando recebe um “pontapé”, porque ele percebe que a alma não se incomodou com a tentação dele, porque fez o contrário do que ele queria.

Estamos numa época onde a tentação social é tão fabulosa, que ela é propriamente o fundo de todas as tentações individuais. Não há uma tentação individual que não esteja maculada, sobre a qual não pese a tentação social, que não seja condicionada por esta; atualmente a tentação social — num certo sentido da palavra — é mais forte que a tentação individual.

O fato de conhecermos pessoas completamente voltadas contra a tentação social, é uma outra graça que nos leva a praticar a obediência em relação a essas pessoas.

Então, retomando o exemplo do artista que conhece a teoria da arte e não a arte concreta, podemos afirmar que um combatente que conheça a teoria da guerra, mas nunca tenha feito guerra não dá nada.

Pelo contrário, se tomarmos um combatente que fez a guerra contra o mal e que se modelou segundo tal guerra, esse merece a nossa confiança.

Esses fatores se somam para que nossa obediência seja entusiasmada. E entusiasmada não só nas boas horas, mas nas horas más, porque essas são razões razoáveis por onde, nos momentos onde decai o entusiasmo sensível, elas estaqueiam. E a pessoa bem estaqueada, na hora do entusiasmo sensível, vai até onde pode e recolhe como fruto que, na hora do entusiasmo não sensível, faz tudo quanto deve.

Espero que o comentário que fiz até agora tenha sido entusiasmado. Mais ainda, espero que tenha sido entusiasmante, porque eu quisera realmente acender o entusiasmo na alma dos que aqui se encontram.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22 e 23/6/1982)

Revista Dr Plinio 191 (Fevereiro de 2014)

 

1) Dt 6, 5.

 

O segredo da calma

Pelo dom de profecia, Maria Santíssima conheceu individualmente todos os homens que existiriam até o fim do mundo, com suas qualidades e defeitos, e tem para com cada um a misericórdia incalculável da melhor das mães.

Devemos, pois, ter a certeza de que pedindo-Lhe qualquer coisa, obteremos. Pode ser que alguém peça algo que não seja para o seu próprio bem. Neste caso, Nossa Senhora não dará. Porém, até nisso entra a misericórdia d’Ela porque, conhecendo melhor do que nós o que nos convém, a Mãe de Deus nos concede outra graça mais valiosa do que aquela pedida por nós.

Mesmo que estejamos em estado de pecado, a Santíssima Virgem tem pena de nós e nos obtém graças preciosas para nos emendarmos e brilharmos diante d’Ela por toda a eternidade.

Sendo assim, não há razão para ficarmos nervosos e agitados, pois ainda que não compreendamos por que está acontecendo algo de muito triste conosco, devemos estar tranquilos, pois a nossa Mãe vela por nós.

A perfeição consiste, portanto, em manter-se sereno e tranquilo, compreendendo que tudo se faz pela vontade de Nossa Senhora. Aí está o segredo da calma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1990)

Revista Dr Plinio 239 (Fevereiro de 2018)