A Paixão trajada de pulcro

Desde os remotos tempos de minha juventude tocaram-me de modo muito particular as celebrações da Semana Santa. Recordo-me, por exemplo, de assisti-las na Igreja de Santa Ifigênia (então a Catedral provisória de São Paulo), onde me colocava junto ao coro e, lá do alto, contemplava as cerimônias se desenvolverem, enquanto a música sacra ungia o ambiente com seus acentos de dor e contrição.

Aquele conjunto de movimentos e cânticos se me apresentavam com uma majestade santa, uma grandeza divina e incomparável, cumulando minha alma de veneração, respeito e desvelo religioso. Em última análise, através do cerimonial, dos símbolos e personagens, a graça agia no meu interior, fazendo-me compreender a sublime beleza com que a Igreja rememora o trágico e glorioso fato da Redenção.

Tais sentimentos se intensificaram quando tive ocasião de conhecer as célebres procissões da Paixão realizadas na Andaluzia, notadamente as de Sevilha, talvez as mais belas do mundo. Ainda os menos sensíveis e os afeitos a ritos singelos não podem negar um elogio ao esplendor dessas celebrações.

Sob dosséis recamados de ouro e prata, cintilantes à luz de centenas de velas, desfilam os passos das várias Confrarias, cada qual excedendo-se no brilho, na compenetração e devoção com os quais reverenciam os sofrimentos do Homem-Deus. E embora uma crítica rigorosa não deixasse de ver, nestes ou naqueles pormenores, nestas ou naquelas imagens, certas concessões aos exageros do renascentismo, isto não impede que nos entusiasmemos diante do maravilhoso ornando as dores de Jesus e de sua Mãe Santíssima, recordadas em verdadeiros espetáculos esculturais e cenográficos.

Por ruelas e becos, às vezes tendo ao fundo a silhueta da famosa torre da Giralda, vão passando lentamente aqueles penitentes cuja identidade se refugia sob o distinto anonimato de suas lindas vestimentas: a grande túnica e o capuz pontiagudo, no meio do qual apenas se percebe o olhar sério e contristado do que caminha junto ao andor.

E como a procissão monumental lucra em percorrer aquelas vielas centenárias, tortas, traçadas sem planos nem medidas! É o que lhe confere vida e expressão de alma! Ela morreria ou perderia muito de sua beleza se tivesse de atravessar largas avenidas, povoadas de prestigiosos hotéis, bancos e lojas de luxo.

Não, é por entre as ladeiras e ruas estreitas que se apresentam em todo o seu esplendor aquelas obras de escultura magnificíssimas, a profusão de rendas, os mantos de veludo bordados a ouro, as jóias e coroas ricamente lavoradas, os lindos candelabros, os andores cobertos de flores vermelhas “éclatantes”, como só lá existem, e que combinam de maneira perfeita com as imagens da Paixão, como se quisessem dizer a Jesus: “Meu Senhor, se me fosse dado estar convosco na Via Dolorosa, aos vossos pés eu teria posto cravos. Os mais rubros cravos de Andaluzia para vossos pés divinos!”

É o pulcro, o belo oferecido a Nosso Senhor como ato de reparação. E nessa atitude só podemos ver nobreza e seriedade de espírito, cercando de ornato a dor multiplicada pela dor: ora é o Filho de Deus carregando sua Cruz, ora flagelado e coroado de espinhos, ora posto diante de seus algozes sem ter como se defender. Jesus humilhado e grandioso, isolado na sua inocência, suportando no silêncio o gravame de nossos pecados.

E a procissão continua o seu lento caminhar, deixando à sua passagem um rastro de tristeza e maravilhamento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A boa oração é sempre atendida

Encerrando a série de seus comentários ao livro de Santo Afonso de Ligório – “A oração, grande meio da salvação” –, Dr. Plinio relembra e responde algumas objeções que poderiam ser levantadas acerca do valor das nossas preces e da propícia disposição de Deus para com elas.

 

Lemos na Escritura, sobretudo nos Evangelhos, muitas afirmações a respeito da eficácia da oração. Uma das mais famosas é: “Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-se-vos-á” (Lc 11, 9).

É a lição da parábola do homem que dorme e que, à força de ser importunado pelo vizinho a lhe bater à porta, atende o pedido deste (Lc 11, 5ss).

Ao explicar a parábola, Nosso Senhor comenta: “Quem de vós, se um filho pede pão, lhe dará uma pedra? Ou se pede peixe, lhe dará uma serpente? Ou se pede um ovo lhe dará um escorpião? Se vós pois, que sois maus, sabeis dar bons presentes a seus filhos, quanto mais vosso Pai que está nos Céus concede o bom Espírito para aqueles que o pedem”.

Por que confiar no valor da oração, se nem sempre é atendida?

Se essas palavras devessem ser tomadas “quadradamente” ao pé da letra, como se tratando de uma promessa absoluta de Nosso Senhor, a conclusão é que todas as nossas orações são sempre  atendidas.

Ora, a experiência nos mostra que nem todas são atendidas; logo, dir-se-ia que essa promessa não pode ser tomada ao pé da letra. “Então qual o valor dela?” — perguntará alguém. “Se Deus se reserva ressalvas ao fazer uma promessa, fica-se mais ou menos desnorteado quanto à sua validade.” Certa vez alguém me confidenciou: “Eu não rezo porque Deus não me atenderá, pois Ele quer que eu passe por uma prova”.

Trata-se evidentemente de uma atitude errada. Mas vê-se que a pessoa tinha uma dificuldade que pode ser expressa no seguinte raciocínio: “Se estou doente e peço a Deus que me cure, ou se estou tentado e peço que a tentação cesse, que grau de confiança posso ter no atendimento de meu pedido? O próprio São Paulo rogou três vezes a Deus que afastasse dele as tentações e não foi  atendido, pois a tentação era  uma dádiva para ele. Vale então a pena eu pedir?” O problema acima está posto em termos bem agudos e rudes. Mas é um problema lógico que exige solução, com o objetivo de compreender melhor o valor da oração e a atitude de Deus para com quem reza.

Poucos são os livros de piedade que consideram essa dificuldade inteiramente de frente. Em geral, fazem considerações muito abstratas e não fornecem uma explicação satisfatória. Tive de refletir bastante para chegar às conclusões que enunciarei a seguir.

O pedido que nunca é recusado

Em primeiro lugar, na oração devemos distinguir duas  espécies de pedidos. Há aquele que Deus atende sempre, no sentido mais rigoroso da palavra, isto é, o de nossa santificação, perseverança e salvação eterna, desde que nossa oração seja insistente. Porém, mesmo nesse caso há conformes. Pois isso não implica que se obtenha imediatamente o que pedimos. Há pessoas que se julgam no direito de fixar prazos a Deus. Elas não compreendem que Deus pode tardar em conceder as graças que imploramos, pois quer provar a nossa paciência e confiança.

Ele pode querer que passemos por provações terríveis, antes de nos conceder o que pedimos. Conheço almas que quanto mais rezam, tanto mais acreditam naufragar. A solução para elas não é parar de rezar, mas orar com maior empenho. Pois quando Deus lhes conceder a graça pedida, fa-lo-á com juros. Na minha experiência de vida espiritual eu afirmo que esse trato de Deus para com essas almas é um sinal de verdadeira predileção por elas.

É preciso que essas almas tenham confiança, esperem contra toda a esperança, sabendo que um dia obterão o que pedem, em vista da promessa de Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo, tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vô-lo concederá”. A expressão “em verdade, em verdade” equivale a um verdadeiro juramento de Nosso Senhor.

Discernindo as vias da Providência

Tendo criado o homem com inteligência e livre arbítrio, está nos desígnios da Providência que ele não só utilize esses dons para progredir na vida material, mas também para buscar a própria  santificação.

A inteligência humana, servida como por um instinto que vem da graça, encontra condições para realizar um reto juízo a respeito de tudo quanto se refere à vida espiritual. A cada homem Deus dá   uma noção do que lhe convém para a sua salvação. Não se trata de uma noção genérica, mas de uma noção aplicada à sua vida pessoal concreta.

Mas a medida de segurança e de clareza que as almas têm no conhecimento de suas próprias vias, varia muito de uma para outra.

Há algumas às quais Deus concede uma clareza excepcional a esse respeito, enquanto outras vêem num lusco-fusco. Isso depende da pedagogia de Deus com cada alma.

Assim, por exemplo, àquelas que por seus defeitos naturais seriam muito tentadas de orgulho, Deus concede pouca clareza nesse discernimento, a fim de que não repousem sobre si, e sejam  obrigadas a rezar muito para poder ver com clareza como se conduzir, bem como a consultar e a seguir a direção espiritual de um outro homem, que tem mais discernimento do que elas.

De fato, nos casos em que as certezas são tênues, ou em casos de dúvida, Deus completa essa noção por meio da abalizada orientação de diretores espirituais.

A ação do Espírito Santo nas almas

Quando posso ter confiança de que meus pedidos serão ouvidos por Deus?

É precisamente quando, por efeito de uma graça interior de discernimento, tenho certeza de que minha solicitação corresponde aos caminhos traçados por Deus a meu respeito. Então devo pedir com toda confiança, porque Deus quer me conceder o que Lhe rogo.

Há, evidentemente, outros meios de comprovar qual é o caminho que Deus escolheu para mim: são certos sinais e circunstâncias que confirmam a certeza interior inicial. A confiança adquire  então um fundamento lógico, e a promessa de que nossa oração será atendida se aplica nesse caso estritamente.

As certezas quanto às vias de Deus nascem às vezes de revelações interiores como, por exemplo, no caso de Santa Joana d’Arc. Nascem também, por vezes, não de revelações, mas do conjunto de inspirações postas pelo Espírito Santo na alma. Santa Teresinha do Menino Jesus tinha certeza absoluta de que todas as suas irmãs seriam religiosas e rezava ardentemente para que o fossem, sem condicionar suas preces a outros desígnios de Deus, pois estava convicta de estar pedindo o que Deus queria dar. Esta é a fé que move montanhas, tanto no primeiro caso, como no segundo.

Essas certezas interiores, quando são obra da graça do Espírito Santo, revelam-se tão fortes que não são passíveis de dúvida. Em outros campos da vida espiritual elas também se manifestam, como por exemplo naquele famoso episódio de São Mauro, discípulo de São Bento, que em certa ocasião caminhou sobre as águas por ordem do abade para salvar o menino Plácido que estava se afogando. Uma ação especial da graça, por meio de imponderáveis, lhe disse no interior da alma que ele devia seguir o caminho da obediência naquela circunstância. Foi tal a eloquência da voz interior, que não titubeou um instante, e inclusive operou um prodígio. Essa é a fé que move as montanhas.

Sentir os “imponderáveis” e ouvir as vozes interiores

É preciso estar atento a esse instinto interior que nos mostra o que a Providência quer nos conceder em concreto. Pois Deus tem caminhos muito diferentes para as almas. Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, tinha como propósito “nada pedir e nada recusar”. Ora, ela que tinha essa praxe, é a Santa que mais atendeu pedidos, cumprindo seu projeto de passar o Céu  derramando sobre a Terra uma chuva de rosas. Sua via espiritual era de nunca pedir nada, mas ela estimulava as pessoas a que pedissem.

Não estava na via de Santa Teresinha fazer o que Santa Escolástica fez. Esta soube, por revelação, que a morte de São Bento estava próxima. Certo dia em que o Abade a visitou, insistiu com ele  que não fosse embora mas permanecesse ainda algum tempo conversando. São Bento foi terminante e decidiu se retirar. Ela então rezou, e uma tempestade tremenda impediu que São Bento a deixasse.

Há muitas mansões na Casa do Pai Celeste. Compete à alma discernir sua própria via, e pedir as graças que Deus quer lhe conceder.

Mas é preciso considerar que há um certo lusco-fusco, ao qual Deus nos quer deixar sujeitos, e que torna possível um engano na interpretação dessa voz interior. Foi o que se deu com Santa Joana d’Arc. Por tudo quanto se diz da sua vida, parece que ela não imaginava morrer queimada, como término normal de sua carreira. É frisante, nesse sentido, em certa ocasião ela ter saltado da torre  onde estava presa, para tentar fugir, chegando mesmo a se machucar. Ela não compreendeu, mas resignou- se à vontade de Deus, o que é o mais importante.

Esses lusco-fuscos existem, e é preciso nos habituarmos a eles. Geometrizar a vida espiritual, ou nos enervarmos com ela, é agir contra o regime estabelecido por Deus.

Por outro lado, se é verdade que interiormente posso me enganar, como no caso de Santa Joana D’Arc, não quer isso dizer que não devo confiar no que me é dado conhecer interiormente sobre o   meu caminho. Meu diretor espiritual pode se equivocar em relação a mim, mas isso tampouco quer dizer que a direção espiritual não valha nada. Essa alternativa, infalibilidade ou zero, está evidentemente fora da linha da Providência.

A boa oração é sempre respondida

Esses princípios, quando aplicados à oração para obter bens materiais, ensinam-nos que é preciso ter confiança de que seremos atendidos quando há razões ponderáveis para julgar que o que  pedimos é bom e conforme à vontade da Providência.

E se fizermos nosso pedido a Deus, em maneira condicional— que é como deve ser — e Deus não nos atender, saibamos que nos dará qualquer outra coisa. Pois nossa oração nunca ficará sem ser atendida, mas nos trará algum benefício, que inclusive pode ser maior do que o  solicitado por nós.

Devemos imitar São Paulo que, quando pediu a Deus a libertação das tentações que sofria, o fez com a predisposição de aceitar a vontade de Deus de não atendê-lo e mantê-lo exposto à vexação para o bem de sua alma.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Bom gosto…

Embora se trate de um tema delicado e pouco passível de consenso, o bom gosto envolve, contudo, uma circunstância que eu diria indiscutível. Explico.

Quando consideramos as nações nas quais floresceram renomados sistemas artísticos, percebe-se que estes não foram elaborados por especialistas, senão num sentido muito particular da palavra. Podemos comprová-lo nas expressões da cultura católica e da civilização cristã, como também nas de outras civilizações que enriqueceram, com seus belos contributos, o precioso acervo artístico da Cristandade.

Por exemplo, é inegável o valor de certas obras de arte da China e o bom gosto que as modelou, conferindo-lhes tal formosura que são dignas de figurar, no Ocidente, em qualquer palácio real, imperial ou mesmo pontifício. Assim, em diversos lugares nos é dado admirar jarros, tapetes, marfins, gravuras, leques e, de modo todo particular, porcelanas engendrados pelo talento chinês.

Quanto a estas últimas, narram as crônicas que teriam sido descobertas pelos jesuítas na China: maravilharam-se com o produto e desejaram trazê-lo para a cultura ocidental. Não lograram, porém, que os artistas chineses lhes revelassem a fórmula e os procedimentos para elaborá-lo.

Mas, a conhecida sagacidade dos filhos de Santo Inácio não se desarmou diante daquela recusa. Zelosos apóstolos e astutos observadores, ao exercerem seus trabalhos de missionários junto ao povo, notaram que outras pessoas, mais humildes, também confeccionavam porcelana. Com finura e tato, eles acabaram por obter da gente miúda o segredo dessa arte tão esplendorosa. Na primeira oportunidade, enviaram à Europa a fórmula e toda espécie de objetos chineses, para que os ocidentais tivessem ideia das possibilidades de cultura e de civilização que aquela China lhes oferecia.

Não tardou muito, e os europeus começaram a fabricar sua própria porcelana. Surgiram as magníficas peças francesas, inglesas, alemãs e outras, de extraordinária categoria, que logo passaram a competir com a preferência pelos objetos à base de metais preciosos. As baixelas de ouro e de prata, até então soberanas, viram-se ombreadas pelos delicados aparelhos de jantar, pintados em matizes róseos e níveos, bordejados de azuis e vermelhos intensos, ornados de pinturas com paisagens bucólicas, com buquês e guirlandas de extremo bom gosto. Bom gosto…

Plinio Corrêa de Oliveira

Imagem da eternidade

Imaginem um pássaro que, de cem em cem anos, passasse uma vez pelo Pão de Açúcar e roçasse com o bico aquela montanha, de maneira a retirar um pouquinho de farelo. Quantos séculos levaria esse pássaro para destruir o Pão de Açúcar?

Pois bem, quando o Pão de Açúcar estivesse desfeito, a eternidade ainda estava no começo, porque não tem fim…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/10/1989)

Imagem da eternidade 

Oração: Ação de graças pelo sofrimento recebido

Ó minha Mãe, eu Vos agradeço por me terdes dado esta ocasião de sofrer por Vós, e Vos digo: quero esta dor! Eu a desejo porque Vós assim o quereis; e a desejo durante o tempo que Vós quiserdes! Ajudai-me na minha debilidade para que eu possa carregar esta cruz como Vós entenderdes. Eu a osculo como Nosso Senhor a osculou no momento de colocá-la sobre os ombros, porque desejo tudo sofrer.

Eu ficaria desolado se minha vida fosse sem cruz. A vida sem cruz é uma vida sem Vós e, portanto, aceito a cruz de todo o coração. Tenho a alegria de receber este sofrimento em união convosco e para Vos agradar.

Dai-me, ó Mãe, o amor e o senso da cruz!

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 5/12/1967)

Venerável nascente da Cristandade

Muito do que se tem admirado da Civilização Cristã ao longo dos séculos, e se admirará até o fim dos tempos, pode-se dizer que nasceu de uma gruta. Aberta no meio de montes ásperos e  íngremes, ela abrigou o jovem Bento de Núrsia, que ali se refugiara para encetar sua vida contemplativa. Nela, ele forjou sua magnífica e santa alma de patriarca.

E dela se irradiou a Ordem Beneditina, da qual floresceu o movimento cluniacense, do qual, por sua vez, brotou a sociedade católica medieval. Uma gruta, portanto, imensamente venerável.

Trata-se de Subiaco, a “tintura mãe”, a fonte de onde jorrou a água da cristandade européia ocidental, de cujo desenvolvimento nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

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As montanhas se sucedem e se encontram em vértices acentuados. Nenhuma delas cai de modo bonito. Nenhuma desenha as flexões e de flexões suaves dos montes da Baía da Guanabara. São  elevações agrestes, justapostas pela mão do Criador, não se conhecem, não são amigas umas das outras, e mais parecem dilaceradas diante do firmamento. Para que servem?

Para o vazio, para a aridez, para o isolamento dos homens chamados a viver na solidão. Ali, o religioso se sente imerso na terra abandonada e rude, pois para ele a existência neste mundo nada reserva.

O seu viver é olhar para o Céu: “Pater Noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum”…

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A gruta… É muito bonito, poético até, dizer que São Bento encerrou-se ainda moço numa gruta. Porém, o peregrino que visita Subiaco surpreende-se ao contemplar aquelas pedras ríspidas — em todo o sentido da palavra ríspida — com as quais o jovem ermitão teve de conviver. Pouca ou nenhuma beleza as distingue. Todas parecem uma amálgama constituída em épocas pré-históricas, quando ainda escorriam à maneira de cera de vela, acumulando-se na desordem, e na desordem se petrificando, depois de calores e frios espantosos. Tudo é desconforto, tudo é solidão, tudo é Céu! Devemos imaginar São Bento vivendo aí, lendo, meditando, rezando, talvez sem se dar conta de que, naquele fundo de rocha, a Cristandade européia estava nascendo.

***

As construções, por sua vez, erguidas com certa irregularidade, apresentam no seu conjunto uma beleza indefinível, ressaltada pelo fato de se confundirem com penhascos estupendos, que têm algo de profético, pois neles parece encerrar-se todo o futuro da ordem beneditina.

Arcarias românicas servem de arrimo para os grandes edifícios do mosteiro. Arcos que transmitem uma idéia de lógica, de força, de calma, que têm seu encanto próprio, e mesmo uma certa majestade. Refletem eles algo da retidão, da despretensão e da robustez da alma do magnífico Patriarca.

A um canto, o pequeno campanário, singelo e modesto, mas suficiente para abençoar aquelas solidões, na aurora e no pôr do sol, com o timbre do seu bronze a saudar a Virgem Santíssima nos  toques do Angelus.

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Dir-se-ia que o ambiente próprio para ser o berço da cristandade medieval deveria ser mesmo essa solidão predestinada, na qual o espírito humano se compraz em imaginar que a vegetação, as grandes árvores, os penhascos e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças vaticinadoras do que adviria para a Europa nos séculos medievos.

E ainda que São Bento não soubesse nem previsse tudo o que estava por nascer, ele tinha entretanto seus anseios e ideais de uma civilização cristã. E todas aquelas montanhas, pedras e penhascos repercutiam os seus ideais; e os ventos, quando ali sopravam, pareciam cantar os seus anseios.

Resultado, quando hoje se visita Subiaco, procura-se interrogar aqueles montes e quelas grutas que ouviram os ecos dos passos de São Bento, os soluços e os prantos dele durante as crises e  tentações, o sussurro de suas preces e os seus cânticos de alegria. Procura-se, enfim, sentir de algum modo as ressonâncias de uma história que lá se passou, de um futuro que lá se engendrou, e perceber os reboares de bênçãos e graças que ali reinaram, que ali ainda palpitam.

Em Subiaco, tem-se a impressão de que se toca o Céu com as mãos. Mais ainda. É o Céu que baixa à Terra e inunda os homens com sua bondade, sua sacralidade e sua grandeza.

 

Prêmio demasiadamente grande

Segundo uma bela e tão razoável tradição, no momento em que a Santíssima Virgem, meditando na figura do Messias profetizado nas Sagradas Escrituras, completou a imagem que Ela deveria  formar a respeito d’Ele, o Arcanjo São Gabriel Lhe apareceu.

Assim, a primeira tarefa de Nossa Senhora foi conceber em seu espírito como seria o Redentor. Que santidade deveria ter a Virgem Maria para, com êxito, imaginar a fisionomia, o olhar, o timbre de voz, os gestos, o caminhar, o repouso do Filho de Deus!

E que alma era preciso ter para, depois disso, receber de Deus esta sentença: “Dedicaste a tua mente a desvendar este mistério, fizeste-o com tanto amor e tanto acerto que Eu Te digo: “Aquele que excogitaste, Tu gerarás!”

Prêmio maravilhoso, como nunca houve nem haverá igual na História! Ele disse de Si mesmo àqueles que fossem fiéis: “Serei, Eu mesmo, a vossa recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn 15,  1). Nosso Senhor Jesus Cristo é tão perfeito que até para Nossa Senhora Ele foi o prêmio demasiadamente grande.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Beato Sebastião

A vida do Beato Sebastião de Aparício foi cheia de zigue-zagues, mas sua alma sempre se manteve  no sendeiro da virtude. O universo da santidade é muito mais ordenado, elevado e bonito do que todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as magnificências da arte. Sem santidade o mundo não teria sentido nem graça.

 

No dia 25 de fevereiro comemora-se a memória do Beato Sebastião de Aparício. Sobre ele diz Rohrbacher(1):

Apostolado do exemplo

Nasceu na Galícia, em 1502, de família humilde de simples camponeses. Viveu até rapaz como pobre empregado, entregando suas economias aos pais e santificando essa vida árdua com uma enorme piedade. Embarcou em 1532 para o México, onde enriqueceu utilizando seus conhecimentos de agricultura. Teve êxito também no comércio, mas abandonou a profissão por achá-la  perigosa para a salvação eterna, e voltou à lavoura.

Casou-se duas vezes e nos dois casamentos, com o consentimento das esposas, observou a continência. Dele disse o decreto de beatificação: A Providência não o enviou à América para lá cultivar ciências, nem tampouco literatura, a ele absolutamente estranhas, mas para instigar os novos cristãos, mediante o exemplo, à prática de uma profunda humildade e da perfeição.

Com a avançada idade de setenta anos, renunciou às abundâncias e riquezas  de que dispunha, distribuiu-as pelos fiéis e assim despojado de qualquer bem terreno entrou num convento de  franciscanos da estrita observância. Lá, esquecendo do que deixara no mundo, fez profissão como irmão leigo. A partir de então, persistiu na prática de maravilhosa penitência, de simplicidade de coração, de prece e de fé, de obras de misericórdia espiritual e física, até a idade de noventa e oito anos.

Colheu então o fruto de cooperação com a graça e do fiel e laborioso cumprimento dos deveres religiosos. Embora entrado na vinha na última hora do dia, recebeu o prêmio inteiro que o pai de família prometeu aos que entram nas primeiras horas.

Variedade, unidade, ordem

Costuma-se dizer, a respeito da vida dos santos, que elas são admiráveis por aquilo que têm de parecido e pelo que possuem de diferente. Pelo que têm de parecido  porque indicam a unidade da santidade e a união da obra de Deus. Por aquilo que possuem de diverso, porque a variedade é um elemento complementar da unidade e é fonte, junto com esta, de toda beleza.

Nem sempre se nota que a ordem está apenas na conjugação dos fatores unidade-variedade, mas encontra- se também na conjugação do modo pelo qual as diferenças se completam  harmonicamente, por sua vez reproduzindo a unidade. E podemos então não só nos edificar na consideração da beleza da unidade que há na vida dos santos, quanto na verificação da surpreendente diversidade e da ordem que essas diferenças mantêm entre si.

Todos os estilos e tipos de vida humana honesta e honrada acabam sendo santificados por um bem-aventurado que daquela forma chegou aos altares; e mostrando que Deus tem seus desígnios muito variados a respeito de todos. Quando o Criador quer e a alma corresponde, de fato daí nasce a santidade.

Diversas mudanças em sua longa vida

Vejam como a vida desse Beato é singular. Nasceu pobre, filho de camponeses. Entretanto, vivia com muita piedade, entregava suas economias aos pais, respeitava o domingo. Isso em 1502. Mas em 1532 houve uma mudança brusca em sua vida.

Depois de uma existência muito simples e pobre, de um camponês arraigado na tradição de sua terra, embarca, de repente, para o México que naquele tempo era um lugar de aventura, de riqueza.

Ele sai de uma vida muito ordenada e singela para o pleno tumulto de um quadro de existência completamente novo. Lá ele se enriquece como agricultor.

Nova mudança: entra no comércio, exercendo profissão profundamente diversa da agricultura, e também obtém um êxito extraordinário.

Mais outra mudança: deixa o comércio e volta à lavoura. Por quê? Pela dificuldade de enriquecer honestamente.

Todos sabem como é fácil roubar no comércio. Deixou o estado de solteiro e casou-se duas vezes; e, circunstância imprevista, guardando continência as duas vezes.

Quer dizer, castidade perfeita dentro do casamento. Uma vida toda  de aspectos singulares. O decreto de beatificação acentua o último momento de sua vida: já tinha setenta anos quando entrou
para um convento de franciscanos.

Alguém dirá: só uma pontinha de sua existência… Não, são vinte e oito anos de vida religiosa. Depois de ter dado zigue-zagues de toda ordem, caiu na grande estabilidade de uma ordem religiosa, na qual levou a vida de um religioso. Então, o antigo agricultor, o antigo comerciante, o antigo homem de aventuras, o antigo esposo passa a ser um capuchinho de barba branca tranquilo, gentil, ressumando vida espiritual e morre numa espécie de apoteose.

Perfumou o convento, o México e a América coma beleza de sua vida

Analisando esses zigue-zagues, vê-se que não foram sinuosidades de uma pessoa que andou quebrando a cabeça de todos os lados, nem a correria do gato louco, mas que tudo isto teve uma certa continuidade. Por exemplo, quando se tornou comerciante ele já era tão direito que preferiu deixar o comércio a roubar. Tendo resolvido se casar, teve razões tão elevadas que guardou a castidade perfeita no casamento, e por duas vezes.

A vida dele rolando de todos os lados, mas sua alma, no sendeiro da virtude, afinal chega ao fim. E aos setenta anos entra para o convento, onde permanece por mais vinte e oito anos, o que ninguém esperava. É uma conjunção de vidas dentro das quais ele toma toda a personalidade de um papel e depois passa para outra função; no fim se sublima no papel dos papéis: um simples irmão leigo franciscano, perfumando todo o convento e todo o México e, de algum modo, toda a América com a beleza de sua vida.

Então, compreende-se bem que Deus é admirável nos seus santos. Ele é o autor, a fonte, o modelo da santidade; e o meio para ganhá-la é Maria Santíssima, nossa Medianeira. Ele é admirável porque todos os santos têm algo de parecido e algo de diferente, e porque essas diversidades se ordenam de um modo lindíssimo.

Qualquer alma é um tesouro inapreciável

Comparemos este Beato, por exemplo, com São Simeão Estilita rezando continuamente no alto de sua coluna, anos e anos, empolgando toda uma cidade; com o Venerável Pio Bruno Lanteri lutando contra a polícia de Napoleão, ou com Santa Teresinha do Menino Jesus morrendo vítima do amor misericordioso, em Lisieux.

Essas variedades têm umas harmonias profundas, que são uma espécie de post-visão da unidade.

O universo da santidade é muito mais ordenado, elevado e bonito do que todas as estrelas do céu, as belezas da natureza, as magnificências da arte. É a santidade o centro do mundo.

Sem santidade o mundo não teria sentido nem graça, mesmo no que ele possui de mais belo.

Peçamos a Nossa Senhora, por intermédio desse Beato, que nos dê uma consideração, uma compreensão, um amor cada vez maior pela santidade.

De outro lado, nos conceda a vontade de nós mesmos sermos santos e contribuirmos com nossa alma para a beleza desse firmamento para o qual fomos criados.

Qualquer alma, a última das almas do último homem, é um tesouro inapreciável porque é uma estrela que a Providência quer que brilhe por toda a eternidade nesse firmamento de santidade que deve substituir no Céu os anjos caídos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/2/1966)

O "Stabat Mater" verdadeira joia de fé e coerência

A presença da Mãe Dolorosa junto à Cruz inspirou um dos mais eloquentes hinos pelo qual nos é dado exaltar o sacrifício co-redentor de Maria Santíssima, ao mesmo tempo que nos incita à compunção e ao arrependimento por nossos pecados. Conforme podemos constatar nas palavras transcritas a seguir, muito o apreciava Dr. Plinio, tomando-o como um misto de singela poesia e comovente oração.

 

Cântico muito apropriado para alimentar nossa piedade nos dias da Semana Santa, o “Stabat Mater” mereceria um comentário tão extenso quanto grande é sua beleza e unção. Porém, não sendo possível nos estendermos como desejaríamos, analisarei algumas passagens, baseando-me numa tradução a qual, infelizmente, não possui o mesmo sabor do texto original em latim.

A situação mais trágica de toda a História

Estava a Mãe dolorosa, ao pé da Cruz, lacrimosa, e o Filho pendente dela.

Dura espada lhe rasgava a alma pura, com dor, tristeza e gemidos.

Após a apresentação desse quadro, seguem-se algumas orações: Eia Mãe fonte de amores, fazei que essas fortes dores eu sinta e convosco chore.

Fazei que a alma se me inflame, para que a Cristo Deus só ame e só busque o seu agrado.

Santa Mãe, isso vos peço, fique o peito bem impresso das chagas do Crucificado.

Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer, convosco chorar deveras.

A cena aqui descrita, de Nosso Senhor pendente da Cruz e Nossa Senhora em pé (pois este é o significado de “stare”, em latim), chorando, é a mais patética de toda a história do mundo.

Nunca houve situação mais trágica do que essa, nem nada que se lhe comparasse. Diante desse quadro que deveria comover todos os homens, adquire especial relevo aquelas várias preces.

Caráter sagrado das relações mãe-filho

Para compreendermos o inteiro alcance desse cântico, convém considerarmos a relação Filho-Mãe.

No alto do Calvário se encontra Nosso Senhor, na força de sua idade, pregado na Cruz, exposto a um tormento indizivelmente agudo, com o Corpo todo chagado devido aos maus tratos anteriores, a coroa de espinhos ferindo-Lhe a cabeça, prestes a exalar sua alma. Passou por todas as dores e se acha no fim da agonia. D’Ele se poderia dizer, metaforicamente, como o fez a Sagrada Escritura: “Já não era um homem, mas um verme” (Sl 21, 7), e reputado “como um leproso” (Is 53, 4), de tal maneira estava desfigurado, chagado e lanhado.

Conforme predissera o Profeta Isaías, do alto da cabeça até a planta dos pés não havia em Jesus parte sã. Ora, a pessoa nessa situação pungente, própria a despertar a compaixão de todo o mundo, é ao mesmo tempo o Homem-Deus. Sendo o Inocente, e sofrendo o martírio mais injusto, humilhado pela ralé mais infame, tudo quanto contra Ele se executava assumia uma gravidade verdadeiramente infinita. Cometia-se, portanto, um pecado imenso, algo que deveria levantar de indignação até as pedras.

Pois bem, ao pé da Cruz estava a Mãe do Supliciado.

Nada se respeita tanto no mundo quanto uma mãe que chora junto a seu filho morto. Isso faz cessar todas as hostilidades, apodos, qualquer espírito de vingança, toca e inclina as almas para a misericórdia. É a fraqueza feminina no que tem de mais sublime, a condição de mãe posta diante do que há de mais doloroso: o falecimento de seu próprio filho.

Tais sentimentos se verificam inclusive em se tratando do pior dos criminosos, digno da maior execração, justamente condenado à morte. Quando, nas vésperas de sua execução, anuncia-se a visita da mãe dele, tudo se suspende. A irritação despertada contra o sentenciado como que recebe um parênteses, todos acolhem sua progenitora com respeito e a conduzem junto ao filho que ela deseja consolar. E esse réu, objeto da reprovação geral, enquanto está com sua mãe adquire — pela sua condição de filho — uma respeitabilidade a qual pareceria impossível em semelhante facínora. Ninguém o atormenta nem o incomoda. Suspende-se o curso da justiça, até que o contato com sua mãe tenha cessado.

Tudo isso porque a relação mãe-filho é sagrada, envolve reservas de ternura inimagináveis. Em razão do que ela tem de sacrossanto em si, aplaca as cóleras e impõe toda forma de respeito.

Misérias da sensibilidade humana

Ora, no Calvário está a mais perfeita de todas as mães, chorando a ofensa feita a Deus com uma profundidade de sentido que não podemos sequer imaginar. Em face dessa cena compungente ao extremo, era de se presumir que a piedade humana naturalmente se enternecesse.

Se presenciássemos a crueldade de alguém que mata uma cachorra, abandonando à própria sorte os filhotes dela sem terem quem lhes procure alimento, sentiríamos uma impressão desagradável, teríamos pena. Pois somos assim, e nos enternecemos — às vezes exageradamente — com a dor sofrida pelos animais.

Então, se temos Fé e acreditamos que Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e morreu na Cruz para nos salvar, que Nossa Senhora existiu e estava ao pé da Cruz, deveríamos ter nossa alma partida de dor e nada poderia nos falar tanto quanto essa situação. Entretanto, devido à miséria da sensibilidade humana, dá-se algo de inconcebível: os mesmos que se deixam comover pelo infortúnio de um bicho, diante da Paixão se tornam “glaciais”, e dizem: “Já sabemos disso, hããã…”. A Morte de Nosso Senhor é uma das estações da Via Sacra. Dos que a rezam, quantos não têm a atenção voltada para outros assuntos? E quantos, mais numerosos, nem sequer dela participam, alegando ocupações mais importantes?

Essa indiferença humana é tão marcante que, depois de apresentar esse quadro, muito judiciosamente o “Stabat Mater” acrescenta quatro orações nas quais pedimos a Deus algo que deveria borbulhar do fundo das almas: o sentimento de arrependimento, compunção, gratidão; o desejo de aproveitar para si os frutos dessa Redenção, daquelas lágrimas, daquele Sangue, para progredirmos na prática do bem.

Por que existe tal indiferença? Porque esse tema é bonito, elevado, santo, grandioso demais. E pela sua natureza decaída com o pecado original, o homem se tornou tão ruim que, em presença de algo muito sublime, santo e elevado, fica completamente insensível. Há todos os motivos para chorar e se compungir, mas não chora nem sente compunção.

Pedir a graça da verdadeira compunção

Cumpre termos presente que o autêntico movimento e piedade provém de um ato de Fé e amor a Deus, frutos da vida sobrenatural recebida por nós através da graça. Não a podemos adquirir por simples méritos de nossa natureza.

Assim, temos de pedir e desejar ardentemente essa graça insigne: que a Paixão de Nosso Senhor não seja para nós uma coisa morta, poeirenta e distante, ocorrida há séculos, e sim algo de vivo que nos diz respeito diretamente, e nos toque no fundo da alma como sucedeu a todos os santos.

Esse “tocar no fundo da alma” não significa apenas um mero sentimento de tristeza, mas também de solidariedade para compreendermos a inteira relação do holocausto de Jesus conosco, movendo-nos a um ato de genui­no amor a Deus e de correspondência às graças.

Nosso Senhor e a Santíssima Virgem sofreram todas essas dores na intenção de salvar os homens, e mesmo que fosse para resgatar só a mim, as teriam padecido. Eles me conheciam pessoalmente no momento desse sacrifício, pensaram em mim e o aceitaram para me redimir. Assim, hei de corresponder a tanta misericórdia, deixarei de pecar e progredirei na virtude. Quero salvar almas e implantar o Reino de Maria na Terra, como a plena retribuição àquilo que na Paixão foi realizado.

É, portanto, esse movimento de alma, sensibilizada pela Paixão, que devemos pedir nas orações.

A esse propósito, tomo a liberdade de evocar um exemplo pessoal. No meu tempo de menino, quando me preparava para me confessar e fazer a Primeira Comunhão, minha governanta alemã, “Fräulein” Mathilde, dizia-me: “Faça seu exame de consciência”.

Eu o fazia e escrevia as faltas num papel, pois era muito distraído e receava me esquecer. Chegando na igreja, a governanta me mandava ajoelhar e rezar o ato de contrição. Em seguida me perguntava:
— Você se arrependeu?
— Não…
— Então reze a Via Sacra!

Terminada a oração, a mesma pergunta:
— Você se arrependeu?

Eu perdia a face diante de tanta maldade que era a minha ausência de arrependimento, mas não queria fazer uma confissão sacrílega, e respondia: “Não”. Ela decretava: “Faça novamente a Via Sacra!”

Afinal, para conseguir me livrar de tanta Via Sacra, excogitava qualquer emoção ligeiramente “arrependitiva” e a governanta declarava: “Vai logo para o confessionário, senão essa contrição desaparece”.

E eu, compenetrado de minha tremenda vilania — pois era um homem que não se arrependia de nada, tendo de se confessar rapidamente antes que se esvaísse aquele mínimo sentimento de culpa —, pensava: “É verdade, deixa eu pegar minha ‘contriçãozinha’ no pulo; do contrário, não sei o que será de mim.”

Claro está, essa governanta possuía uma ideia errada do que era o sentimento de contrição. Na realidade, não se trata de simples choramingar nem de uma dor sensível, mas é tomar profundamente a sério os dados fornecidos pela Fé, cogitando, por exemplo, no seguinte: até a última gota do Sangue de Nosso Senhor teve de ser derramada, quando a lança perfurou o próprio símbolo do amor, que é o Sagrado Coração. Ele sofreu tudo por mim! Então, a que conclusões devo chegar?

Essa seriedade da alma é a compunção. Muitos santos a tiveram acompanhada de pranto, que é um grande dom: o das lágrimas. Mas este, embora muito conveniente, não é necessário para o autêntico arrependimento.

Portanto, em virtude dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, devemos pedir a graça da verdadeira compunção. E nesse intuito — sem procurar um “calorífero emocional” — será mesmo louvável que recitemos piedosamente uma Via Sacra.

Tesouros de lógica e virtude

Compreendemos, então, como o “Stabat Mater” é bem constituído.

Ele coloca diante nós o mais comovente dos quadros, e nos leva a fazer pedidos de que esta situação trágica de fato nos comova, reconhecendo a fundo a maldade e a dureza humanas, insensíveis a tanta dor.

Eia Mãe fonte de amores, fazei que essas fortes dores eu sinta e convosco chore.

Quer dizer, que eu me solidarize convosco. Concedei à minha alma uma participação na vossa dor.

Fazei que a alma se me inflame, para que a Cristo Deus só ame e só busque o seu agrado.

Depois da solidariedade, implora-se algo mais alto: uma união tal que eu só ame a Ele, Cristo Jesus.

Santa Mãe, isso vos peço, fique o peito bem impresso das chagas do Crucificado.

Note-se como está bem graduado e pensado: solidariedade, amor exclusivo, participação no sofrimento d’Ele aqui na Terra. Quero ter impressas em mim as chagas de Jesus.

E por fim:
Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer, convosco chorar deveras.

Pede-se a graça da perseverança, para que durante minha existência inteira essa disposição de alma permaneça viva. Amém.

Percebe-se, dessa forma, a maravilha de Fé, lógica, coerência e humildade contida nessa oração. E esta outra característica, não menos bela: posto diante de Cristo crucificado, o fiel não se dirige diretamente ao Redentor, mas a Nossa Senhora, sabendo ser Esta o caminho mais certo e seguro de chegar a Ele. Então, aceitando a mediação universal de Maria, roga-Lhe sua intercessão para que suas preces sejam ouvidas pelo Senhor Jesus.

Na verdade, o “Stabat Mater” é uma poesia tão singela, tão simples, que requer profunda análise para se compreender e admirar os tesouros de teologia e virtudes nela encerrados. v

A História: um imenso drama

Ao longo dos milênios em que o homem peregrina sobre a terra, incontáveis foram os disparates e os lances de selvageria ou torpeza, praticados por gente comum ou por personagens altamente colocados. Será que, no ensino da História, é proveitoso para os alunos apresentar-lhes esses episódios sinistros da vida da humanidade, muitos deles passados em eras remotas? Questão um tanto  inesperada, e relacionada com estas outras: de que  adianta estudar História? De que vale conhecer o passado? As respostas são dadas por Dr. Plinio na conferência que transcrevemos nas páginas seguintes.

 

Conjecturar o futuro não é tarefa das mais fáceis. Para fazê-lo, importa arquitetar uma série de raciocínios, de cálculos, etc., até se vislumbrar algo do que ele nos reserva. Em certas circunstâncias, esse conhecimento é de extrema utilidade, dado podermos adequar nossos objetivos e ações em vista do que irá acontecer.

Mais ainda. Sabendo como outros planejaram o futuro, estará a nosso alcance “desplanejá-lo”, caso tenhamos intenções contrárias às deles. Tome-se o exemplo de dois rivais políticos. Na disputa que travam, vencerá aquele que melhor compreender quais os desejos do adversário, os lances, manobras e combinações que este realizará amanhã, pois, conhecendo- os de antemão, poderá  tomar a dianteira e sair vitorioso.

Um modo especial de jogar xadrez

O mesmo princípio se aplica a dois jogadores de xadrez que se olham de frente. Se um é capaz de perceber qual será a próxima jogada de seu contendor, pode mexer  determinada peça e ganhar a partida. Vem a propósito evocar de passagem uma reminiscência do meu tempo de moço. Um tio meu, muito apreciador do jogo de xadrez, gostava de aproveitar as tardes livres dos fins de  semana para uma partida com seus filhos ou sobrinhos. Diversas vezes era eu o escolhido e de bom grado assumia o outro lado do tabuleiro.

Em determinado momento, eu percebia que meu tio fazia seus planos olhando para as peças, procurando descobrir as minhas intenções. Eu, porém, procedia de modo diferente: enquanto meu  oponente observava as peças, eu lhe fitava o rosto e o olhar, acabando por descobrir qual seu próximo lance. Empurrava, então, um cavalo, uma torre, bloqueando-lhe o caminho, sem ele nunca  haver atinado com minha estratégia…

Era uma maneira de conhecer o futuro, que também tinha, naquele âmbito familiar e recreativo, a sua utilidade.

A história dos assírios: “O que eu lucrei em saber dessas selvagerias?”

Mas, quando  e trata de História, de nos voltarmos para o passado, retrocedendo até os primórdios da humanidade, que proveito nos advém desse conhecimento?

Eu me situo novamente na minha sala de aula, no tempo do Colégio São Luís, quando o professor de História entrava, sentava-se à sua mesa e dizia: “Hoje vamos estudar os assírios!” O tema me despertava um interesse apenas moderado.

Porque, afinal, em pleno século XX, com os assírios ou sem eles, as coisas mais ou menos se resolvem. Eu pensava comigo: “O que me importam esses reis, aliás muito antipáticos?”

De fato, uma antipatia que me ficou da consideração de uma gravura existente no meu livro de História Universal, reproduzindo um alto-relevo da época assíria. A cena esculpida era  confrangedora. Tratava-se de um rei tomando atitude de vencedor diante de prisioneiros de guerra. Ele, representado como um homem alto, usando chapéu cônico (mas um cone truncado, não  em ponta) de material muito rico, sob o qual escachoavam abundantes cabelos, eximiamente frisados, formando filas, como se diria de soldados em ordem de batalha.

A barba, igualmente farta, alternava-se em segmentos lisos e cacheados. Estava vestido de túnica e calçava sandálias. Uma fisionomia de expressão feroz, certos olhos compridos e em diagonal,  característicos daqueles povos, nariz adunco de ave de rapina, e uma lança na mão.

À frente dele, lavrados em tamanho menor, uma série de prisioneiros, cada um com argolas atravessando o seu lábio inferior, e todas essas argolas presas por cordéis que chegavam até a mão do  rei vitorioso. A cena perpetua o momento em que dois daqueles infelizes estão ajoelhados diante do soberano, e este na iminência de lhes furar os olhos com a lança. Terrível castigo que ele  infligiria às centenas de vencidos, para se vingar e, posteriormente, ter braços que trabalhassem para ele  sem lhe causar grandes estorvos. Estão cegos, não podem fugir, fazem o que se lhes manda.

Transformam-se em animais de tração. Era costume dos assírios fazer grandes obras públicas, muros muito altos, etc., e necessitavam de homens que construíssem pacientemente essas imensas  edificações. Ora, como tais empregados provinham, em geral, das prisões de guerra, era preciso destinar inúmeros soldados para vigiá-los e impedir que desertassem. Então aquele rei — a quem a  legenda da gravura dava o nome de Assurbanipal Tiglapilazar — teve a horrível ideia de cegar todos os prisioneiros, de modo a não poderem escapar. Nessas condições, um único guarda bastava para tomar conta de quinhentos ou mais escravos.

Quando a faina diária terminava, os desgraçados eram levados para um cocho qualquer, recebiam uma péssima refeição e dormiam, para tudo recomeçar na manhã seguinte.

Uma situação pavorosa, abominável, fruto da civilização pagã, alheia à noção de que, embora desiguais entre si, os homens são iguais pela natureza. E que, portanto, essa desigualdade tem limites,  ão sendo lícito a um homem abusar de seu semelhante.

Então, eu pensava com meus botões: “Valeu a pena essa visão de pesadelo e drama passar por meus olhos e minha mente, como pelos de todos os alunos que estão aqui? O que eu lucrei em saber  dessa selvageria e torpeza? Não lucrei nada. É uma coisa horrorosa! Para que ensinam isso?”

Desatinos de certos personagens históricos

Se não eram assírios, eram os babilônios, era a Índia, e era a luta dos persas contra os gregos, envolvendo uma série de fatos, alguns inexplicáveis. Dario, imperador da Pérsia, homem de imenso  poder, levou suas tropas até as margens do Mediterrâneo, numa caminhada que se tornou célebre, porque muito difícil. De fato, a grande distância que separa a Pérsia desse mar não podia,  naquele tempo, ser vencida pelo exército inteiro montado a cavalo. Tinha-se de ir a pé, sobrepujando inúmeros obstáculos.

Chegados ao Mediterrâneo, os persas encontrariam ali uma poderosa frota que os aguardava para conduzi-los à Grécia. Porém, quando já se dispunham a embarcar nos navios, um vento fortíssimo  soprou, encapelando as ondas e dispersando toda a frota. Assim, a pequena Grécia, com poucos soldados para se defender contra a Pérsia, viu-se livre da invasão.

Diante do fracasso, Dario ficou furioso e ordenou que um certo número de chicoteadores do seu exército açoitassem o mar, para se vingar do que este havia feito com suas naus.

Eu pensava: “Aqui é outro desatino! Do que adianta chicotear o mar? O mar vai e vem, quando quiser, sobe, inunda o lugar onde estão todos os chicoteadores, leva alguns consigo e os mata. O mar  az o que quiser. De que adianta flagelá-lo? É uma estupidez!” Mas era preciso aprender que Dario mandou chicotear o mar… O que lucrei com isso?

Tudo se explica em função de Nosso Senhor Jesus Cristo

Certo dia caiu-me nas mãos um livro de História, de cujo título não me lembro, que infelizmente já desapareceu de circulação. Era uma verdadeiro tesouro e uma maravilha de erudição. Baseado  em textos de autores pagãos, mostrava o mundo de tolices, asneiras e crimes que se cometiam antes de ser difundida a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo pela face da Terra, e como aqueles  cessaram depois dessa propagação.

De súbito, aquelas velhas histórias do meu professor secundário tomaram vida para mim: “Ah! Agora eu compreendo. Quando penso em Nosso Senhor Jesus Cristo e no Tiglapilazar… Quando  considero a suavidade e a doçura dEle ao curar cegos, coxos e doentes de toda ordem, com infinita bondade, e, de outro lado, vejo a ferocidade desse rei animalesco, e imagino que todos daquela  época eram como esse soberano, eu entendo que essas crueldades sem nome foram se apagando lentamente, à medida que os ensinamentos de Nosso Senhor  se propagaram pelo mundo e dulcificaram os povos.”

Ao ver que dessas populações dulcificadas floresceu a Cristandade, eu pensava: “Estou  compreendendo a História, ao ver nela os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, os passos da Igreja dEle! É  por causa da doutrina que Ele trouxe aos homens, da Igreja que Ele fundou, da graça que essa Igreja difunde, e que Ele mesmo diretamente esparge sobre as almas, a rogos de Nossa Senhora, a  todo momento e de todos os modos — que se formou essa realidade incomparável chamada Cristandade, a imensa família das nações católicas apostólicas romanas”!

“Que papel admirável teve Ele na História! Como Ele é grande! Que maravilha!”

A História, ao girar em torno do Verbo Encarnado, tomou sentido para mim. Ela deve ser vista, portanto, enquanto ordenada em relação a Nosso Senhor: a narração de todos aqueles crimes,  infâmias e ignomínias que O precederam, que Ele viria remir; como também a descrição de todos os restos de belo, bom e verdadeiro que ainda subsistiam na natureza humana, e que Ele iria  tomar, elevar e conduzir à sua excelência. O bem, antes dEle minoritário, incompleto, esmagado, com Ele sairia vitorioso.

Em função de Jesus Cristo, tudo toma interesse. Sem a presença dEle, a História se parece com uma sala durante a noite. Esta pode estar decorada com os mais belos quadros do mundo; se, porém, estiver imersa numa escuridão absoluta, do que me adianta estarem ali as mais célebres obras-primas da Terra? Eu não as vejo! Alguém poderá me dizer: “Ali está um Fra Angelico  magnífico!” A minha resposta é: “O que tenho eu com isso? Não estou vendo! Não me interessa!”

Contudo, acende-se a luz… “Ah! Que esplêndido quadro de Fra Angelico!” É a reação normal, porque eu passo a ver as coisas e elas tomam interesse para mim.

É o que acontece quando estudamos a História em ordem a Nosso Senhor Jesus Cristo. Com a presença dEle, a luz brilha nas trevas, tem-se vontade de acompanhar os fatos, de entendê-los, etc., em função dEle, que é não apenas o centro, mas o ápice da História.

O sentido profundo da História: uma luta, um imenso drama

Vista assim, a História se divide em três grandes períodos: o primeiro, da criação do homem, passando pelo pecado original, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo; o segundo, quando Ele  nasceu e morreu na cruz por nós, resgatou o gênero humano e fundou a Igreja; terceiro, os séculos que antecedem a outra vinda dEle, no fim do mundo, para julgar os vivos e os mortos,  encerrando a História da humanidade.

É tomada nesse amplo contexto, relacionada não apenas com um povo ou uma civilização, mas com a globalidade do gênero humano, que a História adquire o seu sentido profundo e merece ser  examinada. Um sentido profundo que remonta a Deus Criador, tirando do nada o universo, com todas as suas incomensuráveis riquezas, os anjos, e a síntese da matéria e do espírito que é o  homem, posto por Ele no Paraíso Terrestre, lugar de delícias e de extraordinária felicidade física, espiritual e intelectual.

Se não tivesse havido o pecado original e, portanto, o gênero humano continuasse a se propagar no Paraíso, este, com o contínuo e magnífico crescimento da virtude, inspirando os mais variados e  excelentes talentos, teria se tornado resplandecente de glória e beleza. Desse modo, o homem prestaria sua colaboração para deixar ainda mais esplendorosa a obra de Deus. E assim o foi de início,  quando — diz a Escritura — às tardes o Senhor descia ao Éden numa brisa fresca, para passear e conversar com Adão, fazendo com que este compreendesse e aperfeiçoasse a beleza de  todas as coisas.

Porém, essa ordem e esse plano maravilhoso foram frustrados pelo Pecado Original. Adão e Eva caíram, e foram expulsos do Paraíso. Punidos, iniciam nesta Terra de exílio a sua vida difícil.  Nascem os primeiros filhos. Um deles é a flor da progênie: Abel. Abel o suave, Abel o bom, Abel o perfeito.

O outro, Caim, é um filho torto, que vê com maus olhos o irmão virtuoso, em relação ao qual se consome de inveja e de vontade de liquidar. Os pais notam a perversidade no íntimo da alma de  Caim e procuram aconselhar: “Abel é seu irmão, você precisa amá-lo”.

Debalde. Cedendo à tentação, Caim mata Abel. E aí, presumivelmente, pela primeira vez Adão e Eva viram uma criatura morta, e puderam contemplar em todo o horror — na pessoa de seu filho —  morte que viria para eles e para todos os seus descendentes, por culpa deles.

Podemos imaginar a atitude de Eva, sentada sobre uma pedra, com Abel em seu colo, sem vida. Ela segurando a cabeça de seu filho dileto, enquanto, ao longe, Caim se afasta gritando ultrajes!… Ela tinha ali a figura do primeiro assassinato, do primeiro morto e do primeiro bandido. É a História do gênero humano que vai começando.

Passam-se os séculos. Os “Nabucodonosores”, os “Assurbanipais” aparecem. Os reis também vão se tornando celerados. Tudo vai se tornando crime pelo mundo. Mas, em Israel, no povo eleito, uma  Virgem imaculada havia, a qual, ao lado de alguns poucos justos, insistentemente rogava a Deus a vinda do Messias. “Rorate coeli desuper, et nubes pluant justum” — reza a Igreja no Advento. 

“Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho; e as nuvens chovam ao Justo”. Quer dizer, que venha o Bem-amado e o Bem-esperado de todas as gentes.

O Perfeito surgiu, afinal, para modificar o curso do mundo. Durante séculos O esperou a nação de Israel. Eis que o Redentor chegou. O que fez esta nação? Matou- O! Uma minoria fiel O  acompanhou e constituiu a Igreja. A maioria, infiel, sacrificou o Verbo Encarnado! Mas não sabiam que o Salvador, com sua morte, resgatava o gênero humano! O pecado original e todos os pecados atuais, até o fim do mundo, necessitavam de uma expiação condigna diante do Altíssimo. Esta, o Homem-Deus a satisfez inteiramente.

Redimido o homem, perdoado, pelo mundo começam a soprar outros ventos. Aparecem os santos, os mártires, e as obras de caridade de toda ordem. Em determinado momento, surgem os  eremitas e os doutores da Igreja, gerados do sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Iniciou-se, igualmente, a grande batalha da Cruz através dos séculos. Assim como no Céu, Deus se serviu de São Miguel Arcanjo e dos Anjos bons para de lá expulsar os demônios, assim também,  na Terra, é desejo de Nosso Senhor que os homens bons combatam os maus, numa luta que perdurará até o fim do mundo. Temos, então, de um lado, a história da graça divina, que vai soprando  aqui, lá e acolá, para tal pai de família, para esta e aquela pessoa, etc., a fim de serem melhores que os outros, para chamá-los e guiá-los. A história do Santo Sacrifício da Missa que se repete  diariamente no mundo inteiro, da Igreja que vai distribuindo os Sacramentos, vai ensinando, governando e santificando os homens, no intuito de que todos alcancem o Céu. É a tarefa por  excelência da Hierarquia sagrada. E dos fiéis, sob as ordens da Hierarquia, travando essa batalha com vistas a levar para a bem-aventurança eterna o maior número de almas.

Essa é a história da  salvação

De outro lado, é a história dos maus, que constituem organizações, que tramam entre si e promovem propagandas para arrastar as almas ao inferno. E o grande, o verdadeiro sentido da vida  cotidiana, não é saber se tal povo irá conquistar tal outro, ou se o preço do petróleo vai subir ou cair. Essas são coisas completamente acidentais. O problema é: eles estão se salvando ou se  perdendo? Nós estamos nos salvando ou nos perdendo?

Quando saímos à rua e observamos o fluxo contínuo de pessoas a pé ou de carro, a pergunta que devemos nos fazer não é: Para onde vão? Qual é a marca do automóvel de cada uma delas? Tudo  isto é secundário. A questão é: elas são ou não de Deus? Estão ajudando o bem ou o mal?

Este é o sentido mais profundo da História da humanidade. Toda ela é uma luta pela salvação ou perdição de muitos, uma batalha em que uns homens influenciam outros, aproximando-os ou os  afastando de Nosso Senhor Jesus Cristo. E compreendemos que, assim, ela deixa de ser o formigamento de um sem número de pessoas que nem conhecemos, que morreram muitos séculos antes  de nós, que não tinham nada a ver conosco, e se transforma na história de um imenso drama.

E nós podemos compô-la como um quadro gigantesco, onde percebemos nossas próprias pessoas dentro do drama. Porque todos nós, cada homem nascido em um determinado século, faz parte  do drama da sua época, e tem um inalienável papel — disposto pela Providência — a desempenhar na ingente luta pela salvação das almas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 11 (Fevereiro de 1999)