Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações dos Pastorinhos de Fátima por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1). A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia (os Pastorinhos de Fátima).

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados! Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:
— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?
— Então, pediram-me tanto!… — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:
— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:
— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:
— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:
— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:
— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:
— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações.

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Os Pastorinhos de Fátima: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então os pastorinhos de Fátima são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:
— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:
— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:
— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos Pastorinhos de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.

Santos Pastorinhos

Nossa Senhora quis que Jacinta e Francisco morressem em circunstâncias tão difíceis e sofrendo tanto, por serem necessárias vítimas que associassem suas dores e o sacrifício de suas vidas ao mistério de Fátima, bem como à fecundidade desejada pela Santíssima Virgem, na ordem sobrenatural, para os fatos anunciados na Cova da Iria.

Apesar de ter havido ali uma intervenção direta da Mãe de Deus, atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a movimentação do Sol, Ela quis que duas almas oferecessem as suas vidas e se imolassem para que aquele plano da Providência tivesse a fecundidade necessária.

Isso nos faz compreender bem como o apostolado do sofrimento é insubstituível e abre os caminhos para a Igreja.

Peçamos a Jacinta e Francisco que nos obtenham o senso do sofrimento, indispensável para qualquer católico ser verdadeiramente generoso e dedicado.

Plino Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

Modalidades de sofrimento

Em sua vida de quase 87 anos, Dr. Plinio teve grandes consolações, mas também passou por sofrimentos inenarráveis. E pronunciou inúmeras conferências a respeito da dor, como a que transcrevemos abaixo, na qual mostra um panorama grandioso, descrevendo, com muitos exemplos, os diversos sofrimentos que podem ocorrer na existência do homem.

Para tratarmos a respeito do sofrimento em termos inteiramente utilizáveis por nós, devemos fazer algumas distinções entre modalidades de padecimentos. Porque a atitude do homem diante dessas formas varia, mas a atitude legítima, quer dizer, as diversas vias de Deus a respeito dessas modalidades de sofrimento também variam. Precisamos ter isto bem claro, sob pena de criar um “imbroglio” que acaba, por alguns lados, sendo nocivo.

Sofrimentos intrínsecos a toda ação séria

Há uma primeira modalidade de sofrimento que é intrínseca a toda ação séria. É o sofrimento do trabalho, do estudo, do esforço físico, da ginástica, da luta; são coisas que fazem parte da contextura comum da vida do homem ou da vida dos povos.

Ainda não coloco dentro disso as doenças, porque o estado normal do ser humano não é a enfermidade, como não é, por exemplo, ter sofrido um desastre. Essas coisas não são o comum da vida. Para uma pessoa ter verdadeiro interesse pelo estudo, o empenho, a concentração mental, a energia de espírito que ele exige, a abnegação de uma série de coisas mais baixas são sofrimentos iniciais.

Quando esses sofrimentos são aceitos, podem se tornar familiares e até fonte de alegria. Que efeito esses sofrimentos têm para a vida, para a alma humana?

Eles enrijecem a alma, dão-lhe profundidade de espírito, continuidade de intenções, seriedade e, com isto, tornam o homem verdadeiramente varonil. Um indivíduo incapaz desses sofrimentos torna-se indigno de ser homem.

A pessoa deve procurar esse tipo de sofrimento, endurecer-se diante dele, ser inclemente consigo à vista dele, e quanto mais ela seja dura consigo, mais a vida lhe será suportável.

Quando nessa gama certas coisas não fazem sofrer, em algum ponto acabará aparecendo um grande sofrimento, porque não se escapa da regra de que em algum aspecto, maior ou menor, o esforço é muito penoso, como um argueiro no olho ou um pedregulho no sapato.

Por exemplo, um homem pode ser muito estudioso, mas certa forma de estudo indispensável lhe dá preguiça. Isso tudo faz parte do tal sofrimento que o indivíduo deve enfrentar.

Qual é a utilidade desse sofrimento para a ordem da Comunhão dos Santos, como caráter expiatório? Evidentemente, desde que o indivíduo tenha intenção de oferecer, isto é útil à Comunhão dos Santos, enriquece o tesouro da Igreja.

Padecimentos que agridem

Mas um peculiar título de valor ele não possui, que vem de outra coisa: é do sofrimento que agride todo homem na vida, o qual está fora da ordem comum e se diria até que é destrutivo desta ordem.

Por exemplo, o indivíduo começa a estudar com decisão e adquire o hábito do estudo. Vem a mãe dele e lhe informa: “Até agora temos vivido do comércio de seu pai. Mas ele teve uma embolia cerebral e não vai mais poder continuar esse trabalho. Por isso, será preciso que você o assuma”;

Ele que já se dedicara inteiramente a certo ramo, fica colocado diante de um sofrimento de outra ordem, com isto de meio desagregador: com dificuldade, rezando, ele conseguiu tornar-se inteiramente familiar ao estudo. Agora, vem uma surpresa que o lança nessa história.

Imaginemos que o pai tenha uma casa de comércio pequena, de arrabalde, onde vende louças e ferragens. E a primeira coisa que esse gênero de negócio exige é boas relações na redondeza, porque há nos arredores duas ou três outras casas novas que estão fazendo competição. E ele também precisa estar muito a par do que as fabriquetas de São Paulo vão lançando de novo a esse respeito, porque, do contrário, não oferece artigos que disputem a clientela.

Portanto, isso não só absorve o tempo de trabalho dele, mas a capacidade de luta e de reflexão. E ele se vê descido de São Tomás até o problema de saber se a louça fabricada com pó de pedra e vendida em tal lugar agrada a Da. Fulana que é a mandachuva de tal quarteirão, e com a qual ele precisa conversar antes. Então Da. Fulana convida-o para tomar chá em casa dela, e o indivíduo tem que lhe contar uma piada, senão ele não mantém a freguesia.

A moeda da dor nos ”bancos” do Céu

Outra possibilidade é que o próprio estudioso fique doente. Ele se habitua a estudar, mas vem, de repente, uma enfermidade qualquer que o obriga a ficar pelo menos três anos afastado dos estudos.

Diante disso o indivíduo tem várias saídas possíveis. Uma delas é encontrar uma fresta e afirmar-se ainda mais. Esta é a solução providencial que o leva a lutar contra o infortúnio, suportar este sofrimento, além do anterior de que falamos, e vencer.

Isso tem um mérito muito maior porque o indivíduo sofre muito mais do que o comum dos homens. E, portanto, dá a Deus essa moeda da dor que tem nos “bancos” do Céu uma importância colossal, e abre um fundo de depósitos extraordinário para si nos “bancos” do Paraíso. Ele pertence à categoria de almas que Deus chama para isso.

A diferença entre os dois sofrimentos até aqui descritos está em que, no padecimento anterior, o indivíduo luta e pode eliminá-lo. E esse segundo tipo de sofrimento, ao menos durante muito tempo, não pode ser sanado.

Então, o que fazer? O indivíduo precisa acomodar-se àquele sofrimento porque, do contrário, estoura. Mas de um acomodar-se cujo verdadeiro nome é resignação e cujo triunfo está em superar o sofrimento, sem deixar-se cair em deformações sentimentais por onde ele fique mole, covarde e sem vigor. Neste caso, ele pode ser um grande benemérito na Comunhão dos Santos.

O sofrimento penitencial e o de enriquecimento da Igreja

Outra espécie de sofrimento é aquele que a pessoa procura. Isso pode se dar de dois modos: ou ela se penitencia, ou escolhe um gênero de atividade que de si não seria obrigada a escolher, mas fá-lo por idealismo.

Por exemplo, alguém que, sendo rico, quisesse entrar para a Legião Estrangeira a fim de praticar o heroísmo. Ele procurou o sofrimento. Ou um homem que pede a Deus que lhe mande sofrimentos, como o caso de Monsieur Martin, pai de Santa Teresinha, a quem Deus inundava de consolações e que Lhe dizia: “Meu Deus, isso não pode continuar, eu tenho que, em algum momento, sofrer!” E pedia o sofrimento para Deus. E veio!

Este é ainda mais nobre do que os sofrimentos anteriores. Foi por um ato de amor que ele fez isso, compreendendo o valor enorme do sofrimento e querendo fazer aos tesouros da Igreja o beneficio de enriquecê-los, entrando com a gota d’água de sua própria dor.

Às vezes é um sofrimento de penitência. Aí ele quase paga aos tesouros da Igreja o que ele roubou pecando.

Outras vezes não é um sofrimento penitencial e sim de enriquecimento da Igreja. Uma alma que tem a felicidade de poder dizer: “Sou inocente, mas quero sofrer como Nosso Senhor Jesus Cristo inocente sofreu, para, por esta forma, derrubar a Revolução. Meu Deus, mandai-me a tragédia, eu a aceito e me afundo nela! Morro dentro da tragédia! Só Vos peço a força de aguentar”. São modalidades diferentes de sofrimento.

Não se pode padronizar os caminhos de Deus para cada alma

Diante desses padecimentos, a pessoa que os pediu deve endurecer-se contra eles, fazendo esforço para sofrer pouco?

Por exemplo, um indivíduo que tenha rogado a Deus que lhe mande um sofrimento, e ele verifica que está ficando cego. É provavelmente o atendimento do pedido que ele fez. Ele deve rezar a Deus para não vir essa cegueira? Fazer toda espécie de tratamento para evitá-la?

Os tratamentos que entram na vida comum da Medicina e que a Moral obriga, ele deve fazer, não tem por onde escapar.

Os outros… aí vem o mundo dos contatos da alma com Deus: se ele tem uma autêntica moção interna de que está sendo atendido, será heroico e compreende-se que não recorra. Mas pode ser que, para outra alma igualmente dedicada a Deus, a Providência não queira isso, mas sim que ela tente e faça uma luta heroica para evitar o sofrimento, ficando só provado que a oração dela foi atendida, porque o sofrimento se impõe apesar de ela fazer a luta. Depende do caminho de Deus, que não se pode padronizar, para cada alma. Estou mostrando a variedade de vias.

Vindo o sofrimento, o que o indivíduo deve fazer?

Voltemos ao exemplo do cego. Ele deve fazer o necessário para suprir sua cegueira: comprar aparelhos magníficos, aprender métodos por onde ele possa ler, etc., de maneira a, tanto quanto possível, remediar os inconvenientes do estado em que caiu?

Vale aqui o raciocínio anterior: para alguns sim, para outros não. Depende do que internamente a graça peça a cada um. Não há uma regra assim peremptória. Para algumas almas Deus tem um desígnio, para outras, outro. De todas Ele quer que saibam ouvi-Lo e obedecer-Lhe. É a regra que precisa ser seguida.

A provação axiológica

O mais terrível dentro disso é o sofrimento anti axiológico(2). É outro tipo de padecimento. A dor anti axiológica é maior em si, como gênero, do que todas as outras dores porque, tendo certeza de que se encaixou numa determinada ordem, a pessoa encontra nisto um elemento de ação. Porém, quando ela não tem esta certeza, não sabe se não está sendo castigada, se é uma coisa temporária da qual pode pular fora, não sabe nada, a sua vida se torna sem sentido.

Qualquer um dos sofrimentos acima descritos pode acontecer tomando uma nota anti axiológica. O indivíduo, por exemplo, faz uma reflexão: “Realmente eu deveria oferecer a minha vida, minha saúde, qualquer coisa assim…” Interrompe seu pensamento e vai ocupar-se com outra coisa. Internamente não recusou. Deus viu que ele estaria disposto, ou espera dele um ato de aceitação no decurso dos padecimentos. Em certo momento, uma doença pula em cima dele!

A Providência está permitindo que dois tormentos o aflijam especialmente: um é o da enfermidade, outro o de não saber se aquilo lhe veio por um castigo. Ele não sabe se, por exemplo, rezasse mais, a doença não o acometeria, se deve orar ou não para cessarem os sofrimentos; e vai suportando como pode, enquanto Deus Se mantém mudo. Nisto pode estar embuçado tanto um castigo quanto um modo magnífico de carregar a cruz, sem que o interessado saiba por quê.

Deus não lhe dá os meios de resolver a questão, porque nisto está a maior prova. E às vezes a graça pode pôr na alma da pessoa a seguinte ideia: “Procure resolver, mas não peça graças especiais para isso, porque talvez você fuja do sofrimento mais duro e que não quereria sofrer”.

É terrível porque não adianta consolar o sujeito com a ideia de que é a mais alta forma de sacrifício, porque para ele não está claro se é mesmo a mais elevada forma de imolação ou se ele está sendo castigado. Quer dizer, não sabe se está no fundo de um poço ou no alto do monte. E assim morrerá e se apresentará ao Juízo de Deus.

Até lá a incógnita axiológica pode sombrear a vida de uma pessoa sem ela se dar conta. Por isso digo ser essa provação axiológica aquela que, entre todas, mais faz o homem sofrer. ”Deus meus, quare Me dereliquisti?”(3)

Tem-se a impressão de que, durante toda a Paixão, Nosso Senhor sofreu eminentemente do ponto de vista anti axiológico, culminando no “Deus, Deus meus, quare Me dereliquisti?” No teto da Igreja do Coração de Jesus há pintado Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria. Ele diz a ela, mostrando seu Sagrado Coração: “Eis o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado.” Este é um sofrimento moral maior do que os padecimentos físicos inenarráveis.

Ora, isto tem qualquer coisa de anti axiológico. A dor que sofre quem foi assim renegado é, no fundo, uma dor anti axiológica. Ele era o Justo e seria normal que fosse acolhido de outra maneira. Entretanto, vem o sofrimento da Cruz! Levaram a coisa a tal ponto que Longinus crava a lança n’Ele, e ainda sai água, quer dizer, não restou nada! Um dos Salmos diz: “Transpassaram minhas mãos e meus pés, posso contar todos os meus ossos.”

Acima de tudo, a fidelidade do amor d’Ele restaura o princípio axiológico rompido. Nosso Senhor continua a amar os homens; tudo o que estes fizeram para romper a ordem, Ele, com sua obstinação sacrossanta em continuar a amá-los, recompõe.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Do latim: Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste? (Sl 22, 2; Mt 27, 46).
2) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estuda os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiores e universais do homem, as condições e razões que dão rumo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimível impulso da sua natureza.
3) Sl 22, 17-18.

Festa da Cátedra de São Pedro

Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades — que vão de mar a mar, de monte a monte, dos ­Alpes ao Himalaia — fica o mundo inteiro. É impossível não pensar nas lágrimas, no ­suor e no sangue, nas mortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja, ajudada por Deus, chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos corações. Do esplendor desta magnífica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: non praevalebunt!
(Do “Legionário” de 17/2/1946)

Homens-símbolo

Atendendo ao pedido de jovens discípulos, Dr. Plinio aprofunda a teoria dos arquétipos1, dando alguns exemplos históricos.

 

Naturalmente, a profissão, a situação, onde a arquetipia aparece mais claramente é a de chefe de Estado.

Garcia Moreno, arquétipo do Equador

Por exemplo, o Presidente da República do Equador, Garcia Moreno, é o arquétipo do equatoriano com origem espanhola relativamente próxima, talvez com alguma mistura; ou seja, do hispano do Norte da América do Sul, diferente nesse ponto dos hispano-americanos do Centro e do Sul.

Ele o é pelo físico e muito mais pela alma. Quer dizer, Garcia Moreno tem uma profundidade de espírito, uma firmeza e uma lógica de pensamento, um domínio sobre si mesmo e uma permanente mobilização de todo o seu ser para cumprir um dever muito árduo, qualidades essas que brilham nele, envergando o uniforme de Chefe de Estado, com o qual se fez fotografar ou pintar mais de uma vez.

É o arquétipo do povo sul-americano de origem hispânica, eventualmente com alguma miscigenação indígena; tinha potencialmente as qualidades do seu povo. Portanto, muita propensão para a Fé católica, apostólica e romana, grande afinidade com a Igreja; uma elevação de alma para as coisas sobrenaturais, sem dúvida dada pela graça, mas que encontra um ponto de inserção na natureza.

Garcia Moreno possuía tudo isso de modo esplêndido, mas com alguma coisa que é o contrário dos povos com miscigenação indígena.

A miscigenação pode favorecer determinados defeitos

É próprio de pessoas que levam consigo essa miscigenação uma tendência para o sonho de olhos abertos, o sentimentalismo, a moleza e a inconstância.

Mas é característico do católico, quando ele nasce com esses defeitos, virá-los pelo avesso e ser salientíssimo nas virtudes opostas. E para mim, a maior pulcritude da alma de Garcia Moreno é essa. Foi morto por causa disso. É um arquétipo que virou ao avesso os defeitos do povo dele. Foi um homem admirável!

Não há um grande povo que não tenha os seus defeitos nativos virados pelo avesso. Do contrário, eles dominam. Nossos defeitos nativos ou são levados na chibata o tempo inteiro, ou eles nos põem sob a chibata.

Para mim, Garcia Moreno foi quem melhor realizou o desígnio divino a respeito do povo equatoriano.

Luís XIV, rei de um povo querido por Deus

O continente mais rico em arquetipias é o europeu. Em geral, quando um povo teve um grande rei, este foi arquétipo de seu povo.

O que caracteriza preliminarmente todo grande rei é ser o homem no qual, por excelência, seu povo se sente refletido. Sua simples presença faz com que a nação veja a concretização de seus próprios ideais de perfeição, e queira realizá-los, reconhecendo nele o modelo de si mesma. Esse é o arquétipo.

Por exemplo, Luís XIV é o arquétipo do francês no que este tem de mais ilustre, mais magnífico, mais estupendo.

Quando Santa Margarida Maria recebeu do Redentor o encargo de levar uma mensagem a Luís XIV para estimular a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, o Divino Mestre pronunciou estas palavras iniciais: “Diga ao meu amigo, o Rei de França, tais e tais coisas.” E os intérpretes se empenham em querer entender, nesse caso, qual o sentido dos termos “meu amigo”.

Na realidade, ele era seu amigo porque a França era a nação querida, e Luís XIV o arquétipo desse país. Enquanto tal, Deus o amava com aquela predileção gratuita e insondável com que Ele queria a nação primogênita da Cristandade.

Tomemos outros dois monarcas pouco posteriores a Luís XIV e que foram grandes reis, a seu modo: Maria Teresa, a Imperatriz da Áustria, e Frederico II, o Rei da Prússia.

Maria Teresa: a imperatriz que simbolizava o conjunto dos reinos por ela governados

Maria Teresa foi o padrão da imperatriz, que simbolizava inteiramente o conjunto de reinos governados por ela. No seguinte sentido: os Estados chamados da Casa d’Áustria — Áustria, Hungria, Checoslováquia e outros — formavam uma soma de Estados com um rei comum, chamado antigamente de Arquiduque da Áustria. Os Arquiduques da Áustria foram um denominador comum de todos esses povos e os arquetipizaram tão magnificamente que, quando o Tratado de Versailles, em 1918 — no fim da I Guerra Mundial — desmembrou essa monarquia, foi preciso que as nações participantes — portanto, supostamente, libertadas do jugo da Áustria — assumissem a obrigação de não eleger um imperador ou rei.

Maria Teresa representava — além da graça feminina — o que havia de charmant, de encantador no espírito austríaco, bem como as virtudes militares da raça alemã, valores esses harmonicamente aliados. E arrebatou os povos, como mostra um fato conhecido da vida dela.

Frederico II, Rei da Prússia, atacou o império austro-húngaro e Maria Teresa, não tendo meios para defendê-lo, sofreu derrotas. Frederico II mandou propor-lhe uma paz vergonhosa, e ela respondeu: “Enquanto eu tiver para governar a última aldeia do Tirol ou da Caríntia, ali estarei resistindo ao Rei da Prússia. Diga-lhe que não me rendo, e vou impor a paz.”

Havia o perigo de a Hungria separar-se do império.  Maria Teresa mandou convocar o parlamento dessa nação, onde ela fez um discurso sobre as circunstâncias então existentes. Quando terminou, todos os representantes da nobreza desembainharam suas espadas e clamaram: “Morreremos pelo nosso Rei, Maria Teresa!”. Ela arquetipizou nesse episódio o tradicional heroísmo magiar.

Eleição de Maria Teresa

Vago o trono do Sacro Império Alemão — que era eletivo —, deveria ser eleito o sucessor. Durante séculos, era automático que o trono imperial fosse deferido a um Habsburg, ao Chefe da Casa d’Áustria.

Não tendo possibilidade de ser eleita imperatriz, Maria Teresa casou-se com um príncipe da Casa de Lorena, que ela fez eleger imperador. Assim, tornou-se imperatriz por estar casada com esse príncipe. E o título de imperador foi depois transmitido a todos os descendentes dela. Vemos, assim, como Maria Teresa possuía tacto, finura e delicadeza.

O patrimônio teresiano

E também jeito. Tinha olho prático de boa dona de casa.

Maria Teresa combinou com seu marido o seguinte: “Devemos prolongar a existência de nossa Casa o quanto possível. E para isso precisamos aproveitar a atual situação a fim de tomar todos os bens que já possuímos, reorganizar tudo, fazê-los produzirem para adquirirmos novos bens, de maneira que quando percamos os nossos tronos, ainda sejamos príncipes riquíssimos. Meu esposo, deixa-me a política e faça as finanças.”

Em 1918, foi proclamada a república na Áustria, por imposição dos Aliados. Os Habsburg perderam o trono, mas tinham um negócio chamado Patrimônio Teresiano, que era enorme, a fim de manter o conjunto da dinastia.

Analisando seu todo, constatamos que era uma mulher fantástica: ela representava o gênio austríaco no total.

Frederico II

Frederico II e os Hohenzollern em geral — a cuja família ele pertencia — representavam o gênio prussiano no seguinte sentido: antes de tudo a guerra, o exército, o combate, o entusiasmo pela força. Secundariamente a música, os belos castelos — de uma beleza, que os franceses, um pouco suspeitamente, argúem de excesso de severidade. A garra militar, a águia prussiana, tomando conta de tudo. Em certo momento quase conquistou a Europa.

Sem dúvida, Frederico II representava arquetipicamente o povo prussiano.

Assim, poderíamos indicar outros exemplos.

Dom Pedro II, arquétipo do Brasil

No Brasil, na época de Dom Pedro II, indiscutivelmente a organização da família ainda era muito viva, pujante, a qual convém com o feitio afetivo do brasileiro.

O velho Pedro II, de cabelo e barba brancos, jeito respeitável, venerável, mas bondoso, foi durante décadas o vovô do Brasil. E o Brasil sentiu delícias em ser neto de Dom Pedro II. O modo pelo qual ele governava e dirigia a política brasileira era inteligente e cheio de jeitinhos. O povo brasileiro gosta do jeitinho; a força imposta “à la” Frederico II o brasileiro aprecia muito menos. Querer impor a força pela força pode azedar a situação muito desagradavelmente, ou até fatalmente.

A Constituição brasileira, liberal, reduzia muito os poderes do Imperador. Mas ele era um político muito esperto e sagaz. E servia-se do prestígio de ser Imperador para negociar por fora o curso da política, de tal maneira que o político número um do Brasil era Dom Pedro II. E ele ia acomodando as coisas de tal modo que o governo dele foi um reino de paz. Terminaram as revoltas que havia, o Brasil teve uma grande prosperidade e foi naquele tempo uma das maiores nações americanas — naturalmente os Estados Unidos estavam muito acima, do ponto de vista do progresso econômico. A esquadra mercante brasileira, para poder exportar inúmeras coisas produzidas por um país enorme, era a segunda do mundo.

Mas os políticos liberais reclamavam contra Dom Pedro II, o qual redarguia: “Eu exerço inteiramente os poderes constitucionais, não saio da Constituição uma linha.”

Eles diziam: “É verdade, mas Vossa Majestade tem um poder pessoal extraconstitucional, que vale mais do que seu poder constitucional. E não pode exercer os dois poderes juntos.”

E o Imperador replicava: “Onde está isso na Constituição? Nada me impede de ter influência política. Se um político brasileiro me pede um conselho, eu cumpro minha obrigação atendendo-o. Se o conselho influencia, é porque foi eficaz! O que vocês têm contra isso?”

Os liberais vociferavam muito contra seu poder pessoal, porque não podiam nada contra a força moral do Imperador.

Dom Pedro II conduziu a situação quase até o fim de sua vida. E foi destronado por uma série de circunstâncias. Mas ele representou arquetipicamente o brasileiro; quanto a isso não há dúvida nenhuma.

Quando o povo é grande, pode ser arquetipizado. Quando é um magma de gente, não há quem arquetipize aquela massa; ele, por assim dizer, clama pelo seu arquétipo.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 17/2/1989)

Revista Dr Plinio 155 (Fevereiro de 2011)

 

1) No contexto da presente conferência, Dr. Plinio aplica este termo a pessoas que exprimem em grau eminente as características de um povo, constituindo um paradigma.

 

BEATOS JACINTA E FRANCISCO, modelos de aceitação do sofrimento

Vinte de fevereiro, dia da morte de Jacinta Marto, foi a data escolhida pelo Papa João Paulo II para que a Igreja celebrasse a festa da jovem pastora de Fátima e do seu irmão, Francisco, aos quais  Nossa Senhora apareceu em 1917. Ao recordar essa piedosíssima morte, Dr. Plinio teceu valiosos comentários sobre o papel do sofrimento na existência humana.

Como se sabe, dos três videntes, dois morreram pouco depois das aparições, conforme a promessa da Santíssima Virgem: Francisco e Jacinta. Ambos deviam ir para o Céu. Antes disso, porém,  haveriam de cumprir nesta Terra duas missões diferentes. A de Jacinta era rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, enquanto a de Francisco consistia numa reparação ante a tristeza de Nosso  Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados do mundo, que tinham motivado a mensagem de Fátima.

A importância do sofrimento humano nas grandes obras de Deus

A missão de Jacinta nos revela a necessidade de vítimas expiatórias que contribuíssem com a sua dor e o sacrifício de sua vida — as duas crianças morreram em circunstâncias extraordinariamente difíceis e dolorosas — para que as palavras de Nossa Senhora encontrassem terreno fértil nos corações dos homens, dando todos os frutos por Ela desejados.

Compreende-se, pois, como esse apostolado do sofrimento é verdadeiramente insubstituível, e como abre os caminhos para a Igreja. Todas as grandes obras de Deus, máxime as que tratam da  salvação das almas, em geral se fazem com a participação de outras almas que lutaram, sofreram e rezaram para que essas obras de fato se realizassem. Sempre é preciso a participação do sofrimento humano.

Sem ele, nada de grande se faz.

Certa vez, um talentoso pintor expôs um de seus quadros que retratava Nosso Senhor como Bom Pastor batendo à porta de uma choupana. A pintura, tocante e piedosa, atraía muitas atenções. Em  eterminado momento, um visitante julgou notar um defeito no quadro, e disse ao artista: “O senhor cometeu um erro de execução, pois a porta dessa cabana não tem fechadura”. Sorrindo, o  pintor lhe respondeu: “É verdade. Isto, porém, não foi um erro.

Esta porta simboliza a porta do coração humano, onde Nosso Senhor vem bater. Ela não possui fechadura no lado de fora, mas somente no de dentro, para significar que há certos tipos de  abertura de alma onde ninguém consegue intervir: ou a alma toma a iniciativa de se abrir, ou permanecerá fechada”.

Ora, o modo de se obter que as almas fechadas se abram é exatamente por meio da oração, dos sacrifícios e das dores que a Providência dispõe em nossas vidas. É por meio do carregar  amorosamente a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, compreendendo que assim se cumpre a superior vontade divina. Essas são as almas decisivas na História, e que levam a cabo as grandes obras
de Deus.

Claro está que não se trata de um sofrer meramente passivo, mas também de um sofrer ativo. O que significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, rompendo com aqueles que prejudicam nossa  alma.

Significa arrostar a opinião dos outros, aceitando ser posto em situações difíceis e contrafeitas. Significa, enfim, todo o sofrimento da batalha mais intrépida, mais ousada e mais repleta de  determinação. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência. O contrário do mito do happy end Não nos esqueçamos, porém, de que, se todas as formas de sacrifícios são agradáveis a Nossa  Senhora, o que mais deseja Ela receber dos homens é virtude. Acima dos sofrimentos, Lhe compraz oferecermos a Ela a retidão e a pureza de nossa alma. Se quisermos de fato pesar nas deliberações da Providência, devemos apresentar a Ela almas contritas e humilhadas, almas que se tornem pequenas diante de Deus, renunciando a toda forma de orgulho, vanglória e vaidade, para se mostrarem diante d’Ele como realmente são. Reconhecendo a sua própria impotência, pelas vias naturais, para corrigir os seus defeitos; e, portanto, implorando o auxílio de Maria, para  que Ela por nós interceda e nos alcance a tão esperada conversão.

E isto exatamente nos é dito pelo sacrifício de Jacinta. Devemos, portanto, pedir a ela que nos obtenha de Nossa Senhora esse senso de sofrimento, indispensável para que qualquer católico seja  verdadeiramente um fiel generoso e dedicado.

Essa aceitação da cruz é contrária ao mito do homem moderno, que se reflete na mentalidade do happy end, segundo a qual tudo é alegria, tudo é luz, e o padecimento é uma espécie de bicho de  sete cabeças irrompendo estouvadamente na vida das pessoas.

A verdade é outra: uma existência sem cruzes, pouco vale. São Luís Grignion de Montfort chega mesmo a afirmar que, vendo-se alguém poupado pelos sofrimentos, deve — após judiciosa  orientação de seu diretor espiritual — pedi-los a Deus, fazer romarias e rezar com empenho nessa intenção, pois sua salvação eterna pode estar correndo um risco não pequeno.

Mais do que nunca, a necessidade de sacrifícios

Análogas considerações poderiam ser feitas a propósito da missão de Francisco, isto é, a de reparar os Sacratíssimos Corações de Jesus e de Maria pelos pecados e ofensas contra Eles cometidos na  face da Terra.

Ora, de 1917 até nossos dias, a maré montante dos pecados não fez senão crescer de modo incomensurável: pecados individuais, pecados públicos, pecados das nações, pecados das instituições,  etc. Tal constatação nos obriga a concluir que, se a ofensa cresceu, a reparação também se faz mais necessária e mais intensa no que ela tem de mais excelente, ou seja, alimentar em nossas almas a indignação pelos ultrajes que são feitos ao Coração Imaculado de Maria; acrisolar nosso desejo de sermos instrumentos de Nossa Senhora para a implantação de seu Reino sobre a Terra.

Devemos pedir ao Francisco que nos obtenha esse espírito, esse ardoroso anelo de assim reparar o Coração Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado de Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 71 (Fevereiro de 2004)

A felicidade: fruto da inocência

A procura da felicidade representa importante papel em todas as etapas da vida de uma pessoa, sobretudo na infância. Porém, onde de fato encontrá-la?
Comentando como esse problema se punha em sua mais tenra idade, Dr. Plinio nos mostra que a alma inocente vê em tudo uma imagem de Deus, e, por isso, constantemente sente sua alma inundada da mais pura e verdadeira felicidade.

 

A fim de desenvolver o tema que me foi proposto — onde encontrar a verdadeira felicidade? —, proponho rememorar meus tempos de juventude com a esperança de encontrar um denominador comum entre a concepção de felicidade dos jovens em 1984 e dos de 1924.

Ao longo dos tempos, um mesmo equívoco…

A respeito do conceito de felicidade, as pessoas ao longo dos anos têm concebido os mesmos equívocos com algumas poucas diferenças. Assim, parece-me que analisando como este problema se punha em minha juventude, poderei encontrar uma resposta útil também aos jovens que vieram meio século depois.

Naquela época, ainda não se adotara a semana inglesa; então, no sábado à tarde, os colégios e comércios iam se fechando e a São Paulinho se preparava para gozar a felicidade.

No que consistia a felicidade de um jovem comum, como era o meu caso, uma vez que ainda não tinha conhecido o movimento mariano, se bem que, por um auxílio especial de Nossa Senhora, tinha Fé e levava uma vida pura?

As alegrias da vida sem pecado

O que primeiro se me apresentava era gozar a vida sem pecar, porque, tendo Fé, eu sabia que não devia pecar. Ora, quanta coisa agradável pode-se fazer sem pecar! Por exemplo, quando eu chegava em casa, meu pai me chamava, abria a carteira e dizia: “Está aqui o seu dinheiro da semana!” Este, como é natural, era gasto todo no final de semana.

A quantia que eu recebia de meu pai era suficiente para passar com largueza o final de semana. Além disso, como eu sempre estava junto de meus primos, cujas famílias eram mais abastadas do que a minha, eu participava de alguma forma do luxo deles.

Assim, terminados os afazeres do sábado, nos telefonávamos e marcávamos um ponto de encontro. Começavam os passeios: confeitarias, cinemas, etc. Todos estes ambientes de nenhum modo tinham a torpeza que apresentam hoje.

No domingo de manhã, eu ia à Missa às onze horas na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, depois da qual voltava para casa. Ao chegar, eu encontrava preparado um saboroso almoço, em geral um cuscuz delicioso acompanhado de cerveja.

Agradáveis momentos na vida familiar

À noite, eu ia jantar em casa de um tio, onde se reuniam quase trinta pessoas, todos os parentes jovens. Lá estava preparada uma mesa enorme, repleta de frios do melhor restaurante de São Paulo. Terminado o jantar, muitos se dispersavam e voltavam para suas casas, enquanto alguns, entre os quais eu e minha irmã, subíamos a um terraço muito agradável, de onde me lembro especialmente, ter contemplado belas noites enluaradas. Ali permanecíamos até mais de meia-noite, conversando sobre os mais diversos temas.

Quando chegávamos em casa, após a prosa no terraço, minha mãe geralmente estava recostada em seu quarto, com o terço nas mãos. Eu me sentava junto à sua cama e começava outra conversa, também sobre todos os assuntos possíveis. Ali permanecia por volta de uma hora, depois eu ia para o meu quarto, onde ainda rezava um pouco e dormia contente, após aquele final de semana no qual eu tinha experimentado várias, intensas e, às vezes, contínuas sensações de bem-estar.

Desta forma, tinham-se justapostas várias sensações muito agradáveis, às quais se somava uma intensa impressão de juventude trasbordante de saúde e que tem diante de si um futuro promissor.

Um pouco pelo que me diziam, mas sobretudo pelo que eu analisava, percebia estar na mente da maior parte das pessoas com as quais eu tinha contato a seguinte ideia a meu respeito: “Você tem tudo para ser feliz! Talvez pudesse ter mais, caso conseguisse obter mais dinheiro, bem-estar e luxo. Se você morasse em Paris ou em Viena, certamente você seria mais feliz. Mas, o que você tem é suficiente para encher uma pessoa de alegria. São poucos os jovens em São Paulo que gozam de uma felicidade como a sua!”

Para ser franco, devo dizer que eu me empanturrava dessa felicidade, e quanto mais sensações gostosas tivesse, para mim melhor. Mas, às vezes algo cortava e interrompia por instantes tais impressões. Nessas ocasiões eu me punha o problema: Será que isso é de fato a felicidade?

Dificuldades da vida e felicidade

Era, sobretudo, nos dias de semana — os quais apresentavam fastios de toda ordem em contraste com o bem-estar do fim de semana — que me vinha esta questão. Começava com a educação que eu recebia em casa, a qual supunha a toda hora pequenas advertências do seguinte gênero: “Não se entra na sala assim; não se põe o guardanapo deste modo; não se mexe com a cadeira desse jeito; dê risada mais moderada; gargalhadas imoderadas não são de gente educada…” Bastava relaxar um pouco para vir o aviso: “Se você relaxar, vai ser evitado pelas pessoas educadas, e muitos vão afastar-se de você.”

Eu então pensava: “Mas, eu gosto de dar gargalhada…” No entanto, percebia que eu não podia fazer aquelas coisas e precisava dominar-me.

Então, eu me perguntava: “Mas, se o fato de dominar-se é desagradável, será que ele não é contrário à felicidade?”

Lembrava-me que algumas vezes, estando numa festa, eu tinha vontade de não ser amável com ninguém, mas a educação indicava que eu fosse agradável a todo mundo. Aquilo exigia que em certas ocasiões eu passasse um tempo enorme conversando com a pessoa mais enfadonha que se encontrava na festa, até o momento em que alguém, desavisado, entrasse na conversa e me desse a ocasião de com um sorriso muito amável poder me retirar…

A educação era um dos problemas que pareciam opor-se à felicidade, mas havia muitos outros…

Ser ilustre ou ser feliz?

Por exemplo, à vista de homens maduros eu percebia que todos, à medida que ficavam mais velhos, deveriam ir graduando-se e subindo de condição, de maneira a, em dado momento, ter ascendido a uma condição ilustre em relação ao que fora seu ponto de partida.

Notava também que quem não subisse essa escalada estava fadado a ser objeto do desprezo — ainda que de modo velado e amável — dos outros. Esperava-se, portanto, que também eu galgasse essa escadaria, de maneira a ser notavelmente ilustre.

Eu pensava: “É verdade, viver sem realizar nada não é felicidade. Pois, também um porco no chiqueiro vive desta forma, apenas se alimentando e engordando para ser morto e servir de alimento a outros. Ele não faz nada, e por isso não têm uma história. Ademais, sinto impulsos que me levam a fazer algo; e compreendo que se eu não fizer nada não terei felicidade. Mas como isso é duro! Para ser algo na vida é preciso estudar, saber coordenar as ideias, aprender um vasto vocabulário e exprimir-se com perfeição e clareza, de modo a tornar-se agradável. Como aprender tudo isso? É preciso apertar a cabeça e fazer esforço duro!”

Isso era penoso para mim, pois eu possuía uma enorme tendência à preguiça e deliciava-me em não fazer nada. Para mim, isso era um dos elementos constitutivos da felicidade.

Mas, logo percebi que o fruto do far niente1 era dos mais amargos. Ou eu gozava as delícias de não fazer nada ou as de ter feito algo na vida. Qual delas escolher?

Descortinava-se, então, diante de mim, uma vida inteira de esforço para chegar ao pináculo. Na insegurança e na incerteza de não ter êxito como várias pessoas que conheci, as quais terminaram infelizes, eu pensava: “Assim eu não posso ser. Mas para isso eu devo levar uma vida duríssima.” E então, me perguntava: “Felicidade, onde estás?”

As amarguras da vida e a felicidade

Por outro lado, eu nasci naturalmente muito afetivo, gostando das pessoas e querendo que elas gostem de mim. Mas logo percebi que isto era uma ilusão.

Lembro-me de haver em meu tempo uma brincadeira que consistia em entrar em um automovelzinho todo ladeado de borracha, o qual devia ser conduzido de modo a ir batendo uns nos outros. Eu pensava: “A vida é como este carrinho, mas sem as borrachas! Nela se recebe pancada de todos os lados; a lei que a rege parece ser como a lei da selva, a lei das feras.” Mais uma vez a indagação: Felicidade, onde estás?

Uma de minhas preocupações mais sérias vinha ao ver certos homens ateus, os quais eu conhecia em grande número. Diante deles me perguntava: “Será que eu também vou perder a Fé?” A isto eu preferia morrer!

Estes eram os problemas que mais pesavam ao jovem que queria ter uma vida feliz naqueles idos anos de 1924.

A felicidade está no porvir?

Eu apenas entrava para a vida, tinha 16 anos, e o número de meus problemas deixava-me pasmo. Percebia que os demais jovens do meu tempo não falavam sobre seus próprios problemas, pois ficava feio. Pelo contrário, cada um devia fingir ser perfeitamente feliz, o que me parece ser do mesmo modo até hoje.

Mas, com todos estes problemas eu olhava para o futuro no qual parecia ver uma ponta de felicidade. Imaginava que ficando velho teria uma vida sossegada, pois não sentiria mais essa pressão das pessoas que me circundavam. Poderia, então, me dedicar a leituras, teria dinheiro necessário para viver bem, faria algumas viagens. Encontraria, enfim, o porto para o qual eu rumava.

Não suspeitava que na idade onde eu esperava encontrar sossego e despreocupação, teria de estar em meio às mais duras lutas e dificuldades.

No entanto, apesar de estar à espera de uma felicidade futura, eu guardava a recordação de já ter sido muito feliz. E nisso está o cerne da questão.

Ai que saudades da aurora de minha vida…

Perguntava-me então: Quando é que eu realmente fui feliz? Lembrava-me que em minha primeira infância, antes de entrar no Colégio São Luís, até os dez anos de idade, mais ou menos, eu tinha sido enormemente feliz. Que felicidades inundavam minha alma naquele tempo e que indizível alegria eu sentia dentro de mim! Perguntava-me se só eu sentia aquilo. E na leitura de certas obras literárias, às vezes de autores brasileiros, mas quase sempre de franceses, eu encontrava referências a esta felicidade da infância. Um deles, Casimiro de Abreu, dizia: “Ai que saudades da aurora de minha vida, de minha infância querida, que os tempos não trazem mais!”

De fato, lembrando-me das intensas alegrias que eu tinha naquele tempo, comecei a filosofar sobre elas e analisar quanto eram superiores às que tenho hoje.

Recordo-me de ter lido um dito de Napoleão que, apesar de minhas restrições em relação ao autor, encheu-me de admiração. Certa vez perguntaram-lhe: “Qual foi o dia mais feliz de sua vida?” Pensava que ele responderia ter sido o dia de sua coroação. Pois, qual não teria sido sua satisfação ao ficar imperador?

Porém, para minha surpresa, Napoleão respondeu: “Foi o dia da minha Primeira Comunhão.” Logo que ouvi isto me veio à lembrança o dia da minha Primeira Comunhão, bem como outros inúmeros fatos de minha infância, os quais me encheram de saudades e fizeram-me pensar o seguinte: “Será que vale a pena todo este esforço para ser algo na vida, uma vez que quanto mais nela se avança, mais se tem impressão de estar deixando para trás aquilo que se busca? Não haverá algo de errado neste caminho?”

Inigualáveis alegrias da infância

Em meu tempo de infância, a vida se dividia em duas partes: os dias excepcionais e os dias comuns.

Os dias excepcionais eram geralmente os de festa. Neles eu sentia certas alegrias que provinham mais do interior de minha alma do que da própria festa.

Lembro-me, por exemplo, de um parque que havia na Avenida Francisco Matarazzo, chamado Parque Antárctica, o qual era aberto ao público e muito bem organizado, com um jardim plantado à la alemão e, portanto, muito bonito e agradável, apesar do que, poucos o frequentavam.

No dia de Páscoa, meus primos e eu íamos para lá, dirigidos por Mamãe, a qual era assistida por duas ou três Fräuleins. Sendo o parque enorme e possuindo vastos canteiros verdes, lá se podia correr à vontade, desfrutando do ar puro, da beleza e do perfume das flores. Ali permanecíamos brincando durante muitas horas.

Dentre outras coisas, lembro-me de que tirávamos de uma bonita caixa, um jogo chamado croquet o qual consistia em alguns paus muito bem pintados que eram fincados no chão de modo a formar um arco dentro do qual se devia fazer passar as bolas. Entre os que jogavam pior estava eu, talvez porque, como todo brasileiro, eu não levava o jogo muito a sério e não fazia questão de ganhar a partida, mas sim de gozar daquela alegria.

Terminados os jogos, chegava a hora dos ovos de Páscoa. Enquanto nós estávamos brincando, Mamãe com as Fräuleins tinham escondido os ovos pelo parque. Ao terminar, chamavam as crianças para começarem a procurar. Cada criança poderia ficar com os ovos que encontrasse. E como também para isso eu não tinha muita agilidade, Mamãe acompanhava-me com o olhar, e quando percebia que eu ia me aproximando dela um tanto desolado por estar com fome e não ter encontrado nenhum ovo, ela então sorrindo dizia: “Filhão, vá por ali que você vai encontrar uma coisa muito boa.”

Naquilo tudo eu sentia uma alegria muito superior à da comida, pois ela provinha de algo que estava no fundo de minha alma, o qual me enchia de satisfação.

Terminado o passeio, voltávamos para casa na hora da sesta, o que — ao contrário de todas as outras crianças — eu achava uma delícia. Eu ia contente para a minha cama macia, num quarto muito agradável, o qual já estava em certa penumbra, pois as venezianas eram fechadas, enquanto as janelas permaneciam abertas, deixando entrar um delicioso ar puro. Com a pouca luminosidade que havia no ambiente, eu permanecia prestando atenção no papel de parede de meu quarto, o qual era de origem francesa e tinha figuras de medalhões, pendentes de fitas azuis; eu os analisava enquanto ouvia os ruídos da cidade até adormecer tranquilo.

Só não era feliz a hora de levantar-me para estudar… Porém, ainda assim, este esforço era largamente compensado por todo o resto. No que consistia, então, essa felicidade?

À procura de um sentido para a vida

Quando essas perguntas começaram a surgir em meu espírito, compreendi que se eu encontrasse no fundo de minha alma a resposta para elas, teria com isso encontrado aquilo que deveria dar sentido a toda minha vida.

Levei anos refletindo sobre isso sem conseguir decifrar inteiramente a questão. Cheguei a pôr-me o problema de que aquilo não passava de mera imaginação. No entanto, lembrava-me que ao lado de toda aquela felicidade, havia algo superior, proveniente da sensação de ter a consciência tranquila.

Recordo-me, por exemplo, que quando eu fazia bem meus estudos, a Fräulein, geralmente, dava-me algo que eu gostava de comer. E quando eu cumpria meu dever em algo mais relevante, era a própria Dona Lucilia que me agradava de forma especial. Assim, a ideia de mérito e de prêmio para a consciência justa, ou seja, para aqueles que são bons, levavam ao auge a sensação que eu tinha de felicidade. Parecia-me com isso ter encontrado o ponto pelo qual até mesmo o cumprimento do dever tornava-se atraentíssimo. Tratava-se da feliz sensação de ter cumprido o dever.

A constante alegria da alma inocente

Dessa forma, minha ideia a respeito da felicidade de infância foi se acrisolando, até chegar à compreensão de que ela era fruto da inocência. Ou seja, daquele estado de alma próprio aos que não tiveram a desgraça de ofender a Deus.  

Lembro-me das borboletas azuis e verdes que me deixavam encantadíssimo, e me levavam a tentar apanhá-las, pois a inocência me fazia ver nelas um brilho, um fulgor e uma beleza que me deleitavam de forma inexplicável, o que no fundo provinha do fato de ver refletido nelas algo de Deus. Aquilo me fazia sentir um antegozo da alegria celeste, fruto da eterna contemplação da face de Deus.

E não só em uma borboleta ou alguma outra coisa, mais em tudo a alma inocente vê uma imagem de Deus, por isso sente constantemente sua alma inundada da mais pura e verdadeira felicidade.

Minha maior alegria

Entretanto, eu tive a maior felicidade de minha vida em algo que me encheu de entusiasmo, desde pequeno: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana! Mais do que qualquer panorama ou qualquer flor, incomparavelmente mais do que qualquer delícia ou iguaria, ela me falava à alma.

Isso me dava a convicção de que por mais que fosse preciso sofrer, lutar, enfrentar dificuldades para levar uma vida digna, na Igreja eu encontraria toda a alegria que nesta vida se pode ter.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1984)

Revista Dr Plinio 155 (Fevereiro de 2011)

 

 

 

1) “Il dolce far niente”. Expressão italiana que significa “A doçura de não fazer nada”.

 

Intercessores para obter o Reino de Maria em nós

Devemos considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora que transformou suavemente essas crianças pelo simples fato de lhes aparecer reiteradas vezes em Fátima. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. Com uma delas, inclusive, a Santíssima Virgem disse estar aborrecida. Era Francisco, que não A viu por causa disso. Portanto, ele pode ser considerado um convertido.

Temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria, ou seja, uma dessas ações profundas da graça na alma, que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela cresce em amor de Deus, em vontade de se dedicar, em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

Se a obra de Nossa Senhora em Fátima foi assim, especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu, Jacinta e Francisco, podemos nos perguntar se isso não tem um valor simbólico e se não indica qual será a ação d’Ela sobre toda a humanidade, quando Ela cumprir as promessas que fez na Cova da Iria.

Seria, portanto, um começo do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora, e que, por seus sacrifícios e preces na Terra e por suas orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Assim sendo, Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e se obter de Maria Santíssima que comece o seu Reino em nós, desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

Peçamos que eles velem especialmente sobre aqueles que têm a missão de pregar e viver a mensagem de Fátima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

Por que razão Nossa Senhora quis a morte precoce de Jacinta e Francisco, videntes de  Fátima?

Em geral, quando se trata da salvação dos homens, é necessário haver vítimas que se associem à intervenção de Deus com o sacrifício de suas vidas.

Isto é especialmente frisante no que diz respeito às aparições de Fátima: trata-se de uma intervenção direta da Santíssima Virgem — atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a rotação do Sol — com a transmissão de uma das mais importantes mensagens de Nossa Senhora aos homens ao longo de toda a História.

Pois bem, nesta ocasião Maria Santíssima quis a imolação de duas almas, as quais se ofereceram na intenção do pleno cumprimento dos planos da Providência.

Este oferecimento nos atesta como o sofrimento é insubstituível e como ele abre, verdadeiramente, os caminhos para a Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

Reflexo do senhorio divino

Recolhido nas grandiosas e abençoadas solidões de Subiaco, São Bento idealizou a Civilização Cristã que, pouco depois, começaria a ser edificada em solo europeu.

Para o santo Patriarca, era preciso que houvesse uma vida religiosa no ápice de toda a existência humana, seguida pela vida temporal dos homens que se entregam às meras atividades terrenas.

Porém, era igualmente necessário, por vontade de Deus, que esses homens tivessem um alto pensamento, uma alta mentalidade e elevados anseios, a fim de engendrarem uma sociedade temporal toda marcada por aquela sociedade espiritual.

Uma bela manifestação deste ideal encontra-se na praça e no Palácio Público de Siena, na Itália. Ali se notam esplendores que nasceram com São Bento e com a obra beneditina no retiro de Subiaco. Sobretudo em determinados momentos em que a praça se acha praticamente vazia, tem-se a impressão de que toda a história do lugar conseguiu fugir do século atual e voltar, reconfortada, para as centúrias em que não tinha em torno de si a não ser suas próprias maravilhas e homens cheios de fé.

Num cenário bastante bonito, o palácio se ergue como um rei, dominador, pronto para governar as outras casas. Dir-se-ia que, através de seu relógio, ele possui um olhar com o qual supervisiona os acontecimentos ao seu redor. É um olhar ordenador, de quem conhece a situação própria de cada coisa se o bem que há no fato de elas estarem em seus respectivos lugares, cobrando-lhes, pelo mesmo olhar, a permanência delas nas suas posições.

Este o palácio, esplêndido e digno, amplo, confortável, severo e forte, que não depende a não ser de si para dirigir, e que exerce esta função tão parecida com a de Deus: governar os homens. O poder que se aloja ali, embora temporal, é exercido em nome de Deus, e representa eminentemente o domínio divino sobre a humanidade.

É um poder que não se exprime com a leveza e o esplendor das coisas sobrenaturais, como por exemplo, numa linda catedral gótica, as ogivas elegantes e os vitrais paradisíacos.

Não, a natureza é mais pesada que a graça. Ela nasce do chão, santa e legitimamente, mas é do solo que ela vem. A graça desce do Céu. Elas se encontram e se osculam: a natureza, serva, beija os pés da graça, a senhora.

Contudo, os dirigentes e os súditos do tempo em que o Palácio Público de Siena foi construído, estavam profundamente compenetrados da ideia de que, quem governa, mesmo na ordem temporal, o faz por desígnio de Deus. E que, para corresponder de modo perfeito a essa disposição divina, o governante deve, não raras vezes, demonstrar a sua força persuasiva natural, equivalente ao dom de mover as almas que tem a graça. Daí, um ligeiro ar de fortificação, uma certa aparência de quartel no Palácio Público, em cujos porões poderiam caber alguns cárceres, os quais, entretanto, não comprometem o conjunto de majestade desse edifício. Pormenor curioso, os dois torreões levantados nos ângulos do corpo central parecem braços e mãos erguidos ao Céu, pedindo a ajuda de Deus para o exercício de mando das coisas temporais…

Assim, por trás da magnífica temporalidade desse palácio, brilha a missão de velar sobre a Igreja para protegê-la, para favorecer a expansão dos missionários por toda a terra, para facilitar aos sacerdotes católicos a livre pregação da palavra de Deus.

O Estado tem, portanto, essa missão muito mais elevada que a de governar os homens: a de favorecer a Igreja. Este lado altíssimo do poder estatal é muito bem representado pela torre do palácio.

Esta se alça nos ares, sobe e sobe, como quem diz: “Vós, olhando para o lado terreno das coisas tendes toda a minha figura temporal. Vede como ela é bela! Mas vós não vistes nada. Vós não conheceis minha missão divina. Olhai!”

O interior do Palácio acompanha sua grandeza e esplendor externos. Salas cobertas de pinturas de extremo valor. Em Subiaco abriam-se as vastidões que têm como cúpula o próprio céu, e que alimentaram as reflexões de São Bento. Nesse palácio há tetos e arcos que convidam ao recolhimento do espaço pequeno, onde o homem pode também meditar nas coisas de Deus.

E então somos levados a imaginar um governante dessa Siena medieval, passeando pelas salas, terraços e torres do seu palácio. Um espírito ponderado e pensativo, cuidando da magnitude de seu poder temporal, das grandes responsabilidades e dos grandes serviços que pode prestar à salvação das almas, para o bem dos homens e, sobretudo, para o da Igreja.

Enquanto toda a cidade dorme, e apenas se ouve, de tempos em tempos, um tilintar dos relógios e um eco dos sinos a indicarem as horas que correm, ele está lá em cima, sozinho, rezando e pensando, pensando e rezando, como São Bento em Subiaco meditava…

São homens assim que sofrem e se tornam solitários nas grutas de Deus e são construções e monumentos como o Palácio de Siena que se transformam em instrumentos da graça, para conduzir as almas ao Paraíso Celestial.