Lembrança do Céu

Para as condições da época, a civilização Cristã foi, tanto quanto possível, um espelhar fulgurante da ordem paradisíaca e angélica entre os homens.

Foi uma superior disposição da vida temporal, por onde o espírito humano subiu tão alto que chegou a realizar coisas e a se exprimir em símbolos nos quais superou toda beleza contenível nesta terra – a ponto de lembrar o céu.

A Eucaristia, eixo da piedade católica

Quão sensível era Dr. Plinio à ideia de um universo aberto, no qual a Igreja Triunfante e a Penitente se unem à Militante! Entusiasmava-o considerar a ação da graça divina, dispensada a rogos de Maria em favor de todos, e impetrada pelos méritos infinitos do Santo Sacrifício de Jesus, renovado nos altares do mundo inteiro.

 

Vós falastes sobre a tríplice devoção ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e ao Papa. Monsenhor Segur, prelado francês do século XIX, chamava essas três devoções de “rosas dos bem-aventurados”. Podemos dizer que são as três rosas dos contrarrevolucionários. Vós pedistes que se destacasse, na exposição de hoje, a parte referente à Sagrada Eucaristia. Este é um dos temas a respeito do qual mais gosto de tratar.

Embora todos compreendam uma mesma verdade objetiva, cada um deita a tônica da atenção num determinado ponto

Uma vez que me pediram para tratar da devoção ao Santíssimo Sacramento enquanto vivida por mim, eu gostaria de começar por ressaltar o seguinte:
Todo ato de piedade tem a sua justificação teológica; se não deitar raiz na Doutrina Católica de nada vale. Mas não basta ter fundamento na Doutrina Católica, porque nossas almas não são como páginas em branco de um livro, nas quais se pode escrever livremente. São almas vivas, que recebem as coisas e vivem em relação a estas. Todas as pessoas compreendem uma mesma verdade objetiva, mas cada uma deita a tônica da atenção num determinado ponto, de modo diferente das demais pessoas.

E um dos encantos do convívio humano consiste nisto: comunicar o que, entretanto, não se pode dizer. Vendo o outro que está ao nosso lado, percebemos que ele notou alguma coisa que não chamou tanto a nossa atenção; houve uma repercussão na alma dele, diferente da nossa; não sabemos exprimir, mas algo nós sentimos.

Uma das coisas que tornam a companhia de uma pessoa mais agradável ocorre quando, por exemplo, visitando um museu, apreciando uma cena humana, considerando um panorama, essa pessoa deixa entrever o que cogita, mas não diz.

Embora pouco se fale sobre esse assunto, isto se aplica às verdades da Fé.

A ação de Nossa Senhora se adapta a cada alma

Quando conhecemos uma verdade da Fé, sentimos em nossa alma uma repercussão que, embora não consigamos exprimir, é o melhor do que degustamos.

Por exemplo, analisemos o modo de nossas almas reagirem diante da imagem de Nossa Senhora que se encontra neste auditório(1). É impossível olhá-la sem sorrir; é impossível olhá-la sem que uma forma de otimismo da Fé sopre em nossa alma.

A ação de Nossa Senhora sobre cada alma se adapta de acordo com seu caráter único, de tal modo que é irrepetível. E na história de todas as graças concedidas por Maria Santíssima — no Céu isso se verá —, há incontáveis reações possíveis à vista dessa pequena imagem, indicando as inúmeras modalidades de Nossa Senhora ser graciosa.

Todos aqui estão prestando atenção na reunião, mas, às vezes, pelo movimento natural da cabeça, do corpo, dos olhos, olham para a imagem. E notam que ela reluz em sorrisos, como as pedrazinhas da imagem reluzem também. Conforme o lugar em que a pessoa está sentada, pequenas pedras se acendem em cor verde, vermelha, ou azul. A pessoa, então, se contenta e diz: “Oh! Nossa Senhora!”

É um carinho único que Ela tem para cada um de nós. Porque cada um é o filho único de Maria Santíssima. Ela é tão completa e tão perfeita como Mãe, que, a bem dizer, é como uma pessoa para cada filho. Nossa Senhora é Mãe do Unigênito, do Filho por excelência, e São Luís Grignion de Montfort gosta muito de considerar uma frase da Escritura: “Homo et homo natus est in Ea”(2). Ou seja, uma sucessão indefinida de homens nascerão d’Ela; gerando a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Virgem gerou para a vida espiritual todos os homens.

No Céu, isso poderá ser visto, e creio que quase se poderia fazer uma invocação especial de Nossa Senhora, ou até muitas invocações, para cada ser. Penso até que todos os seres no Paraíso cantam as invocações da Santíssima Virgem que lhe são próprias, as quais são as invocações da Igreja, mas com acento próprio de cada ser, e esse conjunto forma a harmonia dos coros celestes.

O assunto está preparado — dessa vez a preparação foi longa — para tratarmos da Sagrada Eucaristia.

O ato de piedade máximo — a recepção da Comunhão — deve repercutir, especialmente, em nossa alma

Se isto é assim com todos os atos da piedade católica, claro está que o será com o ato de piedade máximo: a participação da Santa Missa e a recepção da Comunhão.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, em que Nosso Senhor Jesus Cristo Se ofereceu como vítima expiatória por todos os homens; Ele, o Homem-Deus, Inocente, na sua natureza humana passou pelo castigo que Adão nos mereceu, e resgatou todos os homens.

No momento em que o sacerdote pronuncia as palavras da Consagração, a hóstia é consagrada, transubstanciando-se no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Da renovação deste sacrifício do Divino Redentor resulta esse dom inapreciável: a visita d’Ele às nossas almas.

O inefável da Sagrada Eucaristia sentido pela alma católica

Se Ele estivesse sensivelmente presente — realmente presente está —, e eu pudesse ver, por exemplo, um pequeno movimento de sua mão divina, e observar seu pulso, considerando que ali pulsa o Sagrado Coração de Jesus, uma vez que a pulsação do Coração se reflete nessas veias! Dessas pulsações divinas vive tudo quanto tem vida na ordem espiritual das coisas. Que respeito!

Se eu conseguisse, além disso, apalpar a orla de seu manto como aquela mulher que ficou curada ao tocá-la(3)! E se pudesse com esse ato atingir, num só momento, o grau de santidade que quereria obter, não era natural que eu rejubilasse inteiramente?

Recordo-me das palavras de um salmo e que acho uma beleza: “…se regozijarão os meus ossos humilhados”(4). Um indivíduo está reduzido a ossos, a uma caveira; pode ele estar numa situação mais baixa? Mas é dita uma palavra por Nosso Senhor e a caveira se refaz, ressuscita de júbilo!

As palavras d’Ele são de vida eterna. Ouvir uma palavra de Jesus! Ele está na Hóstia; eu não O vejo, mas creio.

Chega a hora de eu comungar, e Nosso Senhor vai estar realmente em mim.

Será que Ele não vai me dizer nada?

Sim, no interior de nossas almas, Ele dirá:
— Meu filho, quando dois estão juntos, um sente o outro. Será que quando Eu estou em ti não sentes nada? Ouve a linguagem silenciosa de minha presença, que não te fala aos ouvidos.

Às vezes, o silêncio diz de uma pessoa o que a expressão da fisionomia, as maneiras ou modo de ser, ou a palavra, não chegam a exprimir.

“Meu filho, tu sabes disso? Presta atenção em Mim! Eu estou em ti, a graça te fala. Tu não sentes nada?”

Assim é o inefável da Sagrada Eucaristia que a alma católica sente.

Posso dizer o que sinto.

É algo que comunica luz, amor, força. E permanece em nossa alma, embora para muitos pareça ser passageiro.

Então, pela Sagrada Comunhão, para os assuntos da Fé a inteligência fica mais perspicaz; quanto ao amor, torna-se mais aberto para tudo quanto é virtude; em relação à força fica-se mais pronto para tudo quanto é sacrifício, e a vontade de lutar se multiplica por si mesma.

Como uma Missa celebrada na Terra repercutirá no Céu?

Essa é uma hora de grande solenidade, para a qual devemos impostar a alma numa posição de veneração, gravidade e seriedade.

Eu não posso deixar de pensar, quando vai se aproximando a hora da Consagração, no que estará se passando de soleníssimo, festivo, vitorioso e grandioso no Céu neste momento. Que alegria e glória para Deus! Ainda que o Céu e a Terra tivessem sido criados para que houvesse uma só Missa, estava tudo justificado.

Ao se iniciar uma Missa, não estarão os Anjos — empregando uma linguagem antropomórfica — solenemente se preparando? Eu imagino que, nesse momento, o Céu deva estar como uma corte quando vai se realizar um ato mais grave e mais augusto do que a coroação de um rei.

Pouco depois do tilintar das campainhas, termina a Consagração, o Céu reluzirá de glórias.

A Santa Missa causa terror nos demônios!

Falei da comunicação das almas entre si na Terra. E também a respeito da comunicação mais perfeita das almas no Céu, bem como da visão beatífica. Entretanto, essas considerações ficariam incompletas se eu não acrescentasse o seguinte: embora, de certo modo, toda a Criação tenha sido considerada sumariamente, falta algo: o inferno.

Quando a Consagração se aproxima, eu imagino que o inferno fique aterrorizado, ele deve rugir de ódio e gostaria de fazer explodir o mundo para evitar que se celebrasse uma Missa. Ele sabe a derrota renovada que sofrerá.

A celebração eucarística relembra para Satanás o momento de sua derrota

A derrota dele se deu no momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo morreu e o gênero humano foi resgatado. Houve um sabá horrível lá embaixo, em que todos se agatanharam e se atormentaram em termos indizíveis.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício. E todas essas vergonhas para o demônio se acumulam.

A Alma santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, não abandonando jamais a união hipostática, foi ao limbo — com alegria prodigiosa de todos os justos, a começar por Adão e a coroar-se por São José — e levou todos para o Céu.

Podemos imaginar Jesus que, chegando ao limbo, falou para todos sobre a Redenção. Adão e Eva, que estavam esperando a milhares de anos… Santo Adão, Santa Eva aguardavam o momento em que aclamariam o Filho deles. Eles, pecadores, aclamando o Filho Redentor.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício. E todas essas vergonhas para o demônio se acumulam.

Quando a pessoa comunga, o demônio recua

Quando estivermos no Céu, talvez tenhamos algum conhecimento — que não nos molestará em nada — dos rugidos do inferno, e veremos o negrume hediondo, horrível, do mal; e então cantaremos com redobrado vigor porque estaremos esmagando os demônios.

O maligno faz tantas infiltrações nas almas, e as remexe sadicamente, porcamente, criminosamente. Quando a pessoa comunga, cresce nela essa luz do senso católico, essa força, esse amor; o demônio recua e fica torturado.

Ao se aproximar o momento de receber a Sagrada Eucaristia, podemos dizer contra o demônio: “Recuarás agora, bandido! Eu vou comungar!” De recuo em recuo, depois das expulsões provisórias chegará à expulsão total.

Aí estão as considerações que povoam a minha alma por ocasião da Comunhão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 13/11/1982)

1) As conferências de Dr. Plinio davam-se, normalmente, com a presença de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima.
2) Sl 86,5.
3) Cfr. Mc 5,25-31.
4) Sl 50,10.

Sobre o Tratado

A Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort, é uma “bomba atômica”, feita não para destruir, mas para dar vida. Deus a pôs nas mãos da Igreja em previsão das amarguras de nossa época.

Essa devoção — diz o Santo —, unindo o mundo a Nossa Senhora, une-o a Deus. No dia em que os homens conhecerem, apreciarem, viverem essa devoção, Nossa Senhora reinará em todos os corações e a face da terra será renovada.

Assim, confiamos imensamente mais na bomba atômica de Grignion de Montfort, e em seu poder, do que receamos a ação devastadora de todas as forças desencadeadas por mãos humanas!

O caminho da dor – I

A trajetória de um homem que ao longo de sua vida procura santificar-se é repleta de sofrimentos. Quem, à semelhança de Nosso Senhor, abraça com amor e resignação as cruzes que lhe advêm adquire têmpera moral, corrige-se de seus defeitos e chega à glória eterna.

 

Quais são as dores que uma pessoa precisa sofrer ao longo da vida?

A Providência permite que alguém, em determinado momento, sofra dores extraordinárias. Por exemplo, ser caluniado injustamente e, por causa disso, passar anos mal visto por todos aqueles a quem mais se admira.

Sacerdote caluniado por jansenistas

São Luís Grignion de Montfort, em uma de suas obras, menciona um padre, grande devoto de Nossa Senhora — para mim isso tem um luzimento parecido com o de uma canonização; ser elogiado por São Luís Grignion, enquanto grande devoto de Maria, é o auge dos auges.

Esse homem, que era muito bom padre, estava certo dia na sacristia para atender o público, quando lá entrou um dos meninos que serviam à igreja, o qual mexeu numa coisa qualquer, saiu correndo e dirigiu-se a uma rua ou praça, situada junto ao templo, gritando uma calúnia medonha, dizendo que o sacerdote tinha querido atentar contra a pureza dele.

Bastou esse menino, sem outras testemunhas, gritar na via pública tal calúnia, que se produziu na cidade uma emoção extraordinária. Embora esse padre fosse de vida muito digna, todos acreditaram na calúnia. O Bispo o privou dos cargos eclesiásticos, e o sacerdote, que possuía alguma coisinha para subsistir, durante dez anos viveu no horror e na rejeição de todo mundo. Dez anos se passaram, mas podia-se temer que isso durasse uma vida inteira…

Determinado dia, o Bispo se apresenta e lhe diz amavelmente: “Meu padre, faz favor, venha cá.” Ele se aproximou para beijar o anel do Bispo, o qual o abraçou. Vieram também outras pessoas as quais contaram que aquele menino, que se tornara moço, havia morrido. E, antes de falecer, diante de testemunhas, declarou que ele tinha feito aquela calúnia, pago por uma corrente teológica, na aparência católica, chamada jansenista, existente naquele local e que, aliás, tinha se espalhado como uma lepra por toda a Europa. Para difamar esse padre, que criticava muito aquela corrente, um dos seus chefes deu dinheiro ao menino.

Creio que a corrente interessada nisso — é opinião minha — mandou colocar gente próximo à igreja naquela hora, para acreditar imediatamente: “Oh! que horror! Mas imagine…”, e assim dar corpo à calúnia, a qual se difundiu como um mar sobre a cidade. E somente quando a Providência dispôs que esse menino, depois moço, mal à morte, dissesse a verdade — ele sabia que não podia ir para o Céu se não se retificasse, morreria em estado de pecado mortal e, com o inferno diante de si, acabou confessando —, o padre foi reabilitado. Mas foram dez anos terríveis.

Então, sobre um homem que levava sua vida normal de padre, com os sacrifícios inerentes à vida de sacerdote, de repente caiu como que um raio e estraçalhou-o durante algum tempo.

Madre Mariana de Jesus Torres padeceu tormentos do inferno

Creio que já narrei aqui a história da Madre Mariana de Jesus Torres, religiosa diante da qual se deu o milagre primeiro de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Quito, no Equador. Tendo sido eleita abadessa do seu convento, ela começou a governar com muita bondade — era uma pessoa de virtudes eminentes; espero que seja canonizada. Havia ali algumas freiras novas, que eram descendentes de índios. Como manda a Igreja, com toda a sabedoria e razão, não fazer segregação racial, essas filhas ou netas de índios foram recebidas no convento.

Entretanto, uma delas, que tinha vontade de ser abadessa, tramou a destituição de Madre Mariana de Jesus Torres e a substituição por ela mesma, criando um choque entre as freiras índias e as freiras espanholas ou descendentes de espanhóis. Houve então uma divisão entre as religiosas, e afinal de contas tornou-se abadessa essa revoltosa, ou uma freira dependente da revoltosa. E a primeira coisa que fez foi mandar prender Madre Mariana de Jesus Torres na prisão do convento, porque naquele tempo os conventos tinham cárceres. E Madre Mariana ficou muito tempo presa, injustamente.

Durante esse período, vivendo a pão e água, com toda a serenidade, ela rezava pela alma de sua perseguidora. E a Providência deu-lhe a entender que essa freira era tão ruim, estava tão comprometida que só havia um jeito de salvá-la: Madre Mariana de Jesus Torres deveria oferecer-se para, em espírito, passar cinco anos sofrendo, inclusive fisicamente, as chamas infernais. Uma coisa horrorosa!

Ela contou depois que, às vezes, durante esse tempo, pensava estar condenada de fato; mas ao mesmo tempo tinha a ideia um tanto contraditória de que ela sofria isto para salvar a alma da outra.

Ela então dizia: “Se eu estou condenada, que minha condenação sirva pelo menos para salvar minha inimiga. Considero meu sofrimento por bem empregado”. É belíssimo!

Durante esses cinco anos, Madre Mariana sofreu barbaramente. Terminado o prazo, foi libertada, saiu do inferno, voltou a paz para sua alma e ela foi reeleita abadessa.

A freira revoltosa adoeceu, e Madre Mariana tratou-a com a maior bondade possível, de maneira que aquela freira acabou reconhecendo que tinha andado mal, pediu perdão e faleceu. E Madre Mariana de Jesus Torres recebeu a revelação de que a alma dessa freira foi para o purgatório, onde deveria ficar por um prazo longuíssimo, se não me engano, até o fim do mundo. Uma coisa de assustar! Assim ela salvou essa alma.

Foi um sofrimento que a Providência pediu a Madre Mariana e ela aguentou.

Médico famoso que ficou cego repentinamente

Lembro-me de um médico de São Paulo, que era famoso e rico. Ele estava assistindo a corridas de cavalos; pôs o binóculo e começou a acompanhar o percurso dos equinos na pista. Em certo momento, não viu mais nada. Achou esquisito, tirou o binóculo e nada enxergava. Ficou cego de repente, devido a um deslocamento de retina.

Como era muito rico, ele contratou o melhor oculista de São Paulo para ir com ele à Europa — os grandes centros médicos, naquele tempo, eram exclusivamente os europeus; a América do Norte ainda tinha se destacado muito menos –, a fim de consultar os maiores oculistas. Para abreviar, não tinha mais solução; ele continuou cego e morreu vinte anos depois.

A vida de um verdadeiro católico é repleta de sofrimentos

Mas não é propriamente desses sofrimentos que vou tratar. Isso é fácil compreender; são episódios que ocorrem na vida de uma pessoa.

O problema é diferente: todo homem, mesmo que não lhe aconteçam coisas dessas, deve sofrer muito na vida. O curso comum da existência de um homem verdadeiramente católico, apostólico, romano, praticante, é cheio de sofrimento, primeiro ponto.

Segundo ponto: com esse sofrimento o homem atinge a têmpera moral que deve possuir. Terceiro: ele se corrige dos seus defeitos. Quarto: com isto pode chegar até a santidade.

De maneira que essas grandes tragédias, esses grandes sofrimentos, com frequência acontecem na vida dos santos. Um teólogo do século XIX fazia uma afirmação interessante: “Dai-me um frade que cumpre simplesmente a regra de sua Ordem e eu vos darei um santo”. Como? Sofrendo coisas extraordinárias? Não. Aguentando o duro da vida, como Deus quer.

Como é esse duro da vida? Como os presentes neste auditório estão mais próximos do começo da vida do que do fim, e as suas memórias só versam sobre esse início, falemos dele.

Uma criança desobedece a seus pais…

Desde pequena, a criança começa a ser partilhada entre dois impulsos contrários. Por um lado, ela quer muito bem a seus pais, gosta de ser acariciada por eles, etc. Mas, de outro lado, os progenitores lhe dão ordens: não faça tal coisa, faça tal outra.

No momento em que os pais lhe dão uma ordem, põe-se para ela um problema: “Se você quer realmente bem a seu pai e sua mãe, não fará o que eles estão proibindo; se fizer, vão ficar tristes. Mas ninguém proíbe uma pessoa de fazer algo que não seja gostoso. Porque, se não é gostoso, ela não faz, e se faz é porque acha gostoso. Você recebeu uma proibição… Como é isso?” É um não gostoso que se põe no caminho da criança. Então vem a questão da escolha.

Imaginemos o seguinte:
O pai ou a mãe diz à criança: “Somente suba na cadeira, para pegar o brinquedo que está em cima do armário, se houver uma pessoa mais velha para ajudá-la. Do contrário, não dou licença”. É-lhe explicada a razão evidente: se subir sozinha, terá que fazer certo esforço para alcançar o objeto, digamos um boneco, poderá cair e se machucar. A criança mais ou menos entende isso.

Seus pais saem de casa, a criança fica só e sente o desejo de apanhar o boneco para brincar com ele. Surge, então, em sua cabeça uma porção de pensamentos: “Meus pais não estão aqui; quando voltarem vão me ver brincar com o boneco… Mas eles não mais se lembrarão se o boneco estava em cima ou embaixo. Subo na cadeira, pego o boneco e depois coloco a cadeira no lugar em que estava; posso passar um bom tempo brincando com o boneco, porque eles me disseram que eu ficaria trancado neste quarto umas duas horas, até que voltassem”.

Em certo momento, a vontade de brincar com o boneco é tão grande que a criança empurra a cadeira, sobe e pega o boneco; e na hora de descer da cadeira, com o boneco nas mãos, a cadeira cambaleia, a criança tem um susto enorme, quase cai, mas dá um jeito e se equilibra.

…e vêm à sua mente algumas questões…

Ela começa a brincar e, depois do primeiro momento, vem à sua mente uma questão: “Eu deveria ter feito o que fiz?”

E uma reflexão desagradável: “Mamãe, chegando, ao ver que estou com o boneco aqui, é capaz de lembrar-se que ele estava em cima do armário, e notará minha desobediência. Quem sabe se seria melhor, para evitar o castigo, eu desobedecer uma segunda vez, subir na cadeira novamente e pôr o boneco lá em cima? Já andei mal uma vez… Quando faltar mais ou menos meia hora para meus pais voltarem, colocarei o boneco no lugar em que estava”.

Mas o pensamento continua: “Agora que você andou mal, aguente. Brinque com o boneco e quando eles chegarem você dirá: ‘Olha, me perdoem, eu peguei o boneco’. Eles vão se zangar com você, será uma coisa desagradável”.

A criança cessa de brincar e diz a si mesma: “Por que pensar nisso tudo? Falta uma hora e meia para eles voltarem. Quando faltar quinze minutos, vou resolver esse problema. Agora vou brincar”.

Ficam, então, na cabeça da criança três convites. Primeiro: agir bem, quer dizer, contar para os pais o que ela fez; segundo: agir mal, desobedecer mais uma vez e colocar o boneco em cima do armário; terceiro: não pensar no problema, a não ser no último momento, e brincar, ou seja, gozar a vida.

É possível que, conforme a psicologia da criança, esse problema do boneco estrague a tarde dela. Ela pode ainda pensar: “Seria melhor eu não ter desobedecido. Nunca mais vou desobedecer”, Mas depois lhe ocorre esta ideia: “Mas a vida fica tão cacete se eu nunca mais desobedecer que, de vez em quando, desobedecerei”.

…cuja solução significa um programa para sua vida

Conforme a decisão dessa criança, que pode ter quatro ou cinco anos de idade, ela traçou um programa para sua própria vida: Ela escolheu o prazer ou a dor.

Digamos que a criança desobedeça e coloque o boneco novamente em cima do armário; os pais regressam, nada percebem e encontram a criança alegre, a mãe trouxe-lhe um docinho, e o pai, uma revista para ela ver. Agradam a criança e a vida continua.

Mais tarde a criança pensa: “Valeu bem a pena enganá-los. Fiz o que eu não devia, ganhei presentes e passei uma tarde gostosa. Em alguns casos, talvez minha atitude dê errado, mas tantas vezes dará certo que vou fazer assim.”

E pode começar a existir uma dobra no espírito da criança, devido à qual vai ficando cada vez mais difícil para ela andar direito, e mais fácil andar mal. Ela vai inventando jeitos, habilidades para desobedecer, ideias novas, outras travessuras para fazer coisas mais gostosas; quer dizer, desobediências ainda maiores, por onde, praticando uma falta venial, pecado de criança, ela compra um prazer. E essa dobra vai se marcando cada vez mais.

A grande batalha pela castidade

Imaginemos dois tipos de crianças. Uma, que sempre pratica o bem e nunca desobedece aos pais. Outra, fazendo sempre o mal e desobedecendo de duas maneiras: ou pensando: “Eu quero fazer o mal”, ou não pensando, mas no fundo praticando o mal.

Elas chegam aos dez anos de idade, mais ou menos, quando começa a crise da puberdade e se apresenta a primeira tentação contra a pureza. Qual das duas crianças está preparada para travar a grande batalha pela castidade? A criança da travessura, que seguiu a escola do prazer? Ou a séria, que pensa nas coisas retamente, ama a verdade? Esta última, quando se lhe apresenta a tentação da impureza, diz: “Isso não pode ser!” Ela reage e não peca.

Mas quanto à outra criança, há noventa e nove probabilidades sobre cem de que, se lhe apresentando o prazer da impureza, ela peque. Ela está habituada a não se recusar nenhum prazer. No momento em que aparece um prazer que seduz os homens muito mais do que brinquedos de criança, ela está muito menos preparada para resistir àquela pressão. Resultado: ela cai. E vai ser um homem impuro, porque foi uma criança que não quis a dor.

Essa criança deveria ter sido séria e não ter levado as coisas na brincadeira; precisaria ter raciocinado: “Eu não quero o mal, mas o bem. Percebo que estou indo por uma via ruim que vai me conduzir para o inferno; não quero isso. Amo aos meus pais, mas sobretudo amo a Deus, a Nossa Senhora, não quero ofendê-los. E, por causa disso, não vou fazer uma ação má”. Então, ela começa uma luta.

Lutando contra si, ela se torna forte. Se a criança vence a crise da pureza, ao cabo de ter feito a batalha da castidade, ela se torna um herói. O homem que nunca pecou contra a pureza pode dizer: “Graças a Nossa Senhora, pelo favor que Ela me obteve de Deus, sou um herói”.

Se ela pecou contra a pureza, mas se arrepende, poderá dizer: “Sou um pecador regenerado e a graça de Deus pousou sobre mim, arrancou-me do charco imundo onde eu estava, levantou-me; minha alma hoje é pura, graças a Deus. Nossa Senhora, Virgem Puríssima, rogai por mim!”

Um osso partido, quando se consolida, fica mais forte no local da fratura do que nos outros pontos. Assim também, a pessoa que caiu em matéria de pureza, arrependeu-se e depois praticou a castidade, torna-se mais forte.

Dizer não para si mesmo e sim à voz da graça

Ao fim de uma longa existência, oitenta, noventa anos, se a pessoa viveu sempre assim, ao morrer, os braços de Deus estão abertos para ela. Nosso Senhor Jesus Cristo lhe sorri, ela vê no peito do Redentor o Sagrado Coração que pulsa de amor por ela. Nossa Senhora a afaga e a conduz junto ao Divino Salvador. Seu Anjo da guarda canta, há uma alegria em toda a corte celeste por uma alma que entra para o Céu. O objeto dessa alegria é ela, porque no fundo compreendeu que toda a prática da virtude é um dizer não para si mesmo, e sim à voz da graça, a qual nos convida a cumprir o dever.

A graça diz no interior da criança: “Obedeça a seu pai, a sua mãe; obedeça a Deus que ordenou honrar pai e mãe.” Sendo fiel à graça, ela vai se fortificando e resistindo a outras tentações. Por exemplo, uma criança que aprende a não brincar com os brinquedos não permitidos, aprende também a estudar nas horas em que deve. É claro, porque uma coisa é reversível na outra.

Aprendendo a estudar nas horas em que precisa estudar, ela vence a preguiça de pensa, a preguiça do trabalho mental, e se torna uma pessoa que gosta de ler um livro, estudar uma doutrina, e pode ser um homem inteligente e até célebre. Pode tornar-se um defensor da Fé.

Se a criança não estuda, fica com preguiça de estudar. No tempo de minha infância, conheci um menino que às vezes batia na testa e dizia: “Eu sou burro! Mas não tenho culpa de ser burro.” E pedia aos colegas para fazerem redação para ele, a fim de ele copiar com a letra dele e passar no exame. Os colegas o atendiam, mas eu, que o conhecia bem, sabia que ele era burro de preguiça, mas se fizesse esforço poderia tornar-se uma pessoa razoável. Entretanto, devido à preguiça, ficou fadado a ser burro a vida inteira.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1986)

As dores de Nossa Senhora

Depois de descrever a fisionomia moral da Mãe de Deus, Dr. Plinio considera os sofrimentos pelos quais passou a “Mulier dolorum” ao longo de toda a sua existência, em união com seu Unigênito. Tais considerações nos convidam a um exame de consciência feito com paz e inteira confiança na misericórdia divina.

 

Hoje é um dia muito significativo para nós, pois é a Festa das Sete Dores de Nossa Senhora.

Parece-me que não podemos deixar passar a ocasião sem dizer uma palavra a respeito.

”Mulier dolorum”

O que nós podemos considerar a respeito de Nossa Senhora e de suas dores, fundamentalmente, é o seguinte:
Enganam-se aqueles que julgam que a Virgem Maria teve em sua vida uma única ocasião de dor correspondente à Paixão e Morte de seu divino Filho. Esse momento foi realmente de uma dor suprema, a maior que jamais se tenha sentido no universo, abaixo da dor insondável de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua humanidade santíssima.

Foi uma dor tão grande que recapitulou todas as dores do universo. Tudo quanto os homens sofreram desde a queda de Adão e sofrerão até o último instante em que houver homens vivos na Terra, vai ser incomparavelmente menor do que a dor que Nossa Senhora sofreu.

Contudo, erraria quem pensasse que Ela padeceu essas dores durante a Paixão, mas fora daquele período não teria sofrido mais. E, portanto, sua vida viria transcorrendo calma, satisfeita, inundada pelo contentamento de ser Mãe do Salvador quando, de repente, chegou aquela dor lancinante que durou até a Ressurreição de Nosso Senhor, mas depois passou o sofrimento e Ela teve novamente uma vida alegre.

Na realidade isso não se deu e é um modo completamente equivocado de considerar as dores de Nossa Senhora.

Nosso Senhor Jesus Cristo foi chamado por um dos profetas — se não me engano, o profeta Isaías(1) — de “Vir dolorum”: o Varão das dores; o homem ao qual era próprio sofrer, que está cheio de dores e que trazia essas dores na sua alma santíssima durante toda a sua existência.

De maneira que a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo não foi um fato isolado na sua vida, mas o ápice de uma sequência enorme de dores que começaram desde o primeiro instante de seu ser e foram até o momento em que Ele exalou, num dilúvio de dores, o terrível “Consummatum est”(2). Durante todo esse tempo Ele continuamente sofreu.

Ora, como Nossa Senhora é o espelho da sabedoria, é espelho da justiça e Ela reflete em Si tudo o que é de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve-se dizer de Nossa Senhora que Ela foi a “Mulier dolorum”, a Mulher, a Dama das dores e que também Ela teve a sua vida inteira pervadida pela dor, pelo sofrimento.

É certo que essa dor teve proporção com as forças incalculáveis que a graça Lhe dava. Sem dúvida, foi uma dor imposta pela Providência e, portanto, por mais lancinante que tenha sido, não era dessas dores que produzem turbulência e provações que devastam e sujam a alma.

Eram dores imensas, mas muito arquitetônicas, muito sábias, recebidas com uma serenidade de alma admirável! De maneira que, assim como se atribui a Nosso Senhor essas palavras de Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amarissima”(3) — “Eis na paz a minha amargura muito amarga” —, também de Nossa Senhora se pode dizer: “Eis na paz a minha amargura amaríssima”. No meio de um oceano de dor, aquilo tudo equilibrado, raciocinado, refletido e suportado com amor e com estabilidade de alma incomparável, sem emoções exageradas.

Entrelaçamento das mais tremendas dores com as mais excelsas alegrias

Portanto, com uma quase infinidade de sofrimentos padecidos sem torcida, sem pânicos, mas com muito medo, com muita angústia e, em certas circunstâncias, até com um peso de dor que chegava quase a estraçalhar, a Santíssima Virgem foi durante a vida inteira uma grande sofredora. Entretanto, uma sofredora que teve momentos de alegria e, mais do que isso, Ela teve uma grande felicidade ao longo de toda a sua existência.

Ela também teve gáudios como nunca pessoa alguma teve. E todas as alegrias do mundo, desde o primeiro instante em que o homem foi criado no Paraíso, até o último momento em que haja homens na Terra, todas somadas não darão as grandes alegrias de Nossa Senhora.

Mas essas dores e alegrias se entrelaçavam continuamente e Ela vivia suportando o fardo dos mais tremendos padecimentos e, ao mesmo tempo, aliviada pelo bálsamo das mais excelsas alegrias. Assim vista a fisionomia moral insondavelmente santa de Maria, convém nos atermos especialmente às suas dores. Quais foram as dores de Nossa Senhora?

O tormento ao considerar os pecados dos homens

Antes mesmo de saber que seria a Mãe de Deus, Ela começou a sofrer uma dor que para uma alma zelosa é imensa e que atormentou incontáveis santos — creio ter afligido todos os santos ao longo da história — e que Nossa Senhora, naturalmente, teve em grau superlativo.

Concebida sem o pecado original, desde o primeiro instante do uso da razão, a Santíssima Virgem já iniciou sua vida mística. E teve conhecimento do pecado e de toda a infelicidade dos homens. Nutrindo pela glória de Deus tal zelo que daria mil vidas para evitar um pecado mortal, Ela passava por essa dor tremenda de ver a humanidade inteira imersa em pecados. Sofria ao considerar aquelas pessoas que morriam e cujas almas, em número enorme, caíam no inferno, ou então, quando não se condenavam, iam para a triste morada do “Sheol”, onde muitas já se encontravam há dezenas de séculos à espera de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além disso, Nossa Senhora viu os pecados cometidos por ocasião da vinda do Messias, e os que viriam depois do Salvador até o fim do mundo. E isso causava a Ela um tormento do qual não podemos ter ideia.

Houve um santo — eu não sei se foi Santo Inácio de Loyola — que disse o seguinte: se ele tivesse de viver a vida inteira simplesmente para evitar um pecado mortal de uma pessoa que depois fosse para o inferno, ele daria por bem empregados todos os sofrimentos de sua existência. Portanto, não para salvar aquela alma, mas para impedir de ser feita a Deus uma ofensa grave, de tal maneira o pecado mortal é um mal insondável.

Mas se era esse o pensamento de um santo, o que pensava Nossa Senhora, perto da Qual o maior santo é menos do que uma gota d’água comparada a todos os mares do mundo, menor que um grão de poeira em comparação a todos os universos? A santidade da Virgem Maria não tem proporção com nada. Nós não podemos fazer o cômputo da desproporção entre a santidade d’Ela e a de todos os anjos e santos reunidos. Assim, que tormento os pecados dos homens constituíam para Ela!

Dor diante da perspectiva e da realização da Paixão

A Santíssima Virgem recebeu, depois, a magnífica notícia de que seria a Mãe do Verbo encarnado. Podemos imaginar sua alegria ao adorar Jesus no primeiro momento em que Ela O concebeu por obra do Espírito Santo! Mas também sua dor ao pensar ser esse Messias o homem sofredor de que falara o profeta Isaías…

Segundo a opinião de alguns, antes dos trágicos acontecimentos da Paixão a Santíssima Virgem não tinha conhecimento da morte de Nosso Senhor na Cruz, e soube apenas no momento em que esta se deu. Eu não discuto a questão. É fora de dúvida que Ela, pelo profeta Isaías, sabia que seu Filho deveria sofrer dores inenarráveis.

Maria de Ágreda(4) conta que havia na casa de Nazaré um oratório onde, várias vezes, Nossa Senhora encontrou Jesus ajoelhado e suando sangue, na previsão de sua Paixão e da ingratidão com que os homens a receberiam.

Diante disso, que é tão verossímil, podemos imaginar a dor de Nossa Senhora vendo uma criança de cinco anos, depois de dez, mais tarde de quinze, depois um moço de vinte e, por fim, um homem já feito de vinte e cinco, e de trinta anos, ajoelhado frequentemente, a sofrer e a transpirar sangue face à perspectiva dos tormentos que viriam? Tanto mais Ela que amava Jesus, não apenas como uma mãe ama seu filho, mas como uma mãe ama seu Filho que é Deus!

Com certeza, Ela se prostrava perto de Nosso Senhor e sofria das dores d’Ele. E não é de admirar que Ela tenha suado sangue como Ele.

Ao iniciar-se a vida pública de Jesus, Nossa Senhora passa pela dor da separação. Começam os milagres, vêm as vitórias, é o momento da alegria. Mas, pouco depois, surge a ingratidão e prepara-se a tempestade de injustiças que desfechou na Paixão. Com tudo isso Ela sofria de um modo inenarrável! Se houve santos que desmaiaram ao receberem a revelação dos padecimentos do Salvador, podemos imaginar o que representava para Nossa Senhora o mínimo episódio da Paixão.

Por amor a nós, quis sacrificar o seu Filho Unigênito

Afinal, chega o momento da crucifixão, e as dores de Nosso Senhor atingem o seu paroxismo. E Maria Santíssima fica nessa alternativa: de um lado, desejar que Ele morra logo para diminuir as dores; de outro, que sua vida ainda se prolongue, em primeiro lugar porque toda mãe anseia por prolongar a vida de seu filho e, em segundo lugar, pela ideia de que assim Ele sofreria mais e os pobres pecadores seriam mais favorecidos.

Ela, então, concorda com o prolongamento desse sofrimento e firma o propósito de aceitar que Nosso Senhor seja imolado apenas naquela hora extrema, com todas as dores que Ele tivesse de sofrer.

Ela, Rainha do Céu e da Terra, com uma palavra poderia encerrar todos os sofrimentos expulsando os demônios e toda aquela gente que estava lá. Mas, para a salvação das nossas almas, Ela quis deixar aqueles algozes ali.

Apenas uma ou outra situação extrema Ela evitou. Conta Maria de Ágreda que o demônio havia arquitetado o seguinte projeto: quando Nosso Senhor fosse erguido no alto da Cruz e começasse a sua agonia, em determinado momento, derrubar a Cruz no chão, de maneira que a Sagrada Face batesse na terra e se despedaçasse. Mas Nossa Senhora, diante do excesso de ignominia de uma intenção como essa, proibiu o demônio de realizá-la.

Agora, por que Ela deixou o demônio fazer todo o resto? Porque amava tanto a salvação de nossas almas — mas da alma de cada um de nós — a ponto de querer que o Filho d’Ela passasse por tudo aquilo para, por exemplo, eu não ir para o inferno. E Ela ama de tal maneira a minha alma e a de cada um dos senhores que, ainda que houvesse um só dos senhores para ser salvo naquele dilúvio de dores, Ela quereria que seu divino Filho sofresse aqueles tormentos para salvar essa alma.

Imaginem, por exemplo, Nossa Senhora vendo a coroa de espinhos penetrar na fronte sagrada de Nosso Senhor e produzir lesões nervosas que faziam o seu Corpo estremecer em meio a todas aquelas dores que Ele já padecia. Contemplar o Sangue escorrendo de todos os lados, a sede tremenda, a febre altíssima, os estertores de todo o Corpo.

A Santíssima Virgem conhecia e media tudo isso. Entretanto, queria que fosse assim. Ela era como um sacerdote que imolava a Vítima divina no alto do Calvário. E se era esse o preço de uma alma, Ela desejava que o Filho d’Ela sofresse o que estava sofrendo para conquistar uma alma.

A grandeza de Nossa Senhora não está tanto na enormidade das dores padecidas, quanto no fato de ter Ela querido sofrer o que sofreu. Ela quis que o Filho d’Ela realizasse esse sacrifício tremendo e admirável, e fez isso por amor a nós. Porque Deus nos amou a ponto de querer sacrificar o seu Unigênito, Ela nos amou tanto que aderiu a essa função sacrifical, e quis sacrificar por cada um de nós o seu Filho Unigênito.

Um exame de consciência

A Semana Santa está se aproximando e é o momento de cada um de nós fazer, individualmente, uma meditação a esse respeito. Por mais que o homem pense, ele não pode deixar de se nutrir dessa reflexão que nunca deve bastar para a alma católica.

Colocar-se, portanto, sozinho frente a um Crucifixo ou diante de uma imagem de Nossa Senhora das Dores, e esquecer o restante do mundo. Porque diante de Deus, o mundo inteiro para mim não existe. E então fazer-me esta pergunta: Eu, Plinio, tenho consciência do preço da minha salvação? Todas as graças que eu tenho recebido, eu faço ideia dos gemidos e das dores que elas custaram e do que causaram no Coração Imaculado de Maria?

Eu tenho ideia de que tudo quanto se passou no Gólgota de tal maneira visava a minha salvação que se teria realizado ainda que eu fosse o único beneficiado?

Eu estou compenetrado de que no alto da Cruz Nosso Senhor Jesus Cristo pensou nominalmente em cada homem, desde o começo do mundo até aqui? E que, portanto, passou pela mente divina d’Ele, com pensamento de misericórdia, de bondade e de salvação, o nome de Plinio Corrêa de Oliveira? E que Ele teve em vista não apenas meu nome, mas viu minha alma, minha pessoa, o meu ser, e amou o meu ser por Ele criado e, num ato de amor a meu ser, fez aquele sacrifício para eu ir para o Céu?

Dou-me conta de que a minha salvação custou tudo isso?!

E como tenho eu correspondido a tantos benefícios? Qual tem sido minha ingratidão? Quantas faltas cometidas, muitas vezes por imprudência! Simplesmente por não querer evitar uma ocasião, por não fazer uma pequena mortificação, eu peguei o Sangue de Cristo e o joguei na sarjeta! Apesar desse Sangue derramado em meu favor, eu me pus em condição de perdição.

Entretanto, Deus me tolerou nessa vida, me suportou e me esperou com outras graças ainda maiores do que aquelas já recebidas.

A Semana Santa é uma ocasião de graças para cada um de nós. O flanco de Nosso Senhor Jesus Cristo está aberto, jorrando misericórdia para todos nós e nos chamando à contrição, à penitência, à reconciliação magnífica com Ele. Há uma efusão de bondades e de carinho para conosco como jamais poderíamos imaginar!

Portanto, minha primeira preocupação na Semana Santa deve ser a de pensar em minha alma. Pensar sem temor, sem pânico, porque Deus é Pai de misericórdia e Nossa Senhora é a Mãe e o canal de todas as misericórdias. Mas pensar com seriedade, a fundo, colocar-me diante desse Sangue de Cristo que corre e perguntar-me: O que fiz eu desse Sangue?

Junto à Cruz como São João Evangelista

Nosso Senhor pensou em tantas almas que haviam de desprezar o Sangue d’Ele levianamente, estupidamente, a propósito de uma ninharia, de uma bagatela: pela risada de uma criada, como São Pedro, por trinta dinheiros como Judas, por preguiça e vontade de dormir como os outros Apóstolos, por medo, por oportunismo, por sensualidade, enfim, por quantas coisas as almas haveriam de rejeitá-Lo!

Mas isso ainda é pouco. Nosso Senhor teve em vista, e Nossa Senhora também, todas as traições, todos os abandonos, tudo quanto almas sacerdotais O fariam sofrer.

Davi tem essa queixa em relação a um amigo que fez mal a ele: “Se outrem me fizesse isso eu não me queixaria. Mas tu, um outro eu mesmo, que comigo comias doces alimentos?!”(5)

Tudo isso foi visto. Mas também foram considerados com amor aqueles que, por uma graça especial conquistada por esse Sangue infinitamente precioso, seriam fiéis e estariam junto à Cruz como São João Evangelista.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1967)

1) Is 53, 3.
2) Jo 19, 30.
3) Is 38, 17 (Vulgata).
4) Maria de Jesus de Ágreda (1602-1665). Religiosa e mística espanhola da Ordem da Imaculada Conceição. Em uma de suas principais obras, “Mística ciudad de Dios”, narra as revelações recebidas da Virgem Santíssima.
5) Cf. Sl 54, 13-15 (Vulgata).

Um reto caminho para a santidade…

A retidão está no âmago de todas as outras virtudes; sem ela,  pequenos defeitos tornam-se monstros gigantescos.

 

Para entendermos o que é a retidão, comecemos tratando a respeito do contrário dela: a falsidade. A falsidade do homem para consigo mesmo, para com os outros e para com Deus, de si, é repelente.

Por falta de retidão, um pequeno problema pode tornar-se gigante

Quando uma alma recebe graças de Nossa Senhora, ela é muitas vezes tocada tão a fundo que o demônio fica impossibilitado de agir sobre ela. Quando este percebe tal impossibilidade, ele propõe, então, a falta de retidão. Quer dizer, um compromisso, um arranjo, um meio-termo, em função do qual a alma, sem abandonar aquilo que amou, passa a amar aquilo que abandonou. Não há aí um jogo de palavras; vou dar um exemplo, para que o tema seja bem entendido.

Uma pessoa tem um problema que não quer ver nem explicitar para si mesma; e isto lhe dá um misto de prazer e sofrimento, no qual ela se deixa refocilar, pelo gosto de ter uma encrenca, pela satisfação da coisa mal explicada dentro da alma. E, por falta de retidão, o micróbio que ela possui na própria alma se transforma numa cobra, a qual pode vir a ser uma sucuri. Ao cabo de um, dois, cinco anos ela está numa crise, e numa crise enorme. Qual foi a origem dessa crise?

Quem desvia os passos do caminho reto é levado para onde não quer ir…

O ponto inicial foi um problema para o qual a pessoa não quis abrir os olhos; a respeito do qual ela não quis abrir-se para alguém, nem ouvir um conselho ou receber uma refutação. Ela desviou seus passos do caminho reto, o qual seria o seguinte:

Primeiro, reconhecer: “Tal ponto constitui em mim uma dificuldade”. Segundo: “Não posso continuar assim. Tenho que me abrir com alguém, e rezar a Nossa Senhora para ver claro”. Terceiro: “Ainda que eu não veja claro, minha fidelidade em nada se abala, porque quanto mais demorar, tanto mais claramente eu verei um dia. Debaixo deste cupim colocado no chão, onde eu não consigo ver nada, um sol está nascendo para me iluminar no futuro”.

Mas se a pessoa sai da verdadeira via, ela começa a andar no oblíquo, e do oblíquo ela derrapa para longe. Se o demônio a tivesse tentado num ponto onde ela adere muito, a pessoa teria rejeitado; entretanto, ele a tenta num ponto pequeno e inicia-se assim o caminho oblíquo. Não é o caminho para baixo, direto para o inferno, mas oblíquo intencionalmente: cada passo a afasta mais um pouco; ao cabo de algum tempo, a pessoa foi levada longe, aonde não queria. Por que ela foi levada longe? Porque lhe faltou a retidão.

Assim somos nós com quase todos os nossos defeitos. Para dizer pouco, não gostamos de olhá-los de frente e, quando os analisamos, só reconhecemos os que saltam aos olhos e não podem ser negados. Entretanto, não abrimos inteiramente o mapa de nossa mentalidade; não temos a coragem de nos censurar de frente e totalmente, procurando as agravantes, ponto por ponto, implacavelmente.

A retidão de uma alma que reconheceu suas faltas

Um famoso escritor francês do século XIX, Louis Veuillot, escreveu um livro com o título “Le parfum de Rome — O perfume de Roma”. Referia-se à Roma pré-garibaldina, anterior aos Saboias; a Roma magnífica do tempo em que os Papas eram reis da Cidade Eterna e de uma província vizinha que formavam os Estados Pontifícios.

Conta Veuillot que, em Roma, ele visitou uma velha basílica a qual o encantou; percorreu-a por dentro e por fora. Passando detrás do templo, numa pedra que fazia parte do fundamento de seu muro externo, ele notou que alguma coisa estava escrita.

Então ele se agachou para olhar e verificou que estava escrito o seguinte: “No dia tal de tal ano pequei! Meu Deus, tenha pena de mim! No dia tal pequei de novo! Meu Deus, tenha pena de mim! Dia tal não pequei, graças a Deus!” Assim, caindo em pecado ou se mantendo em estado de graça, essa alma tinha escrito o seu diário espiritual.

E, um belo dia, ela anotou o seguinte: “Meu Deus, há tanto tempo — digamos seis meses, um ano — eu não peco! “Gloria in excelsis Deo” — Glória a Deus no mais alto dos Céus!” Louis Veuillot fez, a este propósito, um comentário magnífico, dizendo que se ele tivesse encontrado sangue de mártires naquela pedra, não a teria venerado mais do que o fez ao ver esse itinerário que exprimia o sacrifício de uma alma para se libertar de um pecado e readquirir o estado de graça.

Humildade e admiração: frutos da retidão

Isso nos mostra exatamente o que é a retidão. Trata-se de uma alma que o tempo inteiro analisou-se como era e se increpou como merecia. E teve humildade: “Como eu sou torto e errado! Minha Mãe, que estais no mais alto dos Céus, bem junto a Deus, como Vós sois diferente de mim!” Nesse abismo de diferença, ergue-se uma coluna de incenso, de encanto e de admiração.

Quando sabemos increpar os nossos próprios defeitos, nos tornamos capazes de admirar. Porque, quando vemos o mal que há em nós, podemos admirar o bem que não há em nós; assim nós temos admiração sem inveja. Então, do fundo da nossa miséria, sobe aquela coluna de incenso: “Minha Mãe, eu me dobro diante de Vós, não só por execração aos meus defeitos, mas por um corolário necessário dessa execração: a admiração de vossas qualidades”.

Mas quando uma pessoa não tem a coragem de olhar de frente para seu próprio defeito, ela não é capaz de admirar. E o defeito pelo qual não se olha bem a própria alma chama-se falta de retidão. A virtude pela qual nós nos vemos como somos, e admiramos quem não é como nós, chama-se retidão.

A retidão do Imaculado Coração de Maria

A retidão é a integridade por onde a alma realiza tudo quanto deve, e como deve, sem delongas, sem tapeação, sem protelação; e o faz total e inteiramente, ainda que, devido à fraqueza humana, caindo, mas pedindo perdão e se levantando, dizendo a verdade para si mesma. Desta virtude da retidão nascem as famílias de alma retas, das quais surgem as grandes correntes de retidão dentro da História; tudo isso é um reflexo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, eu diria, do retíssimo Coração de Maria.

Alguém perguntará: “Mas haverá um símbolo que fale da retidão do Imaculado Coração de Maria?” Sim. É o Coração da Virgem transpassado por sete espadas, representando suas sete dores, que poderiam ser chamadas as sete retidões.

Sete é um número simbólico na Escritura, que indica totalidade. “As Sete Dores de Nossa Senhora” simbolizam as principais, não as únicas.

Assim também podemos dizer que cada espada retilínea foi uma posição firme e reta que Ela tomou diante de tudo. De todas as suas “retilineidades” veio toda a sua dor. E toda a sua dor Lhe veio porque tinha retidão. Maria Santíssima olhou tudo de frente, sofreu e foi até o fim!

Para sermos retos, não devemos olhar para nossas qualidades

O que se passa com os nossos defeitos que não queremos ver de frente, ocorre também com os nossos sofrimentos.

Poucas pessoas têm a coragem de pôr diante de si a ideia seguinte: a vida é um vale de lágrimas, para usar uma expressão mais rigorosa, um campo de batalha. Portanto, só vive uma vida digna de ser vivida quem luta contra o mal, a favor do bem, e se expõe a todos os sofrimentos inerentes à luta! E, então, observa as coisas como o guerreiro dirige seu olhar para o adversário: olha de frente e desfere o golpe.

Outra condição para possuir a virtude da retidão é não olhar para as próprias qualidades. Olhando-as, a pessoa as perde. O melhor meio de perder uma qualidade é olhar para ela. O melhor meio de perder um defeito é olhar para ele.

Por falta de retidão, as pessoas formam uma ideia falsa a seu próprio respeito

A maior parte das pessoas tem preguiça de pensar, e, por causa disso, não prestam real atenção em si mesmas. Fazem, então, uma análise incompleta de si. E a análise incompleta de si própria tem dois aspectos: a pessoa não olha inteiramente seus defeitos e, por causa disso, cai num outro erro, também por falta de retidão: ela começa a imaginar que tem qualidades que não possui. Porque quem não quer ver os defeitos que tem, imagina possuir qualidades que não tem. É forçoso.

A partir desse momento, ela forma uma ideia falsa a seu próprio respeito. Formando uma ideia falsa de sua pessoa, segue um itinerário errado na vida. Quem, por exemplo, está andando de bicicleta e imagina-se num automóvel, não pode chegar ao termo da viagem. Quem tem automóvel e pensa que este é um tanque de guerra, dirige-o de tal maneira que ele se espandonga inteiramente. Nós somos o veículo de nós mesmos ao longo da vida, e se cada um não sabe que tipo de veículo é, como pode bem dirigir-se a si próprio, de maneira a chegar até ao fim da vida?

As frustrações de quem vive um sonho

Por causa disso o indivíduo cai num erro pior do que os outros: começa a viver uma vida que não era para ele. Então dá tudo errado. O indivíduo sonha ter uma vida que não é para ele; e vive a vida que ele não sonhou, porque nessa situação ninguém realiza o próprio sonho. Nota que está tudo torto dentro de si, porque percebe que ele é outro. E tem frustrações horrorosas.

Lembro-me de um velho senhor que conheci, o qual era muito distinto de maneiras e agradável de trato. Eu o vi, num dia de calor, sentado junto a uma mesa, com o aspecto mais emburrado e desagradado que possa haver. De vez em quando, ele retirava seu relógio do bolso, o olhava e o guardava novamente. Eu francamente fiquei com medo de que ele quisesse se suicidar. Então, com o desejo de ser-lhe útil e para aliviar um pouco sua vida, me aproximei dele e perguntei:

— O senhor precisaria de alguma coisa?
Ele levantou a cabeça e me disse:
— Você não sabe o que é a vida.
Eu era muito mais moço que ele; tinha uns vinte e dois anos.
— Você pensa que sabe o que é a vida, mas você não sabe. Cada vez que eu tiro o relógio, não consigo ver o quadrante dele, porque aos meus olhos se apresenta a figura de algo de irreal que sonhei.

E quando eu vou verificar a hora, consulto as velhas reminiscências dos meus sonhos que não se realizaram, e por causa disso me desespero dessa maneira.

Achei aquilo uma coisa terrível. Era o horror da falta de retidão.

Duas reações diante de tal problema

Diante do que estou dizendo, alguém poderia ter a seguinte reação: “Isto mexe tanto com os fundos de minha moleza e do meu amor-próprio, que eu não tenho nenhuma coragem de fazer o que Dr. Plinio está recomendando. Portanto, eu ouço o que ele diz, não contesto, mas, sobretudo, não adiro; e saio daqui como entrei”.

Essa pessoa, máxime depois do que estou explicando, compreende que se pede pouco para ela. É que ela acuse a si mesma, eventualmente em Confissão — mas não se trata aqui de questão de Confissão —, acuse a si mesma o defeito que vê, com todas as agravantes. Não estou pedindo que ela olhe desde logo até o fundo de sua alma, mas observe o que está ao alcance de seu olhar, e o descreva para si mesma com clareza. De camada em camada, de defeito em defeito ela chegará até a profundidade e acabará vendo-se totalmente.

A Providência se serve de modos variados para fazer cessar os nossos defeitos. Às vezes, eles cessam como não imaginávamos. Desde que peçamos, conseguimos, por assim dizer, o absurdo. E se não corrigimos os nossos defeitos é porque, no fundo, não temos retidão.

Para reparar seus pecados, Santo Agostinho escreve as “Confissões”

Em suas “Confissões”, Santo Agostinho narra que, em certa ocasião, estava sozinho e angustiado. Ele era gnóstico, corrupto, tinha um filho ilegítimo. Era, portanto, herege e impuro. De repente, ele ouve uma voz interior que lhe diz: “Tolle lege! tolle lege! — Toma e lê! Toma e lê!” Era a voz de Deus mandando que ele lesse, se não me engano, um livro da Escritura. Ele faz a leitura e encontra um trecho que resolvia o seu problema. A partir daquele momento ele se converteu, e depois se tornou o grande Doutor da Igreja.

Esse Doutor da Igreja, para castigar-se dos pecados que cometeu, escreveu essa biografia à qual deu o título de “Confissões”, para se confessar a si próprio diante do mundo inteiro pelos seus defeitos. E a morte dele foi a mais bela morte de penitente, que se possa imaginar. Elevado a Bispo da cidade de Hipona, ele foi um luminar na Igreja Católica.

Hipona, situada no Norte da África, era uma cidade de cultura e língua romanas, que estava cercada pelos vândalos, os quais vieram da Germânia, atravessaram a França, a Espanha e desceram pela África, e sitiaram várias cidades que encontravam pelo caminho. Hipona ia ser tomada por eles, e Santo Agostinho, moribundo, provavelmente já com a vista enfraquecida, mandou que os Salmos Penitenciais fossem escritos numa parede diante do seu leito, em letras bem grandes, para ele poder ler. E ele, então, no fim de sua vida, lia os Salmos pedindo perdão, para ser recebido por Nossa Senhora.

Foi uma alma que com muita retidão e lealdade se examinou a si mesma, e confiou na misericórdia de Maria Santíssima. A essa alma as portas do Céu se abriram e ele entrou pelo eixo reto que conduz a Deus. Por quê? Porque ele tinha sido reto durante a vida.

A alma reta que comparece diante de Deus

Linda frase a respeito da retidão é a de São Paulo: “Bonum certamen certavi cursum consummavi fidem servavi — Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé” (2 Tm 4, 7). Não pode haver coisa mais bonita do que um homem olhar para o decorrer de sua vida e dizer isto. Em latim, ao pé da letra, “bonum certamen certavi” não quer dizer “eu travei um bom combate”, mas “combati todo o bom combate que eu tinha que combater”. “Cursum consummavi” significa “percorri todo caminho longo e difícil que eu tinha que percorrer”; ou seja, “fui reto”. Combatendo, combateu tudo. Tendo que percorrer o caminho, percorreu-o inteiro. E com a calma, a paz de espírito dos retos, o Apóstolo se voltava para Deus e dizia: “Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia” (2 Tm 4, 8). E o recebeu! Esse é o modo de expirar da alma reta. Ou é na penitência confiante de Santo Agostinho, ou nessa quase respeitosa cobrança de cheque de São Paulo: “Eu paguei, meu Deus! Chegou a hora dos vossos juros! Eu entro na eternidade”. É uma beleza!

Não se sabe qual é a mais bonita das duas formas de morte reta.

Nossa Senhora, exemplo de retidão

Consideremos também a retidão de Nossa Senhora, pura criatura concebida sem pecado original! Qual foi o primeiro momento em que Maria Santíssima soube que Jesus seria crucificado? Ela certamente o conheceu pelas Escrituras, porque possuía uma visão, um conhecimento lucidíssimo da Bíblia. E, como Esposa do Espírito Santo, Ela não se tornou Mestra infalível, mas era pessoalmente infalível, não caia mais em erro.

Ela acompanhava cada passo da vida de Jesus, ciente de todos os horrores que iriam acontecer até o momento da morte d’Ele na Cruz, em que o Padre Eterno pediu-Lhe, como Mãe e Senhora do Filho, que Ela consentisse na morte d’Ele. E Ela, no meio das agonias de Jesus, disse mais uma vez: “Faça-se n’Ele segundo a vossa palavra!” Quer dizer, Ela levou retilineamente o sacrifício até o fim.

Depois Nossa Senhora recebeu em suas mãos o cadáver d’Aquele que é a própria Retidão, o fruto do consentimento que Ela havia dado. Através da morte Ele nos deu a vida; era a vitória esplendorosa dentro do esmagamento completo.

Podemos, então, perceber e amar o “pulchrum” da retidão; e compreender como se consegue obtê-la. Dirijamos nossas orações desta noite a Nossa Senhora, pedindo que Ela nos obtenha a virtude da retidão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Oração da alma reta

Minha Mãe, se é verdade que, infelizmente, permaneço com este defeito, consegui, pelo menos, vê-lo e detestá-lo por inteiro! Eu me inclino diante de Vós e Vos peço perdão porque pequei e andei mal. Dai-me vossa misericórdia e vossa ajuda!

Estou certo de que virá o dia no qual Vós tereis pena de mim e me atendereis! Então, depois de tanto me humilhar, bater no peito e detestar minha maldade, acabará nascendo em mim uma luz, uma força, uma capacidade de me modificar, por onde me sentirei outro; e, de repente, estarei felizmente resgatado, livre do defeito que eu tinha.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

O mais belo mar! — III

Depois de nos fazer velejar pelos mares da Filosofia, Dr. Plinio chega ao auge de sua conferência. Ao concluí-la, ele descreve  as diversas espécies de raciocínio mostrando o papel da abstração  no conhecimento humano.

 

Dou tornar mais concreto o meu pensamento. Quando cogitamos em nosso pai Adão e em nossa mãe Eva, pensamos no pecado. Mas não devemos pensar neles só por ocasião do pecado, mas antes do pecado.

Adão e Eva: duas cordas de um alaúde

Adão e Eva continham todo o gênero humano, como a árvore contém os frutos. Por causa disso o pecado deles foi o pecado do gênero humano. Mais ou menos parecido ao que ocorre com uma árvore atingida por uma doença: adoecem os frutos que vão nascer. O fruto ainda não foi concebido na árvore, mas nasce doentio porque a árvore está enferma.

Devemos, então, imaginá-los como eles eram antes do pecado: inocentes e tinham em si, em gérmen, todas as qualidades que o gênero humano iria possuir, até o fim do mundo. Eles eram, portanto, inteligentíssimos, inocentíssimos, retíssimos, pulquérrimos, distintíssimos, nobilíssimos, autoritários, amenos e gentis.

Se cada homem conseguisse contemplar Adão e Eva na sua inocência, poderia, como que, reconhecer-se a si próprio em um veio da personalidade deles, levado a um grau de esplendor originário e extraordinário! Adão era como que o homem dos homens, no qual havia a raiz de todos os homens, daquele Homem que havia de superá-lo tanto: a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E Eva, a mulher das mulheres, contendo em si todas as variedades possíveis de mulheres, com todos os seus charmes, mas, sobretudo, d’Aquela que por vontade de Deus a superaria tanto: Nossa Senhora.

Poder-se-ia dizer que Adão e Eva eram como duas cordas de um alaúde: Deus tocando a masculinidade emitiria o som “Jesus”, e tocando a feminilidade, o som “Maria”! O dedo de Deus tem incomparavelmente mais poder do que uma corda inerte ou tocada pelos ventos. É sabido que certas harpas se deixam tocar pelos ventos. Mas o dedo de Deus extrai de uma harpa uma harmonia que ninguém consegue tirar.

Para dar uma noção do que é ideia abstrata, digo que esta seria como que um Adão e uma Eva de todo o gênero. A ideia abstrata de navio, bem concebida, não se reduz ao seco que apresentei, mas à soma do seco que indiquei com aquilo que ficou no fundo de minha imaginação, quando virei todo o meu caleidoscópio a respeito dos navios.

Complemento cultural da abstração

Então nós agarramos a ideia abstrata e nos deleitamos.

Seria como alguém que, vendo uma bolha de sabão na minha mão, não a furasse, mas me dissesse: “Dr. Plínio, sabe o que é essa bolha? É água cristalina de tal fonte, misturada com o melhor e o mais perfumado dos sabonetes: o “Pears” da Inglaterra!” Ele definiu a bolha sem estourá-la. E para o meu espírito foi um lucro saber o que era aquela bolha.

Não sei se estou conseguindo fazer andar esse barco complicado…

A bolha de sabão é feita de água e de sabão, dois elementos tão comuns que formam uma casca tão ligeira, uma esfera tão perfeita, maravilhosa. Ela como que se estende e constitui uma espécie de membrana tão delicada, que eu nunca pensei que dormisse na água a possibilidade de se deixar “membranar” assim por um pouquinho de sabão. “Ó cristal! Água, como eu te entendo melhor! Sabão, que benemérito!” E, sentindo um pouco do bom perfume do “Pears” inglês, eu digo: “Ah! Categoria! Classe!”

Sem estourar a bolha, eu lucrei. Então o que é o estourar?

Um indivíduo com espírito “ploc-ploc(1)” fura a bolha e diz: “Está vendo? Não era senão água e sabão! Quá-quá-quá”. Esse é um celerado porque destruiu uma coisa bela. Mas, sobretudo porque ele mentiu. Pois a bolha não se reduz a simples água e sabão; senão qualquer água com sabão, que está escorrendo dentro da pia, seria bolha.

A bolha é água com sabão mais certa relação de ambos, própria a sofrer do ar uma pressão por onde ela se mantém coesa em forma esférica. Eu dei a definição.

Mas não é apenas isto. A bolha é água com sabão mais algo.

Quanto à definição de barco que apresentei, a mentira está no seguinte: o barco se reduz àquela definição. Porque seria uma substância — vou usar uma expressão filosófica — sem acidentes, uma coisa sem predicados, sem qualidades. Nada existe sem qualidades.

Barco não é só isto! De fato, todas as espécies possíveis de barcos estão contidas na definição. É uma coisa diferente, um jogo diverso.

Então qual é a definição verdadeira? Eu completo agora a definição de barco com um pressuposto: é um veículo aquático destinado ao transporte de homens, mercadorias e, digamos, correspondência. Está bem! Eu acrescentaria algo que filosoficamente não é preciso, porque está subentendido; eu completaria dizendo o seguinte: variável indefinidamente, segundo as mentalidades e os lugares.

Assim, os que estão neste auditório estariam reconciliados com a definição. Ela não lhes pareceria mais “ploc-ploc”; sentiriam o Bucentauro pendurado no ponto final da frase.

Por que a definição não contém esse acréscimo? Porque está pressuposto! Tudo quanto existe nesta Terra fugidia é variável ao infinito, segundo as circunstâncias de tempo e de lugar. Então o barco não se reduz a isto, mas é isto com todas as suas variabilidades. Está pego algo, sem o qual uma pessoa não entenderia o que é barco.

Dessa forma, fica expresso qual é o complemento cultural da abstração. Com isso bem entendido, demos um passo no caminho da Metafísica.

O que é a Metafísica aqui? Notem que o conceito de barco contém, portanto, todos os graus de perfeição e de excelência que uma embarcação pode abranger, e se une à imagem do barco dos barcos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, há também barcos furados, rachados, grotescos; por que tais barcos cheios de defeitos não estão contidos na definição?” Respondo: Porque não fazem parte da definição! O barco rachado, por exemplo, em algo escapa à categoria de barco. Quem fabricasse um barco rachado não poderia dizer que construiu um barco, porque não é destinado à navegação. Posto na água, ele vai ao fundo.

Quer dizer, os defeitos da coisa são o contrário da sua natureza; o que está conforme com a natureza de uma coisa são as qualidades dela.

O raciocínio é mais belo quando ele é rápido como um corisco

Será bem verdade que o conceito de barco nasceu em minha mente só depois de eu pensar numa porção deles? Eu apresentei assim, e é verdade. Mas a verdade é só essa? Vejo um barco e me encanto, depois observo outro e prefiro este ao primeiro; faço essa comparação porque, no fundo, já formei um conceito abstrato de barco. Se eu digo que um barco é melhor do que outro, é porque fiz antes uma ideia subconsciente de como é o barco teoricamente e comparei os dois com o barco teórico.

Ou seja, eu não seria capaz de comparar os dois barcos se, de um modo subconsciente, eu já não tivesse feito, no primeiro olhar, aquela ideia que vai aflorar ao final da minha longa elucubração explicitamente.

Rápido como um clarão; não percebi que raciocinei. No total, quando eu raciocinei talvez estivesse esfregando os olhos ou caçando um mosquito. Mas meu raciocínio pegou logo. Aliás, essa é uma das belezas do raciocínio.

O raciocínio é muito bonito quando sobe uma longa escada majestosa e chega até suas conclusões. Mas como é mais belo quando ele é como um corisco! A pessoa nem teve tempo de perceber os vários elementos que o constituíram, e chega à conclusão. Um fulgor!

Seres criados desde todo o sempre

Passemos para outro ponto.

A respeito de tudo que vejo na Terra, formo ideias abstratas: cadeira, mesa, barco, pão, homem, espada, lustre. Ao que me conduzem essas ideias?

Pela superposição das figuras do meu caleidoscópio, formei uma ideia de cadeira enquanto cadeira, mas é uma cadeira “cadeiríssima”, em comparação com a qual eu confiro todas as cadeiras que vejo. Analogamente, elaborei a ideia de espada “espadíssima”, que contém todas as qualidades imagináveis de uma espada; eu não a desenho, mas sou capaz de concebê-la. E assim vou concebendo com a abstração a ideia de outra ordem de seres que não existem, mas poderiam existir.

E, com uma perfeição incomparável, o Homem prototípico: A humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo! A mulher prototípica: Nossa Senhora! Jesus Cristo e Maria Santíssima, eu poderia imaginá-los na sua mera humanidade e, abstração feita do sobrenatural, numa ordem de coisas que também ainda não existiu.

São Tomás de Aquino nos ensina que, quando Deus criou as criaturas e elas começaram a se relacionar, iniciou o tempo. Vejam o livro do Gênesis: primeiro dia, Ele faz o primeiro ato criador e, como em roldana, começa a série de dias: entrou o tempo.

Mas São Tomás diz uma coisa curiosa: Deus poderia ter criado criaturas desde todo o sempre, fora do tempo, e que, naturalmente, seriam mais excelentes do que nós, que somos sujeitos a essas mudanças. Mais excelentes do que Adão e Eva e até mesmo do que os anjos! Porque os anjos não foram criados desde todo o sempre.

E nossa imaginação, nosso senso do ser, palpita com essa ideia de conhecer criaturas criadas desde todo o sempre. Se houvesse uma espada criada desde todo o sempre e reunindo em si todos os predicados de uma espada, na medida em que isso coubesse nas limitações da matéria; e se existisse também um puro espírito criado desde todo o sempre, e assim por diante, a ponta de nossa alma sente o mais alto frêmito da admiração, mas não consegue precisar nem definir.

É a ponta mais alcandorada da inocência que vibra sem sabermos como. É uma chispa que constitui em cada pessoa certo traço de genialidade, porque quando o homem chega a essa ponta, um pouco de genialidade que há nas mentes de homens comuns, e que existe às torrentes nas mentes dos gênios — São Tomás de Aquino, por exemplo —, essa ponta vibra com uma luz especial. Aí, temos o metafísico!

Termo último da Metafísica

E se nos voltarmos para esse mundo que não foi, mas poderia ter sido criado, mesmo assim nossa alma ainda não fica satisfeita. Porque se imagino um anjo criado desde todo o sempre, eu penso: “Do vale da Criação onde nasci, eu venero a tua culminância e te admiro, mas tu és para mim algo que revela e que vela. Revela porque no teu esplendor, para mim inimaginável, eu compreendo algo; vela porque, olhando-te, não posso ver o que está por detrás de ti. Anjo altíssimo, puríssimo, Alguém te deu o ser e tudo o que tens; foi teu Criador, logo há Alguém melhor do que tu. Tu és para mim uma imagem d’Ele, oh deleite! Mas tu não és senão imagem. Como será Ele?”

Aqui nós subimos ao ponto dos pontos, quer dizer, tudo que tem o anjo está para o Criador numa relação inferior àquela de uma árvore — que passasse mil anos dando constantemente frutas em todas as estações do ano — com uma só de suas frutas. Todas as frutas que a árvore produziu têm um fundamento no ser da árvore; senão não existiriam. Mas o Criador é eterno, Ele é absoluto, ninguém O criou. Tudo, para existir, tem um fundamento n’Ele. Logo, todas as belezas, perfeições, santidades, retidões têm um fundamento n’Ele, que é o padrão. Ele não é reto, mas a Retidão, não é santo, mas a Santidade!

De onde a santidade se identifica com o Ser d’Ele. Ele é suas qualidades, e suas qualidades são Ele. Ah! “Te Deum laudamus, Te Dominum confitemur…” Aqui é o caso de passar a palavra a Santo Ambrósio e Santo Agostinho.

Nossa admiração toca num Ser de uma densidade tal que Ele não é como as qualidades que nós temos. Como estas qualidades são efêmeras! Eu estou falando neste auditório não só com uma facilidade, mas, digamos, com um relativo desembaraço.

Estou com setenta anos, e devo fazer setenta e um no próximo mês. Sejamos muito otimistas, e otimistas até o delírio; daqui a trinta anos, se eu estivesse vivo, tudo se teria apagado! Aonde a facilidade de conjugar as palavras? De escolher a esmo os exemplos? Aonde a comunicação com o auditório? Uma voz hesitante, arrastante, um olhar vidrado…

Ou morto! Nós não nos identificamos com nossas qualidades. Nossas qualidades passam e nós ficamos. Nós as recebemos quando pequenos e as desenvolvemos a duras penas. E quando elas atingirem o apogeu, o ciclo de nossa vida está fechado; nós baixamos para a sepultura.

É verdade que nossa alma vai para o Céu, e no dia da ressurreição nossos corpos renascerão. Aí é a eternidade! Mas nessa vida, como tudo é instável, mutável! Lembro-me de uma frase de Bossuet, uma trilogia, num dos seus sermões sobre a Semana Santa. Falando a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, ele faz uma linda conjugação de adjetivos, mandando os fiéis contemplarem “un Dieu brisé, rompu, anéanti”. Um Homem-Deus quebrado, roto, aniquilado, na sua humanidade.

Até a musicalidade é bonita: “brisé, rompu, anéanti”!

Tudo que está em nós é destinado a ser “brisé, rompu, anéanti”, porque tudo passa.

Porque nós não somos nossas qualidades. E Deus é tudo! Ele pode tudo, sabe tudo! Ele sobrepaira a todos! Puríssimo espírito! Ele cria ao infinito, sem o menor esforço, apenas para criar. Compreendemos assim o que é o termo último para onde a Metafísica se dirige.

Esses paradoxos, que são próprios à ordem do ser, ao menos para mim, dão certo repouso.

A beleza do movimento tem fundamento no Ser imutável

Encontro aí algo que talvez seja uma peculiaridade minha. Essa eterna mutabilidade das coisas me cansa. Por um lado, ela me deleita, pois se não houvesse mutabilidade também me cansaria. A imobilidade me cansa e a mobilidade também. Mas há alguns homens que se cansam mais com a imobilidade, e outros que se cansam mais com a mobilidade. Cada um dos presentes neste auditório se examine um pouco. É um ponto interessante para se definirem.

A mim a mobilidade cansa mais do que imobilidade. Eu posso ficar, no mesmo lugar, durante um ano sem me cansar. Enquanto que, ao cabo de uma hora de mobilidade, eu já estou aspirando à imobilidade. Assim sou eu.

Por isso, quando viajo de automóvel logo me pergunto quanto tempo vai demorar até chegar ao destino: “Acaba com esse perpétuo roda-roda! Vamos fazer uma coisa fixa em que se possa olhar e pensar!”

Gosto de sentar-me para analisar, refletir e distender-me. Há outros que são o contrário: quanto mais mobilidade, melhor.

Depois dessa longa caminhada, no decurso da qual eu colhi cada flor que fui capaz de ver, e comi cada fruto que consegui notar, tenho um alívio quando penso no Absoluto. Então, tudo isto para num Ser terminal e inicial supremo, fixo e eterno. Ele não muda nunca e a sucessão dos aspectos das coisas n’Ele está parada. E numa posição eterna! Riquíssima! Esplendorosa!

Imutável? Sim, mas com toda a força e a graça do motor primeiro, que move sem se mover e do qual todo movimento nasce. De maneira que a própria beleza do movimento tem seu fundamento nesse Ser imutável. E tudo que eu vejo de belo na mutabilidade, no Imutável com “I” maiúsculo existe também.

Repouso, afinal! Encontrei o que eu queria! A minha vida teve sua razão de ser. Adoremo-Lo e percamo-nos n’Ele.

O que eu fiz? Metafísica! Fazendo Metafísica, atendi ao pedido que me foi feito no início de nossa reunião.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

1) Expressão criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

Pela dor do santo Encontro…

Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria perguntar por que chorais? Nem a terra, nem o mar, nem todo o firmamento poderiam servir de termo de comparação à Vossa dor. Dai-me, minha Mãe, um pouco, pelo menos, dessa dor. Dai-me a graça de chorar a Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda:

“Ó minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado, precisamente como O vistes neste passo da Paixão.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Da Via-Sacra composta por Dr. Plinio em 1951).

 

Sainte Chapele – a capela da inocência.

Concebida por São Luís IX, a Sainte Chapelle (Capela Santa) foi edificada para servir de magnífico relicário a um dos espinhos da dolorosa coroa da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Já no seu exterior aparece sua pulcritude, deixando ver a leveza, o esguio, o elegante desse templo-escrínio e o sobrenatural que o impregna. Chama a atenção, de modo especial, o telhado com  seus adornos e suas torres. Está construído em ângulo bem fechado, o que lhe confere maior graciosidade e ligeireza, dando a impressão de que está prestes a alçar voo. Pode-se imaginar que,  soprando um vento forte, a Sainte Chapelle se lançaria em direção às imensidões do firmamento, e ali, em meio às nuvens e ao azul, tornar-se-ia ainda mais bela que na terra.

A torre central, antes um campanário, termina numa flecha que se atira para o alto, constituindo uma espécie de símbolo e de gráfico do desejo do homem de subir até Deus. Em uma das  extremidades do telhado há um florão sobre o qual pousou um anjo. São tão bem-proporcionados um ao outro, o pedestal e seu anjo, que, dir-se-ia, se este último fizesse qualquer movimento, o  florão vergaria. O anjo perderia o equilíbrio. É quase como se um pássaro estivesse pousado sobre uma delicada flor…

* * *

Quem, pela primeira vez, visita o pavimento inferior da Sainte Chapelle, ignorando tratar-se apenas de uma antecâmara do andar de cima, dificilmente retém uma exclamação  de encanto e deslumbramento, pensando ter encontrado a suprema beleza desse edifício. Depara-se com proporções inusitadas, que conseguem conciliar numa mesma perspectiva a elevação e a intimidade, e incutem no fiel que ali reza a impressão de estar sendo recebido carinhosa e afetuosamente por Deus, na sua sala mais interna.

Esse efeito extraordinário é obtido por meio das tênues e esguias colunas. Ora formam ogivas aderentes às paredes, ora se abrem de modo tão harmonioso, tão gradual e tão perfeito, que parecem  palmeiras cujas folhas se tocam no teto.

É preciso dizer que as ogivas exercem um incomparável fascínio. Cada uma é linda, tomada isoladamente, mas o conjunto delas é ainda mais gracioso. As colunas, igualmente, são de uma  particular formosura, acentuada pelas pinturas; juntas, porém, são de uma beleza indescritível. Narra a Sagrada Escritura que Deus, quando criou o universo, repousou no sétimo dia, contemplando a obra que havia realizado.

Então se Lhe tornou patente que, se as criaturas eram individualmente belas, a criação vista no seu  todo as vencia em esplendor. É o que se dá com a Sainte Chapelle. Esse andar inferior, de tão  arrebatadora beleza, era o local onde o povo e os servidores do palácio real assistiam à Missa, ao mesmo tempo em que na capela alta se celebrava outro Santo Sacrifício, para São Luís IX e os nobres da corte.

* * *

Ao penetrar no pavimento superior, o visitante fica arrebatado de imediato, extasiando-se com a feeria do conjunto das colunas, ogivas e sobretudo vitrais! Tão predominante é o papel dos vitrais    que a capela parece toda feita deles. De pedra há apenas o necessário para escorar o teto e suportar os caixilhos nos quais repousam cristais e vidros bem trabalhados em sua diversidade de cores, precisão dos desenhos e elegância das formas. Ao admirar o efeito produzido, vem-nos ao espírito esta ideia: “Não pensei que fosse possível, com os elementos desta terra, realizar algo assim tão  parecido com o Céu!”

Pois bem, essa maravilhosa edificação só se tornou factível em virtude da fé católica. Quer dizer, não fosse o fato de ela ter sido construída em séculos de fé, por artistas de fé, e, antes de tudo,  concebida por almas resgatadas pelo preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que lhes abriu a porta do Céu e as elevou à vida sobrenatural por meio de uma abundante infusão da  graça — o gênio humano não lograria idealizar semelhante prodígio de  beleza.

Nascida da devoção de almas profundamente impregnadas de fé e pureza batismal, essa se poderia chamar a Capela da Inocência. Pela candura que se faz notar no esguio, no elevado de suas  linhas tendentes ao mais alto, realizando um extraordinário equilíbrio de espírito, ela empolga, conduz ao auge do entusiasmo, porém um auge tão calmo, sereno e refletido, que não produz frenesi nem sensações por demais fortes ou intemperantes. Que obra prima da temperança! Tudo é lindo, magnífico, tudo arrebata. Mas tudo recolhe e tudo reza. É o ápice da candura, da  contemplação e da meditação.

Cada peça de vitral, cada pedra e cada ogiva é como uma prece, em torno do centro da oração: o altar, onde se renova de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário. No seu alto é exposto um  espinho da Coroa do Divino Salvador, trazido a pé e com indizível devoção, por São Luís IX, dos confins da França até Paris. É a pedra de ângulo de toda a extraordinária beleza dessa obra de arte.

Harmonia e variação, movimento e consonância, estabilidade e agilidade. É a Sainte Chapelle.

Plinio Corrêa de Oliveira